1 Introdução
Grande parte das exigências atuais para o profissional docente extrapola em vários aspectos o objeto de ensino, que por muito tempo se limitou a possibilitar conhecimentos acerca de uma área específica. Atualmente, surgiram outras demandas para esse profissional e, portanto, a multiplicidade das necessidades formativas do professor gera a impossibilidade delas serem contempladas em apenas um determinado lócus de formação. Coadunando com esse pensamento, Lima e Reali (2010, p. 219) consideram que “a aprendizagem da docência ocorre em vários contextos e instituições e ao longo de toda a experiência escolar e não escolar dos futuros professores.” Assim, considera-se que a formação do professor é entendida como contínua, “portanto, é um fenômeno que ocorre ao longo de toda a vida e que acontece de modo integrado às práticas sociais e às cotidianas escolares de cada um, ganhando intensidade e relevância em algumas delas.” (PASSOS et al., 2006, p. 195).
Partindo dessa compreensão, a formação inicial pode ser caracterizada como um espaço formal, que, de maneira intencional, visa sistematizar alguns dos conhecimentos profissionais e, portanto, necessários à prática docente, tais como: do currículo, da área específica, didático-pedagógico, avaliação, de como organizar e gerir uma sala de aula, entre outros. Em suma, há um reconhecimento social, fundamentado em um aparato legal, de que esse espaço prepara o futuro professor para lidar com as diferentes demandas da profissão docente. Portanto, configura-se em um “momento formal em que processos de aprender a ensinar e aprender a ser professor começam a ser construídos de forma mais sistemática, fundamentada e contextualizada.” (MIZUKAMI, 2008, p. 216). Inclusive, Gama (2007, p. 190) acredita que as experiências formativas oportunizadas em tal contexto podem contribuir para o enfrentamento, no início da carreira docente, de aspectos “como insegurança, isolamento, características pessoais, práticas avaliativas, imitações acríticas de condutas, revisões de crenças e concepções sobre o ensino, além de auxiliar em descobertas e em reflexões mais sistematizadas.”
Ampliando essa compreensão, Imbernón (2011, p. 64) destaca que na formação inicial não se deveria promover apenas a construção do “conhecimento profissional, mas de todos os aspectos da profissão docente, comprometendo-se com o contexto e a cultura em que esta se desenvolve.” Isso não implica simplesmente “aprender um ‘ofício’ no qual predominam estereótipos técnicos, e sim de aprender os fundamentos de uma profissão, o que significa saber por que se realizam determinadas ações ou se adotam algumas atitudes concretas, e quando e por que será necessário fazê-lo de outro modo.” (IMBERNÓN, 2011, p. 66-67).
No entanto, também é preciso ter um entendimento de que na formação inicial existem “funções e limites bem circunscritos: conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que não podem ser desenvolvidos no período a ela destinado.” (MIZUKAMI, 2008, p. 216). Por outro lado, o fato de haver limites na formação inicial de professores, e por não se configurar como o único espaço de formação do profissional docente, não a exime de preparar o futuro professor com um repertório de conhecimentos, saberes e alternativas para lidar com as mudanças advindas do contexto educacional. Diante dessa conjuntura, teve-se por objetivo apresentar considerações sobre lacunas decorrentes da formação oportunizada no curso de Licenciatura em Matemática.
Cabe destacar que se está considerando como lacunas tanto a defasagem quanto a ausência de algum conhecimento abordado na licenciatura, e que este estudo é um recorte da fundamentação teórica de uma pesquisa de doutorado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos.
Metodologicamente, esse estudo se caracteriza como um ensaio teórico. Demo (2000, p. 20) destaca que estudos dessa natureza objetivam o desenvolvimento de “teorias, conceitos, ideias, ideologias, polêmicas, tendo em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos teóricos” ou desenvolver quadros de referência. A partir de alguns conceitos e ideias explicitados em pesquisas brasileiras que investigaram a formação inicial do professor de matemática, bem como a partir de autores que abordam sobre as lacunas originárias desse contexto formativo, é que se buscou abordar tal temática, a fim de contribuir com o debate no campo da Educação Matemática no que se refere à formação inicial do professor de matemática.
Para Demo (1982), a pesquisa teórica é fundamental ao processo científico, visto que possibilita em suas especificidades: a elaboração de quadros de referência; a compreensão dos clássicos; o domínio relativo da produção vigente; a reflexão teórica elaborada; e a crítica teórica. Sabe-se que, na produção científica voltada para a Educação Matemática, mais especificamente quanto à formação de professores de matemática, há um debate histórico a respeito dos problemas e desafios enfrentados no âmbito do curso de Licenciatura em Matemática. Em razão disso, busca-se uma sistematização a partir do que se tem produzido a respeito das lacunas decorrentes da formação oportunizada no referido curso.
