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Revista de Educação Pública

versão impressa ISSN 0104-5962versão On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.28 no.69 Cuiabá set./dez 2019  Epub 15-Jun-2020

https://doi.org/10.29286/rep.v28i69.8508 

Cultura Escolar e Formação de Professores

Os cantos estão arrumados. E agora, professora? O faz de conta com crianças da educação infantil

The corners are organized. And now, teacher? The make-believe of early children’s education.

Leila Orssolan ABOUD1 

Heloisa Helena Oliveira de AZEVEDO2 

1Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Possui graduação em Pedagogia e em Letras Possui vasta experiência na formação de professores, propondo o estudo da prática pedagógica cotidiana à luz dos aportes teóricos que sustentam a construção de saberes que têm como premissa o trinômio ação-reflexão-ação. Atua no Magistério Público, tendo experienciado os diversos cargos da carreira do Magistério, o que lhe garantiu a experiência necessária e o desenvolvimento de práticas inovadoras que visam à excelência na Educação de crianças e adolescentes. E-mail: leilaboud@uol.com.br.

2Professora/Pesquisadora Titular, em regime de dedicação integral, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Atua na linha de pesquisa Formação de Professores e Práticas Pedagógicas e integra o grupo de pesquisa Formação e Trabalho Docente. Possui mestrado (2000) e doutorado em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (2005), com estágio de doutorado em Formação de Professores de Educação Infantil no exterior, na Universidade de Aveiro/Portugal. E-mail: hhazevedo79@gmail.com.


Resumo

Este artigo é resultado de pesquisa acadêmico-científica, cujo objetivo centrou-se em conhecer o que professoras sabem e como organizam as situações defaz de contacom alunos de educação infantil. Apresentamos aqui a análise dos quatro eixos temáticos que emergiram das falas das professoras que participaram da pesquisa, tomando como fundamento a teoria histórico-cultural. Conclui-se que as professoras possuem conhecimentos gerais sobre a importância do faz de conta, acreditam que a diversidade de brinquedos garante a brincadeira, e que a ressignificação deles na escola deve apoiar-se na formação continuada, com foco na mediação docente para a promoção do desenvolvimento psíquico.

Palavras-chave: de professores; Educação infantil; Faz de conta; Prática pedagógica; Desenvolvimento psíquico

Abstract

This article is a result of academic-scientific research, whose objective was focused on knowing what teachers know and how they organize the situations of make-believe with students of early childhood education. Here, we present the analysis of the four thematic axes that emerged from the speeches of the teachers who participated in the research, taking as the basis the historical-Cultural theory. It is concluded that the teachers have general knowledge about the importance of make-believe, they believe that the diversity of toys guarantees the play, and the resignification of them in the school should be based on continuing education, focusing on teaching mediation to the promote of psychic development.

Keywords: Teacher Training; Childhood Education; Make-believe; Pedagogical Pratice; Psychic development

Introdução

Para melhor compreender a brincadeira de faz de conta na educação infantil no que se refere ao papel da professora e as aprendizagens que elas promovem às crianças, a pesquisa teve início com a revisão da literatura acadêmica sobre o tema, em especial pesquisas publicadas na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). As 21 pesquisas selecionadas para análise relacionavam-se à discussão acerca da compreensão do professor sobre o faz de conta e seu papel na brincadeira das crianças da educação infantil. As pesquisas foram lidas na íntegra, destacando como a brincadeira de faz de conta acontece na escola infantil e qual o papel dos professores na realização dessas brincadeiras.

De modo geral, as pesquisas analisadas revelaram variadas concepções sobre a brincadeira na escola, dentre elas: (i) A brincadeira é inata à criança, ou seja, já nasce com a predisposição para ela, e para isso precisa de liberdade para brincar, associando-a à espontaneidade, alegria, leveza em oposição às exigências do ambiente escolar; (ii) A brincadeira é uma estratégia para o ensino de conteúdos dos currículos da Educação Infantil, como matemática, alfabetização e outros, e (iii) O papel da professora na brincadeira é intervir nas questões de conflitos entre as crianças ou em perigos iminentes.

É importante ressaltar que este artigo é um excerto da pesquisa e está ancorado na importância do faz de conta e na organização dele pelas professoras que participaram da pesquisa. Apontamos como relevância da pesquisa a possibilidade de contribuição para o trabalho com o faz de conta na educação infantil, de modo que os professores compreendam a importância da organização intencional da brincadeira, planejando desafios que impulsionem as aprendizagens das crianças e ampliem suas experiências culturais e sociais.

Buscamos neste artigo evidenciar a brincadeira na escola, em especial o faz de conta como um recurso didático para promoção de aprendizagens, uma vez que, aparentemente, as professoras aproveitam os momentos nos quais as crianças estão brincando para realizarem outros afazeres. Dessa forma, o trabalho de pesquisa delimitou-se a estudar a brincadeira de faz de conta, cujo problema estava em conhecer em que medida os professores de crianças da educação infantil compreendem a brincadeira de faz de conta como um recurso didático-metodológico para a aprendizagem e desenvolvimento infantis na escola.

Por recurso “didático-metodológico entende-se a intencionalidade pedagógica na organização das situações de brincadeiras oferecidas às crianças, reconhecendo o faz de conta como sua atividade principal na educação infantil, ou seja, aquela que possibilita as mais importantes aprendizagens para o desenvolvimento das funções psíquicas, e que requer, para tanto, planejamento e mediação docentes nos momentos de brincadeiras.

