INTRODUÇÃO
No ano de 2003, o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) foi alterado com a promulgação da Lei nº 10.639, a qual assevera que “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, tornou-se obrigatório o ensino sobre Educação das Relações Étnico-Raciais e História da África e Cultura Afro-Brasileira2”.
Diante desta alteração com inclusão no campo educacional brasileiro, conquistada pelo Movimento Social Negro, como poderia a Biologia, mais especificamente a área de Biologia Celular (Citologia), cumprir seu papel educacional de forma a colocar em prática o referido marco legal? O questionamento é válido, pois a Biologia Celular, enquanto área das Ciências Naturais, também pode contribuir para a construção da cidadania, bem como para a Educação das Relações Étnico-Raciais.
No sistema de ensino formal, temos as Ciências Naturais (Ciências da Natureza), ou apenas Ciências, que, em nível do ensino fundamental, englobam os campos do conhecimento da Biologia, Física, e Química (MARCONDES, 2018). Tais áreas, que no ensino médio, tornam-se mais complexas desdobrando-se cada uma em subáreas dentro de seus campos específicos, de acordo com as Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2006), podem colaborar para a descolonização de conhecimentos que afirmam a existência de grupos naturalmente inferiorizados. Assim, a Biologia passa a ser estudada na Citologia, Embriologia, Ecologia, Genética, Botânica, Fisiologia, Zoologia, dentre outras áreas. Das várias subáreas, poucas são divulgadas pela mídia e mesmo estas são mostradas de forma independente, fragmentadas como se isoladas estivessem de um campo maior que as abarcassem e até de um processo de discursividade.
O campo das Ciências Naturais vem dando sinais de mudanças com relação à Lei nº 10.639/2003. Nesse sentido, Verrangia; Silva (2010) elaboraram um levantamento de estudos recentes articulando o ensino das Ciências Naturais. Silva (2017), por seu turno, publicou, no Dossiê Temático “Por uma produção de Ciência Negra: experiências nos currículos de Química, Física, Matemática, Biologia e Tecnologias3”, artigo no qual discute alguns desdobramentos ocorridos a partir desta lei e propõe temas, que, de forma interdisciplinar, podem contribuir para a atuação de docentes de Ciências e Biologia para que desenvolvam um novo currículo considerando este marco legal em suas aulas. Concordamos com Morais; Santos (2019, p. 72), os quais afirmam que “a ciência da natureza não deve se posicionar fora das fronteiras da missão solidária, a saber: a busca da desalienação, da descolonização, da diversidade, da equidade, da emancipação das identidades racializadas”.
Isto porque nos primeiros quarenta anos do século oitocentos, a Biologia se estabeleceu como uma ruptura com as linhas de pensamento da época (DUARTE, 2010), pois na “passagem do século XVII para o XVIII, a História Natural, que até então era constituída quase que inteiramente por taxonomistas, mudou de mera descrição de fatos a um conjunto de disciplinas científicas com seus próprios métodos, distintos das Ciências Físicas” (POLISELI; OLIVEIRA; CHRISTOFFERSEN, 2013, p. 108). Nessa época, 1840, a denominação da nova área do conhecimento se desenvolveu a partir da Embriologia, Citologia, Fisiologia, Evolução e da Genética (MAYR, 2005), oferecendo um “extraordinário desenvolvimento teórico, com a elaboração de leis, bem como de conceitos” (ROSA, 2010, p. 261).
A Biologia inaugura uma nova forma de se ver a vida e não somente os seres vivos (PORTOCARRERO, 2000), a qual difere, radicalmente, da História Natural, que se mostra voltada para o campo do visível, do detalhamento e da descrição minuciosa (DUARTE, 2010), porém ambas compartilham sua utilização por correntes políticas, uma vez que a História Natural contribuiu para a edificação dos grandes impérios modernos e a Biologia esteve a serviço de projetos nacionalistas (DUARTE, 2010).
Durante todo o século XX, a Biologia se firmou tanto em práticas científicas quanto em complexas relações sociais, como um campo específico que mantém íntimo vínculo e sistematizações com a vida política e cultural (DUARTE, 2010): a “biologização da vida, que acarretou a naturalização das diferenças” (LOBO, 2008, p. 197), levando à aceitação da inferioridade de pessoas negras e de mestiços/as. Um dos defensores dessa mentalidade era João do Norte (1929, p. 4) para quem o cruzamento entre raças, como a branca e a negra, gera um povo “fraco, feio, inferior aos indivíduos puros que o formaram”, havendo ainda a crença de que “todas as qualidades físicas e psíquicas, todas as combinações que nós chamaríamos de caráter do ser humano” são determinadas no momento da fecundação (MJOEN, 1931, p. 6), ou seja, o comportamento humano seria celular e determinado pela fusão do óvulo com o espermatozoide. O médico sergipano Manoel Bomfim (1868 - 1932) contrapunha-se a este processo de naturalização e afirmava não haver comprovação de que entre mestiços/as houvesse “degenerado de caráter, relativamente às qualidades essenciais das raças progenitoras. Os defeitos e virtudes que possuem vêm da herança que sobre eles pesa, da educação recebida e da adaptação às condições de vida que lhes são oferecidas” (BOMFIM, 2008, p. 212), o qual combate o naturalismo imputado à diversidade.
O zoologista Candido Firmino de Mello-Leitão (1886-1948), por exemplo, também articulou a Biologia com a ideologia política vigente em sua época, tendo especificamente produzido textos, os quais, segundo Duarte (2010, p. 125), “traziam interpretações da natureza com base em pressupostos eminentemente políticos e recorriam a argumentos científicos para justificar certas concepções sobre a sociedade”. Mello-Leitão (1935, p. 37), num momento político no qual Getúlio Vargas (1882-1954) pregava um sindicalismo subserviente, divulgava em seus escritos que em “todas sociedades […] domina sempre a mais perfeita disciplina, a ordem mais perfeita, realizando o ideal que ainda buscamos”, ou ainda, “Olhando-se mais de perto, porém, as relações entre os seres, observa-se que a natureza é sempre uma grande harmonia, onde a mútua dependência, auxílio, diríamos mesmo a amizade, é regra geral” (MELLO-LEITÃO, 1935, p. 63).
