Introdução
Ao tomarem em consideração a última década transcorrida do século XXI, várias pesquisas têm sido desenvolvidas sobre a história do mobiliário escolar no século XIX, com especial ênfase para um móvel em particular: a carteira escolar. Wiara Alcântara (2014), por exemplo, debruçou-se sobre a circulação transnacional de modelos e a fabricação da carteira escolar no estado de São Paulo, entendendo-a como vetor de relações sociais, pedagógicas e econômicas em torno da escola e da escolarização nos anos finais do Oitocentos. Já Gustavo Rugoni de Sousa (2019), estudando a argumentação sobre a produção de mobiliário escolar na segunda metade do século XIX, no Brasil, Estados Unidos e Europa, demonstrou que esses artefatos - dentre os quais, as carteiras escolares - deveriam ser construídos levando-se em conta fundamentos pedagógicos, higiênicos e econômicos, o que os tornaria um dos símbolos da educação moderna no período. Gécia Aline Garcia (2020), por sua vez, investigando o provimento material da escola primária paranaense, analisou, entre outros aspectos, a atuação de marceneiros locais na concepção e na produção de carteiras escolares, cujos modelos em circulação eram apropriados por esses sujeitos em seu trânsito comercial, numa produção artesanal.
No campo da história das carteiras escolares no Brasil Império, algumas descobertas têm sido empreendidas focando o espaço da Corte Imperial. Juarez dos Anjos (2019), estudando o que denominou de protoindústria escolar, analisou o caso da Fábrica Röhe & Irmãos e a introdução que fizeram no mercado brasileiro de um banco carteira de tipo americano, que atendia a requisitos higiênicos e pedagógicos então em voga e encontrou alguma recepção na década de 1880. Noutra investida, Etienne Baldez Barbosa e Juarez dos Anjos (2020) tiveram oportunidade de demonstrar que a carteira escolar foi um dos temas de debate nas teses do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro de 1883, que, embora não tenha sido realizado, produziu uma documentação que embasou as análises desses historiadores, nas quais esse móvel escolar, os seus modelos e as características foram amplamente discutidos. Recentemente, foi objeto de análise o processo de produção e circulação da primeira carteira escolar patenteada no Brasil, inventada pelo professor primário negro Gustavo Alberto na Corte Imperial (Anjos, 2022). A partir de seu envolvimento com o mundo da instrução, esse professor interessou-se por criar um modelo de carteira escolar que atendesse as expectativas pedagógicas, econômicas e ergonômicas reclamadas pelos educadores da época, embora seu invento - essa é uma das conclusões a que chega a pesquisa - tenha tido circulação restrita entre os anos de 1881 e 1884.
Diante do exposto, que se evidencia a centralidade que a carteira escolar - sua concepção, produção, usos e circulação - adquiriu na segunda metade do século XIX tanto fora como dentro do Brasil, esta pesquisa elege como questão primordial: que representações sobre mobiliário escolar foram postas em circulação nas Conferências efetuadas durante a Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro em 1883? Dessa forma, o objeto de estudo é o mobiliário dessas Conferências. Todavia, o foco recai particularmente nas carteiras escolares com o intuito de compreender de que modo foram representadas naquele momento.
As representações aqui são entendidas como as sistematizadas e defendidas por Roger Chartier (1990) enquanto coletivas, que contribuem para que os indivíduos incorporem as divisões do mundo social, organizando o modo como irão classificar, julgar e agir, constituindo, portanto, expressões e identidades individuais ou de grupo (instâncias, instituições, etc.). Essas podem ser identificadas a partir de uma problemática que toma as apropriações dos sujeitos, uma vez que as representações, no sentido demarcado por Roger Chartier (1990), são sociais, institucionais e culturais, bem como estão inscritas nas práticas, ou seja, no modo segundo o qual homens e mulheres criam sentido, reformulam e representam o mundo à sua volta por meio de uma rede de relações.