A faixa etária das crianças que fizeram parte da pesquisa situou-se entre 2 e 5 anos de idade, porque, de acordo com Elkonin (2009), é a partir da aquisição da linguagem que as crianças são capazes de assumir diferentes papéis sociais na brincadeira de faz de conta, que vai ficando cada vez mais elaborada - a atividade principal3 na primeira infância.

O objetivo geral da pesquisa como um todo foi conhecer o que as professoras participantes sabem sobre a importância do faz de conta, como organizam e medeiam as situações de brincadeiras promovidas nas escolas de Educação Infantil de modo a promover aprendizagem e desenvolvimento às crianças. Este artigo foi elaborado a partir de quatro eixos temáticos que emergiram das falas das professoras que participaram da pesquisa: (i) As experiências que as crianças vivenciam; (ii) A influência das experiências alheias no faz de conta; (iii) A relação das crianças com os objetos da cultura, e (iv) As emoções das crianças nas brincadeiras de faz de conta.

Metodologia

Compreender o que as professoras4 sabem sobre a brincadeira e sua importância para as crianças da educação infantil e como propiciam os momentos de faz de conta é tarefa que implica ter acesso a uma gama variada de fenômenos, tais como: O tempo destinado à brincadeira, os espaços e materiais disponíveis para as crianças, a participação das professoras nessa brincadeira, o entendimento de cada professora sobre o desenvolvimento infantil, o nível de conhecimento teórico sobre a principal atividade da criança e como são organizadas as situações de brincadeira na rotina escolar.

Como se tratam de informações que perpassam a experiência, concepções que foram construídas ao longo da carreira, crenças, vivências e subjetividade das professoras, o tratamento do material empírico está apoiado em uma abordagem qualitativa de pesquisa. Nesse tipo de abordagem científica, o pesquisador assume uma evidente importância no processo da pesquisa, pois:

Os métodos sozinhos, quaisquer que sejam, não geram uma pesquisa de boa qualidade ou análises astuciosas. O que importa é o modo como os pesquisadores utilizam os métodos. [...] Um olhar aguçado, a mente aberta, o ouvido apurado e a mão confiante podem aproximá-lo do que você estuda e são aspectos mais importantes que o desenvolvimento de ferramentas metodológicas (CHARMAZ; MITCHEL, 1996 apud CHARMAZ, 2009, p. 31).

Charmaz (2009) ressalta o desafio que o pesquisador encontra ao elaborar uma pesquisa qualitativa, pois saber olhar, saber o que olhar e conseguir fazer as pré-análises ainda em campo para depois proceder às análises, nas suas minúcias, linhas e entrelinhas, requerem um sólido conhecimento teórico sobre o objeto de estudo da pesquisa.

O campo de pesquisa foi um Centro de Educação Infantil (CEI) de grande porte na cidade de Campinas. Os critérios para a escolha da escola foram o porte da escola e o fato desse CEI não fazer parte do bloco de Unidades sob a supervisão educacional da pesquisadora, a fim de minimizar sua influência na produção do material empírico. Cinco professoras de crianças, na faixa etária de 2 a 5 anos de idade, voluntariam-se para participar.

O material empírico foi produzido por meio da aplicação de um questionário com perguntas semiestruturadas para que as participantes tivessem liberdade para manifestar suas ideias sobre o assunto em pauta. A aplicação, a priori, de um questionário teve a intenção de conhecer o que as participantes pensavam sobre a brincadeira de faz de conta e como organizavam essas situações. A realização de um grupo focal foi a principal fonte de produção do material empírico da pesquisa e foi organizado de acordo com a conceituação de Gatti (2012) sobre o referido procedimento metodológico.

As respostas dos questionários foram tabuladas e serviram de base para a elaboração do roteiro do grupo focal. As participantes responderam nos questionários que consideram o faz de conta importante porque permite à criança a compreensão do mundo a partir da representação do cotidiano, a troca de experiência entre as crianças e adultos, o desenvolvimento da noção de tempo e espaço, a resolução de conflitos e a organização das emoções, o divertimento, como auxílio nas angústias e anseios das crianças e por permitir que ressignifiquem suas vivências.

Além disso, as participantes disseram que organizam os brinquedos por temas, às vezes com a participação das crianças, e deixam-nos guardados nos armários ou no ateliê. Relataram ainda que as crianças podem escolher o que brincar, diariamente. Com exceção de uma professora, as demais responderam que não participam das brincadeiras de faz de conta com as crianças para não tolher a espontaneidade delas.

Outras vezes, a participação das professoras dependia do convite dos pequenos. Ainda algumas participantes indicaram que observam a brincadeira das crianças, ora para incluir brinquedos pouco usados na brincadeira, ora para realizar a avaliação da aprendizagem. Ao responderem ao questionário, as professoras fizeram referência, também, a outras brincadeiras, como jogos com regras, dramatizações de história, brincadeiras que realizam nas áreas externas, sem os brinquedos. Isto possibilitou que as discussões do grupo focal partissem do entendimento delas sobre o que é a brincadeira de faz de conta.

Após todas as participantes expressarem o que entendiam por faz de conta, as discussões ocorreram na seguinte ordem: a importância do faz de conta para as crianças; a não participação delas na brincadeira por ser um limitador da espontaneidade da criança; como lidam/ utilizam as observações que fazem quando as crianças estão brincando.

