Introdução
O presente estudo entende o meio rural como um ambiente cujas práticas e representações locais geraram elementos culturais que delinearam o modo como foram criadas as escolas nesse ambiente campesino. O conceito de campo, tomado aqui como sinônimo de zona, área ou espaço rural, ampara-se ainda no argumento de Nörnberg (2008), que o julga como um espaço onde transcorrem práticas culturais, sendo a escola um modelo que marca identidades e pertencimentos ao lugar. Ademais, como espaço de “[...] produção de novas relações sociais, [a escola] caracteriza-se um campo de possibilidades, de produções de história e cultura, dos sujeitos que ali vivem” (Gracindo et al., 2006, p. 14).
O descaso com a educação rural ao longo da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985) era visível, mesmo com a implementação de políticas públicas para incentivar a docência nesse meio, assim como estimular a permanência das famílias no campo. Arroyo (2007), referindo-se à formação, ao trabalho e à condição docente, enfatiza que falta entendimento acerca das políticas públicas, porque estas vêm sendo praticadas de forma isolada, não alcançando, assim, o resultado esperado. Por essa razão, os problemas em voga naquela época persistem na atualidade.
Iwaya (2005, p. 182) salienta que “[...] os lugares por onde o indivíduo circula dizem quem ele é e que posição ocupa”. Dessa forma, as inovações nos objetos de pesquisa e o surgimento de novos conceitos, voltados para os domínios do cultural, instigaram os historiadores a expandir a sua percepção sobre a história. Por consequência, “[...] a análise sobre representação, imaginário, narrativa inseriu-se na história, justamente, para ampliar as possibilidades de compreensão do passado” (Amaral & Silveira, 2012, p. 169).
A respeito do testemunho, Ricoeur (2007) ressalta que tal forma de relato configura a estrutura essencial de transição entre a memória e a história. Em contrapartida, Benjamin (2012) destaca que o dom do narrador é poder relatar sua vida. O cronista que recorda os acontecimentos não diferencia entre os grandes e pequenos, porém leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu deve ser julgado perdido para a história. Estruturar historicamente o passado não quer dizer conhecê-lo tal como ele foi, mas apropriar-se de uma lembrança:
[...] reconhecendo a dimensão constitutiva do fato biográfico no desenvolvimento humano, o saber pretendido pela pesquisa biográfica é o de explorar o espaço e a função do biográfico nos processos complementares de individuação e de socialização, para questionar suas múltiplas dimensões - antropológica, semiótica, cognitiva, psíquica, social -, a fim de ajudar a melhor compreender as relações de produção e construção recíproca dos indivíduos e das sociedades (Delory-Momberger, 2016, p. 137).
Assim, no âmbito desta investigação, a História Oral proporcionou descobrir memórias que nos aproximam da compreensão realizada pelos professores de suas práticas de resistência ao regime, nas diferentes instâncias em que elas possam ter acontecido. Para Meihy e Holanda (2007, p. 38), “[...] mesmo abrigando índices de subjetividade, a História Oral temática é mais passível de confrontos que se regulam a partir de datas, fatos, nomes e situações”. Desse modo, conseguiremos sustentar nossas pesquisas não apenas nas fontes orais que possuímos, mas também na percepção da ação repressiva rejeitada aos participantes, pois “[...] esse conhecimento passa por uma lógica interpretativa profunda, já que a narrativa, por si só, não produz dados para o pesquisador verificar quaisquer situações. Ela produz saberes” (Souza & Senna, 2023, p. 5).
Dessa forma, este artigo objetiva analisar narrativas de professores rurais que atuaram na Escola Frei Anselmo, situada na comunidade de Linha Floresta, no interior de Selbach, um município do norte do Rio Grande do Sul, durante a Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985). O texto, além da introdução e das considerações finais, apresenta três seções: percurso teórico e metodológico das fontes orais; história da comunidade e da escola rural; e narrativas de professores de uma escola rural (1964-1985).
Percurso teórico e metodológico das fontes orais
Esta pesquisa levou em conta o conceito de história como uma realidade passada, idealizada a partir do registro documental, da apreciação de fontes, da História Oral e da escrita narrativa. Além disso, concebe a memória como componente essencial para o historiador, sendo “[...] conduzida pelas exigências das comunidades para as quais a presença do passado no presente é um elemento essencial da construção de seu ser coletivo” (Chartier, 2009, p. 21).
A história cultural, nesta investigação, contemplou a memória cultural. Desse modo, a memória, não sendo história, atua desconstruindo e reestruturando o passado, como destacam Souza e Grazziotin (2013). A memória aqui é vista como uma estrutura social coletiva que resulta do relacionamento, da opinião e dos papéis sociais dos sujeitos no mundo. Portanto, a memória é coletiva, constituindo-se no convívio entre os sujeitos de uma comunidade de memórias; por seu intermédio, o indivíduo mostra sua posição individual acerca dos fatos significativos (Souza, 2012).
