Introdução
O número de estudos sobre os impressos de destinação escolar (livros didáticos, cartilhas, jornais, revistas, cadernos de exercícios, etc.) tem crescido significativamente nas últimas décadas no Brasil1. As pesquisas acerca desses impressos permitem, entre outras coisas, compreender projetos sociais, políticas educacionais, processos de escolarização, intencionalidades pedagógicas, concepções didáticas, práticas escolares (Peres, Vahl & Thies, 2016). Contudo, materiais didáticos ‘não aprovados’ também revelam aspectos das proposições, planos e iniciativas educacionais e pedagógicas de determinado tempo e de determinados grupos sociais e culturais. Assim, localizar a versão manuscrita de uma obra didática não publicada e estudá-la, revelando intencionalidades, pressupostos e concepções, é uma oportunidade ímpar para problematizar os sentidos históricos e sociais da educação e do ensino. Especificamente, o estudo de um manuscrito direcionado ao ensino e à aprendizagem iniciais da leitura e da escrita - cuja publicação foi rejeitada - permite analisar, entre outros, as disputas e as querelas em torno do sentido da alfabetização2, do que significa ser alfabetizado, dos ‘porquês’ de se ensinar as populações a ler e a escrever, das propostas de ‘onde, como e quando’ desenvolver essas habilidades. Possibilita, ainda, entender aquilo que é considerado socialmente relevante de ser ensinado e aprendido no processo inicial da escolarização, especialmente considerando que a ‘cartilha’ é, via de regra, o primeiro livro a que a criança tem acesso ao ingressar na escola. Segundo Frade (2011, p. 184), os livros para o ensino inicial da leitura e da escrita “[...] portam saberes relacionados ao processo de alfabetização, mas também são objetos que configuram uma cultura gráfica, constroem dispositivos de pensamento”. Assim, pode-se dizer que os livros didáticos em geral e as cartilhas em particular “[...] são um meio especializado para a introdução ritual de crianças em valores de uma cultura” (Luke, 1988, p.64). Aquilo que é considerado legítimo, socialmente relevante e pedagogicamente adequado e ‘correto’, está expresso nos livros didáticos:
Depositário de um conteúdo educativo, o manual tem, antes de mais nada, o papel de transmitir às jovens gerações os saberes, as habilidades (mesmo o saber-ser) os quais, em uma dada área e a um dado momento, são julgados indispensáveis à sociedade para perpetuar-se (CHOPPIN, 2002, p. 14).
Estudar, portanto, ‘o livro para principiantes’ ou ‘livro de iniciação à leitura’ ou a cartilha, é um potencial meio de compreensão dos processos históricos de legitimação de projetos de escolarização e de alfabetização das populações. Sob uma aparente neutralidade desses livros, existe uma cosmovisão, muitas vezes de forma velada e às vezes bastante explícita.
Para Luke (1988, p. 15), definir historicamente a qualidade da alfabetização envolve a reconstrução histórica do que é se tornar alfabetizado e isso pode ser feito “[...] com base nos existentes artefatos textuais”. Ainda segundo Luke (1988), um dos primeiros passos em pesquisa dessa natureza é reunir os artefatos de alfabetização, descrevendo seus contextos e usos, sua distribuição espacial e temporal, revelando quem os produziu e para quem.
Além disso, entender o estilo interno dos artefatos textuais como parte do ‘contexto do texto’ requer considerar a estrutura e o estilo dos discursos e as relações intertextuais. Em resumo, na perspectiva desse autor, na análise dos artefatos da alfabetização devem ser observados “[...] status, estilo, estrutura e conteúdo dos textos, como eles foram produzidos, por quem, e de acordo com que pressupostos dominantes sobre a alfabetização, os alfabetizados, e o ensino e aprendizagem de leitura” (Luke, 1988, p. 16).
Com base nesses pressupostos, o objetivo principal deste artigo é analisar a cartilha (manuscrita) produzida por João Simões Lopes Neto em 19073, entendendo-a como um artefato capaz de indicar um projeto social mais amplo pretendido pelo escritor, bem como os pressupostos por ele defendidos para o ensino inicial da leitura e da escrita. Assim, embora não tenha sido publicada à época de sua produção, em 1907, Artinha de leitura é um importante e singular documento que revela não somente a proposta para o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita de João Simões Lopes Neto, mas também seu projeto mais amplo, cívico-pedagógico. É disso que tratamos a seguir, para então analisar de forma mais pontual sua Artinha e como ela expressa um escopo maior do autor: modernizar o ensino, formar novas gerações, desenvolver um espírito de consciência nacional e defender a ideia da educação como um poderoso instrumento de intervenção social.
“O contexto do texto”4: João Simões Lopes Neto e seu projeto cívico-pedagógico
João Simões Lopes Neto é considerado pela crítica especializada um dos maiores contistas brasileiros. Nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul, na Estância da Graça, em 09 de março de 1865, e faleceu em sua cidade natal de úlcera duodenal perfurada, aos 14 de junho de 1916 (Diniz, 2003). Embora reconhecido tardiamente, deixou importante obra literária (Vellinho, 2001). Também pode ser visto como um homem interessado e preocupado com a educação das novas gerações, tendo produzido livros de leitura escolar, uma cartilha de alfabetização, textos de história e de geografia, em especial (Pinto Netto, 2014).
Ele foi uma personalidade complexa, cuja análise, em seu contexto, apresenta muitas peculiaridades. Reconhecido tardiamente como escritor, na medida em que seu projeto originário fracassou, dedicou-se às questões educacionais, fosse no exercício do magistério, fosse propondo e aderindo a reformas ortográficas, escrevendo livros didáticos, empenhando-se em campanhas cívicas e propugnando especial atenção ao nacionalismo e à higiene.