Para a ciência do leitor, convém ressaltar que a Exposição Pedagógica ocorreu durante os meses de agosto e setembro de 1883 na cidade do Rio de Janeiro e foi organizada com o intuito de ser um evento concomitante ao Congresso de Instrução Pública, que não aconteceu por motivos financeiros e políticos (Barbosa & Anjos, 2020). Contudo, o impacto desses dois eventos combinados pode ser visto nos jornais e revistas de várias províncias, além dos que eram publicados no Rio de Janeiro. Posteriormente à sua realização, as notícias continuaram, como a que consta na revista A Escola, de Maceió (AL), que informava: “[...] embora se malograsse o Primeiro Congresso de Instrução, a Exposição Pedagógica veio trazer muita luz às questões de ensino e produziu o museu escolar que será um modelo vivo dos progressos do ensino” (A Escola, 1884, p. 1).
Foi para esses periódicos, dispostos na Hemeroteca da Biblioteca Nacional e consultados digitalmente1, que o presente estudo se voltou, além de contemplar as Conferências e o Guia para Visitantes da Exposição Pedagógica, bem como catálogos de mobiliário escolar internacionais, cujos modelos estavam em circulação entre os conferencistas. Por tomar tal documentação como fonte histórica para a construção de uma interpretação, optou-se por uma divisão entre a compreensão da constituição das carteiras escolares e as representações e orientações que aparecem nos documentos que tratam desses elementos.
O artigo divide-se em dois momentos. Inicialmente, é feita uma breve apresentação das Conferências realizadas durante a Exposição Pedagógica de 1883, a fim de delinear o contexto no qual emergiram os debates relacionados à carteira escolar. Na segunda parte, as representações sobre carteiras escolares presentes em algumas das conferências são tratadas, evidenciando como eram concebidas e quais eram os modelos em circulação ou considerados mais adequados para a escola brasileira segundo os conferencistas. Ao final, apresentam-se as considerações à guisa de conclusão.
As conferências efetuadas na Exposição Pedagógica
Durante o período em que esteve aberta a Exposição Pedagógica em 1883 ocorreram diversas conferências no salão das exposições, nas quais foram abordados temas relativos à educação e à instrução no país. A prática de realização de conferências públicas já era bastante disseminada na capital do Império desde, pelo menos, a década de 1870, em ocasiões como as Conferências Pedagógicas, que reuniam os professores públicos primários da cidade (Bastos, 2003), ou as de vulgarização científica, das quais as famosas Conferências da Glória são o exemplo mais conhecido (Carula, 2007). A iniciativa, portanto, não era inédita, mas correspondia muito bem a um modelo de debate público já há muito instaurado. Um ano depois, em 1884, saiu dos prelos da Tipografia Nacional uma publicação intitulada Conferências effectuadas da Exposição Pedagógica. O seu organizador não foi identificado, mas a publicação informa:
No presente volume, mandado publicar pela Comissão Diretora da Exposição Pedagógica, acham-se reunidas algumas das conferências que se efetuaram, no ano próximo passado, no salão principal da mesma Exposição.
Apesar do desejo e dos esforços mesmo que empregou a Comissão para que todas as conferências que se realizaram por ocasião daquele certame pedagógico figurassem no volume que entrega a publicidade, não lhe foi possível conseguir seu desígnio, por não lhe haver sido enviados os originais dos importantes trabalhos que ali foram apreciados por um auditório numeroso e ilustrado.
Se, porém, por um lado, nota-se neste volume tão sensível lacuna, por outro lado o leitor terá oportunidade de avaliar devidamente os interessantes trabalhos dos ilustrados Srs. Conselheiros Leôncio de Carvalho e Drs. Antonio de Paula Freitas, Barão de Macaúbas, Amaro Cavalcanti e Joaquim Abílio Borges (Conferências..., 1884).
O impresso em questão foi mais uma das estratégias adotadas pelos intelectuais que viram frustrado o desejo de realizar um Congresso de Instrução no Império. Na impossibilidade de levar a cabo tal empreendimento, tornaram públicas as Atas, o Guia para Visitantes, o Catálogo da Exposição Pedagógica e as Conferências efetuadas durante o evento. Vê-se, assim, o intento de erigir por meio desses documentos um lugar de memória (Nora, 1993) que demarcasse aos pósteros os feitos e as iniciativas relativas à instrução popular que se vinham tomando no Brasil, a exemplo de outras nações - ditas civilizadas -, as quais, por aquela época, realizavam também seus congressos e exposições.