Considerando que essa discussão auxilia na elaboração de um quadro de referência com comunidade de educadores matemáticos, a fim de se apropriar e compreender as demandas formativas que se tem para que se possa buscar alternativas e implementá-las com intuito de superar os fatores limitantes na formação, compreende-se que esse estudo se aproxima da reflexão teórica elaborada, juntamente com outros dessa natureza, que podem contribuir na problematização das lacunas de diferentes naturezas. Outro aspecto a se considerar no processo de reflexão teórica é que esse exercício possibilita aprofundarmos “[...] conceitos, visões teóricas, categorias básicas de autores”, assim como a elaboração de outras (DEMO, 1982, p.13).
Há várias pesquisas no campo da Educação Matemática que abordam problemas e dificuldades decorrentes da formação inicial do professor de matemática, contudo, nesse estudo, buscou-se recorrer somente a algumas pesquisas a fim de fundamentar e problematizar as discussões sobre as lacunas oriundas da formação oportunizada no curso de Licenciatura em Matemática. Espera-se que haja mais estudos com esse formato, visto que se considera que os resultados podem fornecer subsídios para compreender melhor a contribuição e a repercussão da formação inicial na construção de um repertório de conhecimentos e saberes, bem como na prática profissional. Leva-se em consideração que tal contexto formativo tem a responsabilidade de promover uma pluralidade de conhecimentos e saberes necessários ao exercício da profissão docente, implicando desse modo na constituição de fundamentos profissionais sólidos, que podem propiciar ao futuro professor não apenas a consolidação, mas também, de forma autônoma, a ampliação, a reorganização e consequentemente a potencialização da constituição de uma base de conhecimento ao longo da trajetória de vida profissional.
2 Aspectos históricos sobre lacunas evidenciadas na formação inicial do professor de Matemática
No estado da arte da formação de professores no Brasil, Fiorentini et al. (2002) constataram que os principais problemas identificados pelas primeiras pesquisas nas décadas de 1970 e 1980 mantiveram-se nos anos de 1990 e no início dos anos 2000, nos cursos de Licenciatura em Matemática daquele período. Os problemas encontrados foram:
[...] desarticulação entre teoria e prática, entre a formação específica e pedagógica e entre formação e realidade escolar; menor prestígio da licenciatura em relação a bacharelado; ausência de estudos histórico-filosóficos e epistemológicos do saber matemático; predominância de uma abordagem técnico-formal das disciplinas específicas; falta de formação teórico-prática em Educação Matemática dos formadores de professores. (FIORENTINI et al., 2002, p. 154).
Passados mais de 15 anos do início do século XXI, os problemas que eram percebidos no curso de formação de professores de matemática no século passado continuam presentes na contemporaneidade e, além disso, surgiram outros problemas. Não se pode argumentar que há poucos estudos revelando esse aspecto, uma vez que há uma quantidade significativa de pesquisas que investigaram a formação inicial do professor de matemática. Tal aspecto pode ser identificado no mapeamento de pesquisas brasileiras sobre o professor que ensina matemática, realizado de 2001 a 2012, organizado por Fiorentini, Passos e Lima (2016), que apresenta um volume significativo de teses e dissertações nas diferentes regiões brasileiras.
Isso também é possível verificar nos fóruns organizados pela Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM), que, dentre diferentes aspectos, tem evidenciado como uma de suas principais preocupações a formação do professor que ensina matemática, em especial a que é oportunizada no curso de Licenciatura em Matemática. Como resultado dos fóruns regionais e de um fórum nacional, realizado em 2002, bem como do I Seminário Nacional para a discussão dos Cursos de Licenciatura em Matemática, realizado em Salvador-Bahia, em 2003, culminou-se na explicitação de um rol de problemas a serem enfrentados nos cursos de Licenciatura em Matemática no Brasil, constando grande parte deles da Resolução N.º 1/CNE/CP/2001:
A predominância da visão de Matemática como disciplina neutra, objetiva, abstrata, a-histórica e universal, sem relação com os entornos socioculturais em que ela é produzida, praticada e significada; A não incorporação nos cursos, das discussões e dos dados de pesquisa da área da Educação Matemática. Uma Prática de Ensino e um Estágio Supervisionado, oferecidos geralmente na parte final dos cursos, realizados mediante práticas burocratizadas e pouco reflexivas que dissociam teoria e prática, [...]. A concepção de professor como transmissor oral e ordenado dos conteúdos matemáticos veiculados pelos livros textos [...]