INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o escotismo vem se tornando um tema recorrente entre os estudos sobre história da educação no Brasil (HEROLD JUNIOR; MELO, 2018; HEROLD JUNIOR; VAZ, 2016; 2015; 2012; HEROLD JUNIOR, 2016; 2013; 2011; OLIVEIRA; MÉNDEZ, 2015; RABELO; BARRETO, 2013; NASCIMENTO, J. C. 2008; NASCIMENTO, A., 2004; SOUZA, 2000). De maneira geral, estes estudos tomam o escotismo como um tipo de associação voluntária (RABELO; BARRETO, 2013) que exerceu um importante papel na formação da juventude brasileira, especialmente nas duas primeiras décadas após sua chegada ao país. Seja em vínculo com instituições escolares ou como uma iniciativa educativa marcadamente afastada do âmbito escolar, o escotismo representou um importante objeto de interesse de diferentes grupos e indivíduos interessados na formação da infância e da juventude: Herold Junior e Melo (2018), por exemplo, recentemente se debruçaram sobre uma série de indícios das relações entre escoteiros e clubes esportivos na cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, analisando as articulações entre esporte e escotismo como práticas de formação da juventude carioca. No presente artigo, buscamos compreender como o escotismo foi tomado como um elemento educativo por uma instituição específica: as sociedades ginásticas teuto-brasileiras, especialmente aquelas concentradas no Rio Grande do Sul.
Durante o século XIX e as primeiras décadas do século XX, o Brasil se tornou destino de milhares de indivíduos que deixaram seus países de origem por distintas razões. Entre estes diferentes grupos, os alemães se destacam não pela quantidade de indivíduos1, mas por terem sido um dos primeiros grupos a chegar ao país (a primeira colônia foi criada no Rio Grande do Sul, em 1824, logo nos primeiros anos de estabelecimento de uma política migratória) e pela rede de associações que criaram nas regiões onde se instalaram. Como outros grupos de imigrantes, trouxeram consigo práticas, crenças e costumes que buscaram cultivar no novo país, e as associações foram um importante espaço para sua preservação, disseminação e mesmo adaptação nesta nova realidade.
A densa rede associativa que se observa nas áreas de colonização alemã começou a se formar a partir de meados do século XIX e ganhou força a partir da década de 1880, quando um maior número de imigrantes oriundos de áreas urbanizadas e com níveis mais elevados de formação passaram a se instalar nas colônias, especialmente naquelas situadas no meio urbano. Em meio às distintas sociedades por eles organizadas, as classificadas como “recreativas” (SEYFERTH, 1999) estavam entre as mais numerosas destacando-se entre elas as sociedades ginásticas (Turnvereine).
As primeiras sociedades ginásticas teuto-brasileiras foram fundadas em Joinville e no Rio de Janeiro, no final da década de 1850. Entretanto, assim como o associativismo teuto-brasileiro de maneira mais ampla, somente a partir dos anos 1880 observa-se uma intensificação no crescimento deste tipo de associação, especialmente na região Sul do país, que, segundo levantamento de 1932, agrupava o maior número de sociedades desse tipo. Das 57 sociedades apontadas neste levantamento, 22 estavam no Rio Grande do Sul e 20 em Santa Catarina (DIE T. R. G. ZUM AUSLANDE, 1932).
Uma análise dos estatutos destas sociedades revela que seu objetivo era o fortalecimento físico, moral e espiritual de seus associados por meio da prática do Turnen, método ginástico criado por Friedrich Ludwig Jahn na Alemanha, no início do século XIX. Apresentavam um cotidiano dinâmico, com sessões de ginástica à noite, durante a semana, e, aos finais de semana, com passeios junto à natureza e encontros em suas praças de jogos, locais ao ar livre onde podiam praticar corridas, saltos, nado, lançamentos, arremessos e distintos jogos que foram paulatinamente incorporados pelos ginastas, como o punhobol, o Tamburinball, o handebol e o futebol. Todavia, compreendendo-se como “postos avançados da germanidade no exterior”, estas associações não se limitavam a atividades puramente corporais, buscando oferecer também apresentações teatrais, bibliotecas e encontros musicais, majoritariamente em alemão, com o objetivo de contribuir para a preservação da língua e da cultura alemã no país que os recebera (QUITZAU, 2011; 2016).