A iniciativa de promover conferências pode ter sido tomada como mais um chamariz para a Exposição, além dos objetos escolares propriamente ditos ali colocados em exibição. Não se sabe ao certo quantas dessas preleções foram realizadas, pois, como revela o excerto anteriormente exposto, nem todos os conferencistas disponibilizaram as suas falas para a publicação. Ainda assim, o organizador não se furta em destacar que todas foram apreciadas “por um auditório numeroso e ilustrado”, ou seja, atingiram seu objetivo de ser ponto de visibilidade e diálogo público dos problemas relativos à instrução e à educação.
Em que pese essa reconhecida lacuna, o organizador destaca que seria possível aos leitores “avaliar devidamente”, ao menos, os trabalhos de alguns dos “ilustrados” que usaram a palavra naquela ocasião, dos quais destaca o Conselheiro Leôncio de Carvalho e os doutores Antonio de Paula Freitas, o Barão de Macaúbas, Amaro Cavalcanti e Joaquim Abílio Borges. Sobre que assuntos discorreram esses personagens?
O Conselheiro Carlos Leôncio de Carvalho tomou por tema de sua dissertação a educação da infância desamparada. Já o doutor Antonio de Paula Freitas ocupou-se do tema da Higiene Escolar; enquanto o doutor Joaquim Abílio Borges, proprietário de uma escola particular na Corte, proferiu alocução sobre os materiais didáticos adotados no Colégio Abílio. Na sequência, o doutor Amaro Cavalcanti pronunciou conferência sobre o ensino moral e religioso nas escolas públicas e, finalmente, o Barão de Macaúbas dedicou-se a discorrer sobre um aparelho de cálculo de sua invenção.
Como se percebe, apesar de realizadas durante uma Exposição Pedagógica, as conferências abordaram temas mais amplos, para além da materialidade escolar. Discutiram, é verdade, sobre materiais didáticos e aparelhos de cálculo, mas detiveram-se também em outros tópicos mais abrangentes, como a infância desamparada e a educação moral. Se, em princípio, nenhuma conferência específica sobre mobiliário escolar foi encontrada, tampouco naquilo que mais interessa a este estudo, carteiras escolares, uma leitura detalhada desses textos, feita a contrapelo (Benjamin, 1987), calcada na busca por indícios, vestígios e sinais (Ginzburg, 1989), não se revelou infrutífera. Particularmente, nas três primeiras conferências, significativas representações sobre a carteira escolar e o seu lugar enquanto artefato material indispensável ao ensino foram identificadas. É sobre elas que este trabalho se deterá a seguir.
“Percorrei a nossa Exposição Pedagógica e aí vereis também os modelos da mobília expostos”
É pertinente relembrar, como já apontava Maria Helena Câmara Bastos (2005, p. 121), que o Congresso da Instrução Pública de 1883, “[...] pretendia ser uma tribuna de discussão e decisões sobre os rumos da educação brasileira, tanto em aspectos formais e organizacionais, como em aspectos pedagógicos”. Nesse sentido, problematizar as representações sobre o mobiliário escolar, em particular as carteiras, nas conferências efetuadas durante a Exposição Pedagógica, evento que efetivamente foi realizado, é identificar orientações e modelos do que já configurava as escolas brasileiras ou o que era indicado para ser utilizado. Pelos jornais, há referências aos objetos escolares que foram apresentados na Exposição Pedagógica. O jornal Reformador (1883) publica que:
Diante dos inúmeros objetos que enchem as mesas e as paredes das salas da Exposição, presente-se que o espírito da verdadeira caridade predominou na escolha de cada invento, e, o que é mais, que este não poderá ser utilizado na prática, se esse mesmo espírito não presidir ao encarregado de incutir a teoria que ele representa (Exposição Pedagógica, 1883, p. 2).
Identifica-se uma circulação sobre a Exposição Pedagógica que relaciona a importância de conhecer não só os objetos e seus usos, como também os sentidos que neles estão postos que permitam unir a teoria à prática. Na Conferência de Antonio de Paula de Freitas, ele instiga o público:
Percorrei a nossa exposição pedagógica e aí vereis também os modelos da mobília expostos pelos Estados Unidos, Bélgica, França, Inglaterra e Alemanha: uns caracterizam-se pela sua elegância, outros pelas peças móveis, outros pelo emprego do ferro fundido e outros pela simplicidade da construção (Freitas, 1884, p. 37).