. A concepção de aprendizagem como um processo que envolve meramente a atenção, a memorização, a fixação de conteúdos e o treino procedimental no tratamento da linguagem Matemática por meio de exercícios mecânicos e repetitivos. A concepção de aluno como agente passivo e individual no processo de aprendizagem, concebido este como processo acumulativo de apropriação de informações previamente selecionadas, hierarquizadas, ordenadas e apresentadas pelo professor. A crença generalizada de que as ideias prévias dos alunos constituem erros que devem ser eliminados por meio de instrução adequada. A adoção de uma concepção mecanicista de avaliação, baseada na crença de que existe correspondência absoluta entre o que o aluno demonstra em provas e o conhecimento matemático que possui. A predominância de uma prática de organização curricular em que os objetivos, os conteúdos, a metodologia e a avaliação aparecem desarticulados e independentes. A ênfase nos aspectos instrumentais e procedimentais da Matemática, procurando tornar os alunos hábeis no manejo mecânico de algoritmos. O uso privilegiado de exercícios e problemas tipo em detrimento de situações problema e investigações matemáticas, [...]. A ausência de conteúdos relativos às tecnologias da informação e da comunicação. A desconsideração das especificidades próprias dos níveis e/ou modalidades de ensino em que são atendidos os alunos da educação básica (como a educação de jovens e adultos, por exemplo). O isolamento entre escolas de formação e o distanciamento entre as instituições de formação de professores e os sistemas de ensino da educação básica. A desarticulação quase que total entre os conhecimentos matemáticos e os conhecimentos pedagógicos e entre teoria e prática. As discutíveis concepções de Matemática e de ensino de Matemática que os cursos geralmente veiculam. O tratamento dos conteúdos pedagógicos descontextualizados e desprovidos de significados para os futuros professores de matemática, não conseguindo, assim, conquistar os alunos para sua importância. (SBEM, 2003, p. 5-6).
Em 2011, no IV Fórum Nacional de Licenciaturas em Matemática, as reivindicações postas foram as mesmas, tendo em vista apenas o acréscimo sobre a evasão na referida licenciatura e a importância do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), em particular a necessidade de ampliação de vagas do programa. Com relação ao que foi evidenciado pela comunidade desde o I Fórum, observam-se poucos avanços diante das mudanças que são necessárias no curso. Também no V Fórum Nacional de Licenciaturas em Matemática1, realizado em 2014, foram abordados e, portanto, retomados alguns dos problemas e desafios da contemporaneidade para os cursos de formação inicial de professores de matemática. Sendo assim, foi dado ênfase em problemáticas que se referem “ao perfil docente, ao material didático, à prática de ensino, ao estágio supervisionado e à profissionalização e carreira docente.” (SBEM, 2016, p. 8). As discussões apresentadas nos fóruns promovidos pela SBEM trazem à tona a diversidade de lacunas resultantes da formação propiciada no contexto dos cursos de Licenciatura em Matemática no Brasil, e que com recorrência se fazem presentes em debates sobre a formação do professor. Além do mais, mostra-se que os problemas evidenciados não estão concentrados em uma determinada instituição ou região brasileira, eles ocorrem praticamente em todo o território nacional, podendo variar na intensidade de como os problemas ocorrem e de como as instituições formadoras tentam lidar e superar os referidos problemas.
Assim, buscou-se apresentar considerações a respeito de nove lacunas identificadas em cursos de Licenciatura em Matemática por pesquisas brasileiras que investigaram sobre a formação inicial do professor de matemática, a saber: desarticulação entre teoria e prática; desarticulação entre formação específica e pedagógica; desarticulação entre a formação proporcionada na licenciatura e a realidade escolar; predominância dos conteúdos específicos no currículo; formação e/ou a prática do professor formador; distanciamento entre escola e universidade; distanciamento entre os conteúdos trabalhados na licenciatura e os conteúdos do currículo da Educação Básica; a forma em que as práticas de ensino e/ou o estágio têm sido ofertados no curso; a falta de desenvolvimento da leitura e escrita.
3 Considerações sobre lacunas evidenciadas por pesquisas brasileiras no curso de Licenciatura em Matemática
As lacunas identificadas estão em consonância com os debates, discussões e documentos elaborados nos diferentes Fóruns da SBEM e revelam, de alguma maneira, a relação com o formato em que o currículo é pensado, sistematizado e organizado no curso, que, por sua vez, pode ter uma conexão com a formação e prática dos professores que compõem o corpo docente da licenciatura. Nas considerações de Gama (2009, p. 119), no que diz respeito às dicotomias identificadas na formação inicial, há destaque para a “necessidade de conhecer e discutir as culturas e as práticas escolares existentes e a reflexão sobre as dicotomias ainda existentes na licenciatura – teoria e prática; escola e universidade; e conteúdos específicos e pedagógicos.”