O que confere aparência ao vivido e ao conhecimento dos seres humanos são as narrativas que eles efetuam desse vivido e dessa prática. A narrativa não é, assim, apenas o conjunto simbólico que os sujeitos possuem para expressar o sentido de sua vivência: “[...] o narrativo é o lugar onde a existência humana toma forma, onde ela se elabora e se experimenta sob forma de uma história” (Delory-Momberger, 2012, p. 40). Dessa maneira, tais narrativas, segundo Cunha (1997), estão sendo utilizadas como método de investigação e metodologia formativa.
Ao encontro disso, Moraes (2004, p. 170) enfatiza que “[...] a narrativa não é um simples narrar de acontecimentos, ela permite uma atitude reflexiva, identificando fatos que foram, realmente, constitutivos da própria formação”. Nesse sentido, compartilhar histórias de vida possibilita, para quem conta a sua história, analisar e examinar um percurso, percebendo o sentido e as diferenças desse caminho trilhado e reaprendendo com ele. E, para quem compreende (ou lê) aquilo que é compartilhado, a narrativa possibilita entender que a sua história se entrecruza de alguma maneira com aquela narrada.
A narrativa de si faz com que entremos em territórios, interpretações e sentidos estruturados sobre diversos aspectos da vida, incluindo os percursos, os processos formativos, a docência e as aprendizagens criadas a partir da experiência. Por conseguinte, introduz o professor em um “[...] processo de investigação/reflexão dos seus registros” (Oliveira, 2006, p. 51).
Assim, como estratégia metodológica, recorreu-se à História Oral pela sua relevância para o estudo do tema em questão, já que “[...] desvendar as marcas e os significados da inclusão/exclusão nesse cenário escolar privilegiado pela memória é tarefa instigante e necessária para a escrita da escola” (Demartini, 2005, p. 23). Para que essa construção do objeto científico seja fomentada, desde a coleta dos relatos até a análise dos dados, torna-se significativo apurar, pelo menos parcialmente, de que forma o “[...] pesquisador pode auxiliar o pesquisado a expressar a sua vida, a entregar um pouco da riqueza dessa mina de ouro que é a sua experiência humana vivida” (Marre, 1989, p. 106).
Como justifica Thompson (1992), o emprego de fontes de outra natureza e o cotejo dessas fontes proporcionam uma riqueza de informações que, perante a pesquisa e a teoria aplicada, permite elaborar com mais densidade o objeto investigativo. Nesse sentido, Thomson (1997, p. 68) recorda que, seguindo a regra básica segundo a qual o bem-estar do entrevistado vem sempre antes dos interesses da pesquisa, “[...] as entrevistas que exploram a natureza e os processos de afloramento de lembranças confundem as fronteiras dos relacionamentos dentro da História Oral”. Logo, uma entrevista que suscita memórias reprimidas e que às vezes se aproxima de uma vinculação terapêutica pode ser satisfatória para o entrevistador, mas inconveniente para o entrevistado.
Na História Oral, o documento essencial é a narrativa, a qual, a partir de técnicas e estimativas, é sistematizada pelo pesquisador; por conseguinte, o rigor ético do historiador, no procedimento, sistematização e construção das narrativas, concebe novas formas interpretativas para o trabalho histórico (Amado & Ferreira, 2002). Desse modo, para Joutard (2002), é preciso estabelecer o ponto até onde o historiador pode lançar suas interrogações sobre a intimidade dos sujeitos. Essa condição se relaciona diretamente com a importância da pesquisa histórica e a finalidade das questões elaboradas. Desse ponto de vista ético, decorre a qualidade da entrevista.
A entrevista é uma técnica relevante que possibilita o desenvolvimento de uma estreita relação entre as pessoas. Trata-se de uma forma de comunicação que indica como a informação é noticiada de uma pessoa a outra, sendo o método mais frequente no trabalho de campo e possibilitando ao pesquisador coletar informes contidos na conversa dos atores sociais. De acordo com Souza (2015, p. 46), “[...] as narrativas ganharam vida à medida que se iniciaram os diálogos entre entrevistador e entrevistado, observando que o entrevistador deve desenvolver a capacidade de ouvir atentamente e de estimular o fluxo de informações por parte do entrevistado”.
Rousso (2002), por sua vez, recorda que um indivíduo que conversa espontaneamente acerca de seu passado, que seja entrevistado por um historiador, fará isso a partir de sua apreciação do momento sobre os fatos narrados. Além disso, é preciso considerar que “[...] realizar o diálogo com os sujeitos em ambientes que favoreçam a imersão no passado pode ser muito positivo, pois a casa, o ambiente em que se vive reflete uma personalidade” (Bonazzi-Tourtier, 2002, p. 236).
Assim, após a realização das entrevistas neste estudo, procedeu-se à etapa de escuta e transcrição dos testemunhos gravados, procurando registrar gestos e sentimentos, bem como trechos mal-entendidos, particularidades da abordagem qualitativa. Ademais, teve-se o cuidado de utilizar nas transcrições uma pontuação que representasse a narrativa como documento para análise. Os registros de campo foram fundamentais nesse momento, comunicando nomes e datas e assimilando o movimento interno das memórias (tempo, organização e disposição das narrativas), já que ‘memória puxa memória’ (Bosi, 2004). Além disso, seguindo o que determina o Comitê de Ética em Pesquisa da UNISINOS os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
O grupo social é composto por cinco sujeitos, todos do gênero masculino, que atuaram como professores na Escola Estadual de Ensino Fundamental Frei Anselmo e representam o conjunto de narrativas empregadas neste estudo, as quais foram elaboradas a partir de memórias coletadas ao longo da pesquisa (realizada entre março e dezembro de 2019). Optou-se por utilizar nomes fictícios para preservar a identidade e não expor a opinião de nenhum dos docentes, os quais estão aposentados no momento, com idade que varia entre 70 e 86 anos, e trabalharam cerca de 30 anos nas séries finais do Ensino Fundamental (quinta a oitava série).