Décadas depois, por meio da mídia impressa, televisiva e a digital, chegam diferentes campos da Biologia ao grande público. Por exemplo, ao longo dos anos 1980, quando do desenvolvimento do Projeto Genoma Humano, a Biologia molecular invadiu os lares do país. O mesmo tema voltou a circular e a causar polêmica quando da discussão em prol da aprovação ou não das cotas “raciais”. Nesse momento, a Revista Veja, em sua edição de junho de 2001, estampou em sua capa “Raça não existe”, como se esta categoria fosse entendida como algo natural e válida pelos defensores/as das cotas nas universidades públicas. No campo acadêmico, Pena; Bortolini (2004) problematizaram em seu artigo se: “Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?”. A questão posta tem como resposta um “enfático NÃO” (PENA; BORTOLINI, 2004, p. 46), mesmo com o/a autor/a considerando que a “genética moderna pode oferecer subsídios para as decisões políticas e que o perfil genético da população brasileira certamente deve ser levado em conta em decisões políticas” (PENA; BORTOLINI, 2004, p. 46). O posicionamento político do/a autor/a termina por não ter um significado maior, pois os processos de racismo, preconceito e discriminação, a que a população negra encontrase submetida, não se devem ao perfil hereditário, mas ao racismo estrutural e estruturante das relações sociais e raciais brasileiras.
O sistema escravista que teve mais de três séculos de duração levou a uma profunda exploração econômica, divisão, não só física, mas preponderante de desvalorização e de invisibilidade do/a outro/a, ou seja, a população negra. No que concerne a esta apartação, Santos (2010, p. 23-24) nos apresenta a seguinte reflexão:
A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece e enquanto realidade torna-se inexistente, e é mesmo produzido com inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da copresença dos lados da linha. Deste lado da linha só pode prevalecer na medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela, há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não dialética.
Esta linha torna-se uma fronteira que foi erigida pelo escravismo, o patriarcalismo e o colonialismo europeu. Do outro lado deste marco divisor, como expressa Santos (2010), encontram-se diferentes grupos humanos, dentre eles os/as integrantes da população negra que torna a existência visível valorizada, a qual passa pela construção de um “pensamento crítico da modernidade que constitua uma resistência epistemológica à injustiça social e à justiça cognitiva” (MARTINS, 2019, p. 533). Essa construção passa por processo educativo que respeite a diversidade, que seja inclusiva e também libertadora, dentro da qual tenhamos a multiplicidade de ideias e pensamentos quanto à complexidade a qual se mostra presente quando os/as “componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes” (MORIN, 2003, p. 14), pois o educar apresenta uma “importância fundamental para mudanças estruturais. É o lugar estratégico para o desenvolvimento de mecanismos que permitam a ruptura com o passado e o presente opressores” (BOTELHO; MARQUES, 2015, p. 31).
O ato de incluir e de pensar campos e possibilidades discursivas, que estejam além do campo do natural, não tem sido um ato recorrente entre os/as profissionais que atuam no campo da Biologia. A saúde, por exemplo, um tema clássico nos manuais tanto do ensino Fundamental quanto do Médio, não traz qualquer tipo de articulação entre a incidência de doenças e grupos populacionais, permitindo passar ao largo das discussões as doenças prevalentes na população negra. O desejo de mudança e o de ir além de determinadas limitações fizeram com que a Biologia emergisse enquanto um corpo robusto dentro do campo acadêmico ao longo dos anos oitocentos e acreditamos que seja este desejo de inconformidade que necessita ser recuperado, ao longo do século XXI no sentido de que a Biologia contribua para uma educação decolonial e emancipadora.
Assim, com esse posicionamento, tanto científico quanto crítico, a Biologia se configura como uma área que pode e deve participar das discussões que visam enfrentar as desigualdades muitas vezes gestadas por meio do racismo, do preconceito e da discriminação racial, uma vez que se coloca ao lado dos seres vivos, das complexidades da vida. Para interligar esses dois campos, porquanto “há um deslocamento do saber fundado nas estruturas visíveis dos seres vivos, para o invisível, enunciado pelo conceito de organização interna” (PORTOCARRERO, 2009, p. 131-132). Pensada dessa forma, a Biologia não se encontra como um dado, uma informação pronta e acabada, mas como um processo, uma construção, também, no campo discursivo da Educação das Relações Raciais.
Sendo assim, o presente texto objetiva articular conhecimentos da Citologia à Educação das Relações Étnico-Raciais, buscando contribuir com a formação inicial na perspectiva emancipatória visando à formação inicial de licenciandos/as em Ciências Biológicas para o cumprimento da Lei nº 10.639/2003, introduzindo-os/as no debate de uma educação decolonial. O presente manuscrito mostra-se dividido em três seções complementares. A primeira é o percurso metodológico no qual tem-se o período e o campo da pesquisa bem como o método utilizado para a obtenção dos resultados. Na segunda encontra-se o perfil dos/as estudantes bem como os temas e discussões da Biologia Celular que foram articulados à Lei nº 10.639/2003, e finalizando a terceira seção, quando nas Considerações Finais são apresentadas as reflexões decorrentes dos resultados obtidos bem como indagações que poderão nortear novas produções textuais.
PERCURSO METODOLÓGICO: coleta e sistematização dos dados
Nos primeiros dias de aula dos semestres 2017-1, 2017-2, 2018-1 e 2018-2, aplicamos um questionário, contendo 34 questões objetivas e subjetivas, num total de 34, o qual foi elaborado para coletar informações de natureza sociocultural e de formação acadêmica dos grupos de discentes matriculados/as no Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Informações tais como cor, de acordo com as categorias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sexo, idade, religião, conhecimento da Lei nº 10.639/2003, escolaridade do pai e da mãe, bem como alguns dos conceitos relativos ao componente curricular Biologia Celular foram coletados. O instrumento de pesquisa aplicado não permitia a identificação dos/as respondentes.
Antes de a digitação ser iniciada, numa planilha do Excel da Microsoft, os questionários eram sequencialmente numerados, sendo os dados filtrados por meio de ferramenta desse software (SILVA; SOARES; SILVA, 2015). Neste artigo, a numeração atribuída foi substituída por nomes de pessoas do Antigo Egito (Ta-Meri), território no qual habitavam povos de pele negra, segundo Diop (2010)kmt ou segundo Araújo (2015), os/as remetu kemi.