Essas dicotomias são históricas e continuam gerando como consequência lacunas formativas aos futuros professores de matemática. Por isso, ao se refletir sobre a desarticulação entre teoria e prática, desarticulação entre formação específica e pedagógica e o distanciamento entre escola e universidade, verifica-se, a partir de Burkert (2012, p. 65), “que os conteúdos abordados no curso não são apresentados de forma a conduzir o aluno a perceber a vinculação com a realidade situada dentro de um contexto escolar e a levá-lo a compreender que seu papel no processo educativo vai além de ensinar matemática.” É necessário, portanto, pensar em um formato que aborde e problematize as culturas e práticas escolares sob a luz de referenciais teóricos, bem como na e com a escola, e que se construa uma conscientização que seja pautada no fato de que a licenciatura tem como princípio basilar formar professores, e isso implica, como premissa, contemplar a relação teoria e prática, conteúdos específicos e pedagógicos e parceria entre a instituição formadora e o futuro espaço de atuação profissional do licenciando.
Portanto, “é preciso criar, manter e valorizar espaços de colaboração entre professores da educação básica e da universidade, como espaços investigativos e de problematização.” (SBEM, 2016, p. 10). Assim como, conforme elucida Santos (2005, p. 273), “as universidades, através de suas licenciaturas, cumprindo seu verdadeiro papel junto à sociedade, devem se aproximar mais das escolas de educação básica” a fim de possibilitar, por um lado, que “os seus professores e pesquisadores conheçam melhor as realidades escolares, seus problemas, seus acertos e seus desacertos e, por outro, que as escolas usufruam das suas pesquisas.”
A existência de dicotomias, para Fürkotter e Morelatti (2007, p. 320), são indícios de um modelo de concepção de formação denominado racionalidade técnica, ao considerar “situações ideais isoladas da realidade social, distantes do contexto das instituições escolares e por desconsiderar as necessidades sociais, políticas e econômicas da sociedade, que está em constante desenvolvimento e evolução.” Um curso que tem essa concepção de formação presente no currículo ou na forma de atuação dos formadores, seja de forma explícita ou implícita, e no qual ocorrem essas diferentes dicotomias, e que, portanto, apresenta um conflito entre teoria e prática e a escola idealizada na formação inicial e a escola real, pode corroborar para a construção de conhecimentos distantes e desconexos, que não atendem de forma efetiva as necessidades profissionais do docente no início de carreira, sobretudo no processo de ensino.
Tais aspectos também estão intrinsecamente ligados ao distanciamento entre a formação proporcionada na licenciatura e a realidade escolar. Essa lacuna faz com que o estudante, futuro professor, identifique as contradições e perceba que os conhecimentos, saberes e as normas de atuação oportunizados na instituição formadora “pouco têm a ver com os conhecimentos e as práticas profissionais. Tendem, finalmente a descartar, por considerá-la menos importante, a necessidade de incorporar certos conhecimentos que são fundamentais ao trabalho prático.” (FEIMAN, 2001 apud MARCELO GARCIA, 2010, p. 14). As contradições percebidas pelo professor entre a formação obtida na licenciatura e as demandas presentes no contexto do trabalho podem gerar um discurso de que os conhecimentos profissionais são aprendidos exclusivamente na prática e que na formação foi oportunizada somente a teoria, como se fosse possível construir conhecimentos descolados de uma das dimensões, teórica ou prática.
Rocha (2005, p. 151) destaca outros problema na formação inicial, explicitados por recém-licenciados em matemática, que revelam que o referido curso tem deixado a desejar em vários aspectos, entre os quais a falta de articulação “entre os conteúdos trabalhados no curso e os conteúdos do currículo do ensino Fundamental e Médio”, bem como “a falta de discussões e estudos relativos à prática profissional e à legislação e estrutura da educação básica.” As lacunas evidenciadas por Rocha (2005) podem estar de algum modo relacionadas ao currículo do curso de Licenciatura em Matemática, apesar de concordar que tenha havido vários avanços no âmbito curricular da formação inicial do professor de matemática.
Porém, estudos supracitados têm revelado que ainda há muitas dimensões formativas que precisam ser contempladas na formação do futuro professor de matemática, assim como também há a perspectiva de que na maioria das vezes, nos cursos oferecidos por diferentes instituições, “as disciplinas são agrupadas em conteúdo específico e conteúdos pedagógicos, com tendência a valorizar mais o primeiro grupo que o segundo, mesmo em se tratando da formação do professor de Matemática e não do bacharel em Matemática.” (SBEM, 2013, p. 3-4). A crítica explicitada pela SBEM (2013, p. 4) evidencia como os diferentes conhecimentos estão organizados no curso, bem como a desarticulação e, portanto, o isolamento entre os dois grupos, pedagógico e específico, e traz à tona que esse aspecto se refere a um problema histórico, que pode desencadear também a predominância dos conteúdos específicos no currículo. Nesse contexto, os aspectos mencionados têm relação, de algum modo, com a forma em que o corpo docente, bem como a instituição formadora, compreendem o curso. Embora pareça óbvia a delimitação entre o profissional bacharel e o licenciado em matemática, considera-se que ainda não foi totalmente superada essa concepção de licenciado “quase bacharel”, uma vez que “essa constatação nem sempre é considerada ao se estruturarem os cursos de Licenciatura em Matemática.” (SBEM, 2013, p. 4). Mostra-se, portanto, que:
É preciso reafirmar que o licenciado não é um “quase bacharel” que cursou algumas disciplinas pedagógicas, tanto quanto o bacharel não é um “quase professor” que deixou de receber a formação pedagógica e a compensou com um pouco mais de matemática avançada. Às profissões distintas correspondem conhecimentos profissionais distintos e, portanto, processos de formação com prioridades, concepções e valores distintos. (SBEM, 2013, p. 4).
