Introdução
O presente artigo traz algumas reflexões sobre o percurso da escritora e professora anarquista Maria de Lourdes Nogueira, indicando as condições e circunstâncias que fizeram com que ela viesse a lecionar no Colégio Pedro II (CPII), uma instituição de ensino secundário, cujo quadro docente era composto exclusivamente por professores do sexo masculino.
Essa instituição era destinada exclusivamente para meninos e reconhecida pela sociedade desde sua criação, em 1837, com um corpo docente de ‘notório saber’, constituído por professores catedráticos, os quais eram nomeados pelo Ministério do Império, e “[...] que se diplomaram nas tradicionais universidades europeias ou nos cursos de Direito, Medicina e Engenharia do Império - ‘homens públicos’ formados pelos paradigmas europeus de civilização e progresso” (Andrade, 2016, p. 105, grifo do autor)1.
As mulheres só teriam lugar como docentes, na década de 19202, na condição de professoras suplementares ou auxiliares. É o caso da professora Maria de Lourdes Nogueira, que atuou a partir de 1927 na turma suplementar de Português, sendo uma das primeiras mulheres que ingressaram no quadro docente do CPII.
A análise de seu percurso não se pautou somente no trabalho desenvolvido por ela nesta instituição, mas também buscou indícios nas fontes de elementos sobre sua formação, sua atuação em outros espaços públicos, tais como associações, sociedades, estabelecimentos de ensino, sindicatos, imprensa, entre outros.
Desse modo, este artigo se inscreve nos estudos sobre a história das mulheres no Brasil e na América Latina, que, como aponta Gonçalves (2006), se desenvolveram já na década de 1990, no Brasil, culminando no lançamento da obra História das mulheres no Brasil, organizada por Mary Del Priori e publicada em 2001. Estes estudos se deram articulados à discussão sobre o uso da categoria gênero, embora, nas páginas dessa obra, não se encontre um título dedicado às mulheres anarquistas. Ainda assim, não se pode desconsiderar a contribuição destes estudos para problematizar o poder expresso nas relações de gênero e desnaturalizar a subordinação feminina, a exemplo de Guacira Lopes Louro (2007), que traz essa discussão para o campo educacional, na obra citada.
Para refletir sobre as condições e circunstâncias que fizeram com que as mulheres ocupassem as salas de aula, é importante pensar que essa história permeia a questão de gênero, a fim de explicar os modos com que homens e mulheres formavam suas identidades e construíam suas práticas, intervindo nas representações que lhe eram conferidas. Nesse sentido, os estudos de Marinho (2016) apontam a especificidade e o protagonismo do movimento feminista na ampliação da atuação das mulheres não apenas no campo profissional e social, mas também no educacional. Os estudos de Rago (2012), Martins (2009, 2013) e Fraccaro (2018), por sua vez, possibilitam um diálogo com a trajetória de militantes anarquistas, ainda que não tenham se detido à trajetória de professoras e sua atuação no campo educacional, como se pretende neste trabalho.
Dessa forma, esse artigo se investe de importância por contribuir com os estudos no campo da História da Educação e sobre as mulheres anarquistas e sua participação nas lutas sociais e políticas da década de 1920, apresentando o percurso da professora Maria de Lourdes Nogueira, que lecionou no curso secundário do Externato do CPII, na turma suplementar de Português. Sua história individual, no sentido assinalado por (Ginzburg, 2006), traz, em sua constituição, características da sociedade a qual pertence, mas também expressa o que a singulariza e a diferencia dos demais indivíduos que constituem esta mesma sociedade, sendo compreendida como uma rede de interdependências.
Na medida em que Maria de Lourdes, além de atuar no ensino, comunicava seus ideais anarquistas por meio de obras literárias e da imprensa, estando diretamente vinculada ao Movimento Anarquista, podemos situá-la na nova categoria de intelectuais, criada por Gomes e Hansen (2016), como uma intelectual mediadora cultural. Nessa perspectiva, os indivíduos que produzem conhecimento e comunicam ideias podem estar direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social, sendo tratados como estratégicos nas áreas da cultura e da política, por ocuparem posição de reconhecimento na vida social. Desse modo, passam a integrar esta categoria as mulheres que atuaram como escritoras, professoras e autoras, sendo necessário conhecer suas experiências, percursos e estratégias intelectuais (Gomes & Hansen, 2016).
Nos primeiros levantamentos realizados no NUDOM, - Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II, foram localizadas três mulheres que atuaram no Externato como professoras das turmas suplementares: Maria de Lourdes Nogueira de Português; Aimée Ruch de Francês e Maria da Glória Ribeiro Moss de Química; além de Carmem Velasco Portinho, que trabalhou como auxiliar de Aritmética, no Internato, a partir de 19273. Porém, como já apontaram outros estudos sobre a presença feminina no CPII, o ingresso de mulheres na instituição se deu inicialmente no corpo discente, tendo a primeira turma de meninas do colégio passado a funcionar a partir de 1927 (Alves, 2009; Marinho, 2016).
Das três professoras que atuaram no CPII nas turmas suplementares daquele ano, o foco será o percurso de Maria de Lourdes Nogueira, que militou no Movimento Anarquista nas primeiras décadas do século XX, no Rio de Janeiro.