As experiências didáticas aqui descritas faziam parte do plano de trabalho do Projeto de Tutoria da UFPB, o qual objetiva diminuir a retenção no componente curricular Biologia Celular. No semestre 2017-1, aprovamos a proposta intitulada Ensino de Fisiologia Celular: o uso de metodologias criativas e motivacionais como instrumentos para a melhoria do processo de ensino/aprendizagem, a qual foi reapresentada e renovada nos períodos, 2017-2, 2018-1 e 2018-2. Assim garantia-se a presença de pelo menos dois bolsistas, do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, os/as quais participavam ativamente de todas as atividades. Ao longo das duas primeiras experiências de desenvolvimento do projeto, em 2017-2 e 2018-1, contamos também com a participação de dois estudantes do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB (PPGE), que, junto a uma turma do diurno e outro/a do noturno, desenvolveram seus estágios de docência.
No decorrer das aulas teóricas expositivas dialogadas, diferentes assuntos relacionados à população negra foram inseridos e discutidos, concernentes aos temas do conteúdo programático, com o objetivo de articular o processo de ensino e aprendizagem de Biologia Celular com a Lei nº 10.639/2003, bem como para exemplificar aos/às discentes como esta área, integrante do campo das Ciências Naturais, poderia ser discutida em sala de aula, de forma interseccional, com temática racial. Optamos por esta estratégia de ação, pois ela exige “a participação ativa dos estudantes, cujo conhecimento prévio deve ser considerado e pode ser tomado como ponto de partida. O professor leva os estudantes a questionarem, interpretarem e discutirem o objeto de estudo, a partir do conhecimento e do confronto com a realidade” (ANASTASIOU; ALVES, 2004, p. 79).
Ao longo dos encontros, dois por semana, com duração total de quatro horas semanais, os/as discentes eram estimulados/as a formarem equipes e a proporem temas que articulassem conteúdos da disciplina e que também estivessem relacionados à população negra, cujos resultados seriam apresentados, no formato de banner, em data previamente determinada. Cada grupo era orientado no levantamento bibliográfico, o que permitiria a escolha do tema de estudo a ser exposto no formato de painel.
Quanto às atividades didáticas, elas ocorriam nos primeiros seis meses do ano. A sessão de apresentação acontecia no dia 13 de maio, data da “Abolição da Escravidão” que foi ressignificada como o Dia Nacional de Denúncia da Discriminação Racial no Brasil. Quando as aulas transcorriam nos seis meses finais do ano, as exposições eram realizadas em novembro4 de forma a estimular os/as futuros/as docentes a atuarem, a partir de área profissional, nas atividades alusivas ao mês da Consciência Negra, uma vez que o artigo 79 B, da Lei nº 10.639/2003, torna o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra5”, data de celebração proposta, originalmente, pelo Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978 (DOMINGUES, 2007). Tanto numa oportunidade quanto na outra havia todo um acompanhamento e orientação para que eles/as pudessem trabalhar de forma a levarem a Lei nº 10.639/2003 para dentro de suas futuras salas de aula.
PERFIL DOS/AS ESTUDANTES E A CONSTRUÇÃO DE UMA METODOLOGIA INOVADORA PARA O PROCESSO DE ENSINO/APRENDIZAGEM DE BIOLOGIA CELULAR
Ao longo dos quatro semestres, as discussões foram levadas a efeito com um total de 120 discentes, sendo 86 (71,7%) e 34 (28,3%) do diurno e do noturno, respectivamente. Havia uma presença feminina levemente mais elevada que a masculina, 66 (55,0%) e 54 (45,0%) respectivamente. O maior número de participantes do curso diurno pode ser explicado, pois o componente curricular Biologia Celular é ofertado duas vezes ao ano, enquanto para o noturno apenas uma. Quanto à cor das pessoas, tínhamos 58 (48,3%) de pardas e 45 (37,5%) brancas, tendo-se ainda que entre os/as respondentes 12 (10%) autodeclararam-se como sendo pretas e 5 (4,2%) como sendo amarelas. No tocante ao credo religioso, 11 foram as religiões informadas6, sendo que as duas mais numerosas foram a católica e a protestante com, respectivamente, 40 (33,3%) e 10 (8,3%).
Dados tais como idade, cor e religião não são frequentemente trabalhados no campo da Biologia, porém foram coletados e apresentados, pois diferentes variáveis contribuem para o entendimento da condição social da pessoa (DURANDI; SOUSA, 2002). Concordamos com Ciurana (2012, p. 89) quanto à importância do reconhecimento das “cegueiras do conhecimento. Ver o papel dos mitos, das crenças, das religiões, os imprintings culturais”, uma vez que a cor e a religião, por exemplo, dos/as discentes acompanham no interior da sala de aula. Esta presença entra em concordância com as Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2006), uma vez que o/a discente apresenta uma identidade singular que o/a insere em uma coletividade específica.
Mesmo nas aulas quando as plantas vinculadas a religiões de matrizes africanas, como o Candomblé, foram abordadas, nunca houve qualquer manifestação de constrangimento e/ou de racismo religioso por parte dos/as discentes. Acreditamos que um ponto importante que evitou problemas foi justamente a estreita e íntima articulação da temática ao programa da disciplina Biologia Celular, uma vez que houve um momento de “convívio e respeito entre as dimensões “científica” e “tradicional” (VERRANGIA, 2010, np).
Uma característica encontrada nas turmas foi que a maioria dos/as discentes7, (100) 83,3%, acreditava que os conteúdos da Biologia poderiam ser aplicados em sua vida diária. Essa opinião permitiu um maior interesse dos grupos pela proposta levada a efeito ao longo das aulas.
Esta experiência educativa, na qual o processo de ensino/aprendizagem é tratado de forma transversal com a Lei nº 10.639/2003, surgiu de inquietações que se enraizaram em nossa mente, quando de participações na formação de professores/as, pois ao perguntar para eles/as como, a partir da Biologia, desenvolveriam atividades com o objetivo de obedecer a este marco legal, de forma recorrente, ano após ano, eles/as diziam que trabalhariam a temática do Candomblé, a da Escravidão assim como a do preconceito e da discriminação. Percebia, logo em seguida, que eles/as não estavam preparados/as para discutirem tais temas em sala de aula, pois nas respostas não havia propostas que articulassem os temas citados com a Biologia e para os diferentes temas, preconceito e discriminação eram sinônimos e, muitas vezes, por afirmarem a inexistência da “raça”, o racismo não era sequer citado.