Wiara Alcântara (2016), trabalhando com o Relatório do Jury da Primeira Exposição Pedagógica (1884) e com catálogos das indústrias de mobiliário escolar2, demonstra que modelos de carteiras eram considerados hegemônicos no século XIX pelas indústrias e eram expostos nas Exposições Universais, evidenciando que empresas estadunidenses e francesas disputavam a liderança de mobiliário escolar. Nessa exposição da autora, fica claro que a escola era vista como um mercado consumidor e que no Relatório do Jury é possível investigar, minuciosamente, as características técnicas e higiênicas que no Brasil eram apreciadas quando se tratava da fabricação de carteiras. Como pontua a autora:
Nas exposições, um conjunto de material e mobiliário escolar, dentre eles, as carteiras escolares, aparecem em abundância como exemplos do progresso científico, técnico e material no campo da educação. Nesse momento, os modelos ali apresentados são aqueles que deveriam figurar nas escolas e países que pretendessem estar em dia com o progresso, também no campo da instrução. [...]. Pensar o mobiliário escolar nas exposições ajuda a entender a escolaridade obrigatória, a partir da cultura material, da história transnacional e econômica da escola, e, ilumina aspectos relevantes da constituição da escola pública. O final do século XIX e as exposições desse período (importante expressão da sociedade industrial) traziam uma ordem transnacional articulada pelo comércio, pela tecnologia e pela mercadoria (Alcântara, 2016, p. 118).
Assim, sabendo de um “conjunto material e mobiliário escolar” presente nas exposições, como indicado no trecho anterior, que materialidade é possível aferir por meio das Conferências escritas para a Exposição Pedagógica? O primeiro movimento na busca pela resposta toma a Conferência do Conselheiro Carlos Leôncio de Carvalho que, como explicita Maria Cristina Machado (2006), participou da organização da Exposição Pedagógica de 1883 e foi secretário do Congresso de Instrução Pública, ainda que esse não tenha sido realizado. Na sua conferência, ele cita a coeducação dos sexos, referenciando os Estados Unidos quando tratava das instituições de asilo, pontuando que nesses espaços deveriam ser recolhidos, de preferência os ingênuos3, e demarca: “2º Que haja nas salas de aulas e oficinas duas linhas de bancos, separados por um intervalo, sendo um para os alunos e outro para as alunas [...]” (Carvalho, 1884, p. 13).
Três possibilidades interpretativas são possíveis pela orientação dada por Carlos Leôncio de Carvalho quanto aos bancos nas salas de aula. A primeira é a de que eles seriam utilizados para garantir a adequada separação dos sexos dentro do espaço escolar, numa época em que a coeducação começava a ser tolerada pelas autoridades como alternativa para um atendimento mais amplo da infância escolar e, no caso em tela, da infância pobre e abandonada. Usa-se a expressão tolerada, pois, como se percebe, os móveis garantiriam as condições materiais para a coeducação, mas não a mistura dos sexos. Os alunos se sentariam em uma linha de bancos; ao passo que as meninas na outra linha. Para além de acomodarem corpos, os bancos os educariam para o tipo de convivência entre meninos e meninas que se queria instaurar no ambiente escolar.
A segunda possibilidade interpretativa é a de que o conselheiro estava se remetendo a “bancos-carteiras”, tal como a descrição feita no Relatório do Jury, quando pontuava que:
Os bancos-carteiras de um só lugar devem ser preferidos, ou pelo menos constituem um novo ideal para o qual se deve tender em questão de mobília escolar, e sempre que algum motivo econômico não determine o contrário. [...] Mas, como o obstáculo econômico é de muito peso, usa-se frequentemente dos moveis de dois lugares; com efeito, os de um lugar tomam mais espaço na sala que os de dois; exigem portanto uma despesa maior de construção do edifício relativamente ao mesmo número de alunos; custam mais caros, porque dois bancos-carteiras separados exigem mais mão de obra e material que um só com os dois lugares (Relatório do Jury..., 1884, p. 29).
Nesse sentido, é possível entender que bancos-carteiras aqui se relacionariam ao que outros conferencistas trataram com especificidade como carteiras, inclusive citando nomes, o que Carlos Leôncio de Carvalho não fez. A terceira possibilidade é a de que, ao utilizar bancos relacionando a salas de aula, o conselheiro estivesse tratando como uma expressão que, de forma geral, remete às carteiras escolares ou, ao menos, a maioria das ocorrências com carteiras relacionadas à instituição escolar.