No decorrer das discussões no grupo focal, foi possível observar que as participantes não tinham hábito de conversar sobre suas práticas e sobre as brincadeiras, porque perceberam, ao longo da conversa, que as crianças menores se relacionavam com os brinquedos diferentemente das crianças mais velhas, criando até certo interesse pelos motivos que levavam a isso. Nesse momento, destaca-se a primazia, sob nossa visão, do grupo focal em relação às demais técnicas:

A principal característica da técnica de Grupos Focais reside no fato de ela trabalhar com a reflexão expressa através da “fala” dos participantes, permitindo que eles apresentem, simultaneamente, seus conceitos, impressões e concepções sobre determinado tema. Em decorrência, as informações produzidas ou aprofundadas são de cunho essencialmente qualitativo (NETO; MOREIRA; SUCENA, 2002, p. 5)

Todas as participantes ilustraram suas opiniões com exemplos da própria prática, o que enriqueceu a discussão e demonstrou o envolvimento delas nas situações colocadas.

Procedemos à análise do material empírico por meio da técnica de análise de conteúdo, a partir da conceituação de Mayring (2002). A interpretação do material foi realizada com base nos pressupostos da teoria histórico-cultural sobre a brincadeira de faz de conta. A análise de conteúdo exige rigor investigativo do pesquisador, que deve seguir determinados passos para filtrar as categorias mais importantes emergidas da análise do material empírico. Mayring (2002, p. 154) propõe formas básicas de análise de conteúdo qualitativa:

  • Sumarização: o objetivo da análise é o de reduzir o material de tal maneira que sobram os conteúdos essências, de criar, por meio de abstração, um corpus que continua sendo um retrato do material básico.

  • Explicação: Objetivo da análise é acrescentar material adicional a determinados segmentos do texto (conceitos, frases...), para aumentar a compreensão, para esclarecer, explicar e interpretar um determinado segmento.

  • Estruturação: O objetivo da análise é filtrar determinados aspectos do material; estabelecer um recorte do material na base de critérios pré-estabelecidos; ou de avaliar o material na base de determinados critérios.

A análise centrou-se em ouvir detidamente as falas e observar a participação das professoras no encontro, para então, identificar os assuntos mais recorrentes. A análise do material empírico, destacada neste artigo, esteve alicerçada no desenvolvimento da imaginação, como processo psíquico, possibilitado pelas brincadeiras de faz de conta, nas quais as crianças assumem papéis dos adultos e as situações de faz de conta possibilitadas pela escola. Os estudos dos psicólogos russos Vigotski, Elkonin e Leontiev (datados do início do Séc. XX) sobre a brincadeira de faz de conta na Educação Infantil e as falas das professoras participantes forneceram as bases para as discussões, cujo resultado nos possibilitou, ao final da pesquisa, vislumbrar alguns possíveis caminhos para que o faz de conta assuma lugar de maior importância nos planejamentos e práticas das professoras de Educação Infantil.

Imaginação e Criatividade - Funções Psíquicas Superiores

A imaginação, como função psíquica tem seu desenvolvimento iniciado na infância e continua por todos os estágios da vida humana. Vigotski (2009) faz referência a duas características da atividade criadora: de reprodução (ligada à memória e, dessa forma, às coisas passadas) e de combinação ou criação (que mantém os elementos da memória como apoio para pensar/imaginar as coisas futuras ou as inovações). Essa última, de grande complexidade, pois,

[...] não irrompe de uma vez, mas lenta e gradativamente, desenvolvendo-se de formas mais elementares e simples para outras mais complexas. Em cada estágio etário, ela tem uma expressão singular, cada período da infância possui sua forma característica de criação. Além disso, não existe de modo isolado no comportamento humano, mas depende diretamente de outras formas de atividades, em particular do acúmulo de experiência (VIGOTSKI, 2009, p.19).

Ao estudar as elaborações de Vigotski (2009), compreende-se que o acúmulo de experiência, a que se refere, significa que a diversidade e riqueza das experiências promovem o pleno desenvolvimento da atividade criadora. Nas falas das professoras, durante o grupo focal, foi possível destacar dois entendimentos que elas demonstraram possuir sobre o faz de conta:

  • (i). Que está relacionado à imaginação/ criação da criança, como verbalizado pela professora Déa, “[É]5 a brincadeira que a criança cria, eu acho que envolve a imaginação”, e ela professora Ana, “[Faz de conta é] quando a criança imagina, ela fantasia”,

  • (ii). Que está relacionado às ações cotidianas, como colocado pela professora Déa, “Agora eles já estão entrando nessa questão de imaginar, ressignificar, de trazer vivência”.

Sobre essa última afirmação da professora Déa, as contribuições de Elkonin ilustram teoricamente a constatação de as crianças estarem começando a agregar as vivências na brincadeira. Para a criança representar papéis sociais na brincadeira de faz de conta, Elkonin afirma que há um processo que se inicia no seu nascimento. A criança aprende, na interação com o adulto, a significação social dos objetos e depois o uso deles em interações significativas, denominado por Elkonin (2009), jogo objetivado. O grau mais sofisticado da brincadeira de faz de conta, que de acordo com Elkonin (2009) aparece no final da fase pré-escolar, é o jogo protagonizado. Ele surge quando a criança é capaz de assumir diferentes papéis sociais (é a mamãe, ou o motorista, ou o vendedor na brincadeira etc.), agindo de acordo com as regras que apreendeu ao participar das ações cotidianas com os adultos.

A brincadeira nasce da necessidade da criança entender o mundo que a cerca e o seu lugar nele. Baseados nos temas que emergiram das falas das professoras que participaram da pesquisa e nas contribuições da teoria histórico-cultural, estruturamos as discussões desta seção em quatro eixos, entendendo-os como o material que alimenta e promove o faz de conta das crianças.