Essas discussões nos motivaram a levar o tema da Educação das Relações Étnico-Raciais para a sala de aula do Curso de Licenciatura em Ciências, UFPB, buscando, assim, repensar o currículo dos/as futuros/as professores/as de Biologia. Ao repetir a pergunta, obtinha as mesmas respostas como ocorreu ao longo das formações. Assim iniciamos um processo de reestruturação do conteúdo programático que seria discutido ao longo das aulas, pois em concordância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004, p. 15), os estabelecimentos escolares e “seus professores não podem improvisar. É imperioso que se desconstruam as mentalidades racista e discriminadora de forma a se superar o paradigma do Eurocentrismo que traz em seu âmago uma prática da universalidade (ARAÚJO; MAESO, 2016), reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos”. Neste sentido, é estratégico desenvolver um olhar diferenciado e inclusivo proposto nas Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2006), as quais sugerem temas que podem ser desenvolvidos pela Biologia, dentre eles a Saúde da População Negra. Levamos ainda em consideração as palavras de Coelho (2018), pois deve e pode ser ponderada, também, a parcela de responsabilidade dos cursos de licenciatura na implantação desta legislação.
Na aula introdutória, apresentamos, a cada semestre, a Lei nº 10.639/2003 bem como o Parecer8 emitido pela Professora Doutora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, conselheira do Conselho Nacional de Educação, o qual, dentre outros temas, ressalta “as contribuições do Egito para a ciência e filosofia ocidentais”. Pontos da Resolução 01/20049 eram citados para justificar a inserção dos temas ligados à população negra ao longo das aulas, pois as Instituições de
Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004.
No âmbito local, citávamos a regulamentação da Lei nº 10.639/2003, na cidade de João Pessoa, ocorrida em 2006, a qual, de acordo com as Diretrizes para implementação, amplia a aplicação deste marco legal para todas as áreas de conhecimento havendo ainda a obrigatoriedade da discussão do tema pelo menos uma vez a cada bimestre (ROCHA; SILVA, 2013). Trazíamos ainda a resolução 016/2015 do Conselho Superior de Pesquisa Ensino e Extensão da UFPB, que, no artigo 26, regulamenta a presença do componente curricular Educação para as Relações Étnico-Raciais para todos os cursos de graduação da UFPB. Ao trazer a Lei nº 10.639/2003 e alguns dos desdobramentos, aqui citados, tínhamos sustentação da legislação em vigor para nossa estratégia de articulação da Biologia.
A cada semestre do desenvolvimento das experiências didáticas, buscamos captar, nos diferentes grupos de discentes, a estrutura a partir da qual as diferentes doenças se desenvolviam. As respostas eram um órgão, um tecido, e na ausência da resposta mais adequada, trazia então um conceito de célula, no qual ela é apresentada como sendo “uma entidade estrutural e funcional fundamental dos seres vivos” (DE ROBERTIS; HIB, PONZIO, 2003, p. 1). A partir da célula, instalam-se as mais diferentes doenças, sendo que esses são assuntos abordados nos Ensinos Fundamental e Médio. Assim, com este discurso, conseguia conectar os conteúdos da disciplina Citologia com uma ação educativa voltada para a Educação das Relações-Raciais, tendo como foco a Lei nº 10.639/2003 e direcionando as discussões para as doenças prevalentes na população negra.
Com esta prática didática transversal, trabalhamos com o pensamento de Paulo Freire (2000, p. 40), para quem a educação pode ser considerada que: “é sempre uma certa teoria do conhecimento posta em prática”, não importando se é um “conhecimento já existente ou se achamos na busca da produção do conhecimento não existente ainda” (2000, p. 63), pois através de uma consciência crítica, descobrimos que sabemos pouco e, a partir de nosso lugar no cosmos, inquietamos por saber mais (FREIRE, 2005). O fato de este movimento de inquietude ser realmente crítico, emancipatório e decolonial, ele deve nos levar a colocar em prática o giro epistêmico ao longo do qual se aprende, se desaprende, e volta-se a aprender novamente (MIGNOLO, 2008). Sem que ele seja dado, estaremos repetindo praticamente uma forma de “compra” e “venda”, na qual a escola se transforma em um mercado transformando “o professor num especialista, que vende e distribui um “conhecimento empacotado”; o aluno, no cliente que compra e “come” este conhecimento” (FREIRE, 1978, p. 14).
Com o transcorrer das aulas, a estratégia da exposição dialogada mostrou-se de profunda importância, pois permitiu um amplo canal de troca de comunicação. Para os mais diferentes conteúdos, havia um questionamento para os/as discentes: como aquele ponto se articularia com a Lei nº 10.639/2003? A partir de um determinado momento, em cada um dos semestres, esta pergunta passou a ser feita pelos/as discentes e ouvi-la foi um momento muito rico, o qual nos deu uma certeza de que havia estudantes sensibilizados/as pela proposta didática.
No quadro 1, apresentamos a relação de temas levados para as aulas e os assuntos referentes à Lei nº 10.639/2003 que foram discutidos, ao longo das aulas, com os/as discentes.
Conteúdos programáticos | Temas das aulas | Assuntos articulados |
---|---|---|
Técnicas de preparação tecidual | Microscopia | Cientistas negros: Tito Livio de Castro e George Washington Carver. Personalidades negras |
Fixação tecidual | Mumificação no Egito Antigo (Ta-Meri) | |
Coloração | Uso do Aloe vera (Babosa) no Antigo Egito e do Dioscorea trifida (Inhame). | |
Membrana | Permeabilidade celular | Hipertensão arterial e AIDS. |
Citoesqueleto | Formato celular | Anemia/doença falciforme e fragmentos de epiderme das Tradescantia spathacea (espada de Iansã ou abacaxi-roxo) e de Kalanchoe pinnata (folha-da-costa). |
Núcleo e cromatina | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular | Câncer de próstata, miomas uterinos, Anemia/doença falciforme. Saúde da População Negra. História de vida de Henrietta Lacks. |
Organelas citoplasmáticas | Mitocôndrias, DNA mitocondrial e origens da humanidade | Origem da humanidade em África. |
Complexo Golgiense | Cientistas negros: Ernest Everett Just. | |
Lisossomos | Apoptose, Diabetes tipo 2, glaucoma, Saúde da População Negra. |
Fonte: Programa da disciplina Biologia Celular.
As discussões realizadas nos encontros dialógicos eram aprofundadas nos momentos de orientação com os/as tutores/as ou com os/as estudantes de Pós-Graduação em Educação que desenvolviam seu estágio de docência na disciplina. Dessa interação, novas proposições surgiam, algumas vindas a partir de discussões ocorridas em sala de aula. Assim, emergiram os temas que foram apresentados pelos discentes e que são detalhados no quadro 2. Ao longo dos semestres 2017-1, 2017-2, 2018-1 e 2018-2, foram apresentados 34 banners, os quais permitiram que a Biologia Celular pudesse ser vista como uma área do conhecimento apta a participar da construção de um currículo emancipador e decolonial.