Ao longo das oito décadas em que estas associações atuaram de maneira praticamente ininterrupta em nosso país, é possível perceber uma preocupação recorrente com a educação da juventude teuto-brasileira, visível na publicação de distintos textos que exaltavam a importância da prática de exercícios físicos pelas crianças e jovens e a necessidade de educá-los desde cedo neste ambiente, para que, quando adultos, continuassem os esforços pela manutenção e disseminação do Turnen e, mais amplamente, da germanidade. Neste sentido, era comum que estas associações oferecessem suas instalações para que as escolas alemãs da cidade levassem seus alunos, nos dias e horários em que não eram utilizadas por seus associados (como era o caso da Turnerschaft von 1890 in São Paulo), ou mesmo assumissem as aulas de ginástica oferecidas nestas instituições escolares (como acontecia com a Turnerbund Porto Alegre, cujos professores de ginástica também davam aulas para os alunos das escolas alemãs da cidade).
Independentemente de terem uma conexão com as escolas alemãs locais, estas associações mantinham departamentos específicos para jovens e crianças, geralmente divididos entre meninos e meninas. Eram frequentes em suas publicações textos que exaltavam a prática do Turnen e dos exercícios físicos ao ar livre pelos jovens e exortavam seus associados a levarem seus filhos para suas sociedades, como fazia a Teuto-Brasilianischer Turnverein Curitiba ao pedir a seus membros que “deixem nossa juventude se fortalecer na aula de ginástica, viver ao ar livre, na luz e no sol, pois nossas crianças são o maior bem da nação, elas são nossa esperança de um futuro melhor” (TEUTO-BRASILIANISCHER..., 1929, p. 8).
É comum observarmos nas sociedades ginásticas uma exaltação à vida ao ar livre, à prática de jogos e atividades em meio à natureza como um importante complemento à ginástica em seu objetivo de fortalecimento corporal, espiritual e moral da população teuto-brasileira, especialmente como um contraponto aos males oriundos da vida nas cidades em formação. Entretanto, as atividades oferecidas por estas associações variavam, e entre as particulares existentes destaca-se, no Rio Grande do Sul ― nomeadamente em Porto Alegre, São Leopoldo, São Sebastião do Caí e Santa Cruz2 ―, o oferecimento e a organização do escotismo no âmbito das sociedades ginásticas, como um departamento com relativa autonomia, mas diretamente vinculado a estas associações, em um movimento que, conforme se pode observar pelas fontes, parece ter se desenvolvido apenas neste estado.
Segundo Herold Junior (2016; 2013) e Herold Junior e Vaz (2016; 2015; 2012), o escotismo foi um movimento iniciado pelo general inglês Robert Stephenson Smyth Baden-Powell em 1907. Ao criá-lo, Baden-Powell partia de uma crítica intensa à sociedade inglesa moderna e a seu sistema educativo, que se afastavam cada vez mais da natureza e buscavam apenas um desenvolvimento intelectual da juventude. Herold Junior e Vaz (2012), ao analisarem a educação corporal nos escritos de Baden-Powell, afirmam que
a mesma civilização vista como valiosa para ser “transmitida” como modelo aos “incultos”, também poderia se transformar em obliteradora e cultivadora de vícios. Estes poriam em cheque a viabilidade de existência da própria civilização, levantando dúvidas sobre a possibilidade, a necessidade e o sucesso de sua “transmissão”. Por isso, gestado em um movimento expansivo da “civilização europeia”, o escotismo foi importante por lutar contra os efeitos negativos trazidos por esses valores, deles cuidando por se assumir como justificáveis os interesses de um país de ambições imperiais (HEROLD JUNIOR; VAZ, 2012, p. 167).
Expressão do ímpeto imperialista e colonialista inglês de fins do século XIX (MÉNDEZ; SCHARAGRODSKY, 2016), mas, principalmente, de um período em que uma série de movimentos da juventude começam a ser organizados (SELTEN, 1996) e um ideário de vida ao ar livre começa a ganhar força como contraponto à vida nas cidades, o escotismo se compreendia como um sistema educativo complementar ao escolar, em que o contato direto com a natureza contribuiria para o fortalecimento físico e moral da juventude, conquistando rapidamente grande quantidade de adeptos em diferentes países, inclusive o Brasil, onde aportou no ano de 1910, com a criação do Centro Brasileiro de Boys Scout, no Rio de Janeiro (OLIVEIRA; MÉNDEZ, 2015), onde rapidamente foi incorporado por diferentes clubes esportivos (HEROLD JUNIOR; MELO, 2018).