I. As experiências que as crianças vivenciam

Desde bem pequenas, quando brincam com os objetos, manipulando-os ou observando os outros brincarem, tanto nas imitações das ações cotidianas das quais participam, até serem capazes de representar diferentes papéis sociais na brincadeira, é imprescindível a interação das crianças com os adultos ou outras crianças mais velhas. Ao agir sobre os objetos, as crianças assimilam o mundo por meio dessa ação, mediada pelo adulto ou outras crianças. Quando são capazes de atuarem em outros papéis, elas descobrem o mundo em suas atividades, funções e relações:

[...] o conteúdo fundamental são as normas de conduta existentes entre os adultos, poder-se-ia dizer que, no jogo, a criança passa a um mundo desenvolvido de formas supremas de atividade humana a um mundo desenvolvido de regras das relações entre as pessoas. As normas em que se baseiam essas relações convertem-se, por meio do jogo, em fonte do desenvolvimento moral da criança (ELKONIN, 2009, p.420).

As professoras que fizeram parte da pesquisa têm clareza de que na brincadeira de faz de conta as crianças representam a realidade. A professora Cléo comenta:

[A criança] está com o nenenzinho dizendo que é o irmãozinho que nasceu. Ela está sendo a mamãe na brincadeira. Então, no meu ver, [o faz de conta] é a simbolização de tudo, de todas as situações. [...] A brincadeira de faz de conta pra mim traduz onde eles estão e a realidade que eles estão vivendo naquele momento. [...] É interessante ver o que a criança conhece e qual a amplitude do conhecimento da criança de vida, de coisas. Estou falando de coisas: uma televisão, um carrinho, uma furadeira, uma seringa. [...] [A criança] precisou conhecer a furadeira e uma agulha, uma seringa, para entender e fazer as comparações [na brincadeira].

Quando, por exemplo, a criança assume o papel da professora na brincadeira, ela atua de acordo com as experiências pelas quais vivencia, observa, ouve e vê na interação com sua professora. Compreender a relação do faz de conta com a vida cotidiana e sua importância na infância, permite ao professor buscar formas para ampliar as experiências das crianças, organizando de modo as brincadeiras de faz de conta, sugerindo temas, ofertando brinquedos e organizando todo ambiente de brincar. Os relatos das professoras que participaram da pesquisa, embora tenham sido repletos de exemplos de brincadeiras e, com algumas exceções, demonstraram que as crianças sempre estão brincando de faz de conta, independentemente, da intenção das professoras. Tais relatos, também, indicaram que aparentemente isso ocorre porque quando as crianças vão ficando mais velhas, há outras questões mais importantes para serem trabalhadas na escola, sendo a brincadeira relegada a espaços amplos e livres da intervenção da professora.

II. A influência das experiências alheias no faz de conta

As situações do dia a dia, nas quais as crianças não participam diretamente, também são temas da brincadeira isto é, aquilo que ouvem ou veem. São as histórias ouvidas, os desenhos e filmes que assistem na televisão, as conversas que ouvem. Isto desmistifica a concepção, ainda presente, de que as crianças imitam ou representam exclusivamente, aquilo que vivenciam. A professora Déa compartilha desse entendimento: “Então ali, de repente, você vê que o papai bateu na mamãe, como? Porque a criança trouxe aquilo para o diálogo”. É importante ressaltar o risco que se corre ao interpretar as brincadeiras das crianças apenas pelo viés daquilo que ela viveu, no sentido essencialmente prático do termo.

Na sociedade atual, a tecnologia (televisão, tablets e outros) vem ganhando espaço cada vez maior e cada vez mais cedo na vida dos pequenos. Um exemplo é a brincadeira com super-heróis presentes em todas as escolas, porque está muito presente nos desenhos, filmes e brinquedos com os quais a criança convive diariamente, fora da escola.

Mas a maneira deles brincarem com aqueles carrinhos que tinham algo já pré-colocado. Qual é o nome? Como se fosse do Batman ou desses personagens, interferia na maneira como eles brincavam. Daí, se você dá carrinhos que não vem colocada a questão do personagem, a brincadeira acontece de outra maneira. Às vezes vão classificar. Ficam classificando os carrinhos, aqueles [alunos] menores. Vão brincar, mas de uma maneira diferente daqueles que têm o personagem. Daí, eu fiquei pensando nessa questão do papel que tem a mídia, enfim, os desenhos, os filmes (professora Ana).

A professora Ana cita exemplos de que crianças trazem para a brincadeira aquilo que ouvem, veem ou assistem na televisão. A questão posta é: Não seria a escola um lugar para que os super-heróis fossem temas menos presentes nas brincadeiras de faz de conta? Como a escola poderia minimizar os efeitos da mídia e da sociedade de consumo sobre as crianças? Tomemos algumas falas das professoras para responder a essas questões:

Uma coisa que a gente faz muito é, através das músicas, das histórias e das intervenções das histórias, a gente leva a criança a imaginar, a fazer imaginações. Ontem mesmo, eles ficaram bravos comigo de início porque eu contei uma história sem figuras e pedi para fechar os olhos e imaginar. Tem coisa mais legal que imaginar? Um monstro mais assustador vai sair da sua cabeça! (professora Ana)

Um aluno começou: “eu quero contar uma história”. Daí ele começou a contar a histórias, falou que tinha princesa, tinha castelo e tinha monstro e a professora era monstro, e os amigos eram uma princesa, um tio, a avó. Isso, numa contação de história (professora Bia).