Conforme deixam entrever os necrológios, como destaca Reverbel (1981), Simões Lopes Neto era referido como exímio jornalista, estudioso do folclore, ativo homem de negócios e de grande participação comunitária. Foi fundador de um Clube de Ciclismo e da Sociedade Protetora dos Animais, bem como escritor de tratados de piscicultura, indicando um destino que mal deixa vislumbrar sua posterior consagração literária. No entanto, um dos necrológios chama atenção para um aspecto, a despeito de pouco explorado no âmbito de sua biografia, que seus contemporâneos reconheciam e admiravam: sua condição de professor e de homem ligado às questões educacionais. Artur Pinto da Rocha, político e intelectual rio-grandense, assim se manifestou:
Embora educado na carreira do comércio e da indústria, o espírito de João Simões exigia a arena vasta das controvérsias, entrou no jornalismo e triunfou; passou ao teatro e conquistou vitórias; tentou o romance e os seus contos patrícios, fizeram-no respeitado; a polemica o empregou, a crítica teve na sua pena uma servidora firme e brilhante; a crônica deve-lhe serviços inestimáveis; a burocracia teve nele um funcionário modelo; o magistério encontrou no seu espírito um exemplo carinhoso [...] (Rocha, 1916, p. 2).
Mesmo tendo a Artinha ficado perdida durante um século, na ocasião da morte do autor havia quem dela soubesse e apontasse os méritos:
Entre os inúmeros [trabalhos] há dois que por si só bastavam para formar a reputação de João Simões: um é trabalho didático, destinado à instrução primária, que mereceu a aprovação dos membros mais conspícuos do magistério rio-grandense, quanto ao mérito da obra, não havendo sido adotado em nossas escolas públicas tão somente por tê-lo escrito em ortografia fonética [...] (Rocha, 1916, p. 2).
Veja-se que a questão da ortografia fonética aparece como a razão da não aprovação e não publicação da referida obra. Como já abordaram Fischer (2013) e Garcez (2013), na realidade a ortografia adotada por Simões Lopes teria sido considerada muito ‘avançada’ para a época. O autor adotou em sua Artinha, como consta em uma das primeiras páginas do manuscrito, a grafia aprovada pela Academia Brasileira de Letras. A dita Reforma da Ortografia, como consta na seção final do manuscrito Artinha de leitura, foi aprovada em 11 de julho de 1907, mesmo ano, portanto, em que o autor produziu a cartilha. Nessa seção em que João Simões Lopes Neto apresenta as mudanças na língua escrita propostas pela Academia (substituições, supressões e eliminações), há uma nota que diz o seguinte:
A feitura dessa Artinha obedeceu à decisão da autoridade competente, qual é a Academia de Letras, que tornou oficial a reforma da ortografia brasílica, extinguindo a anarquia que campeava na escritura de nossa língua - Louvado seja o decisivo cometimento da Academia, que em boa hora reagiu contra a resistência da inércia - que mantinha peias que o viver hodierno repudia. Falta-nos ainda um dicionário (etimológico-ortográfico de acordo com a reforma) da língua portuguesa -ramo brasilês. As gerações da atualidade para adiante gozarão alfim de valiosíssimas facilidades. Em tempo! [...] (Lopes Neto, 2013a, p. 146-147).
Contudo, aquilo que foi ‘louvado’ pelo autor - ‘o fim da anarquia da escrita’ - foi justamente a razão da desaprovação de seu manuscrito. O Conselho de Instrução Pública, em 1908, desaprovou a cartilha nos seguintes termos:
5º Sessão. Aos vinte e um dias do mês de julho de 1908. [...] Passou-se à ordem dos trabalhos. Foram apresentados ao Conselho para julgamento os livros: Histórias de Nossa Terra de Julia Lopes de Almeida e a Cartilha de Leitura: Série Brasiliana de J. Simões Lopes Neto. Em tempo declaro que este último trabalho foi apresentado em manuscrito e com o ofício do mesmo nº 2028, desta data. Resolveu o Conselho adiar para outra sessão o julgamento dessas obras. [...]. 6º Sessão. Aos vinte e cinco de julho de 1908. [...] Sobre a Cartilha primaria ‘Série Brasiliana’, em manuscrito, de J. Simões Lopes Neto, entende o Conselho que, não podendo o Estado impôr a orthographia seguida pelo autor, deve ser reparado o trabalho por estar em desacordo com o regulamento e não obedecer ao critério do ensino. Protásio Alves, Álvaro Batista, Manuel Pacheco Prates (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1908, p. 12-13, grifo do autor).
Assim, o manuscrito foi rejeitado e não foi ‘reparado’. O autor, contudo, tentou contestar os argumentos. Na Ligeira contradita... (Lopes Neto, 2013b), dirigida ao Conselho da Instrução Pública, Simões Lopes Neto descreve em que consistia todo o plano da sua Série Brasiliana, do qual a Artinha de leitura era o primeiro número - sendo os outros Eu, na escola; Terra gaúcha e Hinos e glórias do Brasil5.
O autor buscou argumentar a validade de sua cartilha com base no Regulamento de Instrução Pública, Decreto nº 874, de 28/02/1906, publicado no jornal A Federação em 09 de março (Medeiros & Gonçalves, 1906). A certa altura, desculpa-se, pois não queria parecer pretensioso, questionando a decisão do Conselho, mas afirma:
[...] Entretanto não posso deixar de consignar que o plano de minha Artinha de leitura exibe alguma coisa de novo e de prático sobre os livrinhos congêneres adotados nas aulas públicas do Estado; o exame rigoroso e exigente [...] creio que isso confirmará. É este o ponto de apoio que tenho para pretender que meu referido livrinho possa ser julgado prestável (Lopes Neto, 2013b, p. 190).
O autor assume-se como “[...] partidário da reforma para a simplificação e uniformização da grafia de nossa língua [...]” e assim argumenta: “[...] parte importante e que me fez demorar a apresentação deste primeiro volume de série, foi o aspecto ortográfico” (Lopes Neto, 2013b, p. 190).
Uma de suas principais preocupações, conforme expõe na Ligeira Contradita (Lopes Neto, 2013b), era levar o benefício da educação às massas populares, aproveitando, segundo sua expressão, o escudo que lhe dava a orientação ortográfica da Casa de Machado de Assis, a Academia Brasileira de Letras. Assinalando que transformara todo o manuscrito considerando a ortografia reformada, completa: “[...] é dispensável reproduzir a copiosa argumentação pró e contra, provocada pela manifestação da Academia: o douto Conselho Escolar seguramente está dela inteirado” (Lopes Neto, 2013b, p. 190). Ainda a favor de sua cartilha, argumentou que se repetia no Brasil o fenômeno acontecido na Espanha, na Itália e na França, onde “[...] foi iniciado o movimento de uniformização e simplificação da grafia da língua, o qual prevaleceu e perdura” (Lopes Neto, 2013b, p. 190).
