Introdução
No último quartel do século XIX, nos países ocidentais, o início da oferta de refeições no ambiente escolar foi caraterizado por iniciativas esparsas e caritativas replicadas à medida que a própria estrutura escolar também foi formada, marcando uma trajetória concomitante. Ao se colocar a lente de observação sobre a instituição escolar entende-se a demasiada complexidade das análises históricas visto que o contexto de sua trajetória é marcado por frenéticos acontecimentos em nível mundial, bem como por uma pluralidade de documentos com diversas visões sobre os fatos.
Parece ser indissociável a compreensão entre as linhas que conduzem o traçado de como a escola é percebida e de sua cultura própria com os “[...] modos de pensar e de agir largamente difundidos no interior de nossas sociedades, modos que não concebem a aquisição de conhecimentos e de habilidades senão por intermédio de processos formais de escolarização” (Julia, 2001, p. 11). Neste mesmo raciocínio, a alimentação escolar é fruto de um contexto da sociedade que entendeu a escola como espaço propício para a oferta de uma alimentação adequada para as crianças, a qual na época era essencialmente para as ‘crianças necessitadas’1.
Entende-se a cultura escolar como “[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (Julia, 2001, p. 9). Dessa forma, então, defende-se que a alimentação escolar2 pertence ao processo da cultura escolar à medida que é parte integrante das práticas escolares (Vidal, 2006). Por tal motivo, a alimentação escolar como prática escolar possibilita o processo de ensino-aprendizagem e, assim, faz parte da história da educação3.
Considera-se que o estudo sobre a educação é fundamental para a “[...] compreensão da formação cultural de uma sociedade [...]” da mesma forma que o conhecimento do contexto histórico dos fatos e acontecimentos é “[...] imprescindível para a compreensão do sentido da práxis humana e, dentro dela, da intervenção educativa” (Falcon, 2006, p. 333).Sob esta perspectiva, uma das considerações que se faz necessária é de que a oferta de refeições no ambiente escolar ocorrera, no Brasil, na França e em Portugal, pari passu com a difusão da obrigatoriedade da escolarização.
Diante dessa afirmação, o objetivo deste artigo é perceber o despertar da necessidade da oferta das refeições em ambiente escolar no Brasil e em Portugal a partir da influência do higienismo francês no despontar do século XX. Essa percepção tem base nos discursos sobre a oferta de refeições pelas cantinas escolares francesas nos Congressos de Higiene Escolar e Pedagogia Fisiológica4 ocorridos em Paris nos anos de 1903, 1905 e 19105. Assim, a presença de cientistas brasileiros e portugueses nos eventos em questão sugere que eles poderiam ter sido influenciados a compreenderem as conclusões dos higienistas franceses como modelos de cantinas escolares que pudessem ser internacionalizados.
Neste sentido, partindo da perspectiva de que a alimentação escolar deve ser analisada tendo em vista sua inserção enquanto inerente à própria cultura escolar, o presente artigo alia uma análise de referências teóricas acerca do tema e enquanto as fontes históricas privilegia o uso dos relatórios dos três Congressos de Higiene Escolar no intuito de encontrar as experiências dos cientistas em relação às cantinas escolares, assim como os intelectuais brasileiros e portugueses que se encontram registrados na documentação aqui analisada.
O rayonnement culturel6 francês
Em relação à influência cultural francesa, é possível afirmar que ela podia ser percebida no Brasil e em Portugal há séculos e mais fortemente desde o Iluminismo e a Revolução Francesa. Intelectuais portugueses da virada do século XX denominavam ‘estrangeirismo’ tal influência, que ia além do uso de expressões linguísticas e se estendia para os vários aspectos da sociedade. François Chaubet (2016) chama a atenção para o movimento intencional da França denominado rayonnement culturel, anteriormente mencionado, que significava literalmente a irradiação cultural francesa para os outros países com o intuito de fortalecer e constituir vínculos culturais entre eles e a França. O objetivo deste movimento foi promover influência cultural com consequentes acordos políticos e econômicos. O rayonnement culturel pôde ser identificado até os anos de 1980, segundo Chaubet, quando então passou por mudanças advindas de novas concepções de sociedade.