As falas das professoras Déa e Bia indicam que elas compreendem que as histórias contadas e trabalhadas em sala de aula contribuem para desenvolver a imaginação criadora da criança. É certo que a escola infantil não tem como abolir a presença dos super-heróis das brincadeiras, mas pode minimizar que as brincadeiras girem em torno deles, todos os dias. Para tanto, é necessário escolher com cuidado os brinquedos que oferecem às crianças, visando àqueles que melhor as levarão a assumir diferentes papeis na brincadeira e, brincando, ampliem suas experiências.

As situações de faz de conta precisam ser oferecidas intencionalmente às crianças, na rotina diária, a fim de se evitar o risco de que aconteçam apenas de acordo com a disposição das crianças para a brincadeira, invalidando a riqueza das brincadeiras que acontecem quando as crianças brincam juntas, sob um mesmo tema, que pode ou não, ser sugerido pela professora.

Contar histórias é, também, uma atividade muito vivenciada na infância. Tal atividade deve ser encarada, como uma atividade lúdica e um recurso importante para promover o desenvolvimento das crianças, pois nessa ação estão envolvidos o pensamento, a imaginação, a fantasia e a criatividade. Esta atividade é considerada, também, como uma fonte de prazer e de estímulo à expressão da criatividade. Ao contar, recontar e criar sua própria história, a criança, mesmo ainda não alfabetizada, constrói sentidos e significados, expressa sentimentos, cria seu próprio mundo vivenciando suas fantasias, oportunizando o conhecimento de si e do ambiente que a cerca (MOZZER; BORGES, 2008, p. 11-12).

Mozzer e Borges (2008) enfatizam a importância das situações nas quais os adultos leem ou lhes contam histórias, pois os enredos são rico material para o desenvolvimento da imaginação da criança, o que lhes possibilita fazer aproximações sucessivas daquilo que é real ou fictício. As escolas precisam se preparar para lidar com as questões da contemporaneidade. Se as crianças passam muito tempo em frente à televisão ou em joguinhos de celular, as atividades na escola precisam ser repensadas, a fim de assegurar e permitir o seu perfeito desenvolvimento psíquico e todas as implicações decorrentes disso. É necessário escolher os brinquedos, planejar tempo e espaço específicos para o faz de conta e, principalmente, planejar como ampliar as experiências de vida dos pequenos. As crianças precisam ser desafiadas a brincar juntas e, isso é algo que se aprende. Cabe ao professor preparar situações de brincadeiras nas quais elas precisem umas das outras para que a brincadeira aconteça.

A conclusão pedagógica a que se pode chegar com base nisso consiste na afirmação da necessidade de ampliar a experiência da criança, caso se queira criar bases suficientemente sólidas para a sua atividade de criação. Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou, mais ela sabe e assimilou; quanto maior a quantidade de elementos da realidade de que ela dispõe em sua experiência [...], mais significativa e produtiva será a atividade de sua imaginação (VIGOTSKI, 2009, p. 23).

A escola infantil tem uma grande responsabilidade nas mãos. Não basta deixar as crianças livres para brincar e criarem suas brincadeiras, pois elas podem não acontecer. Isso também não significa que as brincadeiras devem ser dirigidas, no sentido de controle do adulto sobre a criança, mas sim em relação a escolha do tempo, espaço e materiais para o faz de conta. É necessário ter em mente o valor da brincadeira de faz de conta, pois a criança brinca para aprender e aprende para se desenvolver.

III. A relação das crianças com os objetos da cultura

As pesquisas de Elkonin (2009) sobre as brincadeiras das crianças apontam para a importância dos objetos e brinquedos que elas utilizam no faz de conta. Ele e seus colaboradores concluíram que o primeiro indício da criação de uma situação lúdica ocorre quando a criança realiza transferência de ações com os objetos. Isto já acontece na turma da professora Ana:

Embora a gente disponha blocos e potes variados, a criança pega aqueles potes e usam os blocos para outra coisa que não é para montar. Eles vão transformar em comida, tenho até foto, e aí eles vão [continuar a brincadeira]. Se tiverem disponíveis folhas, eles vão usar folhas, mas sempre transformam. O faz de conta tem sempre essa coisa: um ”q” de transformar.

A transferência de ações com objetos, como utilizar um pequeno bloco como comida (um pedaço de bolo, por exemplo) faz parte do processo de desenvolvimento da brincadeira de faz de conta e, muitas vezes, sua importância não é perceptível às professoras. Antes, porém, de analisar a importância dos objetos nas ações lúdicas, faz-se necessário contextualizar o significado de situação lúdica a partir de um conceito fundamental, de acordo com um dos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural: A atividade principal.

Alexei Leontiev, contemporâneo e colaborador de Vigotski, a partir de sua pesquisa, desenvolveu a Teoria Psicológica da Atividade. Nela, em cada etapa do desenvolvimento humano, há uma atividade principal que governa as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade das crianças, no nosso caso. Leontiev (2010) define atividade principal como sendo:

[...] a atividade da qual dependem, de forma íntima, as principais mudanças psicológicas na personalidade infantil, observadas em certo período de desenvolvimento. E precisamente no brinquedo que a criança, no período pré-escolar, por exemplo, assimila as funções sociais das pessoas e os padrões apropriados de comportamento (VIGOTSKI; LURIA; LEONTIEV, 2010, p. 64-65).