O texto se apresenta dividido em três seções, além dessa introdução. Na primeira seção, apresentamos os aspectos que viabilizaram seu ingresso no quadro docente do CPII, a partir da gestão de Euclides Roxo. Na segunda seção, descrevemos a atuação de Maria de Lourdes Nogueira como militante do Movimento Anarquista no Rio de Janeiro e sua atuação como escritora e poeta. Na terceira seção, abordamos sua atuação no magistério no CPII. Por fim, nas considerações finais, destacamos as contribuições que este tipo de abordagem sobre o percurso individual pode trazer para o campo da história das mulheres anarquistas do Brasil e da América Latina e para o campo da História da Educação.
O ingresso e atuação de Maria de Lourdes Nogueira no quadro docente do CPII
Na década de 1920, o Colégio Pedro II passou por diversas reformas em seu programa de ensino, promovidas e incentivadas pelo então diretor deste estabelecimento, Euclides de Medeiros Guimarães Roxo. Dentre as mudanças ocorridas, podemos citar: o aumento do número de alunos, inclusive gratuitos e, com isso, a expansão das turmas suplementares; o ingresso de mulheres no corpo discente e atuação do Movimento Feminista, liderado por Bertha Lutz4, que reivindicava a inclusão de mulheres no corpo discente; a vinculação da formação acadêmica à matéria lecionada; e a nomeação pelos professores catedráticos5 das cadeiras de línguas e ciências modernas de docentes do sexo feminino para atuar nestas turmas suplementares.
Dos estudos de Soares (2014), pode-se depreender que a principal via de entrada das mulheres no magistério secundário, na instituição, foi por meio das aulas de língua moderna e materna, especialmente das aulas suplementares de Português, Inglês e Francês.
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Fonte: Soares (2014).
Quadro 1 Professoras das turmas suplementares de Português do Colégio Pedro II - 1940.
No Quadro 1, podemos perceber que entre as cinco professoras, apenas Maria de Lourdes Nogueira possuía o registro de professora no DNE, sob o n. de inscrição 199, sendo descrita como ‘senhora idosa e cumpridora dos deveres’. No caso das demais professoras - Aurea de Salles Pereira Leite, Clara Oiticica, Otília Reis, Anna da Glória Santos de Araújo - constava apenas a expressão: ‘bom elemento’, à frente do seu nome. Uma hipótese sobre a diferenciação sofrida por Maria de Lourdes é que esta avaliação desvinculava sua imagem profissional, no sentido de seguir as normas institucionais, da militância.
Não se pode desconsiderar que a ampliação do acesso, tanto aos discentes gratuitos6 quanto às discentes e docentes do sexo feminino, foi acompanhada de certa precarização do trabalho, haja vista a maioria das professoras não ter registro no DNE e cada professor catedrático chegar a assumir até quatro turmas suplementares.
Essa perspectiva pautada na ideia de crise das instituições escolares e repercussões sobre o trabalho docente, de Dubet (2002, 2011) e apresentada por Soares e Silva (2018), indica que a Reforma Capanema acentuou a crise institucional do CPII, iniciada na década anterior com a Reforma Francisco Campos, em decorrência de problemas na infraestrutura, baixos rendimentos, aumento do número de alunos e de turmas suplementares e a criação do curso de Filosofia para formação de professores em nível superior. Por outro lado, possibilita pensar as estratégias identitárias construídas no interior do CPII, na medida em que chama a atenção do pesquisador “[...] para os processos de construção individual e coletiva das identidades docentes [...]”, revelando elementos acerca “[...] dos constrangimentos políticos, das interações sociais e das dimensões simbólicas que permeiam as dinâmicas identitárias deste grupo profissional” (Xavier, 2014, p. 832).
A ênfase na dicotomia e na hierarquia entre homens e mulheres nos processos de construção de identidades docentes atrela a crise institucional e a diminuição do prestígio do CPII à presença feminina no corpo docente, limitando a autonomia das escolhas individuais, ao sugerir que os cargos só foram ocupados pelas mulheres por terem sido deixados pelos homens que foram em busca de melhores condições de trabalho. No entanto, os estudos de Mendonça (2015) sobre os primeiros professores do CPII já denunciavam que a interinidade era característica dos professores da instituição no início de seu funcionamento. Também o estudo de Lauris Jr. (2009) traz uma fala do professor José Oiticica, denunciando a hierarquia e precarização do trabalho na instituição, em 1922, mesmo antes de as mulheres ingressarem no quadro docente, ou das reformas de ensino anunciadas.
2º. Os substitutos, além de ganharem menos do que os catedráticos, com o mesmo serviço, não podem tomar parte nas congregações, quer dizer, não colaboram nos programas, não tratam de seus próprios interesses quando em jogo. É uma situação injusta e o mesmo esforço que os catedráticos (apud Lauris Jr., 2009, p. 121).
O pressuposto de que as mulheres só ingressaram no CPII devido a uma crise institucional e à perda de prestígio desconsidera, ainda, a atuação do Movimento Feminista em reivindicar maior espaço para as mulheres nas instituições de ensino, bem como o fato de que as docentes que ingressaram inicialmente no CPII integravam um projeto de modernização, ampliação da gratuidade e laicidade do ensino secundário.