No que diz respeito ao escotismo vinculado às sociedades ginástica teuto-brasileiras, apesar de ser aparentemente localizado no Rio Grande do Sul, e limitado a algumas sociedades, este movimento se tornou bastante organizado, chegando-se à fundação de uma Liga de Escoteiros Teuto-Brasileiros do Rio Grande do Sul (Deutschbrasilianischer Pfadfinderbund für Rio Grande do Sul), à sua incorporação à Deutscher Pfadfinderbund (Liga dos Escoteiros Alemães) ― e não à Associação Brasileira de Escoteiros (1914) ― e à publicação de um periódico próprio, intitulado Am Lagerfeuer, o que nos fornece um indício da importância que este movimento tomou no âmbito do associativismo ginástico teuto-brasileiro neste estado. Neste sentido, cabe-nos perguntar: de que maneira o escotismo se vinculava ao Turnen na educação da juventude teuto-brasileira nestas associações? Se os jogos e as caminhadas junto à natureza já eram práticas comuns nestas sociedades ginásticas, por que adotar o escotismo? Considerando-se que estas associações estavam em constante contato com a organização do Turnen e seus desenvolvimentos na Alemanha, de que maneira a Deutsche Turnerschaft, entidade alemã à qual as sociedades teuto-brasileiras eram afiliadas, via o escotismo?
O objetivo deste artigo é analisar a organização do movimento escoteiro no âmbito do associativismo ginástico teuto-brasileiro do Rio Grande do Sul, buscando compreender de que maneira estas instituições estabeleceram o diálogo entre Turnen e escotismo como formas de educação da juventude, no período compreendido entre os anos de 1913 (quando se fundou o primeiro grupo de escoteiros vinculado a uma sociedade ginástica) e 1934, quando alguns grupos escoteiros deixaram suas sociedades ginásticas, sendo substituídos por um novo departamento denominado Turnerjugend (“juventude ginástica”).
O corpus documental desta pesquisa é composto por distintas publicações das próprias sociedades ginásticas teuto-brasileiras do Rio Grande do Sul, artigos em jornais em língua alemã que circulavam pelo estado e fotografias. Considerando que estas instituições apresentavam forte ligação com sua terra de origem, sendo filiadas à Deutsche Turnerschaft e buscando manter-se atualizadas a respeito dos caminhos que a ginástica tomava neste país, utilizamo-nos também do Deutsche Turnzeitung, órgão oficial da Deutsche Turnerschaft e que circulava entre as sociedades ginásticas teuto-brasileiras (QUITZAU, 2016), para tentar compreender de que maneira as sociedades ginásticas da Alemanha se relacionavam com o movimento escoteiro. O levantamento de fontes sobre o associativismo teuto-brasileiro foi realizado em distintos arquivos públicos e privados brasileiros e alemães, sendo que a documentação referente especificamente ao tema do presente artigo foi encontrada nas seguintes instituições: Instituto Martius-Staden (São Paulo); Museu Histórico Visconde de São Leopoldo (São Leopoldo/RS); Bibliothek des Instituts für Sportwissenschaft (Münster/Alemanha); Zentralbibliothek der Deutschen Sporthochschule Köln (Colônia/Alemanha); Deutsche National Bibliothek (Leipzig/Alemanha) e Bibliothek des Ibero-Amerikanisches Instituts Preußischer Kulturbesitz (Berlim/Alemanha).
GINÁSTICA, VIDA AO AR LIVRE E ESCOTISMO
No ano de 1913, o então responsável pela ginástica da Turnerbund Porto Alegre, Georg Black, viajou para a Alemanha para acompanhar dois eventos de grandes proporções que ocorreram na cidade de Leipzig: a Deutsches Turnfest, organizada periodicamente pela Deutsche Turnerschaft, e a inauguração do monumento construído em celebração ao centenário da “batalha dos povos”, que colocara fim ao domínio napoleônico sobre vários territórios europeus. Ao retornar ao Brasil, Black trazia consigo uma novidade que rapidamente se engajou para colocar em prática em sua associação: o escotismo.
A Alemanha visitada por Black era um cenário em que um ideário de vida ao ar livre e exercícios junto à natureza perpassavam os discursos médicos e educativos veiculados por distintos grupos. Segundo Williams (2007) e Huerkamp (1986), neste período se desenvolvia no país um movimento naturista baseado nas ideias da chamada Lebensreform (reforma da vida), cujo principal objetivo era funcionar como um contraponto à sociedade urbano-industrial, aproximando os indivíduos de formas de vida mais naturais a partir de práticas que variavam desde a abstinência de álcool e nicotina até a adoção de hábitos como o nudismo e as curas naturais.
Segundo Williams (2007), surgiram neste cenário alguns movimentos que se dedicavam a atividades junto à natureza, como os Wandervogel, e que tinham como principal objetivo o cultivo da juventude (Jugendpflege). Em meio a estes grupos, surgiram algumas organizações específicas, como a Liga Jovem Alemã (Jungdeutschlandbund) e a Liga Alemã de Escoteiros (Deutscher Pfadfinderbund - D. P. B.), ambas fundadas em 1911.