Ao investigar os jornais da década de 1880, é possível identificar que tal uso genérico era recorrente. A Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1880, informa que: “[...] também estão desertos os bancos escolares do Lyceu [...]”, ao tratar do Gymnasio Friburguense III (1880, p. 3). Em O Cearense, de Fortaleza, de 1881, lê-se: “[...] o coleguismo da vida estudantil não se termina nos bancos escolares” (Ao governo e ao paiz, 1881, p. 3). No Diário de Pernambuco, de 1884, ao referir a Viagem da Princesa Isabel e do Conde D’Eu para Sorocaba, é descrita uma visita à oficina de máquinas em Ipanema junto com o Ministro da Agricultura:
Aí foram também vistos por Suas Altezas e pelo Sr. Ministro da Agricultura alguns tipos de bancos escolares de madeira, mais conhecidos sob o nome de carteiras, isto é, com o componente mesa de trabalho, banco e encosto, tão necessário à higiene da criança quanto à própria comodidade. Se em todas as escolas fossem os professores obrigados a fornecer tais bancos aos alunos, não teríamos constantemente tanta criança raquítica e corcunda. Tive a ocasião de ouvir o Sr. Ministro da Agricultura lembrar ao diretor a conveniência de mandar aqueles modelos de bancos para o Museu Escolar do Rio (Viagens, 1884, p. 4).
Os modelos de bancos e a relação com a postura das crianças ou com a higiene escolar é o que direciona esta investigação para a Conferência de Antonio de Paula Freitas, que era engenheiro de formação e exercia o cargo de secretário da associação mantenedora do Museu Escolar Nacional (Compagnoni, 1980). Esse mesmo espaço aparece no jornal aqui referenciado anteriormente. Em sua conferência, pondera sobre o uso de carteiras de um lugar ou dois lugares:
Uma outra questão tem sido debatida nos congressos da Europa, é a de serem os móveis apropriados a um só aluno ou dois; esta questão porém afeta antes a parte disciplinar do que a higiênica, e conquanto naqueles congressos se aconselhe o uso da mobília de um só lugar, declaram, entretanto, quando razões econômicas não determinarem, a preferência dos móveis de dois lugares. Na Escola da Quinta Imperial da Boa Vista, Sua Majestade o Imperador, infatigável sempre no exercício da caridade, determinou que os móveis dos alunos fossem ali de um só lugar (Freitas, 1884, p. 38-39).
A questão sobre o número de lugares no móvel destinado aos alunos - o banco ou a carteira escolar - apresenta-se com frequência nos debates sobre esse tipo de mobiliário no final do século XIX. Aqui, porém, o conferencista deixa claro que tal dilema diz respeito exclusivamente à questão disciplinar e não à higiênica. Ou seja, percebe-se a carteira escolar como um dispositivo capaz de ajudar a manter na devida disciplina e a ordem os corpos dos escolares. Desse modo, pode-se inferir que, quando se sentavam duas crianças juntas, a disciplina era mais difícil de ser mantida, razão pela qual a carteira de um só lugar vinha com alguma frequência recomendada. Mas, falando como engenheiro e não como pedagogo, o conferencista considera que, apesar de se recomendarem em Congressos o uso da carteira de um só lugar, quando razões econômicas não determinassem, a preferência poderia recair sobre o móvel de dois lugares. Ainda assim, registra que numa escola recentemente inaugurada na Quinta da Boa Vista, o Imperador seguiu a tendência geralmente defendida e estabeleceu que “os móveis dos alunos fossem ali de um só lugar”.
Identifica-se não somente a questão de número de alunos como também a circulação de informação sobre as carteiras a partir de congressos. Alguns pontos centrais podem ser observados na Conferência de Antonio de Paula Freitas: primeiro, a menção a uma renovação do que se entendia por uma nova escola diante da relação com a materialidade que a compunha no passado, quando descreve que “[...] as classes continham, com a mais repugnante acumulação, filas de bancos e mesas horizontais sem ordem, dimensões e formas apropriadas” (Freitas, 1884, p. 36) e que os preceitos de higiene e capacidade agora eram o foco:
É tal a importância que tem merecido este assunto que, ao penetrar hoje numa sala de classe, liga-se mais interesse em apreciá-la pela qualidade dos objetos que contém que pela quantidade de alunos. Estão longe os tempos em que o número de alunos denotava o merecimento dos colégios; as classes continham, com a mais repugnante acumulação, filas de bancos e mesas horizontais sem ordem, dimensões e formas apropriadas; hoje tudo mudou de figura: a verdadeira escola deve ser estabelecida segundo os preceitos da higiene em relação ao edifício e à mobília, contendo as classes somente o número de alunos que a sua capacidade pode comportar (Freitas, 1884, p. 36).