Apenas um exemplo será reproduzido para ilustrar a ortografia fonética - razão da não aprovação de Artinha de leitura - defendida pelo autor e que estava em consonância com as mudanças ortográficas propostas na reforma aprovada em 11 de julho de 1907 pela Academia Brasileira de Letras. Na V Parte da Artinha (Lopes Neto, 2013a), nas páginas originais 67 até 70, João Simões Lopes Neto exemplifica os modos de ler e de como se deve ‘escrever doravante algumas palavras’, além de apresentar as ‘três letras estranhas, usadas por tolerância’ (K, W, Y) e uma sinopse da formação silabar. Tomando apenas a página 68 dessa Parte V, os exemplos do autor de como se deve ler e escrever a partir de então algumas palavras são os seguintes:
abs = ab abscisão (e outras) que soa como abcizão - escreva-se abcizão
bb = b sábado - sábado
cc = c sacco - saco
cç = ç acção - ação
cd = d anedocta - anedota
ch = q machina - maquina
chl = cl chloro - clóro
chn = qn téchico - técnico
chr = cr chronica - crônica
cq = q acquisição - aquisição
ct = t activo - ativo
dd = d adição - adição
dh = d - adherir - aderir
ff = f difícil - dificil
gg = agregar - agregar (Lopes Neto, 2013a, p. 194).
A língua escrita em geral - essa importante invenção humana - e a ortografia em específico só podem ser compreendidas contextual e historicamente. O exemplo reproduzido acima é significativo porque permite ver que aquilo que se consolidaria algumas décadas depois na ortografia, no momento da produção de Artinha, foi a razão de sua rejeição. Simões Lopes Neto, como um homem atento ao seu tempo e à sua história, produziu a cartilha no mesmo ano da reforma ortográfica e de alguma forma sofreu as consequências dessa decisão e opção: em vida não teve seus livros didáticos aprovados para publicação e uso nas escolas urbanas e rurais, como era seu propósito e desejo.
Nesse sentido, vale igualmente a reprodução da nota do autor, nessa mesma Parte V da Artinha, do porquê de aderir tão prontamente à reforma ortográfica a ponto de produzir um livro para ensino da leitura e da escrita incorporando e defendendo as mudanças na/da língua no mesmo ano de sua aprovação e mesmo considerando as polêmicas que supunha. Afirma ele em nota nas páginas 69 e 70:
NOTA: Não é lugar aqui para discutir doutrinas, mas que fique consignada a seguinte proposição de um elevado espírito - ‘E de fato uma das vantagens da ortografia fonética é emancipar o público, sobretudo a parte infantil, proletária e feminina, dos obstáculos tradicionais que o pedantismo gramatical ergue continuamente à sã instrução das massas populares’ (Lopes Neto, 2013a, p. 196-197, grifo do autor).
Assim, o autor coloca-se contrário ao que chama de pedantismo gramatical e a favor das crianças, dos proletários e das mulheres, enfim, da defesa da instrução das camadas populares, como se refere.
Seria insuficiente apresentar e analisar a Artinha de leitura como uma produção isolada, ou seja, à parte da obra simoniana e igualmente separada de outros livros para o ensino da leitura e da escrita produzidos e utilizados no mesmo período. Assim, é preciso situá-la, primeiro, no conjunto da obra do autor, mais especificamente em seu corpus educacional; segundo, em relação a outras cartilhas produzidas, publicadas e/ou em circulação no mesmo período no Brasil. Somente esse caráter ‘comparativo’ pode dar a dimensão e o sentido da Artinha de leitura no contexto da produção e do uso de cartilhas e dos métodos de ensino da leitura e da escrita no início do século XX.
Cabe ressaltar que João Simões Lopes Neto tinha um projeto cívico-pedagógico que se constituía em um conjunto de conceitos e iniciativas práticas6. Os conceitos, de maneira muito sucinta, podem ser identificados com os ideais positivistas de progresso, laicismo e cientificismo. Para ele, esses ideais só poderiam ser atingidos na sociedade mediante uma profunda reforma na educação que, entre outras medidas, exigiria o despertar das consciências para a nacionalidade e para a valorização da história, ainda que associada a um passado mítico, expresso por meio das lendas, do folclore e da epopeização dos tipos históricos.
O projeto cívico-pedagógico de Simões Lopes Neto tomou várias direções. Havia um lado pragmático, voltado para o ativismo expresso na participação na União Gaúcha e no Tiro 317, no exercício do magistério, na Coleção Brasiliana de cartões-postais, na liderança e na participação em comemorações como, por exemplo, na Festa das Árvores e na Semana Centenária, entre outras iniciativas. Havia também uma dimensão reflexiva ou mesmo doutrinária, de cunho mais teórico, expressa nas conferências sobre educação cívica, nos discursos proferidos, entre eles, por exemplo, na Exposição-Kermesse do Clube Caixeiral (na cidade de Pelotas) em benefício da Escola de Comércio, na Academia Rio-Grandense de Letras e na inauguração do primeiro colégio elementar da cidade de Pelotas, em 1913.
Essas atividades e iniciativas do autor eram sustentadas por uma visão político-filosófica em que o problema educacional8 assumia uma dimensão importante que se expressou mesmo na sua produção literária. Suas ideias político-filosóficas sustentavam sua produção literária, sendo reveladas nos procedimentos redacionais, nos objetivos que o autor, como homem de seu tempo, se propunha como literato. Assim, ao contrário do que se pode prever, não foi a produção didática do autor, tal como a Artinha de Leitura, que impulsionou seu projeto cívico-pedagógico, mas antes foi o fato de ter um projeto dessa natureza que permitiu e impulsionou sua produção de livros didáticos.
