Introdução
Este artigo tem como objetivo abordar a forma como era tematizada e representada a formação de profissionais especializados para a educação de “excepcionais”3, sob o influxo da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), entre as décadas de 1960 e 1970, no Brasil, a partir da perspectiva historiográfica da Nova História Cultural. Particularmente, dessa vertente historiográfica são explorados os pressupostos da história do livro, da leitura e dos impressos em geral, conforme vêm sendo difundidos e desenvolvidos por Chartier (1990, 2002, 2007), tendo-se por base analítica os conceitos de práticas e representação desse mesmo autor (CHARTIER, 1990). Não se trata, aqui, de retomar esses conceitos, mas de evidenciar os resultados de nosso trabalho, desenvolvidos com base nesses pressupostos aplicados à pesquisa histórica, inicialmente sob a forma de uma tese de doutoramento em educação (BEZERRA, 2017).
Como forma de investigação e problematização dessa temática, recorremos, como fonte de pesquisa, ao impresso periódico Mensagem da Apae em seus primeiros dez anos de existência (1963-1973)4. Esse impresso foi eleito por sua pertinência documental para avançarmos na escrita da historiografia da Educação Especial5 brasileira e por sua relevância para a inteligibilidade da configuração desse campo no Brasil, sobretudo no que diz respeito à atuação institucional das Associações de Pais e Amigos de Excepcionais (Apaes). Cabe lembrar que a primeira dessas associações foi fundada em 1954, na cidade do Rio de Janeiro. Com caráter privado-filantrópico, as Apaes, inspiradas no modelo estadunidense da National Association for Retarded Children (Narc)6, logo se expandiram pelo Brasil, atendendo, sob os enfoques clínico-terapêutico, pedagógico e assistencial, sobretudo, pessoas com deficiência intelectual e múltipla, de acordo com os termos adotados em suas publicações mais recentes, quanto à caracterização de seu público-alvo. Em 10 de novembro de 1962, na cidade de São Paulo, as Apaes, que não chegavam naquela época a duas dezenas, uniram-se em uma Federação, compondo a Federação Nacional das Apaes7, que passou a representá-las oficialmente8.
Ora, Mensagem da Apae surgiu justamente nesse e por esse contexto, como um impresso periódico institucional, criado e mantido, de janeiro de 1963 até o presente momento9, pela citada Federação. Desde a origem, o propósito maior dessa publicação foi o de ser um veículo comunicacional publicado para apresentar e representar essa instituição, constituindo-se como um interlocutor ou mensageiro privilegiado dos apaeanos com a sociedade e deles entre si. Em 1982, ao analisar de forma retrospectiva seu lançamento, o apaeano Justino Alves Pereira, um dos principais colaboradores e editores do impresso nas décadas de 1970 e 1980, enfatizou que a revista fora concebida para ser um veículo de comunicação com tal finalidade (PEREIRA, 1982), pois:
Quando a Federação Nacional das APAEs criou sua revista com um nome tão sugestivo “Mensagem” pensou justamente num meio de levar a cada pessoa que vive em contato com o excepcional a voz desta entidade, a sua realidade, o seu trabalho dignificante. Uma revista que nos unisse mais na causa APAE com o conhecimento da sua “Mensagem”. Em levar a cada um de nós um embasamento científico, legislativo e pedagógico relativo ao deficiente. Em publicar discursos e conferências para dar a chance a nossos leitores de estar presente através da leitura, a auditórios e anfiteatros, a toda parte onde for “cantada” a causa do deficiente, defendido [sic] os seus direitos (PEREIRA, 1982, p. 2, grifos nossos).
Nesse sentido, o periódico surgiu com a missão de evidenciar o trabalho da Federação e de suas filiadas quanto aos excepcionais, direcionado, sobretudo, aos próprios associados das Apaes, como forma de promover e ampliar os laços da sociabilidade institucional, já que era preciso dar a conhecer aos apaeanos as orientações emanadas de sua Federação recém-constituída. Esses associados, por sua vez, eram pais ou familiares dos excepcionais, além de voluntários que se dispunham a trabalhar em prol desse segmento, podendo ou não serem leigos no assunto. Em virtude de sua temática, o impresso também se voltava a profissionais das áreas de saúde, educação e assistência especializadas aos excepcionais, até porque muitos membros das Apaes eram, também, profissionais dessas áreas, e poucas eram as publicações nacionais com esse foco. Logo, o periódico atraiu a atenção de médicos, psicólogos e psiquiatras, normalistas, professores especializados no ensino de excepcionais, assistentes sociais, foniatras, terapeutas ocupacionais, entre outros especialistas atuantes no campo da excepcionalidade, naquela época genericamente designados como técnicos10.
Desde seu lançamento até o presente momento, em 2019, essa publicação da Federação Nacional das Apaes ostenta uma existência de mais de cinquenta e seis anos, em que pesem algumas interrupções em sua trajetória. Mesmo assumindo características materiais relativamente distintas de seus primórdios, devido a reformulações editoriais e gráficas, Mensagem da Apae tem conservado sua função essencial, na medida em que se define, basicamente, por ser um órgão oficial e porta-voz dessa Federação. Considerando o período de 1963 a 2016, haja vista termos finalizamos a compilação das revistas para nossa pesquisa nesse último ano, foram publicadas 129 edições do periódico, o que tornava complexa a tarefa de operar com todo esse corpus documental, que se revelou heterogêneo em uma análise preliminar. Tornou-se, pois, imprescindível realizar um recorte temporal e serial em relação a todas essas edições, elegendo, ademais, a problemática de estudo para, efetivamente, interrogar esses documentos.
Tendo reunido quase todos os exemplares do periódico11, organizamos o inventário da grande coleção das revistas Mensagem da Apae (1963-2016). Foi analisando essa coleção, folheando as revistas, observando seus conteúdos e formas materiais que constatamos não existir homogeneidade no material coletado. Ao manipular repetidas vezes os exemplares compilados, percebemos que, em seus primeiros dez anos, as edições de Mensagem da Apae possuíam uma singularidade temática e material que as distinguiam em relação aos rumos tomados por essa revista de 1974 em diante, fato destacado, aliás, pela própria publicação, em alguns de seus editoriais. Assim, emergiu o recorte temporal de 1963 a 1973, efetivado a partir das próprias características internas do impresso, que chamamos de sua fase inicial. Deixamos o estudo de outras fases para futuros estudos, não sendo possível, aqui, uma delimitação de quantas e como seriam as demais fases já vivenciadas pela publicação.