Desta forma colocada, a brincadeira de faz de conta é atividade principal da criança porque é um processo pelo qual, ao imitar o mundo, ela começa a compreender as relações sociais e culturais nas quais está inserida. Junckes (2015), citando Vigotski, corrobora com essa premissa:

Por meio da brincadeira, ela aprende a relacionar a situação pensada com a situação real, aprende a apresentar e, ao mesmo tempo, controlar seus desejos, a conviver com regras e normas sociais, a ter consciência de suas próprias ações, e principalmente, a compreender o sentido e o significado de cada movimento corporal, por meio de brincadeiras como: faz de conta, cantigas de roda, jogos, entre outras (JUNCKES, 2015, p. 32).

Na Educação Infantil, o termo lúdico é bastante utilizado, entretanto como:

[...] sinônimo de “ambiente escolar interessante e leve”, “postura descontraída”, “espontaneidade”, “aleatoriedade” etc.; nelas incluem-se diferentes atividades, desde as mais tipicamente associadas à infância (brincadeiras, cantigas, atividades plásticas) até as relacionadas a campos de conhecimento escolar. (ROCHA; RIBEIRO, 2017, p. 242).

Por fim, Rocha e Ribeiro (2017, p. 257), alertam para o cuidado de não confundir o termo atividade principal com principal atividade:

A título de síntese, atividade principal é aquela em que, por suas características estruturais e funcionais, constituem as mais importantes transformações das funções psicológicas e de suas inter-relações, na composição do sistema psíquico humano. No período pré-escolar, a brincadeira de faz de conta é apontada como o mais importante meio de relação entre as crianças e o mundo social, tendo em vista as peculiares possibilidades que oferece de interpretação e de elaborações sobre as diversas esferas da vida humana e de si próprias, envolvendo complexas relações entre a imaginação, a memória, a percepção, a linguagem, a cognição e os afetos.

A Teoria Histórico-Cultural denomina atividade lúdica a atividade principal da criança, que na infância é a brincadeira de faz de conta. A escola pode e deve proporcionar situações lúdicas, oportunizadas intencionalmente. No seio familiar, os bebês e as crianças fazem uso dos objetos, imitando ou representado a realidade, em interação com os adultos que com elas convivem.

Mas é inegável a importância do faz de conta com a presença de outras crianças, devido à necessidade de haver vários papéis para organizar uma brincadeira temática, como por exemplo, brincar de casinha, de escola, de mercado, de cabeleireiro etc. Deste modo, ao reviver as situações ludicamente, as crianças refletem sobre as regras de conduta, de comportamento que cada personagem assume na brincadeira, enfim, sobre a vida em sociedade. E a escola é o local para o desenvolvimento desses fatores, pois dentre outros, a presença de crianças na turma permite o desenvolvimento do jogo cada vez mais elaborado.

a. Transferência de ações com objetos

O primeiro indício de ação lúdica ocorre quando a criança imita as ações cotidianas das quais participa com os objetos ou brinquedos à sua volta. Os objetos têm função fundamental no processo de desenvolvimento da brincadeira de faz de conta. Um mesmo objeto, durante uma mesma brincadeira, pode assumir a função de um ou vários outros objetos, como por exemplo, quando a criança utiliza um toquinho de madeira ora como colher, telefone celular ou comidinha, de acordo com a necessidade de continuação da brincadeira.

Em suas pesquisas, Elkonin concluiu também que uma mesma coisa pode ser representada por objetos diferentes, como quando a criança utiliza, num mesmo momento, uma caneta, um canudo e uma régua como termômetros. Todas essas são ações realizadas com objetos substitutivos . São chamados assim porque na ausência de um objeto importante para a brincadeira, a criança lança mão de outro, desde que mantenha semelhanças mínimas com o objeto que está sendo representado. Por exemplo, “tudo o que puder servir para esfregar a boneca é utilizado como sabão; tudo o que possa ser colocado sob a axila será empregado como termômetro” (ELKONIN, 2009, p. 226).

No caso deste exemplo, os objetos substitutivos são complementares, porque são inseridos na brincadeira como elementos complementares dos brinquedos temáticos (boneca, carrinho, cavalo etc.).

A professora Ana tem clareza da importância dos objetos para a brincadeira das crianças:

Tudo que a gente pode dispor [para a brincadeira] e também aquilo que a gente nem dispõe, [a criança] vai criar. Ela vai pegar o copo e vai transformar numa coisa. [...] [Ela] está brincando com bonecas, potes e alguns tecidos, e não tem um tecido naquele momento. Ela vai ao banheiro, pega uma toalha [...] e, ao observar isso [...], a criança está me mostrando que precisa de um pano para cobrir a boneca.

A toalha teve a função de objeto substitutivo complementar, porque era essencial para a continuidade da brincadeira com a boneca, que neste caso é o brinquedo temático. Esse conhecimento teórico sobre a função dos objetos na brincadeira de faz de conta não apareceu verbalizado no grupo focal, entretanto, a professora observou a necessidade de um objeto complementar para que a brincadeira da criança pudesse prosseguir naquele momento e deu indício para que ela pudesse agregar novos materiais às futuras brincadeiras.

Os objetos substitutivos também podem receber a denominação de fundamentais, quando são utilizados no faz de conta mais elaborado. A criança utiliza intencionalmente um objeto para substituir outro, dando-lhe o nome do objeto que está sendo representado. Um exemplo disto é a criança que brinca de cantora ou cantor e utiliza a vassoura como pedestal e microfone e desenrola toda a brincadeira a partir dele - a vassoura representa o microfone e sem isso a brincadeira não ocorreria.