Na perspectiva de Pires (2000, p. 11), de modo geral, o currículo do curso de Licenciatura em Matemática se constitui, sem qualquer tipo de articulação, em dois grupos de disciplinas. Em um “grupo estão as disciplinas de formação específica em matemática e noutro estão as disciplinas de formação geral e pedagógica.” Essa separação é considerada como um dos principais problemas que precisam ser superados na formação inicial, sendo que, dentre as consequências de sua não superação, pode-se levar o futuro professor a construir conhecimentos descontextualizados e valorizar um conhecimento em detrimento de outro. Quanto a isso, Fiorentini (2005, p.113) chama atenção para o fato de que:
[...] tanto o professor das disciplinas matemáticas quanto o professor das disciplinas didática-pedagógicas da licenciatura em matemática contribuem, a seu modo, para a formação matemática e para formação didático-pedagógica do futuro professor. Entretanto, o que tem acontecido é que os formadores de professores que ministram tais disciplinas geralmente não têm consciência de que participam nessa dupla – e eu diria múltipla – formação do futuro professor.
Faz-se necessário compreender que é a conjuntura de todo o curso que forma o professor, e portanto não se deve conceber que essa função seja atribuída somente a um determinado grupo de disciplinas, ou ainda às disciplinas de uma forma geral da licenciatura, visto que há outros espaços na universidade que extrapolam a sala de aula, como projetos e programas (PIBID, PIBIC) que os licenciandos participam, intercâmbios, projetos de extensão, monitorias, assim como o estágio, entre outras experiências. Essa divisão, que pode se efetivar no discurso e na prática dos formadores, pode levar o futuro professor a construir uma concepção de que apenas algumas disciplinas são relevantes para sua formação. Desse modo, é necessário garantir a articulação entre diferentes tipos de componentes curriculares, visando contribuir para a formação do professor que contemple diversas dimensões da profissão docente. Segundo Mayer (2008, p. 100), em sua pesquisa, os professores participantes destacaram a necessidade de se oportunizar, ao futuro professor, uma formação mais completa possível, “a partir da concepção de que os conhecimentos não se desenvolvem separadamente, mas pela articulação das dimensões formativas do curso, o conhecimento específico, o conhecimento pedagógico e a prática docente.”
A dificuldade em superar essa lacuna no contexto do curso de Licenciatura em Matemática pode estar relacionada ao fato de que tal aspecto é histórico, conforme já mencionado, e nasce junto com a licenciatura e seu modelo inicial, o 3+1, conforme elucida Pereira (2006, p. 54), segundo o qual “as disciplinas de natureza pedagógica, cuja duração prevista era de um ano, estavam justapostas às disciplinas de conteúdo, com duração de três anos.” Assim, o referido formato é decorrente do século XX. Contudo, atualmente, segundo Moreira (2012, p. 140), embora a organização curricular dos cursos de Licenciatura em Matemática não se configure literalmente no formato conhecido como 3+1, como nos cursos surgidos que se basearam no modelo da USP e da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), “a lógica subjacente ao 3+1 ainda permanece como a lógica estruturante desses cursos.” Isso pode indicar resquícios do modelo pretérito no formato atual de formação inicial, uma vez que, de acordo com Fürkotter e Morelatti (2007, p. 320):
[...] a concepção de formação de professores vigente na maioria dos cursos de licenciatura, ainda hoje, tem um caráter de complementação à formação profissional. A ênfase nos três primeiros anos está nos conteúdos específicos e somente no último surgem as disciplinas pedagógicas, configurando uma justaposição de dois conjuntos de conhecimentos, em que o saber disciplinar antecede o saber pedagógico.
A falta de articulação entre os conteúdos trabalhados na licenciatura e os conteúdos do currículo da Educação Básica tem uma relação também com a desconexão entre a formação proporcionada na licenciatura e a realidade escolar. Em pesquisa realizada por Rocha (2005), esse aspecto é ilustrado com o fato de que, embora os docentes participantes da pesquisa apontassem que o conhecimento matemático foi uma importante contribuição do curso para suas formações, “esse conhecimento não se mostrou adequado em relação aos conteúdos a ser ensinados.” (ROCHA, 2005, p. 151). Inclusive, Rocha e Fiorentini (2009, p. 125) salientam que “os professores iniciantes questionaram o fato de o conhecimento matemático privilegiado pela licenciatura não atender às necessidades conceituais da docência no Ensino Básico.”