Operar com essa fase inicial do periódico, além de suas peculiaridades editoriais e gráficas, tornou-se significativo, também, por circunstâncias externas às fontes em si mesmas, enquanto objetos materiais. Isso porque esse corte temporal abrangia um período no qual se destacavam as articulações dos apaeanos antes que se criasse, em 1973, o Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp), primeiro órgão do governo federal voltado especificamente para essa modalidade educacional em nosso país. No período anterior à criação desse órgão, o governo federal sequer se incumbira da educação dos excepcionais de forma sistematizada, ficando essa iniciativa, sobretudo, nas mãos de instituições privado-filantrópicas, como as Apaes (Cf. BUENO, 2004; JANNUZZI, 2006; MAZZOTTA, 2005; MENDES, 2010). Estas, na década considerada (1963-1973), tinham buscado se fortalecer perante o poder público e a sociedade civil, implementando, como já dito, uma Federação Nacional para uni-las e ser sua representante; daí o caráter estratégico e calculado do lançamento desse periódico, que nasceu quase simultaneamente à criação da própria Federação, como seu mensageiro e divulgador precípuo.
Nessa fase inicial de Mensagem da Apae, contabilizamos 19 edições, em um total de 25 números. Tais edições apresentaram diversas características comuns, em que pesem algumas diferenças, a saber: uso exclusivo do preto e branco nas páginas internas, pouco investimento na diagramação e nos recursos gráficos empregados, periodicidade não regular, uso escasso de fotografias ou ilustrações, predomínio da organização do espaço textual em uma só coluna na mancha gráfica, dificuldades em manter uma mesma proposta editorial ao longo desses anos e propagandas somente em alguns números. Foi, portanto, uma fase de experimentações e esforços para garantir a sobrevivência do nascente impresso periódico, que só se consolidaria em meados da década de 1970. O Quadro 1 apresenta, em mais detalhes, os números lançados de 1963 a 1973, tomados como fonte e objeto neste trabalho:
ANO OU VOLUME DE MENSAGEM DA APAE | NÚMERO(S) | PERÍODO | ANO DE PUBLICAÇÃO |
---|---|---|---|
Vol. I12 | 1 | jan. | 1963 |
Vol. II | 2 | [fev.]13 | 1963 |
Vol. I | 3 | [mar.] | 1963 |
Vol. I | 4 | [abr.] | 1963 |
Vol. 1 | 5 | [maio] | 1963 |
Vol. 1 | 6 | [jun.] | 1963 |
Ano II | 1 | jan.- mar. | 1964 |
Ano II | 2 | abr.- jun. | 1964 |
Ano II | 3 | jul. - dez. [set.] | 1964 |
Ano II | 4 | out. - dez. | 1964 |
Ano III | 1 a 4 | jan. - dez. | 1965 |
Ano IV | 1 a 4 | jan. - dez. | 1966 |
Ano V | 1 | jan. - mar. | 1968 |
Ano V | 2 | abr. - jun. | 1968 |
Ano V | 3 | jul. - set. | 1968 |
Ano V | 4 | out. - dez. | 1968 |
Ano VI | 5 | out. - dez. | 1969 |
Não indicado | Não indicado | Não indicado | [1972?] |
Não indicado | Não indicado | Não indicado | 1973 |
Fonte: Elaboração própria.
Estabelecida essa organização em torno do objeto de pesquisa, relevante para compreender a configuração do campo da excepcionalidade no Brasil, em um período no qual o atendimento aos excepcionais estava praticamente controlado e pulverizado pelas instituições privado-filantrópicas, sendo as Apaes uma das mais destacadas, com a atuação pífia e descentralizada do governo federal, pudemos interrogar essas edições do impresso em sua primeira fase. Considerando que a década de 1960 e o começo dos anos de 1970 representaram um momento significativo para a história da educação dos excepcionais, com as Apaes e sua Federação dinamizando o campo da excepcionalidade, e que foi a partir desse momento que a atenção educacional aos “deficientes mentais”, em boa parte devido ao trabalho dessas instituições, começou a ganhar maior repercussão, tornando-se um problema na agenda nacional, tomamos a seguinte questão como central para perscrutar as fontes eleitas, a saber:
Que representações e propostas ou práticas de formação de profissionais especializados - então chamados de técnicos - para a educação dos excepcionais o periódico procurou defender e propagar para orientar seus leitores e as Apaes federadas, principalmente no caso dos professores especialistas?
Oferecer respostas a essa questão, mediante as fontes compiladas, é, portanto, o objetivo deste trabalho. Antes de abordarmos, porém, os resultados encontrados propriamente ditos, é mister ressaltar, ainda, que discutir essa temática, em sua historicidade, faz-se relevante, haja vista que se imbrica na forma como a excepcionalidade, sobretudo a deficiência, foi significada e tomada como objeto de práticas e representações educacionais. O período que ora abordamos foi marcado pela racionalidade técnica nos campos político-econômico-social e pedagógico (GATTI JÚNIOR, 2010), o que se traduzia em uma abordagem terapêutica da deficiência, de modo que esta era entendida como elemento de perturbação da desejada homogeneidade educacional e um risco à higidez social (BEZERRA, 2017). Por consequência, punha-se em destaque a necessidade de uma formação instrumental e tecnicista àqueles que conduziriam essa abordagem. Essa análise é corroborada por Pletsch (2010), que, ao retomar apontamentos de Glat, Fernandes e Pletsch (2008), considera que “[...] até o início dos anos 1970, a deficiência era entendida como uma doença crônica e todo o atendimento prestado a esse público, mesmo quando envolvia a área educacional, era considerado pelo viés terapêutico” (PLETSCH, 2010, p. 70).
A figura dos especialistas “neutros”, com seu conhecimento “técnico-científico” e seus planejamentos eficazes, era a grande aposta para a solução dos problemas brasileiros (GATTI JÚNIOR, 2010), inclusive o dos excepcionais, perspectiva que não deixou de ser incorporada, também, pelos apaeanos e, consequentemente, reproduzida, instigada e valorizada no impresso Mensagem da Apae. Tais especialistas, por sua vez, precisavam de uma formação que lhes desse condições de empreender as técnicas consideradas as mais eficazes para conduzir a reabilitação desse público, vale dizer, para que pudessem realizar o que se entendia como:
[...] o processo de tratamento de pessoas portadoras de deficiências que, mediante o desenvolvimento de programação terapêutica específica de natureza médico-psicossocial, visa à melhoria de suas condições físicas, psíquicas e sociais. Caracterizando-se pela prestação de serviços especializados, a reabilitação se desenvolve necessariamente através de equipe multiprofissional. Entre as atividades multidisciplinares requeridas, via de regra, encontram-se também as educacionais. Neste caso os serviços educacionais se configuram como parte do processo global de reabilitação e são desenvolvidos segundo os objetivos desta (MAZZOTTA, 2005, p. 51).