Uma das principais atividades realizadas por estes grupos eram as caminhadas na natureza, realizadas pelos Wandervogel, escoteiros e mesmo pelos ginastas. A partir dessa noção de cultivo da juventude, estes grupos viam nas caminhadas uma oportunidade de afastar os jovens dos vícios da sociedade urbano-industrial, ensinar-lhes a controlar seus desejos e, também, conhecer as diversas regiões de seu país (WILLIAMS, 2007). Especialmente esta ideia de conhecer o país por meio das caminhadas não era uma novidade, mas pode ser remontada, ao menos, até os escritos de Jahn, que em seu primeiro livro, Deutsches Volkstum (1810), defendia a realização das chamadas “caminhadas patrióticas” (vaterländische Wanderungen) como uma forma de possibilitar aos indivíduos entrar em contato com outros conterrâneos e aprofundar seus conhecimentos sobre seu país.
Um ideário de vida ao ar livre e a noção de cultivo da juventude, portanto, faziam-se presente no âmbito do associativismo ginástico. Nas primeiras décadas do século XX, o Deutsche Turnzeitung, principal veículo de informação deste movimento, passou a trazer em seus jornais uma sessão denominada justamente Jugendpflege (cultivo da juventude), que reunia artigos relacionados aos exercícios físicos e a juventude. Nela é possível encontrar algumas referências a estes outros grupos que se dedicavam ao cultivo da juventude a partir de um retorno à natureza, como os Wandervogel e os escoteiros.
Considerando-se que as sociedades ginásticas teuto-brasileiras buscavam seguir os mesmos rumos que suas congêneres alemãs e manter-se atualizadas com as mudanças no âmbito do Turnen, se poderia pensar que uma aproximação entre sociedades ginásticas e escotismo estivesse se criando no período, uma vez que os ginastas, paulatinamente, estavam incorporando outras práticas, como os esportes. Ao consultarmos o Deutsche Turnzeitung, percebemos que as poucas menções ao escotismo são, em geral, pequenas notas sobre suas atividades. Entretanto, o primeiro e único extenso artigo publicado sobre o tema não apresentava uma postura favorável a este movimento.
Assinado por A. Rößner, um professor de ginástica de Leipzig, o artigo, publicado em dezembro de 1909, faz uma análise do manual de escotismo que acabara de ser lançado no país, intitulado Das Pfadfinderbuch e assinado pelo médico Alexander Lion, em colaboração com outros três autores, entre eles, um professor de ginástica. Segundo Rößner, todos os interessados no cultivo da juventude deveriam buscar informações sobre as novidades referentes ao tema, e o escotismo era uma dessas novidades. O livro seria inspirado na obra de Baden Powell e apresentava uma organização dos escoteiros alemães segundo o modelo inglês.
Rößner tece uma análise minuciosa, reconhecendo que apresenta um bom conteúdo, mas concentrando-se especialmente naquilo que considera como “fraquezas internas” do sistema, desde exemplos usados pelos autores e considerados por ele como “banalidades bastante superficiais” até questões mais profundas, como a própria operacionalidade da proposta que, ao apresentar uma alta demanda de tempo de preparação das atividades, assim como dos próprios indivíduos para liderar os grupos, se tornaria inviável. Contudo, o principal foco das críticas de Rößner recai sobre o fato de que, para um sistema que se propunha “como grande tarefa ‘formar homens no melhor sentido da palavra’ e ‘preencher as lacunas na educação corporal de jovens entre 14 e 18 anos’ ” (RÖßNER, 1909, p. 917), faltava na proposta, justamente, o exercício do corpo. Afirma que
a arte da observação, a vida no campo, o serviço de campo, também não são suficientes, para preencher essa lacuna na educação corporal entre 14 e 18 anos de idade. Os órgãos do corpo não tiram muito proveito disso, especialmente se pensamos que os exercícios não podem ser feitos com muita frequência e regularidade. As lacunas são preenchidas quando o escoteiro aprende, “em terras civilizadas, a diferenciar entre rastros de homens, animais e bicicletas e, a partir disso, concluir quem passou por aqui ou há quanto tempo”, [...] ou sinaliza por meio de bandeiras, fogo ou fumaça? Isso não é mais uma educação cultural, isso pertence às escolas profissionais para detetives e guardas florestais (RÖßNER, 1909, p. 920).