A partir da pressuposição de que as discriminações hierarquizam as categorias de pertencimento no interior da instituição, a categoria gênero tratada neste estudo articula-se aos estudos das relações de poder, uma vez que este é entendido como exercido e mutável, e não como dicotômico. Saffioti (2013) sinaliza que as formas como se constroem os significados culturais que constituem as diferenças, dando-lhes sentido e posicionando-as no interior das relações hierárquicas que se estabelecem, abrem espaço para a noção de gênero permeada também pela identidade subjetiva.
Essa perspectiva possibilita pensar que as mulheres ingressaram no CPII como estratégia para se distinguirem dos ofícios de imagem social negativa ou com posição subordinada, ou ainda que não exigiam qualificação, tendo ainda a preocupação com os aspectos que as distinguiam das demais mulheres e entre si. A ‘valorização de si’, que segundo Dubar (2012) vem acompanhada de uma retórica profissional comum, ou seja, se dá por meio da identificação na constituição de uma identidade profissional positiva, possibilitaria às mulheres projetarem uma carreira e se engajarem no segmento de ensino secundário.
A partir desses estudos, nosso objetivo, então, é apontar as condições sociais experimentadas por Maria de Lourdes Nogueira, seja como professora do CPII ou pelas ações coletivas nas quais se inscreveu, dando visibilidade aos seus combates, conquistas no espaço público e privado, para tirá-la do ‘silêncio’ em que estava confinada, talvez provocado pelo ‘silêncio das fontes’. Segundo Perrot (2012, p. 17): “As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou matérias. Seu acesso à escrita foi tardio”. Esse não foi o caso de Maria de Lourdes, pois ela teve uma grande atuação no espaço público, como militante anarquista, escritora e professora. Porém, essa não era a realidade da maioria das mulheres e o apagamento de seu percurso no CPII e no Movimento após 1920, especialmente se a compararmos com seus contemporâneos, como o professor anarquista José Rodrigues Leite Oiticica, refletem que sobre as mulheres “[...] o silêncio pesa mais” (Perrot, 2012, p. 16).
De acordo com Martins (2013, p. 33), Maria de Lourdes foi “[...] discípula de José de Oiticica, professor do CPII, e uma das lideranças do Movimento Anarquista, com quem tomava aulas de latim e grego”. Se sobre esse professor anarquista se encontra uma produção, sobre a professora anarquista, contudo, pouco se tem. Encontramos dois artigos publicados por Angela Maria Roberti Martins, que foram importantes para esse artigo: o primeiro, intitulado ‘A invisibilidade de Maria de Lourdes Nogueira: mulher, militante, libertária’, publicado no Emecê, Boletim do Núcleo de Pesquisa Marques da Costa, em 2009; e o segundo, ‘Mulher liberta-te!: o anarquismo e as mulheres’, publicado como capítulo de livro, em 2013. Nesse último, Maria de Lourdes é mencionada como seguidora das “[...] orientações do anarco-comunismo sistematizado por Kropotkin7” (Martins, 2013, p. 33). E é sobre seu envolvimento e sua atuação no Movimento Anarquista que nos deteremos a seguir.
Maria de Lourdes Nogueira (18?-1967): uma professora libertária?
Constituir o percurso profissional da professora Maria de Lourdes Nogueira não foi tarefa fácil. O estudo de Martins (2009) sobre o Movimento Anarquista no Brasil trouxe alguns vestígios sobre a participação de mulheres nesse movimento no início do século XX.
São significativas as palavras dessa autora em relação a Maria de Lourdes Nogueira quando afirma ser esse “[...] um nome que merece ser (re)encontrado [...]”, por tratar-se de “[...] uma libertária que marcou presença tanto nos movimentos políticos, quanto nas mobilizações socioculturais” (Martins, 2009, p. 1). Acrescentamos que ela também marcou presença no CPII como professora e sua parceria com o professor catedrático José Rodrigues Leite Oiticica, o que confirma a fala de Martins (2013, p. 30) de que, “Apesar de invisíveis na produção historiográfica durante muito tempo, as mulheres anarquistas militantes no Brasil lutaram ao lado do homem em defesa dos postulados libertários”.
Ele, nascido na cidade de Oliveira, Minas Gerais, em 22 de julho de 1882, era o quarto dos setes filhos do ex-constituinte e senador Dr. Francisco de Paula Leite e Oiticica. Formado em Direito em 1902, cursou Medicina, mas não concluiu8, abandonando estas áreas para se dedicar ao magistério e, por ser um combativo anarquista, passou por várias prisões. Iniciou no magistério no Colégio Paula Freitas, RJ, lecionando História. Segundo Lauris Jr., 2009, em 1906, fundou o Colégio Latino Americano, onde utilizava os métodos pedagógicos do francês Edmond Demoulins, pouco conhecido no Brasil. Em 1916, ingressou como professor de Português no CPII. No concurso, defendeu “[...] uma tese onde demonstrava os erros contidos nos livros dos que iam examiná-lo [...]”, conta Edgar Rodrigues, na apresentação de a Doutrina anarquista ao alcance de todos, de José Oiticica (1983, p. 103). No CPII, lecionou por 35 anos, até a aposentadoria, mantendo sua militância anarquista.