Ora, diante da omissão da iniciativa pública naquele cenário, as Apaes encontraram seu espaço de atuação e se constituíram em uma agência formadora no campo da Educação Especial, sendo esta entendida, à época, como uma dimensão do processo reabilitador do indivíduo deficiente. Assim, tais associações não só se tornaram lugares de educação dos excepcionais, mas, também, forjaram, marcaram e difundiram um determinado modo de formação de quem educava esses sujeitos, delineando os contornos de um campo que:
[...] historicamente constitui-se em um ‘território de muitos donos’ (médicos, psicólogos, professores, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, dentre outros), dividido entre curar e educar; entre segregar, normalizar, integrar e incluir; entre Educação, Medicina e Psicologia Comportamental; entre proteger e emancipar; e, entre educação comum e uma forma de educação completamente distinta das demais.
Assim, a formação de professores para atuação em Educação Especial historicamente configurou-se como palco de disputas acadêmicas, políticas, econômicas, ideológicas, humanas e sociais. Estas disputas incitaram a construção e transformação de distintas propostas formativas [...]
(HARLOS, 2015, p. 20).
Captar essa dupla dimensão do trabalho das Apaes é importante para compreender a própria configuração dessas propostas formativas primevas, articuladas muito mais a partir da iniciativa privado-filantrópica do que pelo poder público, o que se insinua até a contemporaneidade, quando observamos descontinuidades e tensões nos encaminhamentos da formação docente em Educação Especial, bem como pela constante relevância que se atribui, mesmo no contexto educacional, aos saberes profissionais oriundos do campo da saúde, em detrimento do conhecimento pedagógico. Como sintetizou Bueno (2004, p. 120),
Essa ampliação da rede privada de atendimento ao excepcional, ocorrida nas décadas de 1960 e 1970, refletiu, em primeiro lugar, a importância cada vez maior que essas entidades foram assumindo na educação especial. Essa influência crescente ocorreu pela sua organização em nível nacional, como são os casos das Federações Nacionais das Sociedades Pestalozzi14 e das APAEs, que passaram a exercer influência crescente nas políticas de educação especial [...].
Destarte, empreendemos um recorte analítico de como se organizaram essas propostas formativas, com foco no trabalho educativo realizado pelas Apaes na formação de quadros profissionais especializados para atuar na educação de excepcionais, o que abrange, por conseguinte, a problemática da formação docente nesse campo. Esperamos, desse modo, juntarmo-nos às contribuições daqueles(as) que buscam compreender as balizas históricas que delineiam o repertório de saberes e fazeres constituídos no campo da atual Educação Especial, à qual tantos apelos continuam sendo dirigidos, uma vez que “[...] o Brasil enfrenta sérios desafios que se originam na própria história dessa área específica de formação e nas reformas propostas para a formação de professores em geral” (OLIVEIRA; MENDES, 2017, p. 265) . Dar inteligibilidade a essa área, pela pesquisa histórica, é, portanto, parte imprescindível para enfrentarmos esse desafio.
Importa registrar ainda que, do ponto de vista metodológico, como trabalhamos com uma revista, citações dela extraídas são transcritas literalmente ou mencionadas indiretamente no encadeamento do texto, de modo a compor a narrativa histórica e fornecer um panorama das representações apaeanas, sem travar a leitura. Para que tal escolha metodológica não provocasse dúvidas ou ambiguidades quanto à proveniência das informações citadas e, ao mesmo tempo, destacasse a fonte consultada, inserimos, ao final do artigo, na lista de referências, uma seção específica que demarca os textos referentes às edições de Mensagem da Apae, distinguindo-os de outros citados no decorrer do trabalho. Feitos esses esclarecimentos, apresentamos, em seguida, os achados da pesquisa.
Educar os profissionais especializados: o problema dos técnicos e dos educadores de excepcionais
No Brasil, entre as décadas de 1960 e 1970, como advertiam os apaeanos, a tarefa de ofertar alguma assistência e educação aos excepcionais tornava-se ainda mais complexa pela alegada escassez de profissionais especializados nesse campo e pelas dificuldades de sua formação. O psiquiatra Krynski (1963, p. 5-6, grifos nossos), em 1963, atuando em favor da Federação Nacional das Apaes, já denunciava, nas páginas de Mensagem da Apae, que:
[...] ponto crucial é o da preparação de técnicos. Somos um país carente de técnicos, um país que não os valoriza na devida proporção. Enquanto em países mais desenvolvidos do que o nosso é dado acento todo especial a essa preparação, facilitando ao máximo o preparo e o trabalho do indivíduo especializado, o Brasil, por inobservância deste aspecto - fundamental a toda a assistência em bom padrão - já carente de técnicos, assiste diariamente a evasão dos poucos aqui existentes, que vão em busca de melhores condições, senão de vida, pelo menos de trabalho. Urge valorizar esse trabalho, possibilitando ao profissional melhores condições de trabalho, ambientes especializados (somos ainda, infelizmente, um país de autoditadas, quando não de pseudo especialistas), possibilidades de aperfeiçoamento no estrangeiro, intercâmbio de técnicos para aferição dos nossos meios de trabalho, enfim, colocação do problema nos seus devidos termos e proporções.
Nesse cenário, os apaeanos reclamavam a necessidade de “[...] professores mais habilitados, psicólogos com mais tempo para maior dedicação, foniatras, fisioterapeutas, recreacionistas, etc.” (COMO SURGE..., 1963, p. 11), com a “[...] melhoria do ensino dos profissionais, o preparo de técnicos que, ainda, em número insuficiente, se dedicam ao problema [do excepcional]” (KRYNSKI, 1964, p. 15, grifos nossos). Essa carência de técnicos (SEIXAS, 1969) e/ou a inadequação de seu processo formativo, segundo o impresso da Federação das Apaes, atingiria tanto professores como profissionais da área de sáude, tornando o caso ainda mais grave, pois a educacação do excepcional era pensada, basicamente, na perspectiva de uma abordagem terapêutica. Diante disso, os apaeanos entendiam que:
Observamos, igualmente, com raríssimas exceções, que o trabalho educacional e médico para o excepcional retardado mental se realiza, entre nós, sem a necessária base doutrinária. Responsabilizamos, particularmente, os currículos das Escolas Normais e das Faculdades de Medicina, por essa lacuna (INTERAÇÃO..., 1969, p. 152, grifos nossos).