De acordo com Elkonin (2009), os objetos substitutivos devem manter traços típicos com os objetos que representam, ou possuir certas características que permitam ações substitutivas, como já citado anteriormente. Uma bola, por exemplo, não pode representar uma criança. Já um cavalinho de brinquedo, sim, pois se pode colocá-lo sentado, deitado, alimentá-lo, niná-lo, enfim, contém certos atributos que permitem representar as ações que se realizam com uma criança. Isto é chamado de emprego lúdico dos objetos ou brinquedos e corresponde ao que Vigotski (1991) chamou de regras do real na atividade lúdica.

A professora Déa fez um relato que retrata bem isso: “Ele vinha assim ‘preciso de limão’. Pegou limão da feirinha. ‘Ah, você vai fazer uma limonada?’ ‘Claro que não, né, tia? Uma caipirinha’”. Neste caso, a criança precisou recorrer a um brinquedo para dar continuidade à sua brincadeira e não utilizou qualquer objeto, ela recorreu a um limão de brinquedo para dar veracidade à brincadeira. Provavelmente, é uma criança mais velha, caso contrário, poderia ter lançado mão de qualquer objeto que lhe servisse como representação de um limão.

Reiteradas vezes, durante o grupo focal, as professoras fizeram referência aos potes e blocos de montar nos exemplos de brincadeiras de faz de conta, como o que fora relatado pela professora Ana:

Essa questão dos potes. São vários potes que a gente tem disponibilizado [para as crianças]: pote de sorvete vazio, potes de plástico. A gente coloca e eles vão para a brincadeira, [...] criando. Tem aqueles [alunos] que vão juntos mostrar que estão cozinhando ali, ou [outros alunos irão] classificar as tampas. Eles brincam, mais sozinhos e em desacordo.

As crianças da professora Ana têm, aproximadamente, 2 e 3 anos de idade, isto pode explicar o fato de ela relatar as situações com potes e brinquedos de montar com maior frequência, porque há no mercado educacional uma gama variada de brinquedos de montar, de diferentes formas, tamanhos e cores e voltados para o trabalho com bebês e crianças pequenas.

Embora o trabalho com as crianças na Educação Infantil deva ser organizado sobre os eixos do brincar e das interações, os profissionais ainda não conseguiram se desvencilhar das concepções voltadas para a estimulação sensorial dos pequenos, realizada com brinquedos de montar ou de encaixar. A professora Ana referiu-se à classificação das tampas dos potes que coloca à disposição para a brincadeira de suas crianças. É frequente as professoras considerarem objetivos da educação infantil a organização de objetos por cores, tamanho e formas como objetivos do trabalho, bem como o desenvolvimento da coordenação motora por meio de desafios como encaixar e empilhar, ou classificar os objetos por atributo.

Diante da necessidade de dar visibilidade àquilo que as crianças estão aprendendo, as professoras recorrem a antigas práticas da educação infantil, cujas concepções estão alicerçadas na aprendizagem fora da criança que aprende. Este é o caso da classificação dos objetos por cor, forma ou tamanho: maior/ menor, grande/pequeno etc. Não significa que as crianças não possam aprender sobre as cores e as formas na escola, a questão posta está em basear o planejamento em conteúdos estanques e descontextualizados ou em oferecer, de forma recorrente, blocos de montar para a brincadeira de faz de conta.

Mozzer e Borges (2008) destacam a importância dos objetos e brinquedos para as possibilidades de invenção e compreensão da realidade pela criança, pois ela é capaz de dissociar os objetos de seus usos correntes.

Através da brincadeira, há um aumento das alternativas em usar os objetos a partir da flexibilidade em instaurar-lhe novos significados pelo processo de imaginação. Essa nova forma de operação com significados abre-lhe um novo campo de compreensão e de invenção da realidade (MOZZER; BORGES, 2008, p. 10).

As escolas de educação infantil precisam estar atentas às escolhas dos brinquedos e objetos que colocam à disposição para a brincadeira, pois eles funcionam como mediadores para o desenvolvimento infantil, ou seja, é a partir das explorações, imitações e brincadeiras que fazem com eles que são construídas as bases para o desenvolvimento da imaginação criadora.

IV. As emoções das crianças nas brincadeiras de faz de conta

Durante o grupo focal, as professoras fizeram, com maior ou menor intensidade, referência a situações conflituosas pelas quais as crianças passam e que trazem para a brincadeira de faz de conta. A professora Cléo comentou:

No meu [modo de] ver, [a brincadeira de faz de conta] é a forma de eles simbolizarem o que eles estão passando, o que eles estão vivendo, estão vivenciando. [...] Inclui medo, frustrações, problemas da casa. A brincadeira de faz de conta pra mim traduz onde eles estão e a realidade que eles estão vivendo naquele momento.

De acordo com Prestes (2010), Vigotski considera que:

(...) a brincadeira tem dois aspectos importantes - o desenvolvimento intelectual (do ponto de vista do amadurecimento de funções psíquicas) e o desenvolvimento da esfera afetiva. Além disso, é importante destacar que a tendência para a realização imediata dos desejos não desaparece, ela se conserva e, ao mesmo tempo, emergem tendências específicas e contraditórias. Surge um conflito. Então, se perguntarmos “por que a criança brinca?” - a brincadeira é uma realização imaginária e ilusória de desejos irrealizáveis (PRESTES, 2010, p.158).