Semestre | Nº | Títulos dos trabalhos apresentados | Propostas de articulação |
---|---|---|---|
2017.1 | 1 | “Mumificação e o ensino de citologia: contextualizando técnicas de conservação à luz da Lei nº 10.639/2003”. | Técnicas de fixação e preparação tecidual/permeabilidade celular. |
2 | “Mumificação e sua relação com a Lei nº 10.639/2003: relato de experiência em aulas de Biologia e Fisiologia Celular”. | Técnicas de fixação e preparação tecidual/permeabilidade celular. | |
3 | “Henrietta Lacks, mulher negra, e sua contribuição para a Biologia Molecular: uma abordagem a partir da Lei nº 10.639/2003”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. | |
4 | “Glaucoma e o ensino de biologia celular: um olhar atento para a Saúde da População Negra”. | Apoptose/Saúde da População Negra. | |
5 | “O diabetes mellitus e a Lei nº 10.639/2003: relatos de experiência em aulas de biologia e fisiologia celular”. | Apoptose/Saúde da População Negra. | |
6 | “Anemia falciforme e suas interfaces de acordo com a Lei nº 10.639/2003”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. | |
7 | “A anemia falciforme e suas implicações biológicas e sociais: uma análise à luz da Lei nº 10.639/2003”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. | |
8 | “Cientistas e personalidades negras acadêmicas: uma história que precisa ser contada”. | Personalidades negras/educação. | |
9 | “A técnica de diafanização e o ensino de biologia e fisiologia celular: interfaces com a Lei nº 10.639/2003”. | Técnicas de fixação e preparação tecidual/permeabilidade celular. | |
10 | “Anemia hemolítica e a Lei nº 10.639/2003: uma proposta interdisciplinar”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. | |
11 | “Técnica para identificação de portadores de anemia falciforme: interfaces entre o ensino de Biologia e a Lei nº 10.639/2003”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. | |
12 | “A Lei nº 10.639/2003 e suas implicações no ensino de biologia e fisiologia celular”. | Técnicas de fixação e preparação tecidual/permeabilidade celular. | |
2017.2 | 13 | “Filhos da África: descendência por linhagens de mitocôndrias”. | Mitocôndrias, DNA mitocondrial e origens da humanidade. |
14 | “À luz da Lei nº 10.639/2003, Antonieta de Barros: correntes que foram quebradas”. | Personalidades negras/educação. | |
15 | “Professora Lúcia de Fátima Julio: importância da discussão da implementação da Lei nº 10.639/2003 no ambiente escolar e acadêmico”. | Personalidades negras/educação. | |
16 | “Merit Ptah: uma análise da mulher negra no contexto histórico da ciência”. | Personalidades negras/educação. | |
17 | “Juliano Moreira: análise de sua contribuição social e científica”. | Personalidades negras/educação. | |
18 | “Henrietta Lacks”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. | |
2018.1 | 19 | “A mumificação e a aplicação da Lei nº 10.639/2003 no processo de ensino/aprendizagem de citologia”. | Técnicas de fixação e preparação tecidual/permeabilidade celular. |
20 | “Anemia falciforme e a população negra”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. | |
21 | “A relação da fermentação natural com o ensino da cultura negra pela Lei nº 10.639/2003 e o ensino da biologia”. | Mitocôndrias, DNA mitocondrial e origens da humanidade. | |
22 | “O uso da babosa na aplicação da Lei nº 10.639/2003 melhorando o ensino e aprendizagem”. | Técnicas de fixação e preparação tecidual/coloração. | |
23 | “Aquaporinas e a pele negra no ensino de biologia celular: atuação dos hidratantes na pele da população negra, à luz da Lei nº 10.639/2003”. | Proteínas da superfície celular/Saúde da População Negra. | |
24 | “O milagre da evolução: deficiência da g6pd confere aos negros e seus descendentes resistência contra parasitas maláricos”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. | |
25 | “Prevalência da hepatite B na população negra: possibilidades de discussão da Lei nº 10.639/2003”. | Apoptose/Saúde da População Negra. | |
26 | “Ernest Everet Just: análise da contribuição de um cientista negro”. | Personalidades negras/educação/ microscopia. | |
27 | “AIDS correlacionada à Lei nº 10.639/2003”. | Proteínas da superfície celular/Saúde da População Negra. | |
28 | “Hipertensão arterial: relacionada com a Lei 10.639/03”. | Proteínas da superfície celular/Saúde da População Negra. | |
29 | “Anemia falciforme e a população negra no ensino de Biologia Celular abordando a Lei nº 10.639/2003”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. | |
2018.2 | 30 | “O estudo de citologia associado com a mumificação e a Lei nº 10.639/2003”. | Técnicas de fixação e preparação tecidual/permeabilidade celular. |
31 | “Eva Mitocondrial: a origem africana do homem moderno (Lei nº 10.639/2003”. | Mitocôndrias, DNA mitocondrial e origens da humanidade. | |
32 | “Os avanços do cientista George Washington Carver e sua relação com a Lei nº 10.639/2003.” | Personalidades negras/educação/ microscopia. | |
33 | “O uso da Aloe vera no Egito Antigo associado com a Lei nº 10.639/2003, analisando as propriedades moleculares, farmacológicas e medicinais da planta”. | Técnicas de fixação e preparação tecidual/coloração. | |
34 | “Anemia falciforme e a população negra no ensino de biologia celular abordando a Lei nº 10.639/2003”. | Núcleo, cromatina, hereditariedade, controle bioquímico do ciclo celular. Microscopia/Saúde da População Negra. |
Fonte: Projeto de tutoria. Ensino de Fisiologia Celular: o uso de metodologias criativas e motivacionais como instrumentos para a melhoria do processo de ensino/aprendizagem. Semestres 2017-1, 2017-2, 2018-1 e 2018-2.
Como pode ser visto no quadro 2, não há uma rigidez quanto à conexão dos temas ligados à Lei nº 10.639/2003, pois um determinado assunto pode ser apresentado em mais de um tema da Citologia. Isto gera uma flexibilidade que permite que o conteúdo venha a ser discutido em sala de aula em diferentes momentos do semestre, contribuindo assim para a aprendizagem.