De fato, até então, as Escolas Normais15, que vinham se encarregando, em nível médio, da formação de professores para o ensino primário, bem como a habilitação “específica” de 2º grau para o exercício do magistério de 1º grau e o curso superior de Pedagogia, que, nos anos de 1970, as substituiu como locus dessa formação (BRASIL, 1971; CASTRO, 2007; DEIMLING, 2013; SAVIANI, 2005), não tinham, dentre suas preocupações imediatas, o preparo docente para o ensino do excepcional. Isso porque este dificilmente chegava às escolas comuns, tal qual já explicitado, e, caso chegasse, por não se enquadrar ao “ritmo” da turma, era logo destinado a espaços tidos como mais adequados para ele, como as classes e escolas especiais. Nesses espaços, atuavam profissionais que nem sempre possuíam habilitações ou formações específicas, já que estas tampouco eram ofertadas de forma satisfatória e regular no país. Principalmente, no caso dos professores de deficientes mentais, não havia, em âmbito nacional, programas ou realizações governamentais destinados à sua formação.
O próprio curso de Pedagogia converteu-se unicamente em licenciatura em 196916, sendo prevista a oferta de habilitações para a formação do pedagogo. Nesse ano, chegou-se a discutir a habilitação para a educação de excepcionais, no âmbito desse curso. Todavia, “[...] a habilitação não teve grande expansão, limitando-se a poucos cursos de Pedagogia” (CASTRO, 2007, p. 206). Ademais, essa habilitação estava voltada, originalmente, para os deficientes da audiocomunicação, como se dizia na época sobre pessoas com surdez/deficiência auditiva. Segundo Deimling (2013, p. 240), “[...] foi apenas no ano de 1972 que o primeiro curso de formação de professores de excepcionais (área de ensino de deficientes mentais) do país foi instalado no Estado de São Paulo, em nível superior, como habilitação específica do Curso de Pedagogia”. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, iniciativas similares foram aparecendo, principalmente em instituições privadas de ensino superior. Ainda de acordo com Deimling (2013, p. 240),
Apenas no ano de 1977 concretizou- se a implantação da Educação Especial como habilitação específica no curso de Pedagogia em uma Universidade Pública Estadual. A Universidade Estadual Paulista ‘Julio de Mesquita Filho’ (UNESP) passou a oferecer a ‘Habilitação para o Ensino de Retardados Mentais e Deficientes Visuais’ na Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação de Marília [...].
Nesse sentido, eram escassas tais habilitações no período compreendido entre as décadas de 1960-1970, muito restritas ao centro geográfico do estado de São Paulo, o que abria espaço para o avanço de outros percursos formativos, promovidos, inclusive, pelas Apaes. Tanto que até o final da década de 1960, existiam, quando muito, cursos intensivos, cursos de aperfeiçoamento, cursos de férias, geralmente ministrados em parceria com as instituições filantrópicas que se dedicavam ao campo da excepcionalidade, ou mesmo raras especializações que podiam ser cursadas após a Escola Normal, a partir de iniciativas pontuais de alguns estados ou de instituições privadas de ensino (Cf. ALMEIDA, 2004; DEIMLING, 2013; FLORENZANO, 1968; HARLOS, 2015). Garcia (2013, p. 112, grifos nossos) ratifica o exposto, lembrando que:
Até então [isto é, até o final da década de 1960], os professores de educação especial eram formados como professores primários, buscando o conhecimento específico no próprio exercício profissional, na lida com os alunos ou em cursos oferecidos por instituições especializadas. No final dos anos de 1960 e início dos 1970, a educação especial passa então a integrar os cursos de pedagogia, com a criação das habilitações em áreas específicas de deficiência.
A propósito, com base em estudiosos da área, Mendes (2010, p. 101) também cita que somente “No final da década de setenta são implantados os primeiros cursos de formação de professores na área de educação especial ao nível do terceiro grau e os primeiros programas de pós-graduação a se dedicarem à área de educação especial”, informação corroborada, igualmente, por Jannuzzi (2006). Assim, muitos desses profissionais que atuavam no campo da excepcionalidade, entre os anos de 1960 e 1970, eram, ainda, autoditadas ou “práticos”, como já alertara Krynski (1963), tanto que, segundo reconheceu oficialmente, em 1969, o conselheiro Clóvis Salgado (apud CASTRO, 2007, p. 206, grifos nossos), do Conselho Federal de Educação, “[...] os professores [no ensino de excepcionais] são, geralmente, normalistas especializados na prática, ou em cursos promovidos pelos próprios estabelecimentos”. Isso, aliás, comprometia o avanço da educação escolar e sistemática dos deficientes mentais, favorecendo que instituições especializadas privado-filantrópicas, como as Apaes, nem sempre em caráter formal, se encarregassem de prestar algum atendimento educacional a esse público, muito embora já houvesse previsão legal para seu ingresso nas escolas comuns (BRASIL, 1961).
De modo similar, os cursos de Medicina, considerados tão importantes naquelas circunstâncias para o avaço e promoção das medidas de higiene, sanitarismo social e profilaxia, vistas como essenciais para o desenvolvimento da nação, também pouco abordavam os temas concernentes aos excepcionais, o que inquietava as Apaes federadas. Seixas (1969, p. 147, grifos nossos), que era médico e líder apaeno, legou-nos um retrato daquela realidade, com as seguintes palavras:
[...] não sabemos de Escola de Medicina que tenha em seu currículo uma disciplina ou, pelo menos, um curso sobre Deficiência Mental, e não estão os médicos, portanto, em condições de enfrentar o problema. Daí a necessidade de continuarmos a insistir, junto a essas escolas, para a inclusão de uma melhor abordagem do problema, principalmente nas cadeiras de Psiquiatria e Pediatria e, se possível, também nas de Neurologia e de Ortopedia.
Essa preocupação com as Escolas de Medicina e a formação do médico torna-se mais intelígivel se compreendemos que, à base de toda e qualquer ação educacional, em relação aos deficientes mentais, estava, naquele momento, o concurso do saber médico, visto como o mais decisivo e capaz de ditar os rumos da própria educação especializada e das demais terapias de reabilitação. A medicina era o parâmetro de qualidade, por assim dizer, mesmo que, em alguns espaços, o foco estivesse no trabalho pedagógico, e não no tratamento clínico. Afinal, como se preconizava, “A prova de eficiência do tratamento [especializado, em relação ao excepcional] só é dada pelo terapêutico” (PROBLEMA..., 1963, p. 10). Formar o médico já era, portanto, um passo importante para formar os demais profissionais especializados, posto que o egresso da Escola de Medicina tinha, então, na ótica apaeana, “[...] um papel vital na orientação da comunidade profissional quanto a prevenção, e para os aspectos terapêuticos de toda futura criança retardada, bem como para o ensino dos cuidados para com os retardados atuais” (KUSSHINICK, 1965, p. 7, grifos no original).