Neste estudo, evidenciam-se os debates do uso das narrativas como concepção investigativa para o estudo da História da Educação, tendo como referência as fontes orais. A partir disso, definiu-se um roteiro de questões com foco nas histórias e narrativas de professores da Escola Frei Anselmo ao longo da Ditadura Civil-Militar (1964-1985). Foram exploradas as seguintes categorias de análise: a) fatos que marcaram a trajetória docente; b) relação entre professor, aluno e comunidade escolar; e c) lembranças da Ditadura Civil-Militar no ambiente de ensino.
História da comunidade e da escola rural
Selbach, um município brasileiro situado no norte do Rio Grande do Sul, foi criado pela Lei nº 5.036, de 22 de setembro de 1965. O município é constituído pela sede e pelas comunidades de Bela Vista, Passo da Areia, Linha Floresta, São Pascoal, Santa Isabel, Arroio Grande, Santa Teresinha, Passo do Padre e Linha Cristal, apresentando uma população estimada de cerca de cinco mil habitantes. Com a mecanização da agricultura, a região sofreu uma diminuição da população rural e um aumento das propriedades (Barth, 2022).
Entre 1905 e 1910, formou-se o núcleo inicial da colonização de Selbach. Com pequenos lotes, divididos em meio à floresta densa, os agricultores iniciaram o povoamento e o trabalho rural. Depois de abrir clareiras, tanto em torno de barracas quanto dentro e embaixo das carroças que serviam de moradias, surgiram as primeiras plantações, cujas mudas e sementes foram trazidas das terras de origem. Descendentes de alemães, vindos de São Leopoldo, Montenegro, São Sebastião do Caí, Roca Sales, Estrela, Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul, iniciaram o trabalho nos lotes, a partir do sistema de pequenas propriedades. Esses colonos passaram a produzir milho, feijão, trigo, mandioca e batata (Konrad et al., 2002).
Em 1910, os próprios imigrantes abriram uma estrada de Selbach até Linha Floresta para tomar posse das terras que haviam comprado. Os primeiros colonos vieram com cargueiros de cavalos. Durante as refeições e à noite, permaneciam em grupos para proteger-se dos animais selvagens. Dormiam no chão, embaixo das carroças, e faziam a comida em panelas de barro, pois não tinham construído ainda suas casas (Barth, 2022).
Em 1917, foi construída a primeira escola comunitária em Linha Floresta. Até então, todas as escolas eram construções simples de madeira e contavam com uma única sala de aula, abrigando cerca de cem alunos e um único professor, que lecionava do primeiro ao quinto ano. Por ordem do Frei Anselmo, vigário de Selbach na década de 1930, foi estabelecida a exigência de que “[...] a cada sete quilômetros houvesse uma comunidade com capela e escola” (Prediger et al., 2017, p. 17). No final dos anos 1950, foi construída a primeira parte da atual escola existente no local. Essa escola, no início, foi chamada de Escola Área Real e depois Escola Rural Santa Inês, nome que fazia referência à capela da comunidade.
É importante destacar a figura do docente na comunidade de Linha Floresta, na década de 1960, quando o professor era considerado uma pessoa relevante da comunidade. Nas palavras de Seger (2002, p. 45), “[...] as pessoas em geral respeitavam-no muito e atribuíam-lhe autoridade máxima sobre seus filhos, exigindo, inclusive, que usasse do castigo quando necessário”. No dia a dia, o docente utilizava sua autoridade, castigando os alunos com o uso da régua, do ajoelhar no milho, do ficar contra a parede por horas, do ficar sem recreio e de inúmeras outras formas de se impor. Muitos castigos eram justificados por fatos que aconteciam fora da escola. Cabe ressaltar, ainda, que o professor tinha duas funções definidas na comunidade: a primeira era dar formação aos discentes; e a segunda era suprir a falta de um padre, sendo, por isso, o responsável direto pelos cultos aos domingos, pela catequese e pelas aulas de religião.
Nos anos 1960, nas cidades rurais de colonização alemã, os alunos apresentavam dificuldades de aprendizagem, tanto por sentirem falta de acompanhamento dos pais em casa quanto por não saberem falar o idioma português, uma vez que, fora da escola, falava-se somente o alemão. De acordo com Seger (2002, p. 47), “[...] o uso da língua alemã interferiu em muitos alunos num bloqueio na aprendizagem, principalmente na disciplina de Português, onde trocavam com muita frequência as letras t e d, p e b, tanto na escrita como na fala”.