Segundo o pesquisador Hugo Suppo (2000, p. 312), a França foi “[...] o primeiro país a propor como estratégia de dominação colonialista o ensino da língua francesa7 a partir da criação, em 1883, da Aliança Francesa”. De acordo com este raciocínio, o desenvolvimento da francofilia promoveria o consumo de produtos culturais franceses, como livros, perfumes, teatro, turismo, vinhos, e inclusive, ideias. É bem nesta seara em que se chama a atenção para a continuidade da influência de matriz francesa em relação à escola, e, especificamente, em relação à oferta de refeições em ambiente escolar.
Em 1907 fora criado o Groupement des Universitéset Grandes Écoles de France, fundado por cientistas no Collège de France em Paris, no intuito de promover a ciência francesa e fortificá-la frente aos outros países. O ideário, que rondava não só a Europa como também os Estados Unidos, era no sentido de que a dominação da ciência moderna significaria também maior influência política e maior potencial industrial frente às outras potências. Petitjean (1996, p. 91) aponta duas funções deste tipo de organismo de ‘irradiação intelectual’. A primeira função era “[...] organizar os intercâmbios científicos, para tirar proveito mais rapidamente dos últimos progressos das ciências e de suas aplicações [...]”, função esta que foi assumida entre as metrópoles, já que estas detinham os conhecimentos científicos mais modernos. Outra função era “[...] tecer redes de aliados políticos a partir de influência cultural e política, tanto como meio de penetração econômica, como para ter apoio desses aliados nos enfrentamentos das grandes potências”. O autor aponta esta última como sendo a função da cooperação intelectual da França com o Brasil.
Os interesses na cooperação intelectual ficam claros na carta de Paul Appell e Emile Levasseur, fundadores do Groupement des Universitéset Grandes Écoles de France pour les Relations avec l’Amérique Latine. A carta foi publicada na Revue Internationale de l’Enseignement em 1908. Nela os autores faziam um apelo aos cientistas para que abraçassem a causa da instituição (chamado somente Groupement) e ajudassem a difundir a influência francesa no mundo. “A irradiação de nossa civilização é um dos elementos mais preciosos da influência francesa no mundo. Importa propagar nossa cultura e defendê-la contra seus rivais” (Appell & Levasseur, 1908 apud Petitjean, 1996, p. 91).
A organização do governo francês em promover a disseminação e continuidade da influência cultural tomara caráter público a partir de 1910, quando da criação do Bureau des écoles et des oeuvres françaises à l’étranger (Escritório das escolas e de obras francesas no estrangeiro), o qual estava subordinado ao Ministère des Affaires Étrangères (Ministério das Relações Exteriores). Este ministério teve muita importância nesse período histórico francês, pois veria seu orçamento de 1913 até 1938 ser multiplicado por 26. Os liceus franceses, aos moldes do Liceu de Paris, foram criados em diversos países com o intuito de propagar a língua e cultura francesas. No Rio de Janeiro fora criado em 1916 e em São Paulo em 1923 (Suppo, 2000). Em Lisboa o liceu se instalara em 1917.
Findada a Primeira Guerra, “[...] a França se pergunta justamente sobre a realidade de sua influência intelectual e cultural no mundo” (Lefèvre, 1993, p. 24). Com vistas a reverter este quadro, o governo francês montou estratégias para que a cultura francesa, juntamente com o consumo em torno da mesma continuasse a se disseminar. Em 1920, foi criada a Maison dela Presse (Casa da Imprensa) que tinha a colaboração da intelectualidade parisiense (como jornalistas, pesquisadores e outros intelectuais) e apresentava o objetivo de “[...] centralizar, analisar e classificar as informações recolhidas pelos serviços diplomáticos e militares, a fim de fornecer elementos de propaganda aos meios de comunicação” (Suppo, 2000, p. 313). Também foi criado neste ano o Service des Oeuvres Françaises à l’Étranger - SOFE (Serviço de Obras Francesas nos Estrangeiro) que ficou no lugar do Bureau des Oeuvres. Nestes órgãos iriam circular intelectuais outros para além do corpo diplomático, os quais teriam a missão de recolher informações que seriam analisadas e utilizadas nos planos das propagandas culturais realizadas no estrangeiro (Ferreira, 2005).