Não obstante uma das principais contribuições ser a formação específica, e isso é um dos aspectos mais mencionados em estudos sobre a contribuição da formação da Licenciatura em Matemática, é preciso considerar, assim como Albuquerque et al. (2006, p. 20), que na formação matemática durante o curso de licenciatura se “deve explicitar as relações existentes entre a matemática estudada e aquela que o futuro professor irá ensinar. O estabelecimento de relações é uma forma de conhecimento mais elaborada e exigente do que aquela que passa pelo enunciado ou aplicação de certos saberes.” Em razão disso, não pode ser atribuída ao “futuro professor a responsabilidade de desenvolver por si só aquilo que é mais exigente.” (ALBUQUERQUE et al., 2006, p. 20).
Cabe destacar que, quanto à relação entre matemática acadêmica e escolar, não se está afirmando que essas matemáticas não estão vinculadas entre si, contudo, é imprescindível que os conteúdos matemáticos preconizados no currículo escolar sejam trabalhados no curso. Desse modo, Perin (2009, p. 110-111) chama atenção para o fato de que a matemática científica, priorizada, nem sempre coincide com o que é “considerado essencial da perspectiva da matemática escolar, pois as características da prática do matemático são diferentes da prática do professor de matemática, e é por isso que ao se formarem os professores se sentem impossibilitados de ministrarem suas aulas.” Destarte, Moreira e David (2003, p. 59) elucidam que é importante possibilitar ao futuro professor:
[...] uma concepção de formação “de conteúdo” que leve em conta a especificidade do destino profissional do licenciado e tome como referência central a matemática escolar. Isso pressupõe evidentemente o desenvolvimento, por meio de outros estudos e pesquisas, de uma compreensão aprofundada das relações entre matemática científica e matemática escolar e do papel de cada uma delas na prática docente escolar.
Ao discutir sobre esse aspecto é preciso considerar que os estudantes têm ingressado no ensino superior, de forma geral, apresentando diferentes lacunas, sobretudo no que se refere ao conhecimento de conteúdos matemáticos. Esse é sem dúvida um dos problemas que as faculdades e universidades têm se deparado, e, assim como Nacarato e Passos (2007, p. 175), concorda-se que é importante que a “retomada de conteúdos da educação básica seria interessante se o enfoque fosse voltado aos fundamentos dos diferentes campos matemáticos – álgebra, geometria, aritmética, medidas, trigonometria – com os quais o futuro professor irá atuar.” Além do mais, considera-se como fundamental na formação do professor de matemática a prática de “uma discussão sistemática com os licenciandos a respeito de conceitos que são fundamentais para o processo de educação escolar básica em matemática.” (MOREIRA; DAVID, 2003, p.73).
Na construção do conhecimento matemático do futuro professor é preciso considerar, como bem destacado pela SBEM (2013, p. 6), que os estudantes ingressantes no curso de Licenciatura em Matemática compartilham, geralmente, de “uma concepção segundo a qual a matemática seria um conjunto de conteúdos atemporais, inquestionáveis e desarticulados entre si, com exceção, talvez, da ideia de pré-requisitos, a qual já faz parte da organização linear dos conhecimentos desde a escola.” Consequentemente, o conhecimento matemático desses estudantes traduz-se quase sempre em operacional, “isto é, reduz-se a procedimentos exemplificados por seus professores na escola e repetidos por eles (alunos) em atividades semelhantes de fixação e nas avaliações.” (SBEM, 2013, p. 6). Entende-se, como ressaltado pela SBEM, que é imprescindível que essas concepções sejam retomadas e problematizadas com o estudante ingressante em um curso de formação de professores, a fim de que não se cristalizem ou se aprofundem durante a graduação. Além do mais, tais concepções e crenças podem se transformar em verdadeiros obstáculos, tanto na aprendizagem quanto “na elaboração de uma necessária percepção da matemática escolar como uma construção histórica e culturalmente situada.” (SBEM, 2013, p. 6). Assume-se, desse modo, segundo Albuquerque et al. (2006, p. 18), que:
[...] o conhecimento matemático não é constituído por uma listagem sequencial de tópicos separados entre si, nem uma listagem de regras e definições, ter uma compreensão aprofundada da unidade matemática, isto é, das conexões entre conceitos pertencentes aos diferentes temas, passa por ter uma visão integrada dos conteúdos matemáticos, recorrendo a um mesmo conceito em diversos contextos matemáticos e fazer recurso a diversas perspectivas ou abordagens. Só esta compreensão poderá permitir, no futuro, ao professor adaptar o ensino aos seus alunos, torná-lo flexível e adequado.