Contudo, a produção do autor no campo educacional não se restringe a livros didáticos. Além das obras didáticas, João Simões Lopes Neto realizou e publicou conferências, discursos e artigos jornalísticos que expressam seu projeto educacional. Dentre eles estão: Educação cívica (conferência - em duas versões, 1904 e 1906); Discurso na Exposição-Kermesse (1909); Discurso na Academia de Letras (1911); Discurso de inauguração do Colégio Elementar (1913). Outros artigos jornalísticos em que o autor escreveu acerca de assuntos mais especialmente ligados às questões educacionais são: Pelotas e a higiene (1912) e a série Uma trindade científica: Lamarck, Haeckel e Darwin (1913) (Pereira, 2009, 2014).
No contexto da obra simoniana, a Artinha de leitura representa a consecução de alguns objetivos que o escritor almejava alcançar. João Simões Lopes Neto pretendia que sua cartilha fosse efetivamente adotada nas escolas primárias para que ele pudesse de fato contribuir para modificar os processos de ensino-aprendizagem, modernizando-os. Além disso, o autor tinha um objetivo de cunho filosófico-moral: desde o ensino inicial da leitura e da escrita se deveria guiar a criança para a formação da cidadania, para a convivência social harmônica, devendo certas inclinações morais e intelectuais ser estimuladas e outras, reprimidas. Em suma, para o escritor era preciso formar uma criança ordeira e obediente aos pais e aos mestres, o que seria um importante investimento para a nação.
Em sua obra, vê-se o recurso à heroicização do gaúcho, como arquétipo de determinadas virtudes e não apenas como elemento étnico - aliás, diferenciado do mosaico brasileiro, tipo social forjador da civilização rio-grandense. Assim, esse intento, por assim dizer, ‘pedagógico’, nos moldes de um bildungroman da identidade do gaúcho, dialoga em constante tensão com a brasileira, buscando um congraçamento, aspecto revelado nas obras didáticas do escritor.
João Simões Lopes Neto e o ‘possível diálogo’ com a produção didática de seu tempo
O estudo de Pfromm Neto, Rosamilha e Dib (1974) revela que uma das primeiras cartilhas em Língua Portuguesa de que se tem referência é a Cartinha de aprender a ler , de João de Barros, publicada em Portugal em 1539. Segundo os autores, esse livro possivelmente foi usado no Brasil. Ainda em Portugal, Antonio Feliciano de Castilho, em 1850, publicou o livro intitulado: Leitura repentina: método para em poucas lições se ensinar a ler com recreação de mestres e discípulos.
Em 1876 foi publicada em Portugal a Cartilha maternal ou arte da leitura, escrita por João de Deus, poeta e escritor português. No início da década de 1880, o método João de Deus, contido nessa cartilha, passou a ser divulgado sistematicamente nas principais províncias do Brasil, como mostram estudos realizados acerca da referida cartilha e do método (Trindade, 2002; Mortatti, 2006). Diferentemente dos outros métodos, o ‘método João de Deus’ ou ‘método da palavração’ baseava-se nos princípios da moderna linguística da época e consistia em iniciar o ensino da leitura pela palavra, para depois analisá-la a partir dos valores fonéticos das letras (Mortatti, 2006).
Embora Mortatti (2006, p. 6) afirme que, “[...] no início da década de 1880, o método João de Deus, contido nessa cartilha passou a ser divulgado sistematicamente nas principais Províncias do Brasil [...]”, encontra-se uma significativa divulgação de tal uso nos periódicos pelotenses já na década de 70 do século XIX, indicando, portanto, a circulação e a adoção da referida cartilha e do método nela propugnado.
O jornal Diário de Pelotas, em 21 de setembro de 1878, publicou o primeiro de uma série de artigos (sete ao total) com o título Instrução - método João de Deus, e assinada por Antônio Zeferino Candido, Rio de Janeiro, agosto de 1878, o que indica que essa mesma série foi publicada naquela cidade e data.
Exaustivamente, o autor das matérias explicita os princípios mais relevantes do método João de Deus, dentre os quais é fundamental a ‘leitura exclusiva de palavras’.
O homem aprende a falar pronunciando palavras, desde as que por mais simples demandam menos trabalho e desenvolvimento dos órgãos vocais, até as mais complexas e de mais difícil articulação. A criança, invariavelmente sujeita às imposições da natureza, apropria as palavras, uma por uma, segundo aquela ordem progressiva. Pois, deve ser idêntico o caminho a seguir, para lhe ensinar a leitura. Sendo a palavra escrita um artifício que ensina a representar por símbolos o que na natureza se representa por outros meios, é de justiça que nós façamos uso dos mesmos processos que a mesma natureza nos indicou. (Candido, 1878, p. 2).
Nas últimas décadas do século XIX, em diversos documentos, fica claro o uso dessa cartilha, que foi, durante largos anos, utilizada na maior parte do território sulino. Na cidade de Pelotas, há diversos registros dessa utilização, como, por exemplo: “Reclame. Colégio Evolução (Fundado na Cidade de Pelotas em janeiro de 1886). Curso primário (1º grau). Leitura pelo método João de Deus” (Diário de Pelotas, 1888, p. 2). Assim, sua difusão é perceptível em reclames, programas de ensino, manuais pedagógicos, etc. É o que se evidencia a seguir:
Colégio Eduardo Borges9. Abrir-se à este novo estabelecimento de instrução no dia 02 do próximo mês de abril, à Rua General Neto, nº 24, defronte do Club Comercial, o qual funcionará todos os dias letivos, das 09 as 11 horas da manhã e da 01 as 03 da tarde.
O ensino constará das seguintes matérias:
1º Curso: Primeiras letras ensinadas pelo inexcedível método João de Deus, princípios elementares de escrita e contas (A Opinião Pública, 1901, p. 2).
Não se pode esquecer que João Simões Lopes Neto era ‘homem de jornal’. Além de publicar diversos textos nos periódicos locais, ocupou várias funções na imprensa da cidade, desde colaborador e redator até diretor chefe. Atuou nos mais importantes periódicos pelotenses: Correio Mercantil, A Discussão, A Opinião Pública, Diário Popular, entre outros. Foi um frequentador assíduo de livrarias, com ponto marcado na Livraria Universal Echenique, e estava a par dos debates e discussões que circulavam na imprensa de Pelotas. Sem margem de dúvida, acompanhava com interesse e atenção os artigos que tratavam de matérias vinculadas ao ensino em geral e ao ensino da leitura e da escrita, em especial.