APOPTOSE, SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA
Como pode ser observado no quadro 2, tivemos 34 apresentações ao longo dos 4 semestres, sendo que 3 (8,8%), os experimentos de número 4, 5 e 25, foram classificados na temática: Apoptose (Morte celular programada) e Saúde da População Negra. A primeira é “um processo fisiológico essencial para a eliminação de células em excesso ou que não são mais necessárias ao organismo, atuando na homeostase dos tecidos; entretanto, esse fenômeno também está envolvido em condições patológicas” (LUCHS; PANTALEÃO, 2010, p. 495). A segunda10, por sua vez, é entendida como um conjunto de estudos, pesquisas e propostas voltadas para a atenção à saúde, que emergem a partir de ações do Movimento Social Negro, tendo por base conhecimentos de ordem inter e transdisciplinar oriundos das Ciências Médicas e Humanas por meio da constatação de que o racismo a que estão expostos, homens e mulheres negros/as, gera condições perversas e adversas as quais somente poderão ser dirimidas com implementação de políticas públicas capazes de reconhecer e dirimir estas condições11, pois, em concordância com Lopes (2005, p. 18), “Indígenas, negros e brancos ocupam lugares desiguais nas redes sociais e trazem consigo experiências também desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer”.
A apoptose mostra-se relacionada ao desenvolvimento do glaucoma (MARIGO; CRONEMBERGER; CALIXTO, 2001) bem como do Diabetes tipo 2 (LEAL; VOLTARELLI, 2010): duas doenças prevalentes na população negra (GREENIDGE; DWECK,1988, BRASIL, 2001a. MARSHALL JR, 2005).
Em relação a estes temas, foi inovador articular a ocorrência da apoptose com a Saúde da População Negra, bem como apresentar para os diferentes grupos de discentes estas duas morbidades, glaucoma e diabetes tipo 2, como sendo prevalentes entre negros/as. Para todos os grupos com os quais trabalhamos, foi também uma grande novidade a informação de que existem doenças prevalentes em determinados grupos humanos, tais como negros e judeus. No Brasil, pelo menos dois textos do Ministério da Saúde, ambos do ano de 2001, o Manual de doenças mais importantes, por razões étnicas, na população brasileira afro-descendente e o Manual de diagnóstico e tratamento de doença falciforme alertam para doenças prevalentes na população negra, porém estes conhecimentos terminam por não fazer parte dos manuais escolares, o que nos coloca diante de inexistências (SANTOS, 2002) e invisibilidades (ARAÚJO; MAESO, 2013) que poderão ser epistemologicamente superadas por meio de uma pedagogia emancipatória e decolonial.
MITOCÔNDRIAS, DNA MITOCONDRIAL E ORIGENS DA HUMANIDADE
Ao longo de todo o período estudado, 3 (8,8%) apresentações, correspondentes aos banners 13, 21 e 31, relacionaram-se à mitocôndria, uma organela citoplasmática presente em todas as células com exceção das hemácias de mamíferos e as bactérias, cuja principal função biológica divulgada é a produção de energia metabólica sob a forma de adenosina trifosfato (ATP), sendo conhecida como as usinas energéticas da célula (DE ROBERTIS; HIB, PONZIO, 2003). As mitocôndrias são transmitidas, de uma geração imediatamente anterior para a próxima, por meio de herança materna (NASSEH, 2001) e como seu material hereditário, de formato circular, não se hibridiza com o paterno, torna-se uma ferramenta molecular ímpar para traçarmos nossa ancestralidade por meio da linha matrilinear. O DNA mitocondrial foi objeto dos trabalhos 13 e 31.
O banner 21 explorou a capacidade do citoplasma na produção de um metabólito. O produto final da via glicolítica (fermentação), que impulsiona a produção de energia pela organela, o piruvato, pode ser utilizado para produção de álcool (DE ROBERTIS; HIB, PONZIO, 2003). Esta prática abordou a utilização do piruvato na produção de uma cerveja grossa, encorpada e energética, muito semelhante à chamada de henket, uma bebida produzida e apreciada pelos/as remetu kemi, os/as moradores/as do Ta-Meri (CANHÃO, 2015).
Neste grupo, encontramos discentes que desconheciam que o DNA mitocondrial poderia ser utilizado para a pesquisa de nossa ancestralidade, porém a novidade foi a produção da cerveja no Ta-Meri, já por volta de 3500 anos antes de Cristo (OLIVER, 2012).
NÚCLEO, CROMATINA, HEREDITARIEDADE, CONTROLE BIOQUÍMICO DO CICLO CELULAR MICROSCOPIA/SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA
O núcleo celular é uma organela típica dos seres eucarióticos sendo que o seu material hereditário é proveniente 50% da mãe e 50% do pai. É o núcleo que, ao se dividir, gera novas células levando tanto ao crescimento normal do organismo quanto à produção de células anormais, devido à presença de mutações, as quais levam, por exemplo, ao desenvolvimento dos miomas uterinos, do câncer de próstata, da anemia falciforme (AF) e da doença falciforme (DF), morbidades prevalentes na população negra (BRASIL, 2001 a) que se originam a partir de mutações que ocorrem em genes localizados, respectivamente, no cromossomo sexual X (FARIA; GODINHO; RODRIGUES, 2008), 17 (AMENDOLA; VIEIRA, 2005) e 11 (SONATI; COSTA, 2008).
Nestas temáticas, contabilizamos o maior número de apresentações 10 (29,4%) referentes aos banners 3, 6, 7, 10, 11, 18, 20, 24, 29 e 34. Neste grupo, encontramos atividades didáticas ligadas à DF bem como à AF, que totalizaram 7 (20,6%). Os experimentos 6, 7, 10, 11, 20, 29 e 34 estiveram voltados para essas duas doenças prevalentes na população negra. Buscamos impedir que os/as discentes entendessem as duas morbidades citadas como sendo sinônimas. Apresentávamos para eles/as pontos que permitissem a diferenciação entre ambas, pois a
Doença Falciforme é um termo genérico usado para determinar um grupo de alterações genéticas caracterizadas pelo predomínio da hemoglobina (HbS). Essas alterações incluem a anemia falciforme (Hb SS), e as duplas heterozigoses, ou seja, as associações com d Hb S com outras variantes de hemoglobinas, tais como Hb D, Hb C, e as alterações com talassemias (Hb S/βo talassemia, Hb S/β+ talassemia, Hb S/a talassemia) (BRASIL, 2001, p. 22b).