Outra lacuna a ser superada na formação do futuro professor de matemática refere-se ao desenvolvimento da leitura e da escrita. Esse problema, segundo Freitas e Fiorentini (2008, p. 139), revela que o curso de Licenciatura em Matemática é marcado por “uma tradição de pouca leitura e pouca escrita, priorizando um tipo de linguagem que, por ser técnica, inibe aquele que escreve, impedindo, assim, que exponha suas ideias com maior flexibilidade e crítica.” Tem-se por reflexo a concepção, no senso comum, de que a leitura, bem como a escrita, não são habilidades necessárias na formação de um professor de matemática. Freitas e Fiorentini (2009, p. 79) destacam ainda que “os cursos de graduação em matemática pouco enfatizam e exploram interações mediadas pela investigação e escrita discursiva.” Para os autores, nesses cursos há uma priorização de uma prática de ensino em que se objetiva privilegiar a oralidade, assim como “a repetição de procedimentos com extensas listas de exercícios, a distribuição de um conhecimento já pronto, sistematizado e formalizado, sem que o aluno tenha oportunidade de buscar, por si próprio, o conhecimento, seja mediante a pesquisa ou leituras.” (FREITAS; FIORENTINI, 2009, p. 79).
Nesse sentido, é importante que no curso de Licenciatura em Matemática se promova “uma prática de leitura e escrita discursiva, compreensiva e interpretativa em relação à matemática que é ensinada e aprendida.” (FREITAS; FIORENTINI, 2009, p. 80). Isso implica “uma prática que não procura apenas tratar o lógico-formalmente e o conhecimento matemático, mas também busca explorar e problematizar os múltiplos significados das ideias matemáticas.” (FREITAS; FIORENTINI, 2009, p. 80). Nessa mesma direção, Oliveira (1995, p. 154) complementa destacando que a escrita favorece a construção da consciência metalinguística, pois, pela escrita, “o sujeito pode refletir e construir conhecimento explícito e a consciência metacognitiva, pela possibilidade de verificação do discurso escrito enquanto produto de pensamento, de objetivação da experiência pessoal.” Atividades que demandam registros escritos discursivos, segundo Teixeira e Cyrino (2010, p. 46), possibilitam “aos futuros professores expressar o que e como aprendem; estabelecer conexões entre ideias matemáticas; desenvolver uma escrita potencialmente promissora para o seu desenvolvimento cognitivo; e criar outras tarefas escritas diversificadas e criativas.” Esse aspecto remete a um questionamento posto por Darsie e Carvalho (1998, p. 60), a saber:
Como disciplinas teóricas ou acadêmicas, especialmente as dedicadas às matérias específicas, que têm se desenvolvido a partir da perspectiva do ensino como ciência aplicada, podem contribuir para a formação do professor reflexivo, ou para a formação do futuro praticum reflexivo, já que estas disciplinas, até então, não contemplam situações reais de prática?
A esse questionamento poderia se acrescentar o fato de não se possibilitar ou de possibilitar de forma insuficiente, na formação inicial, o desenvolvimento da leitura e da escrita, elementos esses imprescindíveis na formação de um profissional reflexivo.
Quanto à lacuna que se refere à forma em que as práticas de ensino e/ou o estágio têm sido ofertados no curso, Barros (2008, p. 121-122) destaca que um dos grandes problemas identificados refere-se à “forte presença da relação dicotômica entre teoria e prática.” Em princípio, cabe salientar que as práticas não devem ser propiciadas apenas no componente curricular prática de ensino, mas devem ser distribuídas ao longo de todo o currículo do curso de Licenciatura em Matemática. Quando se discute sobre um curso que tem por premissa a formação de professores, é preciso garantir, conforme destaca Imbernón (2011, p. 66-67), práticas que “devem favorecer uma visão integral dessas relações e devem levar necessariamente a analisar a estreita relação dialética entre teoria e prática educativa”, assim como “servir de estímulo às propostas teórico-práticas formais, de maneira a permitir que os alunos interpretem, reinterpretem e sistematizem suas experiências passada e presente, tanto intuitiva quanto empírica.”
De acordo com Mendes (2010, p. 122), é importante levar em consideração “os conhecimentos, as crenças e as concepções que os formandos trazem sobre a atividade de ensino para, a partir desse conhecimento prévio, desenvolver práticas reflexivas e investigativas que impliquem auto-formação e desenvolvimento pessoal e profissional.” Como a representação que o licenciando tem da escola pode estar pautada nas memórias remanescentes de quando vivenciou a Educação Básica como estudante, esses elementos têm que ser abordados e problematizados durante o curso, especialmente antes do acadêmico iniciar as atividades de estágio, uma vez que a formação inicial, assim como o estágio, “passam a ser um período especial na vida desses futuros professores, pois as possibilidades dessa mudança se fazem, também, no lócus da universidade, tendo um professor formador embasando teoricamente e orientando esse processo formativo.” (PIMENTA; LIMA, 2012, p. 88).