No magistério, também passou pela Escola Normal e pelo Colégio Universitário da Universidade do Brasil. Neste último, também lecionou Maria de Lourdes, entre 1938 e 1942, que foi contratada como professora extranumerária, conforme o decreto-lei n.882, de 23 de novembro de 1938, previsto no edital do concurso publicado no Diário Oficial de 1º de abril daquele ano (Diário de Notícias, 1938).
Como as fontes que faziam referência a Maria de Lourdes estavam dispersas, trabalhou-se com a perspectiva de (re)construir seu percurso de vida e profissional pelos fragmentos do passado, por pistas e sinais encontrados em suas publicações, as quais sugerem maior aproximação em relação aos autores que ela leu e que a influenciaram, bem como com o modo como ela leu estas obras. Este tipo de análise tem como base a composição da história de vida de Ginzburg (2006), que busca as relações possíveis entre o singular e o coletivo, atento aos detalhes e indícios presentes nos documentos. Este olhar confere ao indivíduo maior potencial de atuação frente às estruturas, diferindo-se da perspectiva em que a constituição da individualidade somente é possível quando as funções que o indivíduo desempenha estão inseridas em um universo que lhe permite traçar sua trajetória.
As fontes indicaram que ela integrou o grupo de mulheres anarquistas militantes no Brasil, destacando-se na defesa da emancipação feminina. Por ocasião da greve da Companhia Leopoldina Railway, em 1920, Maria de Lourdes proferiu um discurso no comício no jardim da Praça da República, RJ, apontando o anarquismo como o caminho para a libertação.
Além de participar de organizações grupais e protestos públicos, assinou artigos na imprensa libertária, tais como: A Obra, A Voz do Povo e também no jornal A Razão, embora este não fosse anarquista9. Além disso, participou, entre 1920 e 1922, da fundação da Liga Feminista de Estudos Sociais10, do 1º Congresso Feminista Brasileiro, cuja comissão era integrada por Leoninda Daltro, e da Legião da Mulher Brasileira (O combate, 1922).
Segundo Martins (2009, p. 1), Maria de Lourdes, juntamente com outras militantes, fez “[...] questão de esclarecer que a revolução não tornara nem tornaria a mulher uma coisa pública e que tampouco a liberdade que reivindicavam para ambos os sexos significava libertinagem”.
Embora não tenha sido possível precisar se Maria de Lourdes manteve a aguerrida militância durante o período em que atuou no CPII (1927-1949), ela manteve sua parceria na docência, durante todo esse período, com o professor José Oiticica. Os estudos anarquistas não fazem referência a ela após o ano de 1920, tampouco a sua filiação ou escolarização. Os documentos também não apontaram nessa direção.
Ao consultarmos o acervo do NUDOM/CPII e a imprensa, houve a princípio dúvidas sobre se Maria de Lourdes Nogueira, militante, e Maria de Lourdes Nogueira França, escritora, se tratavam da mesma pessoa. Tal dúvida se deu em decorrência da diferença de estilo na escrita nas colunas da imprensa e também devido ao sobrenome. A dúvida pode ser esclarecida pela própria professora por meio da declaração publicada em 1916, no Jornal do Comércio, onde ela informou que, a partir daquela publicação, passaria a assinar seu nome como Maria de Lourdes Ramos Nogueira e não mais como Maria de Lourdes Nogueira França. Ainda assim, localizamos publicações com este sobrenome, até 1920.
A partir do sobrenome França, que herdou do marido Nogueira França, e do qual ela abdicou, localizamos notícias relacionadas a eventos familiares, como a comemoração do noivado de seu filho Eurico Nogueira França1, nascido em 1913; e a celebração da missa de um ano do falecimento dela, realizada em 21 de agosto de 1968 (Correio da Manhã, 1968).
Foi preciso, ainda, recorrer ao cruzamento das fontes, as quais indicaram, a partir de algumas evidências, eliminações e conexões, que Maria de Lourdes nasceu no final do século XIX, visto que seu filho nasceu em 1913. A partir de uma ‘nota de falecimento’, publicada no Jornal do Brasil de 28 de fevereiro de 1947, sobre a missa de sétimo dia de seu pai, e de uma notícia no Jornal Theatro e Sport, parabenizando-a pelo seu aniversário, em 09 de maio de 192512, foi possível constatar sua filiação: Francisca Ramos Nogueira, sua mãe, e Virgílio da Fonseca Nogueira, seu pai. Além das aproximações em relação à data de seu aniversário, foi possível estabelecer relações entre as referências encontradas na revista Fon Fon, em que ela publicou ensaios literários entre os anos de 1914 e 1920, e nos jornais: A Razão e Voz do Povo, que traziam publicações dos seus discursos libertários.
Trouxemos algumas publicações da revista Fon Fon, como ‘O noivado de Sonia’, de 1915, que traz a Rússia como cenário; o texto intitulado ‘Ambição’, de 1915, que conta a história de uma mulher que encontrou o verdadeiro amor e felicidade quando se desprendeu de sua riqueza material; e ainda o poema ‘Desejo’, de 1920, em que ela trata de seu despontar para o desejo de liberdade.