Foi a partir da segunda metade do século XIX que, no país, começaram a ser produzidas cartilhas para o ensino da leitura e da escrita. Esse momento marca o início da produção nacional de livros para iniciação à leitura. Trabalhos como os de Mortatti (2000a, 2000b), os de Razzini (2010) e os de Frade (2010a, 2010b, 2010c) revelam aspectos dessa produção editorial didática, especialmente na segunda metade do século XIX e na primeira do século XX. Dessa produção, por exemplo, faz parte Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas, que produziu uma ‘Série de livros para leitura’ (entre 1866 e 1881) e o Novo primeiro livro de leitura (1888), no qual defendia a soletração no ensino da leitura, mas em palavras conhecidas (Frade, 2010c). Hilário Ribeiro, outro importante nome da produção didática nacional, lançou a Cartilha nacional, em 1885, na qual enfatizava o fonema no ensino da leitura. A primeira e maior parte da Cartilha nacional (43 páginas) era dedicada ao ensino da leitura dos fonemas, impressos em letra de forma e em letra cursiva, característica do ensino simultâneo da leitura e da escrita (Klinke, 2002). Felisberto de Carvalho, em seu Primeiro livro de leitura (1892)10, previa a silabação como método de ensino da leitura. Thomaz Galhardo publicou Cartilha da infância em 1894, propondo igualmente a silabação para a aprendizagem da leitura.
A segunda metade do século XIX marcou, portanto, uma produção de cartilhas, cuja ênfase estava no método sintético de alfabetização (caracterizado pelo uso dos processos da soletração, dos fonemas e da silabação). Contudo, o início do século XX registrou, no Brasil, o momento de defesa do método analítico, caracterizado pelos processos da palavração e da sentenciação. Algumas cartilhas foram produzidas nessa perspectiva, como a de Arnaldo Barreto, que publicou, em 1909, a Cartilha analytica, mas já havia publicado Cartilhas das mães, em 1896. Outro exemplo é a Cartilha infantil pelo método analítico, de Carlos Alberto Gomes Cardim, de 1908.
Para o caso paulista, Mortatti (2006, p. 7) mostra que, especialmente no início do século XX, as cartilhas “[...] passaram a se basear programaticamente no método de marcha analítica (processos da palavração e da sentenciação)”. Segundo a autora, essa produção teve:
[...] forte influência da pedagogia norte-americana, baseava-se em princípios didáticos derivados de uma nova concepção - de caráter biopsicofisiológico - da criança, cuja forma de apreensão do mundo era entendida como sincrética. A despeito das disputas sobre as diferentes formas de processuação do método analítico, o ponto em comum entre seus defensores consistia na necessidade de se adaptar o ensino da leitura a essa nova concepção de criança (Mortatti, 2006, p. 7).
No caso do Rio Grande do Sul, há estudos que mostram a adoção de silabários, Cartas ABC e mapas murais no final do século XIX e no início do século XX (Tambara, 2002; Trindade, 2002, 2004a, 2004b; Arriada & Nogueira, 2014). Especialmente nos trabalhos de Tambara (2002) e de Arriada e Nogueira (2014), há dados que permitem perceber que era recorrente a utilização dos silabários e Cartas ABC nas escolas gaúchas. Os relatórios das cidades de Rio Pardo, de 1847 e 1851, de Rio Grande, de 1858 e de Vila Cachoeira, também de 1858, indicam a existência ou o fornecimento de silabários e Cartas ABC nas aulas públicas, conforme Tambara (2002). Foram enviados, por exemplo, às aulas de Rio Pardo, em 1847, cinco Syllabarios da 2 parte e dez Cartas de A.B.C.; uma aula pública de Vila Cachoeira, em 1858, possuía vinte Syllabarios em bom estado; igualmente, em 1858, a 1ª aula de instrução primária de Rio Grande possuía três Sylabarios e cinco Colleções de cartas inservíveis. Os dados apresentados por Tambara (2002) indicam também a circulação da Cartilha nacional, de Hilário Ribeiro. É indicada, por exemplo, a existência de doze cartilhas no relatório da cadeira do sexo masculino da cidade de Rio Grande, em 1895. Arriada e Nogueira (2014) revelam que um dos autores mais requisitados pelos professores rio-grandenses era Hilário Ribeiro:
Relação dos livros e mais utensílios que da Diretoria Geral da Instrução Pública, recebeu esta aula no dia 12 do corrente.
Trinta 1º livros de leitura por Hilário Ribeiro, vinte 2º livros de leitura por Hilário Ribeiro, doze 3º livros de leitura por Hilário Ribeiro, vinte manuscritos por Ventura, vinte doutrinas por Barbe, vinte e cinco aritméticas por Souza Lobo, quinze gramáticas por Bibiano, dezesseis gramáticas por Vasco de Araújo, vinte geografias por Vasco de Araújo, dez ditas da Província por Berlink (Andrade apud Arriada & Nogueira, 2014, p. 175).
Trindade (2002) aborda também a ampla circulação da Cartilha maternal, do português João de Deus, e das ‘contrafacções’ dessa obra durante a Primeira República no Rio Grande do Sul.
Além dos estudos que indicam o uso de Cartas ABC, silabários e ‘contrafacções’ da Cartilha maternal no período, os dados que coletamos no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul indicam que, nas escolas gaúchas, eram usadas outras cartilhas já no século XIX, como a Cartilha Samorim, produzida no Rio Grande do Sul nos moldes da João de Deus, de autoria de Samorim Gustavo de Andrade e os livros de leitura de Abílio César Borges e de Hilário Ribeiro, entre elas a Cartilha nacional. Um exemplo disso está no quadro abaixo, de 1898, retirado do Livro do Almoxarifado da Instrução Pública (1898-1903):
Fonte: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (1889).
Os dados referentes a inventários de escolas indicam o mesmo sentido, como mostra o quadro abaixo:
Fonte: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (1902).