Há ainda outro aspecto vinculado à questão da educação corporal que incomoda o autor e que, talvez, seja a principal razão para sua aparente oposição a este novo sistema. Ao entenderem que “toda organização existente pode, sem grandes mudanças, introduzir o sistema escoteiro entre suas aspirações” e afirmarem existir uma lacuna na formação corporal da juventude alemã, apontando para o sucesso da organização inglesa, os autores de Das Pfadfinderbuch estariam ignorando o trabalho realizado pela Deutsche Turnerschaft ao longo dos anos (RÖßNER, 1909, p. 918). Para Rößner, não haveria sentido em inserir o escotismo no cotidiano das sociedades ginásticas, uma vez que os bons exercícios deste sistema (como aprender a aferir distâncias e alturas, orientar-se por mapas e estrelas, princípios de primeiros socorros, entre outros) poderiam ser ensinados nas caminhadas junto à natureza que já faziam parte das atividades dos ginastas, de forma a “ampliar a tarefa da educação corporal, sem com isso abandonar os ideais ginásticos” (RÖßNER, 1909, p. 920). Somente nesse sentido seria indicada uma aproximação com o escotismo.
Conforme Bowersox (2013), Das Pfadfinderbuch teve uma nova edição em 1911, na qual os autores, entre outras alterações, “também reescreveram a genealogia do movimento para enfatizar suas origens alemãs. De acordo com eles, a história dos escoteiros não começou com Baden-Powell em Mafeking, mas com o herói nacionalista Turnvater Ludwig Jahn, na ‘bela primavera do ano 1810’ ” (BOWERSOX, 2013, p. 199, grifo do autor). Talvez essa tentativa de aproximar as figuras de Jahn e Baden-Powell tenha contribuído para uma aproximação entre escotismo e Turnen. Exceto pelo artigo de Rößner, as outras notas encontradas são neutras ou positivas, trazendo alguns dados sobre o crescimento do movimento escoteiro em algumas regiões, indicando o lançamento de literatura sobre o tema ou anunciando sua participação em assembleias próprias ou relacionadas ao movimento de cultivo da juventude. Destaca-se, entretanto, uma nota, de 20 de março de 1913, em que a Turnverein München von 1860 anuncia a incorporação do grupo de escoteiros do Dr. Nägele a sua sociedade e afirma que “os escoteiros na Turnverein München von 1860, a partir de agora, serão educados em exercícios corporais como o Turnen, esgrima e natação” (PFADFINDER..., 1913, p. 229).
Foi a partir deste quadro de influências, portanto, que Georg Black entrou em contato com o movimento escoteiro na Alemanha, em 1913. O fato de que, em geral, os registros encontrados em nossos documentos apontam para uma relação cordial entre escoteiros e sociedades ginásticas, mas não para uma incorporação dos primeiros pelos últimos, somado à ausência de referências ao tema em outros trabalhos sobre o associativismo ginástico3, reforçam a ideia de que a formação de grupos escoteiros dentro de sociedades ginásticas alemãs tenha sido um fenômeno particular do caso teuto-brasileiro ou, mais especificamente, rio-grandense.
Logo ao retornar a Porto Alegre, Black passou a se reunir com um pequeno grupo de cerca de 5 meninos, aos domingos à tarde, para a realização de atividades escoteiras na praça de jogos da Turnerbund. Poucos anos após o início deste grupo de escoteiros, encontramos também menções a um grupo em Taquara, que inclusive teria uma publicação própria, intitulada Der Pfadfinder (PFADFINDERKORPS, 1915), e a grupos em São Leopoldo e São Sebastião do Caí4 (BLACK, 1915). Estas associações formaram, em 26 de janeiro de 1917, a Deutschbrasilianische Pfadfinderbund für Rio Grande do Sul (Liga de Escoteiros Teuto-brasileiros do Rio Grande do Sul), filiando-se no mesmo ano à já mencionada Deutsche Pfadfinderbund, onde passaram a conformar o Landesgruppe Rio Grande do Sul des D. P. B. (Grupo Regional Rio Grande do Sul da D. P. B.). Em 1917 é mencionada também a existência de um grupo em Santa Cruz do Sul, mas não vinculado à sociedade ginástica (KOLFHAUS, 1917) e, anos mais tarde, em nota sobre um encontro realizado em Lajeado, também sabemos da existência de um grupo nesta cidade (PFADFINDER, 1927). O que não fica claro, neste caso, é se este grupo também era vinculado à sociedade ginástica ou se funcionava em outros espaços.