A partir da década de 1970, a Escola Frei Anselmo passa por importantes mudanças. Em 1971, foram construídos uma secretaria, sanitários e um pavilhão de festas. Nessa época, funcionavam na Escola o curso supletivo e a preparação para o curso ginasial. Em 1972, a Escola passa a ter a sexta série, em 1973, a sétima série e, em 1974, a oitava série. Isso contribuiu para a vinda de novos professores, principalmente de municípios do norte do Rio Grande do Sul. Em 1977, a Escola muda de nome depois de um plebiscito, passando a se chamar Escola de 1º Grau Frei Anselmo, em homenagem ao primeiro pároco de Selbach. Com a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Escola passa a ser denominada Escola Estadual de Ensino Fundamental Frei Anselmo (Prediger et al., 2017).
Narrativas de professores de uma escola rural (1964-1985)
A educação rural, instituída no início do século XX, tem sua história vinculada ao mundo da produção capitalista dos ambientes urbanos. Tais políticas atuavam de forma residual, apresentando o que sobrava de propostas do mundo dos escolarizados das cidades, “[...] em versões de projetos, campanhas e palavras de ordem que vinham com suas intenções demarcadas pelo desejo de conter a população rural nos seus lugares de origem, ainda que sem condições dignas de neles sobreviverem” (Cavalcante, 2010, p. 554). Com efeito, havia poucas escolas que efetivamente funcionavam como tal no interior do Brasil; eram locais sem nenhuma condição de acolher suas crianças para uma aprendizagem minimamente qualitativa.
Nas décadas de 1960 e 1980, a escola rural era um espaço de trocas, convívio, interpretações, resistências e adaptações. Nela, diversos elementos se relacionam em meio ao manejo de uma série de instrumentos regulatórios. Todavia, os seus agentes são participantes: eles perguntam, demandam, apropriam-se e modificam o que lhe é imposto, sendo capazes, com isso, de entender, conforme destaca Reis (2010, p. 56), “[...] um jogo social complexo, feito de circulação, negociação, apropriação. As ações são tratadas como forças de criação e resistência. Os agentes sociais são considerados competentes na negociação dos conflitos em que estão envolvidos”.
Em cada conjuntura histórica, as representações da escola rural são estruturadas a partir dos indivíduos envolvidos, no que diz respeito tanto ao processo de ensino e aprendizagem quanto à imagem social, operando como um espaço fundamentado, capaz de gerar sujeitos e integrá-los à sociedade. Assim, a recordação do passado por meio da narrativa histórica possibilita revelar aspectos que estão preservados na lembrança dos documentos e dos depoimentos (Pesavento, 2004).
O problema de formar docentes para trabalhar nas escolas rurais era explícito. Segundo Costa (2016, p. 28), como “[...] o número insuficiente de pessoas habilitadas pelas escolas normais rurais não atendia à demanda, para amenizar a problemática, o Estado contratou pessoas, mesmo sem ter formação na área”. No Rio Grande do Sul, os cursos de férias de preparação para a docência no contexto rural eram necessários para os profissionais da Educação.
A escola rural tornou-se um local de fronteira. Situada na zona rural, representava, para as comunidades do campo, “[...] o símbolo da modernidade e das letras, todavia era também, para grande parte das elites brasileiras, a representação do atraso e do passado” (Assis & Lima, 2019, p. 5). Imagem híbrida de uma escola que reconhecia a identidade de onde estava situada e integrava os objetivos que lhe eram determinados pelas elites e governantes, porém também se apoderava dos significados que lhe eram concedidos por aqueles que a frequentavam. Uma identidade diversificada que transcorre a história das escolas rurais e dos alunos do meio rural.
Em relação aos fatos que marcaram a trajetória docente, o professor Alberto destaca a condição do trabalho docente, a remuneração aquém da carga horária e a atuação em disciplina sem qualificação profissional, mencionando que os alunos eram filhos de trabalhadores rurais e urbanos:
Neste período [década de 1970] abriu a RS 223, e surgiu o asfalto. Tinha entre 15 e 20 famílias que trabalhavam no DAER morando em Selbach. Estes funcionários foram para Linha Floresta estudar. Eram pais e jovens que foram estudar na 5ª, 6ª, 7ª e 8ª série. O aspecto negativo que fui contratado para dar uma disciplina [10 horas] e acabei trabalhando mais 10 horas com a disciplina de Geografia sem ter habilitação durante um ano. Recebi por apenas 10 horas.
Ressalta-se que, a partir da década de 1970, houve um investimento significativo dos governos militares em várias rodovias do Brasil. Com isso, muitos trabalhadores dessas rodovias e seus familiares aproveitavam para estudar nas escolas rurais com o objetivo de qualificar a mão de obra e buscar novos conhecimentos. O professor Carlos salienta que, na sua trajetória como docente da Escola Frei Anselmo, um fato que o marcou foi a valorização da escola, assim como a dedicação do diretor:
[...] a dedicação do diretor e o esforço na preservação para deixar a escola sempre em destaque, com os enfeites e estatuetas fabricadas por ele para deixar a “escola linda”. O diretor não tinha horário, a sua dedicação era manhã, tarde e noite. O transporte era feito de Kombi e muitas vezes atolava e tinha que empurrar por causa do barro.