Em ‘O noivado de Sonia’ (Figura 1), o leitor se depara com o contexto de tensão política que precedeu a Revolução Russa e de denúncia da tirania do então Czar Ramanoff, expressa logo no início do texto, no trecho: “Rússia. Na leva de condenados, que por crimes políticos seguia para as inóspitas regiões da Sibéria [...]” E ainda: “Caminhavam para a morte. Ai, porque ousaram tramar contra o poderio do tzar Ramanoff” (Fon Fon (1920a, p. 12). Há também uma menção a uma ‘mártir voluntária’, cujo pai estava a sua procura, característica que também se pode atribuir à autora, quando analisada sua atuação no Movimento Anarquista no Brasil.
Em seu poema ‘Desejo’ (Figura 2), aspectos mais subjetivos são expressos pelo sofrimento de viver em um mundo que a autora considera ‘pervertido e falso’, podendo-se depreender daí uma relação com seu outro trabalho intitulado ‘Ambição’, em que a felicidade só pode ser atingida com o desprendimento dos bens materiais. Neste poema, esta mensagem também se faz presente, nas expressões: “Dar-me-ia as honras que se dão aos santos” e “E, meu Amor, é...é...teu pé descalço.”
Nestas publicações, despontavam questões libertárias, contudo, sua militância aparecia de forma sutil, diferentemente da escrita na imprensa, durante o período em que teve forte atuação nos Movimentos Anarquista e Feminista do Rio de Janeiro, a saber: na Liga Feminista de Estudos Sociais, no 1º Congresso Feminista Brasileiro e na Legião da Mulher Brasileira, bem como indicou o estudo de Martins (2009, 2013), que a identificou como ‘poeta-militante’.
Na revista Fon Fon, de 20 de novembro de 1920, localizamos uma foto de Maria de Lourdes Nogueira ((Figura 3) em um anúncio de propaganda de suas obras: ‘Fragmentos, ensaios literários’ e ‘Amor e arte’, publicados à época.
Em 1920, Maria de Lourdes inaugurou um curso de Philosofia Portuguesa13, destinado aos examinandos do CPII, sendo apresentada pela imprensa como professora, poetisa, prosadora e sobrinha de Luiz Pereira Barreto14 (Pelas escolas, 1920).
As dúvidas sobre a autoria dos escritos puderam também ser sanadas pela proximidade de Maria de Lourdes Nogueira com o professor José Oiticica, como comprova a notícia intitulada ‘Agitação anarquista de novembro: os resultados das pesquisas policiais’, publicada, em 1919, na Revista Contemporânea, sobre o interrogatório que ambos sofreram devido ao envolvimento no movimento grevista de 18 de novembro de 1918 15:
No inquérito foi ouvida também essa senhora D. ‘Maria de Lourdes Nogueira’ que não contrariou as declarações do professor Oiticica, e os apontados como melhores sabedores do papel desempenhado pelo professor Oiticica, os Srs. Carlos Dias, Ricardo Corrêa Perpetua e Manoel Campos, ‘todos eles presos ainda que nada quiseram dizer’ (Revista Contemporânea, 1919a, grifo do autor).
Segundo informações do inquérito policial, José Rodrigues Leite Oiticica, professor do CPII, teria sido acusado de liderar o movimento considerado subversivo da ordem pública, juntamente com Carlos Dias, Ricardo Correa e Manoel Campos, insuflando os operários à greve geral, ocorrida em 18 de novembro de 191816 (Revista Contemporânea, 1919b). Também conforme a notícia publicada em O Jornal, de 1918, Maria de Lourdes teria sido presa para interrogatório junto com o professor Oiticica, por ações anarquistas (Lamounier, 2011).
Maria de Lourdes foi ativa no Movimento Anarquista, envolvendo-se não apenas nas greves, como em ligas, assembleias, manifestações, conferências e imprensa. Em 1919, escreveu uma coluna no jornal A Razão, onde transcreveu trechos e considerações sobre a conferência de Urich Avila. Precedendo a transcrição, Maria de Lourdes chama a atenção do leitor: “Nunca é demais, todavia, repetir aquilo que nos faz vibrar o coração, na sinceridade de nossas convicções e transcrevo, por isso, esse trecho luminoso [...]”, seguindo com o pronunciamento de Urich Avila: “Queremos: ‘Uma verdadeira sociedade, diz Urich. Em que abolidas as desigualdades artificiais entre os indivíduos e, portanto, as diferenças de classes, a concorrência será substituída pela cooperação [...]’”. E ela concluiu com a expressão: “Salve! Rússia, berço da nova era!”, provavelmente se referindo a revolução na URSS, ocorrida em 1917 (Era nova II, 1919, grifo do autor)17.
Frente à atuação da polícia, que agia no sentido de reprimir esse movimento, perseguindo seus representantes, a exemplo do que ocorreu na ocasião da greve de 1918, Maria de Lourdes escreveu um artigo publicado na revista A Obra, em agosto de 1920, manifestando-se contra esta postura, cujo trecho foi transcrito por Martins (2009, p. 2).