Um importante indício para compreendermos as relações entre escotismo e sociedades ginásticas é um artigo publicado na Deutsche Turnblätter de janeiro de 1917. Assinado por Kolfhaus, diretor da Liga de Escoteiros Teuto-Brasileiros do Rio Grande do Sul, apresenta quatro princípios que deveriam nortear esta colaboração, comentando-os um a um. O primeiro deles diz respeito justamente à vinculação dos grupos escoteiros às sociedades ginásticas. Conforme o artigo, estes grupos deveriam ser subdepartamentos autônomos dentro das sociedades ginásticas, o que lhes garantiria a possibilidade de trabalhar em segurança. Num período em que, devido à eclosão da Primeira Guerra, ganhava mais força a ideia de um “perigo alemão”, “colocá-las como departamentos de instituições que não são consideradas politicamente suspeitas” (KOLFHAUS, 1917, p. 5) seria uma forma de assegurar que pudessem seguir com suas ações.
A ideia de um “perigo alemão” não era novidade da Primeira Guerra. Ao contrário, já circulava no Brasil desde o fim do século XIX, alimentada pelo relativo isolamento deste grupo em núcleos coloniais organizados, nos quais esforçavam-se para manter seus costumes e sua língua, e pela ideia de que um dos objetivos da política expansionista de Otto von Bismarck seria a anexação destes territórios de colonização germânica. Esta noção pode ser encontrada, por exemplo, no livreto publicado em 1906 por Sylvio Romero, intitulado O Allemanismo no sul do Brasil: seus perigos e meios de o conjurar. Quando Brasil e Alemanha se colocam em lados opostos na guerra, ela retorna com força, passando a fazer parte das preocupações cotidianas das sociedades ginásticas. Aparece, por exemplo, em 1915, quando Black se pergunta:
Por que não podemos juntar um dia milhares de meninos teuto-brasileiros para exercícios coletivos com culto campal, exercícios de escotismo e festa no final da tarde? O discurso do “Perigo Allemão” deveria nos assustar? Nós trabalhamos pelo melhor da pátria, Brasil, educando cidadãos hábeis, mesmo quando queremos nos manter alemães em sentimento (BLACK, 1915, p. 75).
A juventude era uma categoria de grande importância para estas associações, pois significava a continuidade dos trabalhos de manutenção do Turnen e da germanidade em terras brasileiras. Para um grupo que buscava atingir a maior quantidade possível de jovens para educá-los segundo seus ideais, atuando, por exemplo, em parceria com as escolas alemãs de suas colônias, a existência de outro grupo com objetivos similares poderia colocar em risco seus trabalhos e sua esfera de influências. Assim, permitir que os escoteiros se desenvolvessem em seu interior era uma alternativa a mais para atuar diretamente na educação de crianças e jovens e eliminava um rival em potencial no que diz respeito ao cultivo da juventude, evitando que “ambos danifiquem profundamente uns aos outros” (KOLFHAUS, 1917, p. 5).
Os outros três princípios expostos por Kolfhaus também dizem respeito às questões burocráticas desta relação. Da existência como subdepartamento das sociedades ginásticas resultava que os escoteiros tinham direito de permanência nas dependências destas associações; que o líder do departamento tinha vaga na diretoria, com direito a voto; que a sociedade ginástica tinha direito a acionar o departamento para auxiliar em seus eventos festivos; e que “alunos das escolas somente podem participar do Departamento de Meninos da associação se forem escoteiros. Os escoteiros continuam a fazer parte do Departamento de Meninos” (KOLFHAUS, 1917, p. 6).
O estabelecimento da participação no Departamento de Escoteiros para que os alunos das escolas pudessem fazer parte, também, do Departamento de Meninos dessas associações nos indica o lugar que o sistema escoteiro começava a ocupar nestas instituições como um meio de educação da juventude. Ao que parece, os responsáveis por este movimento escoteiro compartilhavam da ideia de que o escotismo deveria ser um complemento à educação escolar, noção que aparece claramente em artigo publicado na Deutsche Turnblätter de agosto de 1915, assinado por Dr. Bohlen, de Münster, Alemanha.
De acordo com Dr. Bohlen, o trabalho escolar não poderia ser prejudicado pelo escotismo, e este deveria funcionar como um complemento, um apoio ao primeiro, unindo os conhecimentos e capacidades oferecidos pela escola e promovendo uma instrução saudável e o fortalecimento da honra (BOHLEN, 1915, p. 43). O escotismo poderia ser um aliado da instituição escolar, pois
ensina um olhar consciente e uma observação individual clara, oferecendo com isso pontos de partida para algumas disciplinas: ciências naturais e geografia [...] Muito marcado é o uso do escotismo como base sobre a qual se apoia o sucesso da aula. [...]
O escotismo também interfere favoravelmente em outro ponto: a luta contra o alcoolismo [...] (BOHLEN, 1915, p. 44).