É preciso ressaltar que o caminho inverso acontecera. A cultura brasileira também foi bastante difundida na sociedade francesa e diversos intelectuais que participaram das ‘missões francesas’ no Brasil escreveram sobre a cultura brasileira e contribuíram com a difusão dela na Europa (Ferreira, 2005). Assim como Portugal que também teve sua cultura levada à França.
Os congressos de higiene escolar e as cantinas escolares
Ao fim do século XIX, a alimentação infantil na França havia se tornado “[...] parte do movimento de higiene escolar” (Marchand, 2014, p. 322), tendo como um dos seus pensadores pioneiros o médico higienista francês Henry Méry8 (1862-1927)9, o qual também foi um dos idealizadores da escola ao ar livre (Marchand, 2014). Tiveram papel importante também Paul Le Gendre10 e Louis Landouzy (1845-1917). Além da oferta de refeições, a educação alimentar para as crianças estava sendo esboçada como meio de difusão do conhecimento do uso racional dos alimentos para a população em geral.
É possível compreender por meio dos documentos utilizados que os intelectuais envolvidos com a educação e os médicos escolares, influenciados por seus colegas franceses, foram construindo a necessidade de ofertar refeições para os alunos no momento em que estavam estudando. Nesse período os médicos escolares da França organizavam as cantinas de suas escolas sob os auspícios da alimentação racional e apresentavam resultados sobre a observação da boa nutrição sobre o desenvolvimento físico e cognitivo, disseminando essas ideais pelos outros países.
É sabido, no entanto, que o crescimento e o aperfeiçoamento das cantinas escolares francesas aconteceram gradativamente e especialmente no período do entreguerras quando se apoiavam nas descobertas científicas sobre a nutrição humana os quais faziam parte do discurso que circulava entre os países, ainda que estes estivessem a viver um período de recuperação após a Primeira Grande Guerra.
No ano de 1903, aconteceu em Paris o Primeiro Congresso de Higiene Escolar e de Pedagogia Fisiológica, organizado pela Liga de Médicos e da Família pela Higiene Escolar11, da qual era presidente o médico Paul Le Gendre. No relatório do Congresso, publicado em 1904, há a menção às cantinas escolares sob o título ‘Comida’ (Nourriture).
Considerando que é de toda necessidade que as crianças recebam uma comida apropriada a sua idade;
Que os pais ignorantes dão aos filhos muita comida que eles não conseguem assimilar;
Que, em certas regiões, as crianças levam bebidas alcoólicas para a escola maternal;
Que os menus das cantinas escolares não são apropriados à idade das crianças das escolas maternais, que há entrada de bacon e salsicha em excesso, legumes desidratados e não reduzidos a purê;
Que mesmo em muitas comunas onde as cantinas são organizadas, é a cantina da escola primária que fornece as refeições para a escola maternal;
O Congresso exprime o desejo que os alimentos e as bebidas trazidos pelas crianças sejam estritamente controlados;
Que os alimentos sejam cozidos ou requentados com cuidado;
Que o leite, os ovos e o purê componham exclusivamente o menu das crianças da primeira seção (2 a 4 anos) da escola maternal;
Que a maior solicitude seja dada à supervisão durante as refeições (1º Premier Congrès d’Hygiene Scolaire..., 1904, p. 82, tradução nossa)12.
O presidente da Liga de Médicos e Família pela Higiene Escolar, Dr. Paul Le Gendre, defendera no congresso, entre outras diversas considerações, que os médicos deveriam ter um “[...] monitoramento de perto sobre a alimentação [...]”, sobretudo durante a infância (1º Premier Congrès d’Hygiene Scolaire..., 1904, p. 18). De acordo com as proposições contidas no relatório sobre o Congrès, há de se entender que a racionalização dos alimentos passou a ser uma das ocupações da ciência médica e que a presença do médico escolar seria fundamental na construção dos preceitos de um ideal de escola naquele momento. Segundo Marchand (2014, p. 528), os médicos franceses, a partir da primeira década dos novecentos passaram a orientar os passos da alimentação na escola, tanto sobre a sua oferta - inclusive com a determinação dos menus - como também sobre a inserção do tema no programa de ensino das escolas de formação de professores e nas escolas primárias e secundárias. Isto aconteceu por meio da constante promoção de eventos científicos que discutiram o tema e também pela presença cada vez maior destes médicos nas escolas.