A partir de meados dos anos 1970, o município de Selbach implanta o transporte escolar gratuito, o que favorece o aumento da presença dos alunos nas escolas rurais, principalmente nos dias de chuva e de frio rigoroso, contribuindo para a melhoria do ensino e da aprendizagem. O professor Ricardo lembra diversos fatos que marcaram a sua trajetória docente, com destaque ao incentivo ao esporte:
A escola sempre foi referência na região dos esportes. Marcou para mim e todas as pessoas da região. Aqui tinha uma integração regional esportiva [Seminário de Esportes na década de 1970]. Principais modalidades: futebol, vôlei, atletismo, handebol e basquete. Reunia 40 escolas da região. Esses jogos aconteciam na época do regime militar. Teve um ano que reuniu 1.280 alunos, sendo 44 times de handebol. No atletismo teve um ano que teve mais de 800 atletas em várias modalidades. Nesta época [década de 1970] fazia faculdade e dava aula. Pegava uma Kombi cheia de colegas para apitar os jogos. Também, fazia as fogueiras de São João nas aulas de Educação Física. Os alunos eram do interior e sempre estavam à disposição para trabalhar.
Uma questão importante é a valorização da Educação Física durante o período da Ditadura Civil-Militar. Acredita-se que o jovem envolvido no esporte estaria longe das ruas para protestar contra as atrocidades e os crimes praticados pelos militares que estavam no poder. Além disso, um dos objetivos era tornar o Brasil uma potência no esporte mundial. O professor Lucas recorda a visita de autoridades públicas na Escola Frei Anselmo:
Em 1973, consegui trazer o secretário estadual de educação do Rio Grande do Sul na Escola Frei Anselmo. Também, trouxe o governador do Estado para inaugurar a parte nova da escola em meados da década de 1970. Fui para Porto Alegre para pedir autorização para liberar a 6ª, 7ª e 8ª séries e consegui através do secretário de educação Coronel Costa Rodrigues. Nesse período, foi feita a Feira de Ciências e os Jogos Olímpicos na escola na visita do governador. Também, auxiliava na merenda e na limpeza da escola.
A Feira de Ciências acontecia anualmente e constituía o momento que a comunidade escolar costumava visitar a Escola Frei Anselmo. Durante meses, cada turma, com a coordenação de um professor, estudava determinado assunto para apresentar para os colegas, professores e familiares. Inclusive as principais autoridades municipais e estaduais costumavam visitar a escola rural nesse dia. O professor Mateus ressalta que desenvolveu suas aulas em função da ‘interpretação de mundo e expressão’:
Desenvolvi muito o canto, associado ao desenho. Sempre entendi que o aluno tem que interpretar e ler para saber se expressar. Trabalhava muito a redação. Quando o aluno desenvolvia a redação, tinha alcançado o desenvolvimento do mundo. Os alunos se integravam nesta responsabilidade de saber escrever, tanto que ficavam dois períodos fazendo a redação e não conseguiam terminar no absoluto silêncio. Com esse modo de dar aula, criei inimizades entre colegas, porque o aluno e a avaliação eram feitas de forma diferente e isto cativava o professor. Mostrar o aluno à leitura, lendo o livro na frente dos alunos e fazendo entonação da voz, como as coisas iam acontecendo. Tanto que os alunos pediam sempre para prosseguir a leitura. Também, se incentivava os alunos a lerem os livros nas aulas e em casa.
De acordo com os relatos do professor Mateus, é fundamental incentivar a leitura e a escrita. Como eram alunos de uma escola rural, muitas vezes os pais tinham baixa escolaridade, e a maioria havia estudado até o quarto ano do ensino fundamental. Em razão disso, os familiares não conseguiam ajudar os filhos nas tarefas escolares. Desse modo, a importância do docente no processo de ensino e aprendizagem torna-se ainda maior. Nas comunidades rurais, o professor era uma referência, sendo, por isso, respeitado e valorizado pela comunidade.
Nesse cenário, ressalta-se a relevância da memória, que, para Almeida (2009, p. 215), “[...] vai muito além da mera capacidade de lembrar os fatos passados, ela é como a ponta do iceberg”. Na atualidade, muitos historiadores concordam que a memória é um modo de preservar a história viva e, por esse motivo, utilizam a História Oral como metodologia da pesquisa, entendendo que com ela conseguem encontrar fatos que não estão presentes nem mesmo em documentos históricos e, inclusive, compreender como era o pensamento de pessoas que viveram em determinado período. A História Oral traz à tona sutilezas do passado que se acham incompreensíveis em outras formas de documentação.
No que diz respeito à relação entre professor, aluno e comunidade escolar, o professor Carlos recorda que essa relação era de respeito e admiração:
Qualquer assunto cativava os alunos. Eu era muito amigo fora da sala de aula dos alunos. Tinha uma percepção que, quando mexia a cadeira, pegava um assunto de interesse dos alunos e depois recomeçava a aula. O professor era muito bem-visto e com muito respeito e com o apoio total e irrestrito da comunidade. Nesta época [década de 1970], os alunos não revelavam se aprontavam na escola, porque apanhavam em casa; por isso tinha mais respeito. Hoje em dia, os pais não apoiam os professores, não participam da escola. Naquele tempo, os pais eram muito presentes na escola. Nas integrações, os pais ajudavam a organizar a escola.