A Cartilha nacional e os demais livros de leitura de Hilário Ribeiro despontam na documentação do período que estudamos, ou seja, de 1873 a 1921. No quadro abaixo, consta uma das muitas listas de fornecimento de material às escolas que localizamos na pesquisa:
Fonte: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (1886-1889).
Em suma, em 1907, quando João Simões Lopes Neto se dedicou a produzir sua Artinha de leitura, havia um volume razoável de materiais impressos em circulação no Rio Grande do Sul. As cartilhas utilizadas nas escolas gaúchas eram tanto aquelas embasadas no método analítico (especialmente na palavração), quanto aquelas embasadas no método sintético (de base fonética ou silábica).
Nesse contexto, cabe perguntar: o que propunha João Simões Lopes Neto? Quais os possíveis diálogos que estabeleceu com a produção existente? Havia alguma originalidade em sua Artinha de leitura? Na próxima seção, abordamos especificamente os pressupostos metodológicos adotados pelo autor em sua obra didática para o ensino da leitura, articulando essa dimensão com outra, bastante importante na análise de livros didáticos: a proposta gráfica (Chartier, 1994, 1996; Frade, 2010a, 2010b, 2010c). Embora o livro não tenha sido publicado à época, o manuscrito permite perceber e problematizar essa articulação entre a dimensão metodológica e a proposta gráfica do livro didático. No caso de Artinha de leitura, o uso de um tipo específico de pontuação na junção das sílabas, de pontilhados, de esquemas, do destaque da letra na página, dentre outros aspectos, deixa entrever que o autor utilizou uma determinada pedagogia da leitura na produção de seu livro.
Nesse sentido, interessa revelar alguns aspectos da relação entre a proposta metodológica e a gráfica. Tais propostas são singulares no manuscrito de Artinha de leitura, especialmente quando comparadas a outras produções didáticas da época, incluindo aquelas recomendadas e utilizadas nas escolas gaúchas, quais sejam: Cartilha maternal, de João de Deus; Cartilha nacional, de Hilário Ribeiro; Cartilha Samorim e Cartilha mestra, de Samorim Gustavo de Andrade, bem como os livros de leitura de Abílio César Borges.
A proposta para o ensino da leitura e da escrita de João Simões Lopes Neto na Artinha de leitura
Segundo o dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (Houaiss & Villar, 2001), ‘artinha’ significa um manual ou um conjunto de noções elementares de determinada matéria didática. O nome dado por João Simões Lopes Neto ao seu livro de iniciação à leitura indica, assim, que o escritor pretendia oferecer um manual com as noções básicas para a aprendizagem da leitura. Quais eram, então, essas noções? Como expressam, dialogam, se articulam - ou não - com a produção nacional de cartilhas para o ensino da leitura e da escrita e com os livros e materiais impressos que eram utilizados na alfabetização das crianças?
Garcez (2013, p. 160), no texto que acompanha a edição impressa da Artinha da leitura, afirma que a “[...] artinha do título deriva do termo ‘arte’ no sentido erudito, como modo de designar um tratado de normas e conhecimentos para o exercício de uma atividade”. Além disso, relaciona a Artinha com a Cartilha maternal de João de Deus, um dos livros para ensino da leitura de maior repercussão no ensino primário gaúcho desde o início do século XX até pelo menos os anos 30 do mesmo século, conforme demonstrado acima. Além disso, o autor afirma que “[...] uma das principais qualidades da Artinha foi articular em um volume, conveniente e sucinto, o emprego de palavras, frases, textos completos e ilustrações, ao invés de apenas letras e sílabas, para ensinar a ler” (Garcez, 2013, p. 159).
Embora, de fato, nas lições propostas por João Simões Lopes Neto, estivesse a conjugação de palavras e frases (e, em uma parte final, a apresentação de textos), é preciso considerar que, do ponto de vista dos métodos de ensino da leitura e da escrita, a proposta da Artinha situava-se na confluência dos métodos sintético e analítico. A palavra, a sentença ou a frase não eram o mote para o ensino inicial da leitura e sim ‘as letras’, embora não de forma isolada. Na análise desse material, em confronto com outras produções didáticas da época, é preciso levar isso em conta. Dividida em quatro partes11, as três primeiras lições da Artinha (Parte I) apresentam as vogais e os ditongos, indicando assim que a ‘porta de entrada’ do método deveria ser as letras, mas não seus nomes e sim seus sons, aspecto no qual muito insiste o autor, especialmente nas notas do livro. Igualmente, do ponto de vista gráfico, a letra é o destaque na página de cada lição, como se pode ver no exemplo reproduzido abaixo, da primeira lição das consoantes (v):
Fonte: Lopes Neto (2013a, p. 22).
Além disso, nas orientações para o ensino das lições, o autor enfatiza que os professores deveriam ensinar o som das letras. Letras e som das letras indicam, assim, bases teóricas e metodológicas cujos pressupostos estão ancorados no método sintético de ensino da leitura e da escrita, no processo fonético.
O uso da sentença nas lições que articulavam letras, palavras e frases, bem como a inclusão de uma parte com textos completos ao final do livro não constituem, por si, uma originalidade em Artinha da leitura. Comparada com outras produções didáticas da época, especialmente as anteriormente indicadas em uso nas escolas gaúchas, João Simões Lopes Neto seguiu uma tendência em voga desde o final do século XIX. Também o uso de imagens em Artinha da leitura - bastante modesto, aliás, já que elas aparecem somente como ilustração dos textos completos (16 desenhos), apresentados na Parte IV da obra - não caracteriza uma inovação do autor12. Novamente comparando-se com os livros de iniciação à leitura produzidos entre o final do século XIX e século XX e em uso nas escolas gaúchas, o uso de imagens é muito mais restrito do que nos outros livros, como, por exemplo, no Primeiro livro de leitura, de Felisberto de Carvalho13, ou na Cartilha mestra, de Samorim Gustavo de Andrade, de 1908.
Um aspecto original de João Simões Lopes Neto está na proposta gráfica por ele idealizada no manuscrito. Entendemos que a mise en page, ou a ‘configuração de página’, também revela a proposição pedagógica para o ensino da leitura pretendida pelo autor. Assim, é relevante articular as duas dimensões importantes na compreensão de um livro de iniciação à leitura, quais sejam: a do modelo pedagógico e a do modelo gráfico, pois consideramos que pedagogias do ensino da leitura e da escrita e aspectos gráficos estão associados na produção de livros didáticos (Chartier, 1994, 1996; Frade, 2010a, 2010b, 2010c).