De acordo com Kuhlmann Jr. (2005, p. 60), eventos como este que tratava do tema da educação estavam acontecendo em grande número desde a década de 1870. O autor afirma que os congressos podem ser entendidos no sentido da busca internacional pela legitimação de “[...] modelos e critérios de integração ao concerto das nações civilizadas”. Neste sentido é possível perceber que as referências às ações sobre as cantinas escolares defendidas nos congressos sobre higiene escolar podem ter servido de modelo para as iniciativas de oferta de refeições aos alunos no Brasil e em Portugal.
Fruto de um contexto histórico de certeza da necessidade da intervenção médica no ambiente escolar (Rocha, 2010), acontecera de 11 a 13 de junho de 1905, em Paris, o II Congresso de Higiene Escolar e Pedagogia Fisiológica. No relatório do Congresso há a relação de membros não franceses da Liga organizadora do evento, no qual constavam 18 nacionalidades, dentre as quais se destacam um brasileiro e um português cujos nomes não foram citados (2º Congrès d’Hygiène Scolaire..., 1906).As cantinas escolares continuavam a ter papel de destaque na defesa dos cientistas de então os quais falaram de suas experiências positivas com a intervenção do médico escolar no funcionamento das cantinas e na escolha dos alimentos de forma adequada para a época.
Pode-se destacar do relatório a falado médico escolar Henri Gourichon13 que explicitou seu trabalho na higiene escolar em Paris em diversos aspectos da sua atuação. Quanto às cantinas escolares acompanhadas por Gourichon, ele disse que desde 1881, as refeições “[...] subvencionadas pelas Caixas Escolares e pelo Conselho Municipal permitem que o escolar faça as refeições de meio dia na escola por meio de uma pequena contribuição dependendo do arrondissement ou gratuitamente se ele é indigente” (Gourichon, 1906, p. 259, tradução nossa)14.
Em uma esmiuçada análise realizada por Heloísa Rocha (2010, p. 239) sobre o II Congresso de Higiene Escolar francês, a autora afirma que “[...] os discursos dos franceses caracterizavam-se pelas preocupações em ampliar a legitimidade das suas iniciativas no campo da higiene escolar”. O esforço dos médicos idealizadores desses eventos científicos em promover seus discursos, tanto em solo francês - tentando agregar a cooperação dos pais franceses em prol de suas ações - como tomando eco internacional, por meio da presença de participantes estrangeiros, o que ajudaria a entidade e os seus preceitos científicos a terem maior reconhecimento (Rocha, 2010).
Destaca-se, neste sentido, outro trecho da palestra de Gourichon sobre a adequação dos menus nas cantinas escolares ao organismo infantil eà alimentação doméstica. O médico ressalta que as refeições deviam ser “[...] elaboradas com ainda mais cuidado porque os pais têm muita tendência a dar uma alimentação defeituosa por ignorância ou por pobreza” (Gourichon, 1906, p. 259, tradução nossa)15.A educação alimentar no sentido prático foi tratada também pela professora Augusta Moll-Weiss (1863-1946), Diretora da Escola de Mães de Paris, que palestrou no II Congresso sobre a importância de “[...] que o ensino realmente se torne um ensino científico e que se estenda tanto a homens quanto a mulheres” (Moll-Weis, 1906, p. 57, tradução nossa)16. A diretora acreditava que o aprendizado sobre a alimentação não deveria se reduzir a ensinar o preparo dos alimentos, mas sim “[...] se preocupe com o seu valor nutritivo, a ração necessária para cada um de nós segundo o seu temperamento e as suas ocupações”17. Outras observações sobre alimentação racional foram feitas pela cientista fruto de suas experiências na cantina escolar de sua escola (Moll-Weis, 1906, p. 57, tradução nossa).