Segundo, é possível atentar-se para a circulação internacional de modelos, quando o conferencista menciona América do Norte, bem como Saxônia, Suíça, Exposição de Paris de 1867, Exposição de 1878, “[...] com mais de cem tipos de mobília” apresentados (Freitas, 1884, p. 37)4. Em terceiro, uma preferência por modelos de carteira de madeira, aludindo novamente às expostas na Bélgica e na França, ponderando que “[...] as de ferro fundido têm o inconveniente de não se prestarem em toda parte aos consertos de que venham a carecer” (Freitas, 1884, p. 37)5.
E isso direciona este trabalho ao quarto ponto, que trata da adaptação da carteira ao corpo dos alunos, quando escreve sobre a estatura dos estudantes e que foi melhor reduzir as peças que poderiam ser adaptadas aos alunos por serem flexíveis para aquelas que são fixas, mas com bitolas diferentes, de 45 a 90 centímetros, que não distrairiam os alunos quando fossem se mexer, uma vez que já vinham no tamanho ideal6. Por fim, o quinto ponto diz respeito aos usos das carteiras pelos estudantes, fazendo alusão a um desvio na coluna, dissimetria nos ombros, citando estudos do Dr. Guillaume de Neuchatel7.
Em seu livro, o doutor Louis Guillaume (1865) observou aulas do colégio localizado em Neuchatel, no qual, de 731 estudantes, 296 tinham dor de cabeça frequente e 155 tinham sangramento nasal habitualmente. O médico pondera sobre as consequências da má postura, apontando problemas com as vértebras, no pescoço, na digestão e indicando até relações com distúrbios na tireoide. Para ele, as carteiras escolares deveriam ter a menor diferença possível entre a borda da mesa e o a borda do banco, de uns três centímetros, sendo que o banco deveria ter um encosto para dar suporte aos rins dos estudantes (Guillaume, 1865).
Se os textos dos conferencistas, no geral, permitem confirmar aquilo que Wiara Alcântara (2016, p. 121) demarca, isto é, que “[...] se, em 1867, há o nascimento do comércio internacional do mobiliário escolar com o predomínio americano, em 1873, há o nascimento da concorrência não só quanto às propostas e aos conceitos de carteira escolar, mas também de mercado consumidor [...]”; a Conferência de Joaquim Abílio Borges, tratando dos materiais didáticos do Colégio Abílio, informa claramente um nome quando explicita o modelo das carteiras do colégio e seu criador: carteira Triumph, de Herbert Lee Andrews8: “Esta mobília construída pela casa A. H. Andrews de Chicago é do modelo Triunfo e obteve a maior recompensa na Exposição da Filadélfia (1876) e a única na Exposição de Paris (1878)”, mencionando o relatório de Buisson (Borges, 1884, p. 47). Essa carteira é apresentada na imagem a seguir (Figura 1):
Como explica Gustavo Rugoni de Sousa (2019, p. 126) ao tratar da carteira Triumph: “[...] o exemplar é reconhecido por Buisson como moderno e vantajoso. Dentre as características principais, podem-se destacar o assento dobrável e o atendimento a exigências médicas e pedagógicas”. Nesse entendimento de orientações médicas atreladas às carteiras escolares, Joaquim Abílio Borges (1884, p. 47) escreve:
As carteiras singulares (single desk) são de cinco dimensões para meninos de diferentes estaturas, a fim de impedir os desvios da coluna vertebral (escoliose) e as fadigas da vista (miopia). São envernizadas, tem pés de ferro presos ao soalho e estabelecem a solidariedade entre dois assentos de uma mesma fila. O banco de um pupitre está preso ao pupitre do que vem atrás e pode ser levantado; o que resolve o problema de colocar a margem do pupitre e do assento sob a mesma vertical sem constranger o menino quando se senta, e permitindo-lhe apoiar a parte inferior do braço na mesa sem deslocar o ombro. Além disto, este sistema faculta à criança tomar ou deixar o seu lugar sem dificuldade nem distúrbio, dá espaço para a ginástica calistênica e facilidade para o asseio da sala.