A organização das letras e das palavras e frases na página é, assim, um importante aspecto a ser observado em Artinha da leitura. Ou seja, também nesse caso, a configuração das páginas, idealizada pelo autor, com a posição das letras e das palavras, o uso das reticências entre sílabas, das letras de imprensa e cursiva, entre outros recursos, revela as características da proposta metodológica, uma vez que “[...] é na mise en page que a intenção pedagógica se revela de forma especial. Se considerarmos a página como imagem, podemos analisar os recursos visuais referidos a uma posição pedagógica” (Lana & Frade, 2004, p. 4).
Um recurso grafo-ideológico importante na Artinha é o uso das reticências. Considerando-se os comentários de Sílvio Júlio (1962) e de Buarque de Holanda (1950), seu uso excessivo poderia ser considerado um cacoete de linguagem, um vício. Contudo, entendemos que era um recurso utilizado para marcar as pausas que uma leitura oral exige do leitor. As reticências indicam o não dito no texto escrito, mas complementam a ideia que se quer expressar, sendo, também, uma forma de procurar aproximar a oralidade da leitura e da escrita. Esse recurso não era comum nas cartilhas de então, mas foi utilizado na Artinha de leitura, bem como os travessões para destacar as letras de cada lição, conforme pode ser observado nas imagens seguintes:
Fonte: Lopes Neto (2013a, p. 16), Fonte: Lopes Neto (2013a, p. 33).
Ainda no que se refere ao seu método de ensino, cuja ênfase era o som das letras, portanto de base fonética, em consonância com a ‘ortografia fonética’ por ele propugnada, afirma: “É corrente em pedagogia que não é pelo nome da letra mas pelo som dela que o iniciando há de aprender a ler; forma, som e nome da letra são os elementos que a um tempo embaraçam o aprender” (Lopes Neto, 2013a, p. 150, grifo do autor). O autor se contrapõe, de alguma forma, ao chamado método da soletração, cuja base era o ensino do nome das letras e de suas combinações possíveis, e defende um ensino de base fonética, enfatizando, contudo, a composição de frases e palavras por parte do aprendiz.
Vale também reproduzir da Artinha, das suas páginas iniciais sob o título Senhor mestre, o que o autor defendia quanto ao processo inicial da aprendizagem da leitura e da escrita. Primeiramente, a concomitância de ambas; depois, na sequência, chama a atenção para os cuidados com a escrita, os tipos de letras (a ‘boa letra’), a gradação das aprendizagens, o uso dos materiais escolares, dentre outros aspectos. Assim, embora longa - toma uma página inteira originalmente no manuscrito, em letra cursiva e ‘miúda’ - cabe a reprodução integral da apresentação do autor:
Ler e escrever devem andar de par; e pois, logo de começo faça por que o aprendiz vá ajeitando-se, educando a mão, os dedos, a segurar o lápis. Podendo ser, faça-o praticar com o lápis e papel, este em pequenas folhas avulsas; a chamada pena de pedra e a lousa tornam a mão pesada. Vigie em que durante o trabalho o aprendiz guarde uma posição higiênica: natural e cômoda. Durante o primeiro tempo, somente exercícios de linhas, retas e curvas, e ângulos. Procure que essa tarefa inicial vá sendo bem feita, e que para diante o aprendiz escreva sempre com boa letra, simples, alinhada, sem arabescos e em pé (reta). A escrita reta ou em pé corresponde à atitude que a criança toma espontaneamente quando escreve pela primeira vez: a escrita reta, que é um importante auxiliar no ensino da leitura, é também mais legível que a inclinada e ocupa menos espaço.
Depois - no segundo, terceiro mês - vá dando-lhe a fazer as letras do cursivo e romanas, como exercício de cópia. Dê-lhe também singelos modelos de desenho, sem sombra, ou que ele os trace de memória: uma pá, uma chave, cadeado, relógio, chaleira, etc. Quando bastante adestrado em copiar letras e sílabas, começará a escrever sob ditado e assim apura o ouvido e a atenção. Faça-o sempre ler o que escreveu.
Este exercício deverá ser feito em cadernos apropriados, pois que o trabalho então já vai sendo consciente, o aprendiz vai formando o seu arquivo e sendo estimulado para o asseio e o cuidado. Não se deve passar a outra lição sem que ele seja capaz de escrever sob ditado as palavras novas que tenha aprendido. Quando ditar, evite repetir; para isso medite sobre a boa e correntia divisão dos períodos.
NOTA: Quanto à direção da aula, distribuição dos trabalhos, horário, etc, e bem assim no que concerne à utilização das notas deste livro, fica subordinado ao senso prático, tirocínio e cultivo do Mestre14 (Lopes Neto, 2013a, p. 13-14).
A escrita, durante os séculos XIX e XX, esteve na pauta do debate de professores, pedagogos, médicos e higienistas, dentre outros (Vidal & Gvirtz, 1998; Vidal & Esteves, 2003). Simões Lopes Neto estava, no mínimo, atento a esse debate sobre os modelos caligráficos, como mostram os aspectos que aborda em Senhor mestre, a página introdutória de Artinha, e o posicionamento que adota nessa querela: defende o uso da escrita reta em detrimento da inclinada e apresenta argumentos para tal. Nas notas que acompanham as lições, o autor não é menos atento a essa questão, sempre chamando a atenção para o uso e o ensino da letra cursiva e da letra de imprensa, como denomina: as primeiras seriam “[...] as que se usam nas cartas, e as outras nos livros, jornais” (Lopes Neto, 2013a, p. 18).