O relatório sobre o II Congresso apresenta uma gama de assuntos sobre as percepções de ideal de escola para aqueles médicos, educadores e alguns pais que se reuniram nos três dias de evento. Heloísa Rocha (2010, p. 242) acentua que o congresso, além de permitir uma discussão científica em torno da educação, também indicava uma arena de disputas de interesses dos “[...] médicos (incluídos os médicos inspetores escolares, os médicos de família e os especialistas); dos professores e diretores de estabelecimentos de ensino; assim como das famílias”. É importante, segundo a autora, que se leve em conta que o contexto era de um entrelace de “[...] questões ligadas à saúde e ao desenvolvimento das crianças que se cruzavam com o enfrentamento dos vários problemas que acompanharam o processo de universalização da escola primária na França” (Rocha, 2010, p. 242).
Segundo Nóvoa (1987), o processo de escolarização se estabeleceu em meio ao surgimento da “[...] necessidade da sociedade se ocupar das crianças [...]”; da “[...] interiorização progressiva de um conjunto de regras morais que vão funcionar como mecanismos reguladores das relações entre os homens [...]”; de “[...] uma nova ordem sócio-econômica [...]” que trouxe uma nova relação com a leitura e a escrita; e, da “[...] implantação de uma ‘sociedade disciplinar’ que tem como consequência o encerramento das crianças em espaços que lhes são destinados” (Nóvoa, 1987, p. 414-415, grifo do autor).
A alimentação racional era defendida pela comunidade científica de então. Em uma conferência realizada na Université de la Sorbonne em 12 de março de 1908 pelo professor Louis Landouzy, em que ele propunha que fosse estudada “[...] uma maneira de nos nutrirmos bem, compreendendo que a maneira de nos alimentarmos seja ensinada pela Fisiologia e não pela Gastronomia” (Landouzy, 1908, p. 1, tradução nossa)18.
O cerne deste pensamento pode ser visto na obra Compêndio da alimentação racional (Précis d’alimentation rationnelle) publicada em 1911 pelo Dr. Louis Pascault19, pela editora Bibliothèque Larousse, em Paris. O autor fez uma proposição a qual nomeou como objetivo do livro que ele escreveu. Para ele, as pessoas deveriam aprender em uma linguagem compreensível como e porque se devia ter uma alimentação racional. As bases deste entendimento foram sustentadas em três pontos:
1º O que é necessário comer (regime);
2º Quanto é necessário comer (porção);
3º Como é necessário comer (distribuição das refeições, mastigação [...]) (Pascault, 1911, p. 5, tradução nossa)20.
No livro foram dispostos os conhecimentos sobre nutrição que eram vigentes nessa época em uma linguagem de fácil acesso e com explicações simplificadas. Apesar de não mencionar as cantinas escolares, Pascault esmiuçou as diferenças alimentares das crianças e os cuidados que deveriam ter aqueles que preparavam as suas refeições.
A discussão de uma alimentação racional nas cantinas escolares fora tratada sistematicamente no III Congresso de Higiene Escolar e Pedagogia Fisiológica, em 1910. O médico e presidente do evento, Louis Landouzy, afirmou, na abertura do evento, que as cantinas escolares deveriam fornecer uma alimentação racional para que as crianças tivessem melhor benefício para a saúde e para o aprendizado. Nesse congresso, Landouzy estava representando o Ministério de Instrução Pública da França.
De acordo com Claire Marchand (2014, p. 308, tradução nossa)21, o projeto de implementação das cantinas escolares na França teve o apoio dos médicos escolares porque estas representaram “[...] não somente um meio de aplicar os dados racionais da ciência da nutrição, mas igualmente de difundir estas noções pelo exemplo”.
Faziam parte do Escritório do Comitê Internacional de Organização dos Congressos de Higiene Escolar, como representantes de Portugal, o médico Dr. Sebastião Cabral da Costa Sacadura (1872-1966) como diretor-geral de Instrucção Pública de Portugal e o médico escolar Pacheco de Miranda22e o médico-cirurgião de Lisboa, Dr. Curry Cabral (1844-1920) (3º Congrès International d’Hygiène Scolaire, 1911, p. 11, p. 60).Estes cientistas acima referenciados participavam também do Comitê Internacional do III Congresso e, além deles, faziam parte os médicos Mauperrin dos Santos (diretor da Escola Acadêmica de Lisboa); Mario Moutinho; Costa Ferreira; Almeida Dias; M. Valadares; Aleixo Guerra (estes três últimos como inspetores sanitários escolares). Fazia parte ainda António Ladislau Piçarra que fora sócio-fundador da Liga de Educação Nacional de Portugal, tendo grande atuação na educação portuguesa (Castelo, 2003).