O notório interesse quanto à formação do professor e do médico, dentre outros especialistas (ou técnicos) que pudessem atuar no campo da excepcionalidade, tinha como base, para os apaeanos, uma determinada explicação. Tal qual ressaltavam as edições de Mensagem da Apae, do alardeado problema do excepcional decorria, também, o problema dos técnicos, um assunto que preocupava a Federação Nacional das Apaes desde sua origem (RELATÓRIO...1963). A solução de um demandava a solução de outro, visto que “Obviamente, o problema de combate à deficiência mental não pode começar a ser enfrentado sem que haja pessoas com um mínimo de preparo necessário” (SUBSÍDIOS..., 1973, p. 97, grifo meu). E, como o número de deficientes mentais era tão alarmante naquele momento, haja vista a teoria do “retardo cultural” da população mais pobre e não integrada aos “progressos” da civilização, havia “[...] urgência no preparo de pessoal capacitado” (SUBSÍDIOS..., 1973, p. 121) para driblar essa incômoda problemática, que ofuscava o “engrandecimento nacional”. Por isso, em seu periódico, a Federação apaeana reivindicava que:
O currículo dos cursos de medicina, pedagogia, psicologia, serviço social e outros ligados ao problema dos excepcionais deve incluir noções básicas que habilitem o profissional a colaborar eficientemente com os técnicos e especialistas, nos programas de educação especial (CONCLUSÕES..., 1965, p. 39, grifos nossos).
Ao mesmo tempo que se produzia o deficiente mental, produzia-se, igualmente, a demanda pelos serviços especializados e pelos técnicos que pudessem executá-los, a fim de, pela racionalidade técnica, converter o excepcional em um trabalhador útil à nação, economicamente menos dispendioso à sociedade e aos governos. Tal perspectiva foi evidenciada, por exemplo, nas três últimas edições trimestrais da revista no ano de 1964, que veicularam, justamente, o anúncio de uma grande campanha. O intuito desta era exortar as normalistas a (re)conhecerem o problema do excepcional, sobretudo no que se referia aos deficientes mentais chamados de educáveis, isto é, aqueles que poderiam aprender a ler e a escrever, para os quais o estado de São Paulo mantinha algumas classes especiais em escolas públicas.
Segundo o informe apaeano, faltavam “[...] professores especializados. Em São Paulo, só temos 300. Precisamos de milhares em todo país” (PRIMEIRO APELO..., 1964, p. 64). Por isso, sob o influxo do otimismo pedagógico, “A APAE [...] se encarrega[va] de encaminhá-la [a normalista] a cursos especializados e colocações de futuro” (PRIMEIRO APELO..., 1964, p. 64, grifos nossos). Como se quisesse gravar tal mensagem entre os leitores, os anúncios dessa campanha persistiram sempre com o mesmo formato gráfico e conteúdo textual, na quarta capa dos respectivos números (Figura 1). Isso demonstra o elevado interesse dos editores em garantir visibilidade a esse informe. Afinal, as partes imediatamente perceptíveis de qualquer periódico, do ponto de vista material, são sempre suas capas. Assim, quaisquer leitores que tivessem acesso aos citados números da revista já se deparariam com o reclame apaeano, convocando as normalistas a procurarem a Apae. Informação essa que vinha, propositadamente, destacada em negrito, com letras maiores, a fim de se realçar que a campanha tinha como alvo divulgar um apelo para esse público em particular, além de promover a própria imagem e o trabalho da Apae paulistana - fundada em 1961, e, portanto, ainda não tão conhecida naquele momento - entre os possíveis leitores do impresso, como se depreende pela figura:
Fonte: Mensagem da Apae (ano II, n. 2, [quarta capa], abr. - jun. 1964; ano II, n. 3, [quarta capa], jul. - dez.[set.] 1964; ano II, n. 4, [quarta capa], out. - dez. 1964).
Além de direcionar tal abordagem persuasiva às normalistas e professores especializados, os apaeanos propugnavam, mais ainda, que “Esta divulgação deverá atingir também os Cursos Universitários, conduzindo os futuros profissionais para o diagnóstico precoce da excepcionalidade - trazendo, dessa forma, atendimento imediato dos excepcionais e orientando as famílias” (IV CONGRESSO..., 1969, p. 61, grifos nossos). Por consequência, o problema da educação do excepcional, para além dos apelos afetivos de que se imbuíam os apaeanos, se constituía em uma questão de métodos e de especialistas, sendo um trabalho eminentemente técnico, despolitizado, pragmático e resultante de “[...] uma planificação racional” (AÇÃO DAS APAES...1969, p. 110). No dizer de Gomes (1966, p. 27, grifos nossos),
A educação da criança excepcional não é uma tarefa fácil e requer a conjugação de esforços de muitos técnicos.
Os pais devem procurar pessoas credenciadas para orientá-los, para ajudá-los na sua árdua missão. Devem encaminhar seus filhos a Escolas ou classes Especiais, Centros de Reabilitação etc. onde professores, médicos, técnicos especializados os atenderão com métodos adequados e carinhosa dedicação.
Com atendimento médico e psicopedagógico, a criança excepcional melhorará suas condições pessoais, tornar-se-á mais feliz e, dentro de sua faixa, um membro atuante de seu grupo social.
Ainda na década de 1960, entre outras realizações, os apaeanos construíam “[...] Centros de Treinamento Integrado de Técnicos [...] em Recife (APAE de Recife) e São Paulo (APAE de São Paulo)” (CONVÊNIO..., 1968, p. 22) e se noticiava, pela associação de Jundiaí, o lançamento de um centro-piloto “[...] que ampare o deficiente mental e seja também um Centro de estudos capaz de dar aquilo que tanto falta nesse campo da educação especializada: pessoal capacitado” (A AJPAE..., 1963, p. 14, grifos nossos). Tal afirmação também se explica porque as Apaes foram hábeis na promoção de intercâmbio de especialistas entre as várias associações do país, espalhando seus propósitos de norte a sul do Brasil, bem como na obtenção de bolsas de estudos para formar a seus próprios professores e aos de outras instituições, nos cursos que promoviam, mediante verbas públicas liberadas pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep)17 (Cf., por exemplo, Figuras 10e 11) e pela Campanha Nacional de Educação e Reabilitação dos Deficientes Mentais (Cademe), o que veio a ser respaldado pela LDB de 1961. Nesse momento, a esfera governamental preferia, então, patrocinar a iniciativa privada, em vez de assumir diretamente suas responsabilidades na educação dos excepcionais e na formação docente, medida que deu condições para o fortalecimento ascendente das Apaes e consequente predomínio de suas atividades formativas no campo da excepcionalidade, como ilustram estes excertos:
Desde 1958, com apoio do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), a APAE [da cidade do Rio de Janeiro] mantém, anualmente, um ‘Curso de Orientação para Professores de Excepcionais’, sob o regime de bolsas de estudo.