Decidimos ainda por discutir com os/as discentes, das diferentes turmas, o manual do professor12 e o do paciente13, os quais apresentam grande importância, uma vez que vão além de descreverem as hemácias em forma de foice, uma morfologia que identifica a doença. Apresentávamos também algumas características fenotípicas/fisiológicas das pessoas falcêmicas, tais como: o priapismo, a menarca tardia, a dificuldade da cicatrização de ferimentos, a contraindicação à natação, a necessidade de urinar com mais frequência, crise de dor, icterícia (cor amarela nos olhos), síndrome mão-pé, “a inflamação aguda dos tecidos que revertem os ossos dos tornozelos, punhos, mãos e pés12”, infecções, úlcera de perna.
Neste grupo temático, também foram inclusas as atividades didáticas, 3 e 18, relativas à vida da mulher negra estadudinense Henrietta Lacks (1920-1951). Foram retiradas de seu corpo, sem sua permissão, em 1951, células que foram imortalizadas em laboratório; as primeiras de nossa espécie com as quais se obteve sucesso de crescimento in vitro. Livros e artigos científicos, muitas vezes, trazem a sigla HeLa, oriunda das letras iniciais do seu nome, mas, em geral, não explicam a origem. A história de vida da senhora Lacks foi inicialmente divulgada por meio do livro escrito por Rebecca Skloot: “A vida imortal de Henrietta Lacks14”, sendo que algumas páginas da obra eram divulgadas para os discentes15. Ela havia sido acometida por um tipo de câncer uterino, uma doença que altera a forma como as células normalmente se dividem, a mitose. As células oriundas da senhora Lacks são usadas nas mais variadas pesquisas que vão, por exemplo, do teste de cosméticos ao estudo da infecção pelo HIV (ALVES, 2014).
A inovação deu-se no sentido de demonstrar que estas morbidades podem interferir profundamente na vida social e escolar do/a portador/a, indo além da mera demonstração à morfologia da hemácia em forma de foice. No caso da Sra. Lacks, advertimos para a falta de ética de como foi tratada, pois a retirada e o uso de suas células foram feitos sem o seu consentimento. Sua família somente tomou conhecimento da retirada e do uso em 1973, ficando totalmente à margem dos valores financeiros que as células de Henrietta estavam gerando (GARGANTILHA, 2019).
PERMEABILIDADE CELULAR/SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA
Acerca destas temáticas, foram 3 (8,8%) atividades didáticas: as de número 23, 27 e 28. A de número 23, relacionada à permeabilidade celular, versou sobre as aquaporinas proteínas integrais da membrana plasmática (membrana celular), uma “película protetora” que envolve as nossas células, e que contribuem para a formação de um meio propício para as reações bioquímicas. É por meio das aquaporinas, que água e pequenos solutos neutros, como glicerol, ureia e silício (GASPAR, 2011), são transportados para o interior da célula, sendo por meio delas que os cremes hidratantes agem sobre a nossa pele. É, pois, por intermédio das aquaporinas que os hidratantes produzidos para as pessoas negras hidratam a pele.
A epidemia de aids, apresentada sob um recorte racial tendo por base dados disponibilizados no Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, foi discutida no banner 27. A interação do HIV com receptores protéicos, da família CD-4 presentes na membrana plasmática de linfócitos e de macrófagos, duas células de sistema imunológico, ocorre por meio de uma proteína viral com receptores da membrana celular (GUPTA, 2012). Já a hipertensão arterial mostra-se relacionada a proteínas de transporte cátions presentes na membrana celular havendo a sugestão da inibição da bomba de sódio-potássio nas membranas plasmáticas musculares e vasos sanguíneos (AMODEO; HEIMANN, 1998). Ambas as doenças não dependem apenas de fatores biológicos, pois elas se mostram influenciadas pelo meio ambiente social, tais como: o racismo, a discriminação, o status socioeconômico e a vulnerabilidade social16 (HENRY, 1988). A hipertensão também poderia ser discutida como um tema ligado ao núcleo celular e à hereditariedade, pois o controle da pressão sistólica seria influenciado por 15 poligenes17 (HARRAP, 2003).
Houve inovação ao apresentarmos as bases celulares dessas duas morbidades, bem como demonstrar para os/as discentes a prevalência de ambas na população negra.
PERSONALIDADES NEGRAS
Neste grupo, tivemos 7 atividades didáticas (20,6%), as de número 8, 14, 15, 16, 17, 26 e 32, que foram relacionados a cientistas/personalidades negras.
Um dos nomes trazidos foi o do psiquiatra baiano, Juliano Moreira (1873-1933), um dos fundadores do primeiro periódico brasileiro inteiramente voltado para a saúde mental, os Arquivos Brasileiros de Psiquiatria (1905), Neurologia e Ciências Afins. Esta presença causou grande surpresa, pois, para eles/as, o nome remetia, imediatamente, ao estabelecimento de saúde mental. Moreira foi um forte crítico à ideia da imagem negativa de que negros/as contribuíam, devido à mestiçagem, para a degeneração do povo brasileiro.
Nas aulas de microscopia, apresentamos para os/as discentes o brasileiro Tito Livio de Castro (1864-1890) bem como o estadunidense George Washington Carver (1864-1943) psiquiatra e botânico/agrônomo, respectivamente, os quais se utilizavam de microscópios. Ambos nasceram 24 anos e um ano, respectivamente, após o final da escravização em seus países, a saber, 1888 e 1865, e neste período histórico, para os/as estudantes, era inimaginável uma pessoa negra estar em atividade intelectualizada. Essa era uma visão preconceituosa, colonizada e também incentivada pelos manuais didáticos, nos quais, muitas vezes, negros/as são “apresentados nos livros de Física e de Ciências como atletas ou em funções de trabalhadores braçais” (MORAIS; SANTOS, 2019, p. 78).
Tito Livio de Castro (1893), em pleno período dos anos oitocentos, mostrava um pensamento arrojado ao defender a educação para as mulheres. Para ele, não havia argumentação científica que explicasse a inferioridade da mulher frente ao homem. Carver revolucionou a agricultura de seu tempo ao descobrir que o amendoim, soja e batata-doce cresciam em solos que haviam se exaurido devido ao excesso de uso por plantações de algodão. Então propôs a rotatividade, salvou a economia local e agregou valor econômico a essas culturas ao desenvolver um grande número de produtos (SILVA; PINHEIRO, 2019).