Não faziam parte da organização do Congresso membros brasileiros, mas fora citado como membro titular o Dr. Clemente Ferreira (1857-1947), membro correspondente da Société de Médecine de Paris e membro titular da Société de Médecine Publique et de Génie Sanitaire de Paris. Entre outras atividades como epidemiologista, o pediatra se ocupava do cargo de inspetor sanitário na cidade de São Paulo (Rosemberg, 2008) e fez parte da criação do Serviço de Inspeção Médica nas escolas paulistas (Rocha, 2015).
Constavam como delegados oficiais do governo brasileiro os médicos Dr. Eugenio Guimaraes Rebello (1848-1922) e Dr. Manuel Curvello de Mendonça (1870-1914) (3º Congrès International d’Hygiène Scolaire, 1911, p. 65) que foram enviados pelo prefeito do Rio de Janeiro, na data de 1910, Serzedello Corrêa (1858-1932), atendendo o convite da organização francesa do III Congresso de Hygiene Escolar (Congresso de Hygiene Escolar, 1910, p. 1).
Este último representante, Curvello de Mendonça, no retorno da Europa escreveu uma nota em sua coluna no Jornal O paiz do dia 1º de setembro de 1910. Ele acabara de chegar de dois congressos dos quais foi delegado representando o Brasil, um em Paris e outro em Bruxelas. A nota foi denominada ‘Congressos’ e explanou sobre a numerosa e diversa quantidade de congressos que vinha acontecendo naquela época, principalmente na Europa. Ele foi enfático em descrever o quão numerosos eram os eventos científicos de então e a dúvida que pairava sobre a necessidade de tantos eventos.
Os congressos de toda ordem occupam e preoccupam o mundo inteiro, sobretudo o grande mundo europeu. Emquanto, neste mesmo Paris, quasi não há dia em que se não celebrem sessões solemnes de abertura ou encerramento de congressos de instrucção, de mutualidade, de transporte, de hygiene e educação popular, outras reuniões semelhantes se fazem na Belgica, aproveitando a concurrencia de sua presente exposição internacional, ainda outras se inauguram ao norte deste mesmo continente, como o congresso de assistência e beneficiencia na Dinamarca, o da paz na Suecia, sem falar nos congressos americanos e até brazileiros, cujo echo mal e apagado repercute na opinião e nas columnas da imprensa mundial.
[...] Ora, os governos arranjam-se sobrecarregando de trabalho os seus delegados aos congressos taes e taes, notificando-lhes novas e sucessivas incumbências, algumas das quaes incompatíveis pelo tempo e pelo esforço. Então, os congressistas se tornam as delicias das emprezas de transporte nesta Europa aparelhada para o máximo movimento em suas linhas de navegação e viação férrea. [...]
Na verdade, não falta quem conteste a sua utilidade scientifica e administrativa para os paizes que se representam (Mendonça, 1910, p. 1).
Curiosamente este frenesi científico foi proferido pelo médico Paul Le Gendre, no relatório referente ao I Congresso de Higiene (em 1903) que se assemelhariaà posterior queixa de Curvello de Mendonça. Engajado na importância da discussão científica em prol da higiene escolar, Le Gendre conclama na abertura do evento: “Talvez tenha sido um ato audacioso tentar organizar um novo tipo de congresso em nosso tempo que tanto já viu nascer. No início, havíamos encontrado objeções ao invés de encorajamento” (1º Premier Congrès d’Hygiene Scolaire..., 1904, p. 03, tradução nossa)23.
Ainda que contrariado, Mendonça se mostrou concordante com um dos assuntos que havia sido tratado no III Congresso de Higiene Escolar. Curvello de Mendonça descreveu que uma das preocupações dos cientistas presentes no evento estaria voltada para a diminuição dos programas de ensino em prol de mais atividades ao ar livre e a prática de educação física regularmente, além de pregarem sobre a importância de uma higiene alimentar adequada na infância.
O congresso reconheceu a necessidade para a mocidade das escolas dos diferentes gráos, de tornar a uma vida mais sã, mais favoravel ao seu desenvolvimento e á sua perfeita saúde; necessidade tanto mais imperiosa quanto as taras individuais devidas a uma defeituosa hygiene, sobretudo na idade da formação do espirito e do corpo; [...]