Para este Curso são encaminhados professores de todos os Estados, indicados pelas APAEs regionais, através da Secretaria de Educação do respectivo Estado. Já é grande o número de professores, principalmente moças, que têm oportunidade de realizar este Curso (A APAE..., 1968, p. 12, grifos nossos).
Por iniciativa da APAE [do Recife - PE], promove-se, neste momento [começo de 1964], um curso para as professoras no nosso Instituto de Educação18, curso que contou com a presença da professora Maria Lobato Lisboa, trazida do Rio Grande do Sul, onde existe há nove anos, completa especialização no trato e ensino da criança excepcional.
Técnica em educação especial, com dois cursos nos Estados Unidos da América do Norte, Maria Lobato foi palestrante no Rotary Club Recife-Boa Vista.[...]
Através do INEP, temos a Prof. Maria de Lourdes, frequentando uma bolsa de estudos na APAE do Rio de Janeiro, com especialização em crianças excepcionais (RABELO, 1964, p. 49, grifos nossos).
O Instituto Londrinense para Educação de Crianças Excepcionais, o muito conhecido ILECE, que se confunde com a APAE de Londrina [...] tem nos ajudado muito. Assim é que receberam 2 professoras nossas [da Apae de São José do Rio Preto - SP] para estágio e mandaram depois 3 professoras suas para ministrar um curso de férias.
Temos procurado mandar sempre elementos nossos para os cursinhos do Serviço de Higiene Mental Escolar de São Paulo. Atualmente há uma professora fazendo o curso regular com bolsa da CADEME. Com igual recurso outra professora fez Terapia Ocupacional na Sociedade Pestalozzi do Brasil, aproveitando para estagiar no Centro de Aprendizagem Ocupacional da APAE da Guanabara. No 2.º semestre de 1965, duas professoras fizeram o curso dessa APAE, com bolsas do INEP (SEIXAS, 1966, p. 6).
É importante ressaltar, ainda, o fato de que tais cursos, além de seu declarado foco na elevação da performance técnica dos profissionais, se constituíam, conforme o programa de ação da Federação Nacional das Apaes, em uma excelente oportunidade para se educar e mobilizar toda a sociedade, pois a notícia de sua realização já colocava em pauta “[...] maior divulgação dos conhecimentos sobre o problema da deficiência mental [...]” (CURSO..., 1968, p. 33). Com o fito de cumprir esse objetivo, Mensagem da Apae foi utilizada, sobretudo de 1963 a 1968, como um veículo para divulgar esses cursos, que poderiam tanto ser realizados pelas Apaes como por outras instituições parceiras. Em 1963, apenas um número deixou de noticiar a ocorrência de tais eventos, que eram sempre divulgados nas páginas finais do impresso, de modo que fossem facilmente percebidos pelo leitor, apesar dos poucos recursos tipográficos empregados no layout daquelas edições.
Muitas vezes, porém, quando o número do periódico saía, o curso já estava em andamento ou se noticiava o suposto êxito de sua realização, o que, todavia, não deixava de ser uma estratégia para atrair, futuramente, novos cursistas, realçar o trabalho das Apaes e, ainda, evidenciar o que de mais “moderno” se ensinava aos profissionais que trabalhariam com a educação e reabilitação dos deficientes mentais. Reproduzimos, em seguida, anúncios desses cursos para se poder conhecê-los:
As páginas reproduzidas não só ilustram o que se buscava ensinar aos profissionais interessados na educação de excepcionais, como trazem indícios das práticas pedagógicas que estavam sendo realizadas com os deficientes mentais ou, pelo menos, que eram consideradas modelares pela Federação Nacional das Apaes, por agências governamentais, instituições de ensino superior e pelos especialistas já legitimados no campo da excepcionalidade. Como dito anteriormente, sob o viés tecnicista, fica patente que a preocupação era oferecer, de imediato, “Cursos intensivos, essencialmente prático, para Educadores que desejam aperfeiçoar os seus conhecimentos” (NOTÍCIAS..., 1963, p. 11), sob a “[...] proveitosa orientação de técnicos dos mais abalizados” (NOTÍCIA, 1963, p. 10), cujos nomes se fazia questão de listar para impactar o leitor (Figuras 3, 5 e 6).
Ainda no âmbito dessas reflexões, observamos que em um dos citados anúncios (Figura 2), os editores se “traíram” na composição e impressão do texto, alterando o nome do Instituto, que era Instituto de Psicologia Clínica Educacional e Profissional (IPCEP) para Instituto de Psicologia Clínica Educacional e Experimental, de modo que a própria sigla, IPCEP, ficava incoerente. Nas demais ocorrências, o “erro” foi desfeito. Esse pequeno “deslize” na produção do impresso não pode ser visto como simplesmente casual, mas evidencia a força simbólica que a Psicologia Experimental representava naquele momento, moldando a chave pela qual os apaeanos liam a realidade, elaboravam suas aspirações e perspectivavam as práticas de (con)formação institucional. Por isso, a materialidade de um periódico é tão surpreendentemente reveladora, inclusive pelos “erros” dos seus produtores (Cf. CHARTIER, 2002b, 2007).
É no bojo dessa concepção, por exemplo, que “Foi realizado pela APAE de São Leoploldo um curso destinado à orientação de pais, professores e interessados na educação do excepcional. As aulas foram foram dirigidas pelo gabinete psico-pedagógico de Porto Alegre [...]” (NOTICIÁRIO, 1964c, p. 29, grifos nossos). Em negrito e letras maiúsculas, para criar efeito de destaque na página, a chamada pela qual se fez veicular esse acontecimento aos leitores de Mensagem da Apae foi exatamente esta: “Curso sobre problemas psicológicos da criança na escolas [sic], no lar e no seu grupo de idade” (NOTICIÁRIO, 1964c, p. 29, grifos nossos).