O biólogo Ernest Everett Just (1883-1941), pioneiro nos estudos da Biologia do Desenvolvimento Ecológico (Eco-Devo), linha de trabalhos realizados no contexto natural, desenvolveu pesquisas nas quais descobriu o papel da membrana celular na interação entre o óvulo e o espermatozóide (BYRNES; ECKBERG, 2006). Com base no conhecimento atual, sabemos que os componentes químicos das membranas que permitem esta interação são os carboidratos, os quais são inseridos numa estrutura intracelular denominada de Complexo Golgiense e, por este motivo, na aula referente a esta estrutura, o nome do biólogo estadunidense era citado.
Os nomes das professoras Antonieta de Barros (1901-1952) e Lucia de Fátima Julio foram trazidos pelos/as estudantes ao longo das pesquisas que eram incentivados/as a desenvolverem. A primeira, natural de Florianópolis, era preocupada com a educação bem como com a emancipação da mulher e a segunda, paraibana, residente na cidade de Alagoa Grande, é uma defensora da melhoria das condições de Educação, em especial para a população quilombola, sendo também um importante papel na implementação da Lei nº 10.639/2003 em seu estado.
Apresentar estes cientistas negros bem como as duas educadoras foi inovador e relevante, pois, nas aulas, buscamos a desmistificação de um ideário eurocentrista (ARAÚJO; MAESO, 2016). A perspectiva abordada buscou apresentar as produções científicas desenvolvidas por pesquisadores/as africanos/as e afrodescendentes (SILVA; PINHEIRO, 2019), contribuindo assim para a desconstrução de uma ciência aparentemente realizada por cientistas brancos/as, pois, em concordância com Benite; Silva; Alvino (2016), acreditamos que a democratização na educação passa pela inserção de sujeitos desconsiderados como sujeitos do conhecimento.
TÉCNICAS DE FIXAÇÃO E PREPARAÇÃO TECIDUAL/PERMEABILIDADE CELULAR
Nesta temática, foram apresentados os experimentos 1, 2, 9, 12, 19, 22, 30 e 33 que representaram um total de 8 (23,5%), destes um subtotal de 5 (11,8%), os de número 1, 2, 12, 19 e 30, versaram sobre a mumificação química, um processo artificial de preservação de corpos inaugurados pelos/as remetu kemi que, originalmente, dissecavam os corpos usando um sal complexo chamado de natrão. Nas aulas práticas, este era substituído, com sucesso, por uma mistura de sal de cozinha com bicarbonato de sódio. Uma das ações destes agentes químicos é possibilitar a saída de água dos tecidos, devido à permeabilidade da membrana celular e ao fazer isto promovem a fixação tecidual.
Mumificar exigia conhecimentos tanto técnicos quanto religiosos, sendo um procedimento realizado em 14 etapas, de acordo com informações compiladas dos papiros de Boulaq, do Louvre 5158 e o de Harawa. A técnica, que durava em torno de 70 dias, tinha início com a lavagem do corpo da pessoa morta em locais próprios18, o envio do cadáver para os embalsamadores, que atuavam nas wabt wat (lugar puro) ou na per nefer (lugar belo), que retiravam o cérebro bem como a evisceração (retirada de órgãos internos). A dessecação do corpo com natrão durava em torno de 40 dias, correspondia às etapas 4 á 7 e era realizada por profissional denominado de ut. Nas fases 12 e 13, a superfície do corpo era tratada com resinas e óleos aromáticos visando amaciar a pele e deixar a tonalidade da pele mais próxima da natural. Finalmente, nas quatro semanas seguintes, o/a defunto/a era envolto/a em linho, momento no qual amuletos protetores eram também colocados (PARRA, 2015).
As práticas 22 e 33 discorreram sobre o uso da mucosidade do Aloe vera (babosa) em aulas de coloração. Parente et al (2013) relatam o uso desta planta no cuidado com a saúde. Ela é descrita no papiro de Ebers, datado de aproximadamente 1550 a.C, no Ta-Meri, na produção de elixires de longa vida. A atividade didática de número 9 discorreu sobre a diafanização, uma etapa da preparação tecidual que torna o material biológico translúcido e macio, e que corresponderia às fases 12 e 13 do processo de mumificação.
As inovações na didática foram articular os procedimentos de mumificação e também os da diafanização com os processos celulares, de cunho osmótico, ao longo dos quais se verifica grande perda de água. A simplicidade desta atividade permite que ela seja desenvolvida sem a necessidade de um laboratório, pois as aferições do peso podem ser realizadas com balanças domésticas. Inovamos ainda ao propormos procedimentos de coloração a partir da babosidade da Aloe vera, pois seu uso dispensa a utilização de lâminas permanentes, que podem ser de difícil acesso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste manuscrito, expomos como a Citologia pode contribuir para as discussões relativas à Lei nº 10.639/2003. Um aspecto fundamental para o sucesso das atividades foi a apresentação deste marco legal, bem como de alguns de seus desdobramentos, em exposições dialogadas ocorridas nos primeiros dias dos semestres letivos de 2017-1, 2017-2, 2018-1 e 2018-2. Estas foram fundamentais para a ressignificação do 13 de maio, bem como para a introdução do 20 de novembro para os grupos de estudantes, permitindo que no futuro desenvolvam atividades referentes a estas datas a partir de seu campo de formação. A conexão realizada recupera as origens inovadoras da Biologia assim como, permite uma releitura de temas que são específicos dentro do campo da citologia, o que possibilita uma renovação e construção de um processo de ensino/aprendizagem decolonial e inclusivo.
O processo saúde/doença é um dos temas das coleções didáticas trabalhadas ao longo dos ensinos fundamental e médio, porém, nestes dois períodos a base celular das morbidades bem como suas prevalências, no tocante a gente negra, não são apresentadas, por conseguinte, aqui recuperamos a centralidade da célula e de seus constituintes no processo de adoecimento, assim como a base celular de doenças e em particular daquelas que são prevalentes deste grupo populacional.
A partir dos temas aqui discutidos surgem novas indagações: que novos saberes decolonias poderão emergir do campo, em particular da citologia, bem como, num contexto mais amplo, da própria Biologia? Que outras personalidaes negras serão relembradas? Quais outras estratégias de ensino/aprendizagem poderão fomentar novas contribuições? Que outros saberes diaspórios os/as discentes poderão elaborar a partir desta primeira experiência? Estes novos saberes contribuirão para a transformação de um mundo já conhecido e trarão para o campo da visibilidade uma invisibilidade, a qual foi epistemologicamente construída.