Em resumo, o congresso de hygiene escolar de Paris traduz uma força, uma crença, uma convicção firme de que se deve e pode fazer uma pedagogia nova para resolver todos aquelles problemas: a pedagogia natural, pedagogia physiologica, que revigore a educação intelectual diminuindo o tempo consagrado ao estudo e ao ensino. Para isso, o congresso bem pediu pelo órgão de um dos seus representantes: ‘ar na escola! ar nos pulmões! ar nos programas!’ (Mendonça, 1910, p. 1, grifo do autor).
Muitos foram os assuntos pedagógicos que foram ressaltados no III Congresso de Higiene Escolar, mas ressaltam-se neste artigo especificamente os discursos sobre as cantinas escolares. Oferecer alimentos em ambiente escolar era um desafio que vinha sendo experienciado por diversos países e fomentava discussões sobre os modelos que poderiam trazer melhores resultados. Na sua palestra de abertura, Dr. Louis Landouzy declarou sua certeza na ação da higiene escolar voltada para a alimentação infantil e a importância dos trabalhos sobre as cantinas escolares.
Daí a importância, que na pedagogia, começa a tomar a alimentação de crianças e de adolescentes, questão, que até ontem, estava entregue ao empirismo e aos preconceitos. Daí o interesse de trabalhos produzidos no estrangeiro e na França sobre as cantinas escolares;daí o interesse que se atribui ao cuidado dos dentes nas escolas; questão que, por menor que parece aos espíritos superficiais, relaciona-se diretamente ao problema da alimentação racional. [...] Esta questão da educação doméstica começa a apaixonar todo o mundo. A razão é que a educação alimentar, além das moralidades higiênicas denunciadas pelos médicos, envolve as moralidades econômicas e sociais, estando estes correlacionados com aqueles24 (Landouzy, 1911, p. 109, tradução nossa).
É preciso ressaltar que após estes congressos foram criados no Brasil o Serviço de Inspeção Médica e em Portugal a Inspecção de Sanidade Escolar, ambos vinculados à direção de instrução pública (Rocha, 2015), os quais preconizavam, entre outros cuidados com a saúde infantil, influenciada pelas certezas da ciência higienista médica, os cuidados com a cantina e merenda escolares.
Considerações Finais
Ainda que as iniciativas em solo brasileiro e lusitano estivessem, na primeira década dos novecentos, longe de conseguirem atender a todos os alunos e de se adequarem aos modelos previstos, pode-se afirmar que este período marcou duas formas de ver a alimentação escolar. Primeiro como uma forma de garantir a frequência escolar (France, 1902; Cantina escolar, 1909; Os grupos e as caixas escolares, 1913) e, segundo de forma a permitir consolidação da associação entre uma boa nutrição e um bom aprendizado escolar pela comunidade científica.
Ressalta-se que o modelo educacional advindo da França fazia parte da cultura escolar tanto no Brasil como em Portugal no período histórico em questão. Esse processo, em grande medida, foi possibilitado pela frequente circulação dos intelectuais brasileiros e portugueses em eventos científicos franceses. Entretanto, por mais que se reconheça no recorte espaço-temporal selecionado elementos que contribuem para a construção da política de alimentação escolar, ela ainda não poderia ser entendida como tal.
Diante da observação dos relatórios dos três Congressos de Higiene Escolar e Pedagogia Fisiológica ocorridos em Paris pode-se perceber que a alimentação escolar passou a ser alvo de preocupação médica e tratada sob a sua responsabilidade, tanto na França como no Brasil e em Portugal. Essas fontes nos mostram que as investigações avançavam sobre os prejuízos da má alimentação para o desenvolvimento e aprendizado das crianças.
O campo de estudos voltado à história da educação e às práticas da cultura escolar não pode abrir mão da alimentação escolar. O recorte aqui analisado evidencia isso. A análise das ricas fontes aqui selecionadas mostra a complexidade de um importante aspecto da escola a partir do século XX que se constituía enquanto discussões que, circuladas a partir da França, começavam a ser percebidas por intelectuais luso-brasileiros.