Não causa estranheza, portanto, o fato de alguns dos cursos veiculados em 1963 terem sido promovidos, com exceção das Apaes envolvidas, da Universidade do Paraná e do governo estadual de São Paulo, pelo Instituto de Psicologia Clínica Educacional e Profissional (IPCEP)19, localizado na cidade do Rio de Janeiro, e pelo Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, instituições com as quais os apaeanos mantinham contato em suas redes de sociabilidade, especialmente a PUC paulista, e que, assumidamente, eram voltadas para um trabalho clínico-psicológico. No caso do IPCEP, sua forma de trabalho era corroborada pela Federação das Apaes, já que, até 1965 (Figuras 2,4,8 e 9), os cursos da instituição carioca foram, estrategicamente, publicados em Mensagem da Apae, cumprindo uma tripla função: informar professores, especialistas da área clínico-terapêutica e pais de excepcionais. Isso porque o IPCEP capacitava profissionais, promovia grupos de mães e tinha cursos voltados para os próprios excepcionais, de crianças a adultos, o que poderia ser uma alternativa para os pais em busca de espaços educacionais para seus filhos, visto serem poucas as instituições que ofereciam serviços do gênero.
A preocupação constante de se ocupar o deficiente mental e educar-lhe os sentidos, entendida como uma proposta de educação reabilitadora e preparatória para uma possível vida laboral, fica delineada na atenção que era atribuída, no conteúdo dos cursos ministrados, aos trabalhos manuais e às produções “artísticas”, adotadas com fins terapêuticos e instrumentais, para treino motor dos deficientes ou meramente como atividades recreativas. Partia-se do pressuposto de que, em relação à criança excepcional, “[...] se não tem possibilidades intelectuais, há inúmeras atividades manuais que poderá executar” (GOMES, 1966, p. 27). Esse trabalho manual tinha importância decisiva na educação dos excepcionais, ocupando a centralidade do trabalho educativo, porque, segundo se acreditava, “[...] permitirá mais tarde a aprendizagem profissional” (CAETANO, 1966, p. 22), o que cumpriria o objetivo de “[...] tornar o indivíduo deficiente um membro útil da sociedade, dando-lhe oportunidade de se tornar independente auto-suficiente, ajustando-se enfim à sociedade onde vive” (PEREIRA, 1964, p. 15). Diante do exposto, é preciso ponderar que essa perspectiva educacional se construía a partir de uma determinada concepção de sociedade, qual seja,
[...] a de um corpo funcional estático, no qual predomina a integração e não existe espaço para a contradição, sendo a solidariedade orgânica o princípio de conduta dos homens. É uma visão bastante limitadora da ação humana, pois a noção de sistema saudável é uma sociedade em que todos funcionam, cada qual em seu status, sendo que ter uma profissão e buscar qualificação profissional fazem parte de um estado de saúde social e são o fundamento para manter a funcionalidade do sistema social (GATTI JÚNIOR, 2010, p. 53).
Ora, tais representações encontravam ressonância na política desenvolvimentista e tecnicista vivida pelo país, apresentado, nos discursos oficiais, como Brasil, a potência do futuro, devendo-se, para tanto, valorizar a técnica, em detrimento da política, o que permitira tamanha valorização da Psicologia Experimental, em seu enfoque comportamental. E, para que os excepcionais pudessem excecutar tais atividades, que lhes trariam pretensa autonomia e condições de colaborar com o bem da nação, os professores especializados deveriam, justamente, “[...] possuir uma formação psicológica bem acurada e profunda, não apenas para entender e atender às necessidades de cada uma das crianças sob sua responsabilidade” (CAETANO, 1966, p. 22, grifos nossos), mas também “[...] para manter a sua própria atitude integrada em um ambiente, psicologicamente sadio, dentro e fora de seu ambiente normal de trabalho” (CAETANO, 1966, p. 22, grifos nossos ). Em termos práticos, porém, a abordagem psicologizante era traduzida na cobrança de que esses professores dominassem as técnicas adequadas - e simplificadas - de desenho e pintura, de tecelagem, de artesanato, de relaxamento, de psicomotricidade, de arrumação e exposição da sala de aula, dentre outras tantas similares, para empregar na educação especializada.
Nessa vertente, para citar um exemplo, era objeto de grande reconhecimento entre os apaeanos o fato de que, mesmo com poucos anos de existência, pela Associação Jundiaiense de Pais e Amigos de Excepcionais20, “Duas educadoras próprias fizeram cursos, uma no Rio e outra em São Paulo. Uma funcionária fez estágio no Lar-Escola São Francisco21, em vime e encadernação” (COMO SURGE..., 1963, p. 9, grifos nossos). Afinal, para aquele momento, “[...] a validez do trabalho educativo e reeducativo da criança deficiente mental repousa[va], de modo estrito, nessa conjugação metodológica de esforços” (CAETANO, 1966, p. 21). Focando apenas o aspecto técnico-metodológico desse trabalho, obliteravam-se outras dimensões nas práticas de formação docente, porquanto o professor, antes de tudo, deveria ser também mais um técnico, embora de segunda categoria, no processo de reabilitação e tratamento do deficiente. Mesmo quando se sinalizava para uma formação mais abrangente, permanecia a mesma tendência, na medida em que:
Através de Cursos de Especialização, organizados diretamente pelas Secretarias de Educação, como os já existentes em alguns Estados, seria feita a formação técnica do professor especializado que, como já foi dito, não deve limitar-se apenas a uma mera transmissão de conhecimentos, mas deve incluir os elementos necessários às tarefas de ajustamento vocacional e reabilitação que os professores têm de cumprir em seu programa22 (SUBSÍDIOS..., 1973, p. 99-100, grifos no original em itálico; grifos nossos em negrito).
Há que se destacar, também, o fato de que muitos desses cursos ofertavam aulas de Higiene Mental (Cf. Figura 2) e Ortopedia Mental (Cf. Figura 7), pois prevalecia a concepção higienista na identificação e atendimento dos deficientes mentais. Não nos esqueçamos, ainda, de que o Brasil passava pela euforia do crescimento e desenvolvimento econômicos, com a crescente urbanização e complexificação das relações sociais. Por isso, o foco era a Ortopedia Mental, objetivada em uma proposta de Ensino Emendativo (CURSO...1963; PEREIRA, 1964), como forma de “corrigir” o deficiente mental e “colocá-lo no lugar certo”, como se faz com um osso que está quebrado, que precisa ser reposicionado e emendado para voltar a ser funcional ao organismo. Nessas circunstâncias, a deficiência era representada como uma falha, uma “disfunção” sistêmica que precisava ser corrigida para a recuperação do indivíduo e perfeito funcionamento de todo o “sistema” social.