Como demonstrado por Gustavo Rugoni de Sousa (2019, p. 133), havia outros bancos/carteiras com mobilidade de assento9, tais como o de Andrews, mas que “[...]dentre os diversos modelos, destaca os exemplares fabricados em Chicago (modelo Andrews), Baltimore (modelo Stevens), Atlanta (modelo Slaymaker), Indiana (modelo Williams) e Nova Iorque (modelo Palm)”. E que “[...] as referidas firmas produziam carteiras muito semelhantes, mas com assentos que se diferenciavam na maneira de dobrar, por utilizarem dobradiças e rolamentos diferenciados” (Sousa, 2019, p. 133).
O médico e professor de Escola Normal, Aimé Riant (1874), pontua que “[...] novos móveis escolares são estudados, construídos, experimentados [...]” e que cabe ao higienista, pela competência especial que detêm, “[...] discutir como substituir os antigos por modelos novos, de acordo com o interesse e saúde das crianças” (Riant, 1874, p. IX, tradução nossa)10. Em sua obra, elenca algumas carteiras, entre elas, as americanas, demonstrando as medidas que deveriam ser consideradas em prol da saúde dos estudantes, como no modelo a seguir (Figura 2):
Na descrição feita pelo autor da referida carteira, é informado que o modelo tem um banco arredondado, côncavo, que lembra os bancos de jardim e que evita que o estudante deslize para a frente, impedindo danos maiores à sua coluna (Riant, 1874). A descrição da carteira Triumph, no Catálogo Ilustrado de A. H. Andrews (1881), seguia uma caracterização semelhante:
Construído no método aprimorado de encaixe de madeira e ferro juntos, e inserção de cavilhas de aço contínuas. [...] Os compradores de Mobiliário Escolar encontrarão a Mesa ‘Triumph’ com rabo de andorinha patenteada a mais perfeita em suas proporções, e muito a mesa escolar mais forte e durável feita. O assento e o encosto são tão curvos que permitem ao aluno manter uma postura ereta e saudável, e realizar seu trabalho com facilidade e conforto desconhecidos no uso de mesas com cadeiras, ou mesmo na maioria das mesas com assentos dobráveis. Pelo nosso método de construção aprimorado - a cauda de andorinha, processo e o uso de fio-máquina de aço inserido nas ripas como buchas contínuas, (ver corte de mesa em processo de montagem) - obtemos um grau de firmeza, resistência e durabilidade que não pode ser igualado ou abordado por qualquer outro método e que mais do que duplica o valor de nossas mesas sobre aquelas montadas de outra forma (A. H. Andrews & Co., 1881, p. 9-10, grifo do autor, tradução nossa)11.
Sem desconsiderar o caráter propagandístico de um catálogo, é pertinente verificar como as descrições acabam sendo apropriadas pelos conferencistas da Exposição Pedagógica para confirmar o uso de determinadas carteiras como mais adequadas. Contudo, como demonstra Wiara Alcântara (2014), por meio do Relatório do Júri, houve uma definição na Exposição Pedagógica, feita pelos jurados, de cinco características de mobília escolar, mas que a mais importante seria a proporção dos bancos e das mesas com relação à estatura dos alunos, por se relacionar diretamente a questões debatidas pelos higienistas. Além disso, optou-se por carteiras individuais.
Se há um aspecto que o Estado valoriza na carteira, por questões econômicas, é a sua durabilidade. O alto investimento deve ser compensado ao longo do tempo. Ele não pode se repetir a cada ano ou mesmo a cada década. Não localizei relatórios do júri de outras exposições universais ou pedagógicas que permitissem analisar o lugar conferido à durabilidade da carteira. Para a comissão do grupo Mobília Escolar, da Exposição do Rio de Janeiro, a durabilidade era uma característica essencial à carteira. Talvez porque em um país no qual muitas escolas não dispunham sequer de mobília, conservar por longo tempo aquelas que já existiam era fundamental (Alcântara, 2014, p. 144).
É possível apontar que não somente para a comissão da Exposição Pedagógica (1883) a durabilidade da carteira era uma questão importante, como os aspectos, que garantiam essa existência das carteiras por um prazo maior e que compareciam nos catálogos no Oitocentos - dobradiças, ferro, aço -, também eram destacados nos textos dos conferencistas. Como no trecho de Joaquim Abílio Borges (1884, p. 47), quando ele demarca que as carteiras “[...] são envernizadas, tem pés de ferro”.