Percebe-se, assim, que o professor era considerado uma autoridade, exercendo um poder irrestrito na escola, e, por isso, quando tinha qualquer festa no interior, sempre era convidado. Os pais estavam presentes e, inclusive, apoiavam financeiramente a Escola Frei Anselmo, uma vez que, a partir da década de 1970, no município de Selbach, a agricultura começa a se mecanizar por meio da introdução de tratores no plantio das culturas de inverno e verão, o que contribuiu para o aumento da renda familiar. O professor Ricardo recorda que, na época da Ditadura (1964-1985), os professores viviam na comunidade rural:
A escola está ruim na atualidade, porque os pais não dão educação para os filhos. Antigamente era um clima de respeito. Éramos professores da comunidade. O professor era um elemento participativo. Nascemos, crescemos e vivemos na comunidade. Estava integrado à comunidade. Hoje em dia, o professor vem, dá aula e vai embora. Naquela época morávamos aqui [comunidade de Linha Floresta]. Conhecia todas as famílias. Vivia a mesma realidade das famílias, sabia dos problemas de cada um.
Entre as décadas de 1960 e 1980, diversos professores da Escola Frei Anselmo costumavam morar na comunidade de Linha Floresta. Várias famílias doaram materiais e ajudaram a construir as casas dos docentes com o objetivo de manter o professor na comunidade e na escola, o que acabou colaborando para criar vínculos com os moradores locais. O professor Lucas salienta que havia muito respeito entre os professores e os alunos:
Não como hoje em dia, que o aluno não respeita mais os professores. Os alunos eram filhos dos colonos, e o respeito e a educação vinham de casa. As famílias sabiam educar os seus filhos. O professor era tudo para a comunidade, exercia liderança e era respeitado pelos pais, porque antes da escola se tornar estadual, pagavam o seu salário com o dinheiro da produção agrícola.
Os alunos eram, em sua maioria, filhos de pequenos agricultores. Como foi lembrado pelo professor Lucas, antes de a Escola Frei Anselmo ser estadual, era uma instituição comunitária, de modo que as famílias pagavam o salário dos docentes, além de bancarem as outras despesas escolares, uma vez que a instituição representava o elo de ligação da comunidade rural. O professor Alberto ressalta que o docente era respeitado na comunidade pelo seu papel na formação da cidadania sustentada com base na ordem e na disciplina:
Era muito respeitado e muito honrado. A relação entre aluno e professor era de muito respeito. As famílias apoiavam o professor sobre a ordem e a disciplina. A direção chamava os pais quando havia problema de disciplina. O importante era a formação de cidadania. A aprendizagem neste período não era o principal. O principal era a formação do caráter e da personalidade.
Como lembrado pelos docentes entrevistados, ao longo da Ditadura brasileira, a prioridade no ensino não era a qualidade, mas a formação de um cidadão que não questionasse o regime vigente e que colaborasse com os militares, os quais exerciam o poder de forma autoritária, reprimindo qualquer manifestação e perseguindo os opositores do regime ditatorial em prol da obediência. O professor Mateus destaca que, no decorrer dos anos 1970, em um contexto de ‘educação parada’, a figura do professor foi sendo minimizada, sem aquela importância que deveria ter:
Tomando como fatores, como a desvalorização do poder público, a “invasão das inovações”, o professor não teve mais a oportunidade de desenvolver aperfeiçoamentos. A sua atuação era exclusivamente voltada para o desenvolvimento de conteúdo, rigorosamente imposto. O contexto social criou um aluno cada vez mais ativo e, por outro lado, um professor estagnado. Isso trouxe uma educação parada. Frente aos pais, os professores perderam muito prestígio, porque, com o decorrer do tempo, os pais aumentaram o poder econômico e os professores ficaram apenas se mantendo na vida. Houve uma troca de funções. Era uma relação de pai com filho, em relação com meus alunos. A amizade foi o que de melhor ficou. Saber lidar inclusive com os problemas familiares dos alunos, manter o contato com os pais. Pegava o carro e ia falar com os pais nas suas casas em casos extremos.
Ao longo da década de 1970, o poder aquisitivo do professor começa a diminuir, e os pequenos agricultores iniciam o processo de mecanização das lavouras. Nesse período, os conteúdos escolares eram impostos, ou seja, as escolas rurais recebiam os assuntos prontos, e o professor não tinha liberdade para trabalhar. A figura do docente passa a perder prestígio tanto pelo seu empobrecimento financeiro e cultural quanto pelo fato de ser alguém que tinha como função exclusiva passar os conteúdos, sem qualquer interação, não podendo se posicionar politicamente.
As narrativas, de acordo com Amado (1995), expressam um cenário que é reformulado à luz do presente ao mesmo tempo que é projetado no futuro. A esse respeito, Stephanou (2011) enfatiza que contamos e mostramos o que entendemos ter vivido, o que supomos ter sentido e o que idealizamos ter experimentado. A memória, por conseguinte, constitui-se em uma dentre muitas oportunidades interpretativas para examinar esta realidade investigativa. A memória é formada de recordações e esquecimentos, pois o processo de narrar pressupõe escolhas entre as memórias do passado que, por algum motivo, são privilegiadas por quem lembra. Quando memorado, o passado surge compreendido a partir de uma lente do presente.