Desde que me alistei nas fileiras dos combatentes pela nova ordem social, assumi implicitamente a responsabilidade enormíssima de pugnar, sem tréguas, para o advento da nova era, em que há de existir mais justiça e mais harmonia entre os homens. A fé inabalável que me alenta é a mesma fé que faz entreabrir em sorrisos os lábios dos nossos camaradas, atirados nos fundos dos calabouços ou desterrados inclementemente para as inóspitas regiões da África. Que lhes importa, porém, que a cegueira burguesa e capitalista lhes chame hoje incendiários, dinamiteiros e quejandras? Que lhes importa a estreiteza de um calabouço ou porão infecto de um navio, se a vitória do grande ideal lhes constitui a razão de ser da vida? Não nos detenhamos, pois!
De acordo com Martins (2009), a Liga Comunista Feminina, fundada em 27 de maio de 1919, teve curta duração em decorrência das perseguições policiais e o Grupo Feminino de Estudos Sociais, de cunho educacional, fundado no RJ, em 22 de janeiro de 1920, lançou ‘Um manifesto à mulher brasileira’, tendo como meta o combate às questões que asfixiavam o ‘sexo feminino’. A proposta do Grupo era
[...] agremiar todas as mulheres emancipadas do Brasil, a fim de combater sistemática e eficazmente a escravização clerical, a escravização econômica, a escravização moral e a escravização jurídica, que asfixiam, degradam e aviltam o sexo feminino. Como uma alternativa, o Grupo procurava proporcionar às mulheres uma educação que fosse capaz de levá-las a assimilar as razões da exploração social, desmistificando os fatores econômicos e socioculturais que colocaram a mulher numa condição de subordinação. Nesse sentido, o Grupo contrapunha-se à tendência da educação de privilegiar as técnicas e as artes consideradas inerentes à natureza feminina, suporte para as chamadas ‘profissões de mulheres’ (Martins, 2009, p. 2, grifo do autor).
Maria de Lourdes Nogueira atuou como secretária da primeira reunião da Liga Feminina de Estudos Sociais, também denominada de Grupo Feminino de Estudos Sociais, a qual foi realizada na sede à av. Passos, n.106. Nesta reunião, tratou-se da instalação da Liga Comunista Feminina, de 1919, da leitura de suas bases de acordo, e foi celebrado o primeiro ano de aniversário da morte de Rosa de Luxemburgo18, com uma conferência de Álvaro Palmeira19. No mesmo ano, foi Maria de Lourdes quem ministrou uma conferência sobre Rosa Luxemburgo. Uma assembleia da Liga ou Grupo Feminino de Estudos Sociais, presidida por ela, foi realizada na Associação Gráfica, tendo como conferencista Barbosa, que dissertou sobre a questão social e assuntos de interesse das mulheres. Ao final, foram entoadas as estrofes da Internacional (A Razão, 1920a; Voz do Povo, 1920).
Na imprensa, ela apareceu convocando as mulheres a participarem do Grupo. Também se manifestou em comício estimulando as mulheres a se filiarem ao Grupo de Estudos, ocorrido no jardim da Praça da República, Distrito Federal, por ocasião da greve da Companhia Leopoldina Railway, em 1920. O comício foi aberto por Elisa Gonçalves20, que falou sobre a violência contra as famílias operárias. Depois, falou Maria de Lourdes, sobre a mulher e a mulher operária. Em apoio à greve, ela proferiu o seguinte discurso:
[...] Eu vos concito! Agrupai-vos! Conosco! Filiai-vos ao nosso grupo feminino de Estudos, a fim de que possais ensinar, transmitir aos vossos filhos e às pessoas que convivem convosco, os grandes, e santos ideais do progresso humano! [...] Os tempos são chegados e, com eles, a vitória do Bem, eliminando a desigualdade econômica, os contrastes sociais, as guerras, a prostituição, a indigência e a miserável exploração do homem pelo homem. [...]. (Voz do Povo, 1920)21.
Ainda em 1920, algumas mudanças foram sinalizadas tanto em relação aos objetivos quanto às lideranças do Movimento Feminista do Rio de Janeiro. Por exemplo, a mudança no layout do exemplar de 03 de abril de 1920, do jornal Voz do Povo ((Figura 4), que antes era menor e apresentava menos páginas, assemelhando-se a um panfleto, e passou a se identificar, logo na primeira página, como sendo um ‘Órgão da Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro e do Proletariado Geral’, escrito abaixo do título.
Essa mudança indicou maior aproximação entre anarquistas e o movimento operário. Constatou-se também que as publicações de Maria de Lourdes não mais apareceram no jornal. Apenas há referências a ela na coluna Correio da Voz do Povo, onde eram divulgados avisos sobre cartas e impressos endereçados aos membros. Isso indica que embora não tenha se afastado do Movimento, em certa medida, houve diminuição de seu protagonismo entre as lideranças.
Outro indicativo dessa mudança foi a realização da sessão solene de posse da diretoria da Legião da Mulher Brasileira22, na Associação do Comércio. O evento foi publicado nos jornais Diário de Manhã e A Razão, em 17 de maio de 1920. Na mesa que dirigiu os trabalhos estava presente a presidente, Olga Doyle, além de: Cecília Meireles, Laurinda Santos Lobo, Margarida Lopes de Almeida, Luzia Serrano, Aurea Pires da Gama e o orador Pinto da Rocha, que tratou do tema ‘a Família e a Pátria’. O evento contou também com o discurso de Cecília Meireles, então secretária, sobre as mães desamparadas. Nota-se que o nome de Maria de Lourdes aparece na lista de presença, sem receber qualquer destaque (A Razão, 1920b; A legião da mulher brasileira, 1920).