Considerações finais
Durante os anos que se seguiram à Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, de 1883, é possível acompanhar nos jornais os vestígios da constituição das representações sociais decorrentes do referido evento. É pertinente destacar que as representações sociais não são relacionadas apenas a um indivíduo, não são meros reflexos da realidade e não são reduzidas a discursos, sendo mobilizadas por propriedades sociais que são externas aos sujeitos, mas que caracterizam os grupos sociais diversos (Chartier, 1990).
O primeiro desses indícios evidenciados nos jornais e revistas periódicas pode ser visto na relação com a higiene pedagógica, alvo de discussões entre muitos médicos. Nesse sentido, o Dr. Carlos Costa (1887), ao fazer a resenha da tese de Umbelino Marques, apresentada na Faculdade de Medicina da Bahia, no ano anterior, sobre a temática, reforça:
Em relação às mobílias escolares omitiu o autor noticiar os assinalados serviços prestados pela Exposição Pedagógica feita no Rio de Janeiro e o Museu Escolar, que publicou um catálogo bastante interessante. O autor apresentou alguns quadros das ‘medidas das partes do corpo das crianças, para servirem de base à construção da mobília escolar’, que são dignos de consulta (Costa, 1887, p. 287, grifo do autor).
A Exposição Pedagógica comparece, na percepção do Dr. Carlos Costa (1887), como o espaço que ganhou sentido e significado concernentes ao mobiliário escolar e que, portanto, causa estranhamento uma tese que trata de higiene pedagógica não abarcar essa Exposição e a materialidade que nela foi representada na relação direta com o tema. Como foi possível acompanhar pelas Conferências, os temas tratados foram amplos, para além da materialidade escolar; todavia, quando se tratou sobre carteiras escolares, ainda que o uso demonstrasse uma preocupação com a disciplina, com o ordenamento dos corpos durante as aulas, a questão higiênica era um ponto realçado. O que permite apontar para a circulação de referências a médicos higienistas para legitimar as escolhas de determinados modelos de carteiras escolares.
O segundo vestígio das representações direciona este estudo para a atuação dos conferencistas que, após a referida exposição, são referenciados na relação com a materialidade escolar, como o fez Juvencio (1884), que assina a nota sobre a Conferência de Joaquim Abílio Borges no jornal A Sentinella, pontuando que ele, em sua fala no evento, “[...] começou estudando a mobília escolar, os quadros negros [...]”, seguindo com outras especificidades de método e materiais específicos utilizados no Colégio Abílio (Juvêncio, 1884, p. 2). O acompanhamento de notícias sobre mobília escolar nos jornais e revistas demonstra que algumas relações entre o Colégio Abílio e a qualidade de materiais e mobília utilizados, aparecem com destaque, sendo uma referência para pensar a organização de escolas, de salas de aula e a sua materialidade.
Observa-se que a carteira escolar é evidenciada com centralidade quando se discute a materialidade necessária para a composição das salas de aula e que esse utilitário, muitas vezes, durante o período aqui investigado, foi representado genericamente, com a nomenclatura de bancos escolares, mas com a descrição do mesmo uso e do mesmo significado dentro da prática escolar. As carteiras escolares representavam, também, uma tecnologia que circulava nos países quando se pensava no desenvolvimento de métodos, processos e instrumentos, que possibilitassem agregar os estudantes nas escolas. Por meio do debate sobre elas, nas Conferências aqui investigadas, é possível identificar nomes relacionados à sua produção e aos países de sua criação e circulação, representando ainda um comércio em torno da indústria das mobílias referenciadas.
Dessa forma, quando se trata de uma representação sobre mobiliário escolar e, em específico, das carteiras escolares, os sujeitos apontam noções, conceitos, esquemas e pessoas de referência de acordo com os sentidos e significados apreendidos no mundo social e cultural em que vivem. As representações das carteiras escolares se articulam às percepções que as pessoas possuem do seu uso físico atrelado ao biológico (como quando integrada à discussão higienista) e ao social/educativo (condições favoráveis para a escrita, para o não deslize dos materiais dispostos no tampo da mesa, etc.).