Sobre as lembranças da Ditadura Civil-Militar no ambiente escolar, o professor Carlos recorda que, nesse período de repressão política, não se falava sobre política na escola por respeito e medo, referindo que os ‘agitadores’ eram mandados embora. Refere também pouca corrupção devido à penalização:
Esse negócio que alguns foram mandados embora era porque eram agitadores. Não se falava de política na escola, porque era tudo imposto. Nem a comunidade e nem os alunos criticavam a Ditadura, porque tinha respeito e medo de falar contra. Na época da Ditadura, se alguém roubasse merenda, seria morto. Para o povo no geral, a Ditadura foi boa, a agricultura cresceu, e as pessoas começaram a comprar carros.
De acordo com as narrativas do professor Carlos, era ‘tudo imposto’ durante o período ditatorial, não havendo liberdade de expressão, razão pela qual quem tinha coragem de criticar o regime era perseguido e considerado subversivo. O professor Lucas lembra que não existia democracia e que os próprios militares escolhiam os presidentes do Brasil, ressaltando como pontos positivos o desenvolvimento da agricultura e a percepção de haver pouca corrupção:
A Ditadura teve partes boas e ruins. Não existia democracia, os militares mais graduados escolhiam os presidentes do Brasil. A Ditadura foi boa para a agricultura, no período que as lavouras se mecanizaram, quando os agricultores adquiriram os primeiros tratores para fazer o plantio da soja, do milho, do trigo. Hoje o país virou uma roubalheira. Tinha menos corrupção entre os militares do que os políticos atuais. Hoje não se sabe onde vai o dinheiro.
De acordo com as narrativas do professor Lucas, não existia democracia, o que poderia indicar que a corrupção não seria conhecida e que os militares contaram com o apoio da elite política e financeira do país para se manterem no poder. Para a agricultura, segundo os relatos, a Ditadura foi positiva em virtude da mecanização das lavouras e dos financiamentos que permitiram aos colonos adquirir os primeiros tratores para investir no plantio da soja, do milho e do trigo. O professor Mateus enfatiza que o tema da Ditadura não era citado e muito menos trabalhado em sala de aula, pois a ameaça que pairava no ar era a do comunismo:
Algumas características da Ditadura faziam parte do exercício da educação. Por exemplo, a matéria “Educação Moral e Cívica” era voltada à rigidez de comportamento. Costumava trabalhar com temas ligados à pátria, tentando inclusive mostrar que a Ditadura era um regime democrático e que as atitudes tomadas eram sempre em favor do povo brasileiro, contra as ameaças do comunismo. Até o próprio aluno, dentro da sala de aula, não tinha toda a liberdade.
Todavia, os mecanismos da Ditadura estavam presentes no ambiente escolar brasileiro. A disciplina de “Educação Moral e Cívica” objetivava moldar o comportamento das pessoas e mostrar as vantagens do governo militar, tais como afastar o Brasil de qualquer ameaça de comunismo e manter a ordem e a disciplina. O professor Ricardo recorda que, nessa época, ninguém ousava falar mal do governo:
Não passava na cabeça falar mal da Ditadura. Na década de 1980, se começou a falar mal da Ditadura. Na sala de aula, não se falava de política nacional. Na presidência eram os militares que indicavam os presidentes. Aqui na comunidade não se falava das Diretas Já. O pessoal não falava da situação nacional. Naquele tempo a agricultura estava muito bem. Foi nesse período que teve os anos de ouro da Ditadura. Naquela época os alunos tinham que saber quem eram os ministros. Os próprios concursos exigiam o nome dos ministros. A Educação Física colocava os alunos em forma. Costumava fazer a chamada dos alunos.
O Diretas Já foi um movimento popular que teve como objetivo retomar o direito à escolha do presidente da República por meio do voto. Foram realizados vários comícios em diversas regiões do Brasil que lutavam pelo retorno da democracia, depois de duas décadas de Ditadura (1964-1985). O professor Alberto destaca que, após a ‘Revolução de 1964’, o Brasil passou a ter mais controle, fiscalização e receio:
Era tudo muito presente. Como professor, trabalhava as greves, a anarquia das grandes cidades, desordem, principalmente provocada por greves. Desordem nas cidades no sentido das arruaças. Tenho lembranças que foi um período agitado, que acompanhava as movimentações das forças armadas. Lembro que um ônibus do quartel de Cruz Alta que tinha cidadãos de Selbach caiu dentro de uma lagoa entre Carazinho e Não-Me-Toque, na única estrada asfaltada de toda região. Lembro que faltava ordem no país. Também foi um país agitado, e depois da Revolução tinha mais controle. Depois da Revolução, teve muito controle, fiscalização e receio. O governo militar editou a reforma de ensino [1971] com maior valorização da educação, tornando o ensino obrigatório. Trabalhei com as disciplinas de EMC e OSPB.