Seu nome apareceu também na comissão organizadora do 1º Congresso Feminista Brasileiro, cuja realização estava prevista para ocorrer entre 1º a 15 de abril de 1921. Além dela, foram citadas: Leolinda Daltro (professora), Viscondessa de Saade, Mme. Serzedello Correia, Adelina Savart de Saint Brisson (escritora), Maria L. Fagundes Varella e Silva (professora), Dra. Ermelinda Lopes de Vasconcellos (médica), Aurea C. Daltro (professora), Luiza de Souza Dias (professora), Gilka da Costa Machado (escritora), Alice A. Pimenta (escritora), Conceição de Andrade (jornalista), Mme. Augusta Kauffman da Silva (A Noite. 1921), dando indícios de suas redes de sociabilidade23.
De acordo com Fraccaro (2018, p. 17, grifo do autor), nos anos de 1920, destacaram-se na organização anarquista iniciativas para a formação de grupos femininos que tratassem com especificidade a questão da mulher trabalhadora24. Contudo, tanto a Federação Internacional Feminina, que atuou em 1922, quanto o Centro Feminino, em 1924.
[...] proferiram palestras que abordavam o conformismo diante da dura realidade social e a importância da rebeldia para o grupo que se organizava em torno das ligas de bairros e do jornal A Plebe. Consideravam a professora Leolinda Daltro e seus intentos eleitorais como ‘sentimentos politiqueiros da velha feminista constitucional’.
Talvez por estas contradições dentro do movimento feminista25, Maria de Lourdes Nogueira tenha se distanciado ou mudado de foco, tendo ações mais atreladas ao campo educacional. Em anúncio publicado na imprensa sobre a obra Organum, do Instituto Lafayete26, ela foi citada no sumário sobre Arte como autora e tradutora de Horácio, do Latim para o Português (Organum, 1922).
Em 1924, o Jornal das Moças comentou sobre sua obra intitulada ‘Necessidade de criação de obras destinadas à preservação de nascituros’, que propunha novo prédio ou ampliação do Instituto de Proteção e Assistência à Infância para o departamento de Preservação dos Nascituros, a fim de recolher as mães três meses antes do parto; aclamava o Dr. Moncorvo Filho como diretor da instituição, que ficaria encarregado da organização dos serviços clínicos, cirúrgicos e de clínicas especiais; propunha a organização de uma cooperativa para manutenção das despesas e a criação de cursos de higiene infantil e de costura para as mães aprenderem a confeccionar enxovais (Necessidade de criação de obras..., 1924).
Além de suas publicações, ela teria se dedicado aos estudos, formando-se em Letras, pela Universidade Santa Úrsula, instituição católica fundada em 1939, no RJ (Formaturas, 1943). Há também indícios de que ela teria iniciado o curso de Direito na Universidade do Rio de Janeiro, por volta de 1938, contudo, não foi possível verificar se ela chegou a concluir os estudos. Entre os anos de 1938 a 1942, ela também lecionou no Colégio Universitário (Diário de Notícias, 1938).
A atuação no magistério do Colégio Pedro II
Em 1927, Maria de Lourdes Nogueira foi admitida como professora suplementar de Português do Externato do Colégio Pedro II, como consta no Relatório do CPII do diretor Euclides Roxo (1927-1929), e também como examinadora eventual dos exames de Português (Roxo, 1928).
Embora não tenha sido possível evidenciar se havia algum grau de parentesco dela com o professor Julio Nogueira, também do CPII, sabe-se que este professor foi nomeado catedrático interino de Francês do Internato e designado para reger interinamente a cadeira de Inglês do CPII, em 1927, após ter exercido a função de professor ‘além dos catedráticos’ das turmas suplementares do Externato, entre 1925 e 1926. Em 1931, ele foi também professor dirigente de ensino, quando houve a extinção do cargo de Catedrático de Francês, Inglês e Alemão no CPII. Depois, apareceu no Programa de Português, em 1947, matéria lecionada por Maria de Lourdes durante todo o período em que foi constatada a presença dela no CPII (1927 a 1949). Neste período, também atuava na instituição o professor Oiticica (1916 - 1951), que assumiu a cátedra de Português (Escragnolle Doria, 1939; Soares, 2014).
Na medida em que cada professor catedrático chegou a assumir até quatro turmas suplementares27, podemos depreender que estes professores é que escolhiam quem os auxiliariam com o ensino nestas turmas. Não foi possível, contudo, precisar se ela permaneceu na instituição após a saída do professor Oiticica. Podemos notar que entre as professoras, Clara Oiticica tinha o mesmo sobrenome do professor regente da cadeira de Português, José Oiticica, em 1920, também redator do jornal Voz do Povo, junto com Maria de Lourdes. Na ocasião da greve de 1918, ambos foram interrogados. Por ser professor catedrático do CPII, o cargo possibilitou a ele ter certa influência no ingresso destas mulheres no corpo docente, uma vez que elas faziam parte de seu círculo social.