Complemento ao ensino escolar e proteção contra os vícios, nomeadamente o alcoolismo. Estes aspectos não são criação de Bohlen ou uma particularidade do escotismo vinculado ao associativismo ginástico, mas circulavam já nos primeiros escritos de Baden-Powell, em que a natureza emergia como um espaço que libertaria de todos os males e permitiria um aprendizado concreto, a partir da prática (HEROLD JUNIOR; VAZ, 2012; MÉNDEZ; SCHARAGRODSKY, 2016). Também não são uma novidade em relação ao próprio movimento ginástico, uma vez que estas mesmas associações justificavam as atividades junto à natureza, especialmente as caminhadas, como importantes contrapontos à vida nos corrompidos ambientes urbanos. O que merece nossa atenção, todavia, é que em nenhum momento em nossas fontes se menciona Baden-Powell ou seus escritos como referencial para o movimento escoteiro. Os textos são de autoria de membros das próprias sociedades ginásticas ou, no caso do Dr. Bohlen, de autoridades alemãs.
Tendo em vista o desejo das sociedades ginásticas de atingir o maior número possível de jovens teuto-brasileiros, o terceiro princípio exposto por Kolfhaus garantia que os membros do Departamento de Escoteiros não precisavam ser associados ou filhos de sócios da sociedade ginástica. Somente caso o Departamento escolhesse como líder alguém que não fosse membro da sociedade ginástica, este deveria afiliar-se imediatamente. Por fim, segundo estes princípios básicos, se houvesse qualquer conflito entre sociedade ginástica e departamento de escoteiros, deveria ser resolvido por uma comissão composta por membros da diretoria da Turnerschaft von Rio Grande do Sul5 e da Deutschbrasilianische Pfadfinderbund für Rio Grande do Sul (KOLFHAUS, 1917, p. 6).
O escotismo, assim, despontava como importante departamento destas associações, que de certa maneira deveria proteger os jovens contra os prazeres e vícios oferecidos constantemente pela cidade, esse ambiente onde
o cinema e a “radiante” Rua das Praias é seu mundo. Lá, jovens senhores passeiam, rosa no buraco do botão, cigarro na boca, vestido conforme a última moda, oferecendo ao olhar, com elegância soberana, a beleza do homem, do sexo “forte”. Mas para isso o habilidoso alfaiate cobriu muito bem as deficiências da natureza. Em sapatos de couro recém polidos os dedos atrofiados ficam uns sobre os outros. [...] Em poucos anos o então vivo jovem se transformou em um macaquinho da moda (BLACK, 1915, p. 77).
Se o Turnen era uma prática que desde cedo acostumaria crianças e jovens a voluntariamente “enquadrar-se e subordinar-se”, que “forja seu corpo” contribuindo para transformá-los em adultos “completos” e preparados para enfrentar as lutas que a vida lhe imporia posteriormente (UNSER KINDERTURNEN, 1936), a austeridade inerente ao escotismo se tornaria um importante aliado neste ideal de educação da juventude teuto-brasileira, não apenas afastando-a dos vícios, mas reaproximando-a da germanidade que supostamente estaria perdendo pelo contato com a “forma de vida mais leve” dos brasileiros (BLACK, 1915, p. 77). Neste sentido, Turnen e escotismo compartem dessa ideia de disciplinamento e subordinação, o que fica especialmente claro quando a Turnerbund Porto Alegre afirma que, por meio do escotismo, os garotos deveriam aprender a
[...] sacrificar sua “liberdade”, ao invés de ver os outros passarem ou de estragarem seu gosto e sua vista no cinema, exercitar seus corpos e espíritos no difícil serviço no ambiente externo e aprender a aguentar a queimadura do sol e a chuva, o calor e o frio! [...] Pois a mais alta lei do escotismo, “sempre pronto”, deve ser provada também na vida privada, na escola e em casa (DIE PFADFINDERABTEILUNG..., 1917, p. 22).
O grupo de Porto Alegre, ao qual se refere a maioria dos documentos, se reunia todas as quartas-feiras à noite para o aprendizado das técnicas escoteiras e, aos domingos, na praça de jogos da Turnerbund (DAS PFADFINDERKORPS, 1915, p. 3). Com o propósito de educar a “juventude de origem alemã em homens hábeis, fortes e determinados” que pudessem percorrer “novos caminhos, sem desperdiçar sua força e mobilidade nos superficiais prazeres do cotidiano”, este departamento via nos passeios a pé e excursões um meio de ensinar os jovens a conhecer e amar a pátria que os havia acolhido (JAHRESBERICHT..., 1931, p. 22).