É importante ressaltar que a expressão ‘Revolução de 1964’ era utilizada pelos militares e simpatizantes da Ditadura Civil-Militar brasileira. O país viveu um momento de autoritarismo e perseguições. Diversos críticos da Ditadura foram perseguidos, presos, torturados e mortos. A grande maioria da população não sabia dos excessos cometidos pelos militares que estavam no poder, seja pela falta de informação, seja pela propaganda oficial, que afirmava que o ‘Brasil vivia numa democracia’. Essa questão estava presente no ambiente escolar, onde vários livros de Educação Moral e Cívica afirmavam que o país era uma nação democrática. Diversos professores foram perseguidos e mortos, porque tiveram a coragem de criticar os crimes praticados pela Ditadura brasileira.
Halbwachs (2006) pondera que os entrecruzamentos e as recorrências de memórias são fornecedores de uma potencial verdade que se sustenta pelas recordações dos membros do grupo. A esse respeito, Harres (2004, p. 152) menciona que “[...] o processo de rememoração está firmado em uma perspectiva centrada na subjetividade, como uma modalidade interior e privada da experiência do tempo que se constrói a partir da interação entre as pessoas”. A memória coletiva é geralmente plural, formada por recordações do passado que ultrapassam a individualidade e partilhada socialmente no âmbito da vida comum. Encontra-se apoiada na história individual e vai aflorando conforme são realizadas as conexões e as ligações do que é manifesto nas lembranças (Heersmink, 2017, 2018).
Em linhas gerais, o período da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) foi marcado por perseguições, torturas e mortes aos opositores do regime. Diversas pessoas que exerciam influência no cenário nacional tiveram de deixar o país. Não existia liberdade de expressão. Conforme consta nos excertos das falas dos docentes da Escola Frei Anselmo, ‘era tudo imposto’, não existindo qualquer possibilidade de diálogo. Por outro lado, a agricultura modernizou-se, contribuindo para o aumento da produção agrícola, e os grandes centros urbanos, com a expansão das rodovias estaduais e federais, foram ligados ao interior do Brasil.
Considerações finais
Nossa vida é uma variação entre o que esquecemos e o que decidimos recordar. Essas lembranças ficam preservadas dentro de nós como tesouros ou cicatrizes, formando o que chamamos de ‘memória’. Damatta (1986, p. 45) diz que “[...] há um tempo lembrado, que vira memória e saudade e um tempo simplesmente vivido, que vai e morre na distância do passado”. A memória busca resgatar o passado para ajustar o presente e o futuro; portanto “[...] devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (Le Goff, 1992, p. 477). Hoje em dia, a relevância que conferimos a algo relatado não é a mesma que destinamos a algo escrito, ainda que Pollak (1989) ressalte que não existe diferença entre a fonte oral e escrita, porque ambas são parte de uma memória estruturada, que pode ou não ser correta.
Narrativas instituídas em conversas com os entrevistados, quando inseridas no trabalho histórico, apontam a expectativa de catalogar cenas para a posteridade e dela poder se falar algo. A memória também oferece implicações para lembrar o contexto da rememoração: “[...] os narradores não somente escolhem o que vão rememorar e contar a você; eles também participam, negociando o contexto da rememoração. Narradores também têm ideias específicas sobre o que constitui uma entrevista” (Errante, 2000, p. 168).
As representações sobre os sujeitos do meio rural foram essenciais para validar e justificar determinadas atitudes institucionalizadas nesses ambientes de ensino pelos governos militares entre as décadas 1960 e 1980. Em contrapartida, tais representações apresentam e, simultaneamente, ajudam a constituir o papel híbrido da escola rural: de um lado, espaço de uniformização e civilização do homem do campo e, de outro, devido às diversas adequações e ações dos sujeitos, local de resistência e de cultura. Por consequência, essas representações, de acordo com Chartier (2002), inscrevem-se em um campo de debates e de lutas por intermédio das quais os sujeitos se inserem na cena social e alteram a realidade ao mesmo tempo que modificam a si mesmos.
Ao ter contato com as narrativas desses docentes, foi possível entender como constituíram suas identidades, seus conhecimentos e seus relacionamentos pessoais e profissionais e como trabalhavam com as suas vivências na zona rural, retirando delas histórias para constituir a docência. Além do mais, tais relatos possibilitaram compreender o processo formativo por meio das práxis cotidianas, sociais, pedagógicas e docentes, bem como as dificuldades que enfrentavam para desenvolver o trabalho docente nas classes finais do Ensino Fundamental (quinta a oitava série).
Por fim, ressalta-se que, nas narrativas dos professores da Escola Frei Anselmo relativas ao período da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985), fica explícita a relação de respeito que existia entre os docentes e a comunidade escolar. Os pais eram presentes na escola, ajudando a mantê-la inclusive com os próprios recursos financeiros. Em contrapartida, os mecanismos ditatoriais marcavam as escolas do meio rural, de forma que os alunos não tinham liberdade para se expressar, e o tema e as circunstâncias da Ditadura não podiam ser trabalhados em sala de aula, pois os conteúdos já vinham prontos. Por isso, o professor, sem autonomia, atuava em consonância com o regime e com liberdade restrita, privando-se de outras abordagens de cunho social, político, econômico e educacional condizentes com a perspectiva de uma educação democrática.