Cada especialista corrigiria um “defeito” e se encarregaria de um “setor”, obedecendo à lógica do “planejamento setorial”. Logo, com o trabalho conjugado de todos, isto é, da equipe multidisciplinar, sempre louvada pelos apaeanos em Mensagem da Apae, é que seria, então, reabilitada a “máquina defeituosa”, dando-lhe condições de (re)uso. No auge do tecnicismo e de suas representações mecanicistas sobre o homem e suas formas de educação, era “Ponto fundamental e pacífico [...] considerar que durante sua vida o deficiente mental será abordado terapeuticamente por vários especialistas, de conformidade com os setores mais atingidos, exigindo, portanto, um planejamento terapêutico complexo e continuado” (SUBSÍDIOS..., 1973, p. 78). No período considerado, essa prática era, pois, recorrente em instituições especializadas, a exemplo das Apaes, conforme apontam os registros históricos aqui problematizados. De fato, segundo já abordado por Glat, Pletsch e Fontes (2007, p. 346)
Na maioria das instituições especializadas o trabalho era organizado com base em um conjunto de terapias individuais coordenadas pela Medicina: Fisioterapia, Fonoaudiologia, Psicologia, Psicopedagogia,Terapia Ocupacional, entre outras. Pouca ênfase era dada à atividade acadêmica, que não ocupava mais do que uma pequena fração do horário dos alunos. A educação escolar não era considerada prioritária, ou mesmo possível, principalmente para aqueles com deficiências cognitivas, múltiplas, ou distúrbios emocionais severos. O trabalho educacional era voltado para a autonomia nas atividades de vida diária (AVD) e relegado a um interminável processo de ‘prontidão para a alfabetização’, sem maiores perspectivas, já que não havia expectativas de que esses indivíduos ingressassem na cultura letrada formal.
Entende-se, dessa maneira, por que havia a preocupação dos apaeanos não só com os cursos de Ensino Emendativo, mas também os de Ortopedia Mental, de Ortofonia, que preparava “[...] técnicos na correção de defeitos da linguagem” (Figura 6, grifos nossos), de Terapia Ocupacional, dentre outros semelhantes, compondo um verdadeiro e amplo programa de educação terapêutica. Aliás, com base nesse modelo representativo da deficiência, do deficiente e de sua (con)formação, desde 1958, a pioneira Apae carioca se empenhava na “[...] preparação e divulgação de técnicas para o ensino e educação do excepcional, insituindo vários cursos” (A APAE..., 1968, p. 11) e palestras, a saber:
Deve-se ressalvar, porém, que todos esses cursos e seus programas não necessariamente se efetivaram ou foram traduzidos, no cotidiano docente e dos demais profissionais envolvidos, da forma como eram pensados e veiculados no impresso. É preciso ponderar, como se depreende de Chartier (1990), que entre as proposições - ou sistemas de representações do mundo - e suas apropriações pelos indivíduos e grupos há diversas circunstâncias mediadoras interferindo no processo de recepção, as quais podem suscitar nos agentes da prática diversas interpretações e leituras da realidade tomada como referência. Ainda assim, a apresentação recorrente de tais cursos e de seus programas (in)formativos não deixa de evidenciar as representações que eram disseminadas quanto ao professor especializado e suas funções, às suas necessidades formativas e à própria perspectiva de educação dos deficientes mentais, na ótica dos apaeanos e de sua Federação, como testemunham as fontes consultadas. Por isso, os anúncios ora abordados constituem-se em uma interessante chave de leitura quanto à temática aqui posta em exame, a qual deverá ser retomada em estudos posteriores.
Considerações Finais
Tendo em vista o exposto, percebemos que, sob esse viés tecnicista e utilitarista, a Federação Nacional das Apaes e suas filiadas buscaram desenvolver estratégias e práticas para (con)formar e atrair profissionais especializados ao campo da excepcionalidade ou, pelo menos, para apoiar iniciativas do gênero, colocando-se, deliberadamente, como agência catalisadora, reivindicante e (in)formativa nesse campo. Desse modo, a partir das (pro)posições apaeanas, em sintonia com os apelos daquela época, foram moldados muitos dos saberes técnico-científicos da área, cujos reflexos ainda hoje repercutem nas práticas e representações docentes quando se pensa nas questões referentes à atual Educação Especial. Nesse sentido, perscrutar as edições de Mensagem da Apae, no decênio de 1963 a 1973, possibilitou compreender como foi sendo forjado um modelo docente para responder às expectativas que se tinha ou se considerava possível quanto à educação dos excecpionais. Por meio de anúncios de cursos, dos textos veiculados e de sua própria materialidade, o impresso apaeano buscou (con)formar tal modelo docente.
Esse modelo era forjado a partir do enfoque dos cursos selecionados para serem noticiados no periódido Mensagem da Apae, prevalecendo o aspecto metodológico do “como fazer”, dos recursos materiais e das técncicas que deveriam ser utilizados, segundo a racionalidade instrumental em vigor naquele período. Daí a ênfase nas aulas de metodologia, balizadas pela Psicologia, posto “[...] que os métodos de cunho pedagógico, que fazem agir sobre a criança, devem ser complementados pelos métodos psicoterapêuticos, que fazem agir a criança” (CAETANO, 1966, p. 21, grifos nossos). No espectro da ação pedagógica, a Psicologia, reduzida ao papel de ciência aplicada, reinava triufante, emprestando seus métodos - muitas vezes simplificados ou desfigurados - para a condução do vasto trabalho educativo e “corretivo” a que devia ser submetido o deficente mental, haja vista, naquelas circunstâncias, “[...] ser a psicologia insubstituível e intransferível, a partir do diagnóstico até o encaminhamento final” (CAETANO, 1966, p. 22).
Assim, como corolário do percurso analítico empreendido neste artigo, é possível dizer que, ao tomarmos Mensagem da Apae como fonte de nossas investigações históricas, tivemos como ratificar o que era tomado, a priori, como um indício. A leitura e análise das edições compiladas, sob o respaldo da Nova História Cultural, leva-nos a afirmar, agora, que, como os cursos de formação de professores especializados no ensino de deficentes mentais, em nível superior, só ganhariam impulso de meados da década de 1970 em diante (Cf. DEIMLING, 2013; MENDES, 2010), as Apaes, exerceram, notoriamente, o papel de uma agência paraoficial no que dizia respeito à formação de professores nessa “especialidade”, no período entre os anos de 1960 e 1970.
Em muitas ocasiões, ofertaram cursos em parceria com órgãos públicos ou, pelo menos, contaram com subvenções governamentais para fazê-lo, o que muito colaborou para tornar as Apaes tão conhecidas e influentes como instituições propulsoras da educação de excepcionais, conformando à sua proposta educacional toda uma geração de educadores especializados das mais diversas regiões do país, que acorriam a seus cursos. Entender a genealogia desse processo histórico é ponto de partida para (re)pensarmos os (des)caminhos da formação docente e das atuais práticas em/de Educação Especial, para além do fazer meramente técnico ou instrucionista, reconhecendo, no tempo presente, formas de continuidade e ruptura dessas representações e proposições no que tange à educação do sujeito com deficiência.