Ao longo dos anos o escotismo visivelmente alcançou um lugar de importância como forma de educação da juventude nas sociedades ginásticas teuto-brasileiras. Foi, portanto, um grande golpe quando, no início da década de 1930, algumas dessas sociedades, como a Turnerbund Porto Alegre e a Turnverein São Sebastião do Cahy, repentinamente perderam estes departamentos. Em manuscrito encontrado sobre a sociedade ginástica de São Sebastião do Caí, sem entrar em muitos detalhes, afirma-se que “no mês de maio [1934] foi formado em nossa sociedade ginástica um grupo de jovens ginastas, pois o escotismo fora oficialmente desintegrado em nossa associação” (PFADFINDERGRUPPE, [1938-]). Neste mesmo período observamos a dissolução, também, do grupo de escoteiros da Turnerbund Porto Alegre, sobre o qual encontramos vestígios um pouco mais detalhados.
No relatório da Turnerbund Porto Alegre, referente às atividades de 1933, reporta-se que houve uma tentativa de aproximação com “grupos de jovens de origem alemã” da cidade, mas que não ocorrera da maneira desejada. Um destes grupos estava
inclinado à cooperação e assumiu a direção geral, conforme havia colocado como condição. Lamentavelmente, a mentalidade de seu dirigente não correspondia à da Turnerbund no que diz respeito às formas de trabalho pela germanidade, que afinal de contas é também o objetivo final do departamento de escoteiros. Dirigente e grupo se afastaram da Turnerbund (BERICHT, 1934, p. 21).
No número seguinte é publicada uma carta recebida pela associação na qual se explica que o grupo que se afastara considerava que conseguiria alcançar seus ideais se trabalhasse em conjunto com a Deutsche Jungenschaft (DEUTSCHE TURNBLÄTTER, 1934). A justificativa é recebida com espanto, já que “o departamento tem um representante na diretoria, que a qualquer momento poderia ter exposto seus desejos e mudanças que, caso justificados, seriam levados em consideração” (DEUTSCHE TURNBLÄTTER, 1934). Em resposta à situação, a associação funda, como em São Sebastião do Caí, um novo grupo, a Turnerjugend (“juventude ginástica”). Este novo grupo herda toda a estrutura construída pelos escoteiros ao longo das duas décadas anteriores e passa a incorporar meninas entre seus membros. A Turnerjugend queria “educar indivíduos fortes e orgulhosos, que sempre cumpram seu dever com emprego de todas as forças” (TURNERJUGEND, 1935, p. 3) e, como seu antecessor, buscou formar indivíduos disciplinados, corteses, comedidos e que mantivessem uma relação de proximidade e reverência com a natureza, com o país que os acolhera e com a terra de seus antepassados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao que parece, o movimento escoteiro vinculado às sociedades ginásticas se desenvolveu paralelamente ao escotismo brasileiro, estabelecendo periódicos próprios, afiliando-se à Deutsche Pfadfinderbund e mantendo contato com escoteiros alemães estabelecidos em outros países, como os teuto-argentinos (DEUTSCHE TURNBLÄTTER, 1917), sem que fossem encontradas em seus relatos indicações de contatos com grupos nacionais. Ademais, a ausência de referências a departamentos de escotismo em sociedades ginásticas fundadas por alemães em outros países, bem como em sua terra natal (com exceção daquela vinculada à Turnverein München von 1860), são um indicativo de que, no âmbito do associativismo teuto-brasileiro, este movimento foi uma particularidade do Rio Grande do Sul.
Ao analisarmos as relações entre sociedades ginásticas e escotismo no Rio Grande do Sul, observamos que estas se estabeleceram principalmente a partir de uma preocupação por parte destas instituições em ter sob seu controle a educação de sua juventude. A dissolução de suas relações no início dos anos de 1930, como registrado em Porto Alegre e São Sebastião do Caí, indica o quanto o “cultivo da juventude” teuto-brasileira era uma área de disputa entre diferentes instituições nesse período, nomeadamente entre associações teuto-brasileiras e associações fundadas pelos chamados “alemães do império”, que chegaram no período entre guerras e frequentemente apresentaram proximidade com o nacional-socialismo. Segundo depoimento compilado em A 5ª Coluna no Brasil, do tenente coronel Aurélio da Silva Py, a Deutsche Jungenschaft, à qual se uniu o grupo dissidente da Turnerbund, mudou seu nome para Deutsch-Brasilianischer Jugendring (Juventude Teuto-Brasileira) e teria apresentado relações próximas com a Juventude Hitlerista até o momento de sua proibição. A formação de um novo departamento nas sociedades ginásticas, a Turnerjugend, com estrutura, funcionamento e finalidades similares aos escoteiros mostra que o escotismo marcou consideravelmente as formas como elas buscaram “cultivar a juventude” teuto-brasileira nas primeiras décadas do século XX.