A parceria entre José Oiticica e Maria de Lourdes continuou no CPII e foi expressa pelas notícias sobre a constituição das Comissões Examinadoras dos exames da matéria de Português, do curso fundamental deste estabelecimento de ensino, das quais ambos participavam. Em 1941, constituiu a comissão junto aos professores Oiticica, Francisco Gonçalves e Silvio Eliz, e, em 1942, da comissão composta pelos mesmos professores, mais Curio de Carvalho (Pelas escolas, 1942).
Em 1939, Maria de Lourdes foi classificada em segundo lugar para o cargo de professor suplementar de Português do CPII (Colégio Pedro II, 1939). Em 1942, tornou-se professora extranumerária28, mensalista, do CPII, com cargo de 12 horas por semana e vencimento de 1:600$0. Sua atuação como professora e escritora não terminou aí. No mesmo ano, ela teve seu contrato renovado para o desempenho do cargo de professora do Colégio Universitário e publicou um artigo intitulado ‘Instituto Santa Úrsula’, na revista Formação: Revista de Educação (Nogueira, 1942). A edição da revista de 1942 tratava sobre a reforma do Ensino Secundário.
Ela também continuou com as aulas particulares no curso preparatório para os exames do CPII, agora lecionando Latim e Português para concursos junto com o professor Joaquim Inácio (Contratados, 1942).
Apesar de toda sua trajetória literária, sua formação em curso superior se deu de forma tardia. Após sua formação em Letras, em 1943, não foi possível precisar se ela continuou atuando no Colégio Universitário da Universidade do Brasil, apenas no CPII, onde encontramos referências sobre esta professora até o ano de 1949. Ela faleceu em 1967.
Percebemos que em alguns momentos de seu percurso ela não utilizou o sobrenome do marido, havendo poucas informações sobre sua vida privada na imprensa. Embora seu filho, Eurico Nogueira França (1913-1992), tenha sido reconhecido pela Academia de Música Brasileira, tendo sua biografia publicada, nela não constam informações sobre sua filiação. Tampouco, Vasco Mariz, o amigo de Eurico, no texto ‘Recordar Eurico Nogueira França (1913-1992)’, cita o nome de seus pais, entretanto, os menciona ao tratar da trajetória de formação do filho de nossa protagonista, a professora Maria de Lourdes Nogueira.
[...] embora fosse atraído desde cedo pela música, talvez por influência de seus pais, estudou e formou-se em Medicina pela antiga Universidade do Brasil, em 1934. Não abandonou sua paixão pela música e acabou se formando em Piano pelo Instituto Nacional de Música, hoje a Escola de Música da UFRJ, na rua do Passeio (Mariz, 2012, p. 376).
Considerações finais
Ao longo do trabalho de constituição e análise do percurso de Maria de Lourdes Nogueira, alguns obstáculos foram localizados. Embora as fontes localizadas sejam diversificadas, foi possível notar um apagamento da atuação desta professora no Movimento Anarquista, durante o período em que trabalhou no CPII.
A imprensa, em especial, foi fundamental para nos ajudar a contrapor dados que, à primeira vista, pareciam contraditórios. Quanto às lacunas, estas ainda são motivo de muita pesquisa, assim como os questionamentos sobre as razões que a levaram a ingressar nos movimentos feministas da época, os quais se distanciavam da perspectiva anarquista.
Além de maior aprofundamento sobre seu percurso nestes movimentos, cabe também buscar outras fontes que tragam indícios de seu processo de formação e escolarização inicial, sobre os quais não encontramos rastros. Uma possibilidade que se desponta é buscar fontes que abordem as outras instituições de ensino onde atuou.
Apesar das lacunas, esta análise avançou em relação aos estudos até então produzidos sobre as mulheres anarquistas, contribuindo com a ruptura do silenciamento sobre o percurso de Maria de Lourdes Nogueira, após os anos de 1920, e sobre sua atividade como docente no ensino secundário do CPII e no Colégio Universitário, entre os anos de 1927 e 1949.
Os levantamentos, bem como os debates sobre sua produção literária, apontam que enquanto ‘mediadora cultural’ alcançava os espaços públicos muito mais amplos que as publicações na imprensa anarquista, englobando também o campo educacional. Tanto que vários jornais e revistas fizeram referência a ela, indicando seus campos e possibilidades de atuação e uma diversa rede de sociabilidade, reafirmando seu protagonismo na história do Movimento Anarquista no Brasil, o que indica contribuições para a história das mulheres, especialmente as anarquistas, e para a História da Educação.
O gênero como categoria de análise ajudou a pensar como se deu seu desempenho, seja nos movimentos, na imprensa ou nas instituições de ensino, mostrando as relações de poder existentes nestes espaços de sociabilidade, os quais indicaram hierarquias entre professores catedráticos, auxiliares e suplementares no quadro docente do CPII, não sendo acessível às mulheres o primeiro cargo. Contudo, essas relações de poder não se limitaram à hierarquia entre homens e mulheres, na medida em que os cargos de auxiliares e suplentes eram ocupados por ambos os sexos.
A perspectiva indicada neste artigo permitiu dar protagonismo a Maria de Lourdes, retirando-a de um papel secundário e mostrando que ela também teve forte participação no Movimento Anarquista, contribuindo para os estudos desse tema no Brasil e na América Latina.