Vigotski faz referência ao conflito e ao sofrimento da criança quando ela não tem seus desejos imediatamente satisfeitos, quer seja por fazerem parte da vida adulta, quer seja por não compreenderem as questões devido a pouca maturidade. Ele destaca o fato de que os desejos negados e não realizados pela criança causam-lhe sofrimento. Por isso, a brincadeira de faz de conta está tão presente na vida delas, ou seja, é o meio pelo qual elas podem representar as atividades dos adultos e, fazendo-o, reelaboram seus sentimentos, além de compreenderem as regras sociais, paulatinamente. Quando a criança se comporta, no faz de conta, além do que é esperado dela, a brincadeira está atuando na sua zona de desenvolvimento proximal, pois age como se fosse maior do que realmente é. Toda a tensão da criança, em relação às coisas que lhe são negadas fazer, é resolvida por meio da representação do real na brincadeira de papéis sociais. Por isso, as crianças imitam as ações cotidianas, a priori, e mais tarde, assumem diferentes papéis sociais na brincadeira.

Apoiando-se em Vigotski, Prestes (2010, p.158) destaca que a “brincadeira é uma realização imaginária e ilusória de desejos irrealizáveis”. Esta é uma função da brincadeira de faz de conta que precisa ser conhecida pelas equipes que atuam na Educação Infantil por, pelo menos, dois motivos: (i) Para desmistificar os “diagnósticos” psicanalíticos, quando interpretam a brincadeira da criança como canal para externar conflitos internos e emocionais pelos quais estão passando, e (ii) Para organizar os desafios da brincadeira de modo que atue na zona de desenvolvimento proximal das crianças.

Vigotski (2009) relaciona o desenvolvimento da imaginação aos sentimentos e à afetividade. Talvez aí esteja a explicação para o fascínio que os super-heróis provocam nas crianças, pois ao representá-los, as crianças se revestem de força, poder, invencibilidade e do sentimento de que tudo é possível. Tratam-se das emoções provocadas pela imaginação.

Considerações finais

No decorrer deste artigo, buscamos evidenciar nossa opção pelos fundamentos da teoria histórico-cultural destacando que os teóricos soviéticos - em especial, Vigotski, Leontiev e Elkonin - foram os que aprofundaram seus estudos sobre o psiquismo humano, focando a relação existente entre a cultura e as interações com o outro como fator de desenvolvimento da consciência humana.

Dessa forma, a educação infantil passa a ter grande responsabilidade para com as crianças em desenvolvimento, devendo se constituir em um espaço e um tempo que proporcionem o seu pleno desenvolvimento psíquico. Para tanto é de fundamental importância que os profissionais da educação infantil adquiram conhecimento teórico sobre a brincadeira de faz de conta, para compreendê-la como atividade principal da criança e construam conhecimento empírico, para serem capazes de organizar intencionalmente as situações de faz de conta, reconhecendo que elas fornecem as bases para o desenvolvimento das crianças.

Termos ouvido as professoras e realizado as análises de suas falas, à luz dos já citados referenciais teóricos sobre o faz de conta, permitiu-nos compreender que as participantes revelaram certo entendimento, em linhas gerais, sobre a importância do faz de conta para as crianças. Entretanto, as afirmações de algumas professoras desvelaram concepções “cristalizadas” sobre a brincadeira das crianças, como a indicação das “eternas”6 atividades de blocos de montar para o faz de conta. Para além disso, as crianças precisam de brinquedos e objetos que lhes permitam, ao recriar a realidade, desenvolverem suas funções psíquicas.

Foi possível constatar que as professoras deixam à disposição das crianças, diariamente, caixas com brinquedos, caixas com temas variados e, até mesmo, brinquedos de montar, dentre outros. Entretanto, parece que para algumas professoras, o fato de as crianças terem as caixas temáticas à disposição garante o faz de conta. É certo que nas brincadeiras, as crianças estão reagindo à realidade, imitando-a ou representando papéis sociais, como forma de entender o mundo que as rodeia, porém em uma instituição educacional, as situações de faz de conta precisam ter lugar de destaque no planejamento das professoras e na rotina das crianças.

A formação docente continuada parece ser uma das ações importantes para estimular a reflexão docente e colocar o faz de conta no lugar de atividade principal da criança. Para tanto, precisa ser realizada de modo a confrontar as concepções das professoras sobre a brincadeira para, a partir das reflexões e constatações, construir novas formas de conduzir o trabalho pedagógico sobre o faz de conta. E isto, será possível quando se aliar o estudo da prática pedagógica com as bases teóricas sobre as brincadeiras.

Por fim, foi possível compreender que participar da pesquisa possibilitou às professoras refletirem sobre as situações de faz de conta que proporcionam na escola. Desta forma, a formação em serviço do professor, sobre a brincadeira de faz de conta, é um caminho para provocar melhorias significativas no trabalho docente. Destarte, a responsabilidade dos profissionais da educação infantil é imensa!

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3O conceito de atividade principal, de acordo com os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, será discutido ao longo deste artigo.

4Optou-se por utilizar o termo “professora” em todo o artigo, porque todas as participantes da pesquisa são do sexo feminino.

5A fim de assegurar a compreensão das falas ao leitor e considerando que utilizamos trechos de acordo com o tema abordado, inserimos, entre colchetes, palavras ou frases curtas nos relatos das professoras que participaram do Grupo Focal. Seus relatos estão grafados em itálico, quando fizerem parte dos parágrafos do texto.

6Utilizou-se a palavra “eterna” pelo fato de a Pesquisadora, quanto iniciou a carreira do magistério, em 1984, tinha em seu planejamento semanal a atividade de blocos, chamados de blocos lógicos, para o ensino de cores, formas e tamanhos. Aparentemente, os blocos lógicos foram gradualmente substituídos pelos blocos de montar.

Recebido: 14 de Março de 2019; Aceito: 18 de Junho de 2019

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