No contexto de produção, avaliação e rejeição da Artinha, é preciso compreender também que, na consolidação do projeto republicano no Rio Grande do Sul todas as esferas de poder eram controladas pelos dirigentes do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). A ‘ditadura’ castilhista15 controlava ferrenhamente todas as instâncias, não sendo diferente em relação à instrução pública. A aprovação de métodos, dos livros de leitura, das cartilhas, etc., a ser adotados nas escolas gaúchas deveria passar pelo crivo das autoridades. Nesse período, nos Relatórios da Instrução Pública, na seção intitulada ‘Livros Escolares’, pode-se verificar a atuação e o controle do governo gaúcho sobre os materiais pedagógicos, especialmente os livros didáticos. Assim, seguindo os trâmites burocráticos, João Simões Lopes Neto encaminhou ao Conselho de Instrução Pública a obra Artinha de leitura. Dedicada as escolas urbanas e rurais. Rejeitada nessa instância, a Artinha foi ‘deixada de lado’ pelo autor.
Contudo, a análise do manuscrito, assim como da Ligeira Contradita (Lopes Neto, 2013b) e dos artigos publicados pelo autor na imprensa, revela que o autor tinha um projeto editorial-pedagógico denominado Série Brasiliana, que não se esgotaria na Artinha de leitura, mas teria continuidade em outros livros: Eu, na escola; Terra gaúcha e Hinos e glórias do Brasil, conforme já referido.
Outros autores, nos quais o próprio Simões Lopes Neto se inspirou como próceres da educação, como José Veríssimo, Conde Afonso Celso, Olavo Bilac e Coelho Neto, não tinham propriamente um projeto pedagógico, no sentido de uma visão de conjunto e de proposições didáticas mais sistemáticas e contínuas, fundamentadas em um corpus teórico e em um programa de ação. Apesar disso, escreveram e publicaram seus livros didáticos. Não foi o caso do livro aqui em análise. Cercado de uma polêmica, cuja proa era a questão ortográfica, a cartilha de João Simões Lopes Neto foi rejeitada para publicação e ficou perdida e esquecida durante mais de um século.
Enquanto intelectual, João Simões Lopes Neto se inseria intensamente na área da educação e, mais do que isso, teve uma efetiva intencionalidade, expressa em muitos de seus textos, de moldar um comportamento mais comprometido com os valores cívico-patrióticos em vigor à época. Esse projeto cívico-pedagógico pode ser dimensionado em diversas iniciativas do autor: na tentativa de editar um livro de leitura denominado Terra Gaúcha; na proposição e na participação nas Conferências Cívicas; na produção da série de cartões postais; e igualmente na redação da Artinha de leitura. Em síntese, para efetivar esse projeto, entre outras ações, pretendia publicar livros didáticos que fossem adotados pelo Conselho da Instrução Pública e efetivamente chegassem até as escolas. Esses livros, nas palavras do autor, deveriam ser: “[...] simples, saudável, cantante de alegria e carinho, [...] que fosse amado pelas crianças, que nele, com a sua ingênua avidez, fossem bebendo as gotas que se transformassem mais tarde em torrente alterosa de civismo [...]” (Lopes Neto, 1905, p. 58).
Por fim, resta retomar um aspecto do conjunto da obra do autor. Nesse livro para o ensino da leitura e da escrita e nos outros de sua autoria, talvez dois elementos possam caracterizar, de maneira geral, o projeto cívico-pedagógico de João Simões Lopes Neto: a obstinação pela história e o nacionalismo, mediados pela questão educacional. Assim, ao se estudar a Artinha de Leitura, descortina-se um leque de possibilidades hermenêuticas que, eventualmente, podem alterar a compreensão daquela parte de sua obra ‘realizada e reconhecida’.
Considerações finais
O escritor João Simões Lopes Neto sempre teve pretensões de educador, pois tinha convicção profunda quanto ao importante papel da educação, da ciência e do conhecimento na vida social. Literatura, história e educação se fundem e se complementam na trajetória e na obra do autor para dar forma ao seu pretendido projeto cívico-pedagógico. Como se afirmou, este se expressava nos ideais positivistas de progresso, de laicismo e de cientificismo e no intento educativo de desenvolver, especialmente no espaço escolar, o espírito cívico e a consciência nacional entre as novas gerações. Os beneficiários principais dessa proposta seriam as ‘massas populares’, como ele mesmo referiu.
Em sua trajetória intelectual, ele propôs e aderiu a projetos de reforma ortográfica, produziu livros didáticos, escreveu contos e peças teatrais, narrou lendas, foi cronista, jornalista, professor, organizou uma série de cartões postais por ele denominada ‘Brasiliana’, entre outras iniciativas. Diversos desses projetos não tiveram acolhida, outros tantos foram sumariamente rejeitados, entre os quais a Artinha de leitura.
Embora a Artinha de leitura seja referida e comentada em outros estudos (Rosa, 2010; Garcez, 2013; Fischer, 2013), especialmente nos textos que acompanham sua publicação impressa de 2013, consideramos relevante o estudo aqui empreendido. Dentre suas razões, destacamos: a) a importância da figura de João Simões Lopes Neto na história da literatura e da educação gaúcha e brasileira; b) a relevância do conjunto de sua obra, literária e pedagógica; c) a possibilidade de, ao estudar sua produção didática, articular justamente as dimensões literárias e pedagógicas, aspecto apenas anunciado e ainda não explorado suficientemente; d) a centralidade que teve a cartilha em seu projeto educacional; e) a possibilidade de comparar a Artinha a outras obras didáticas para o ensino da leitura e da escrita que circulavam no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul.
Assim, procuramos demostrar que a produção da Artinha de leitura era parte de um projeto cívico-nacionalista do escritor. Parte de uma série, a Coleção Brasiliana, a cartilha se propunha a inserir as novas gerações na cultura escrita associando a aprendizagem da palavra - leitura e escrita - à formação nacional. Alvo, contudo, de controvérsia especialmente em razão de aspectos ortográficos, a Artinha não foi publicada à época, o que, no entanto, não diminuiu seu valor histórico e didático-pedagógico. Ao contrário: revela que um livro para o ensino da leitura e da escrita é, antes de tudo, um artefato de disputas ideológicas e políticas, de controle social, de disseminação de valores, impregnado de posições discursivas (Peres, 2014). Assim, compreender que esse artefato é envolto em disputas de várias e complexas ordens permite entender a rejeição à Artinha de leitura e sua não publicação à época de sua produção.