Para que no estágio seja garantida a função de inserir efetivamente o futuro professor na atividade docente, há a necessidade de que no curso de licenciatura se procure olhar de uma forma diferenciada os estágios curriculares, uma vez que:
Estes devem contemplar atividades formativas mais significativas, próximas à realidade da escola, a fim de promover a reflexão e a construção de saberes profissionais circunstanciados pela realidade das relações e contextos sociais que se interpenetram com os conhecimentos acadêmicos e técnicos no contexto escolar, como melhor forma de instrumentalizar o professor iniciante de matemática. (OLIVEIRA, 2009, p. 100).
Faz-se necessário que o estágio não se configure em um espaço isolado e desarticulado do restante do curso, mas sim como um dos espaços que possibilitam aos futuros professores colocar em uso os conhecimentos que aprenderam, “ao mesmo tempo em que possam mobilizar outros, de diferentes naturezas e oriundos de diferentes experiências, nos diferentes tempos e espaços curriculares.” (SBEM, 2003, p. 22).
Para tanto, é imprescindível que seja superado o fato de que a maioria dos estágios se limita “a estágios burocratizados, carregados de fichas de observação, é míope, o que aponta para a necessidade de um aprofundamento conceitual do estágio e das atividades que nele se realizam.” (p. 45). Do mesmo modo, é importante repensar sobre o distanciamento que há entre o discurso sobre a escola abordada na formação inicial e as condições que os acadêmicos encontram efetivamente, na instituição escolar, no momento de realizar as atividades de estágio. Considere-se que uma das consequências advindas desse processo pode ser o “[...] susto diante da real condição das escolas e as contradições entre o escrito e o vivido, o dito pelos discursos oficiais e o que realmente acontece.” (PIMENTA; LIMA, 2012, p. 103).
Conforme ainda destacado pelas referidas autoras, na escola “o estagiário vai se deparar com muitos professores insatisfeitos, desgastados pela vida que levam, pelo trabalho que desenvolvem e pela perda dos direitos historicamente conquistados, além dos problemas do contexto econômico-social que os afeta.” (PIMENTA; LIMA, 2012, p. 104). Desse modo, “é comum os estagiários serem recebidos na escola com apelações do tipo: ‘Desista enquanto é tempo!’ e ‘O que você, tão jovem, está fazendo aqui?’” (PIMENTA; LIMA, 2012, p. 104). Assim, caso o acadêmico estagiário não esteja ciente dos problemas e desafios enfrentados, na atualidade, no contexto escolar, bem como não tenha um repertório mínimo de conhecimentos, isso é, uma preparação adequada para lidar com as adversidades de diferentes naturezas, o referido licenciando ficará à mercê de discursos que depreciam a profissão de professor e, por conseguinte, desmotivam o ingresso na carreira docente, o que pode ocasionar a sua desistência do curso e da profissão.
Uma outra lacuna que de alguma forma permeia as demais explicitadas diz respeito à formação e à prática do docente que atua no curso de licenciatura. Segundo Costa e Passos (2009, p. 598), tem havido nos últimos anos um crescimento de pesquisas desenvolvidas com professores atuantes na educação básica e sobre a formação inicial, “porém, até meados dos anos 2000, temáticas relacionadas ao professor formador e ao seu trabalho eram silenciadas.” Para as autoras, “as discussões sobre os desafios enfrentados pelos professores formadores ainda se constituem um campo novo e com estudos escassos, principalmente no que se refere aos professores formadores que atuam nos cursos de Licenciatura em Matemática.” (COSTA; PASSOS, 2009, p. 598).
É comum se ouvir falar ou identificar vários problemas presentes no curso de licenciatura, no entanto, é pouco problematizada a interferência do formador, bem como sua formação. Esse é um fator importante, uma vez que a efetividade de um currículo depende de como o professor formador participa e se apropria das mudanças propostas. Perpassa ainda pelas concepções que o professor formador tem sobre a profissão do magistério, sua função social e política; a matemática; como se aprende; como se ensina, entre outros aspectos. Certamente, esses elementos estão entrelaçados na prática do formador, levando-o a influenciar na construção de conhecimentos profissionais da docência. A necessidade de diálogo e cooperação entre os pares, a reflexão da e sobre a prática, o desenvolvimento de projetos interdisciplinares, trabalhar os conteúdos de forma diferenciada são alguns dos elementos que devem se fazer presentes não apenas na prática do professor da Educação Básica, mas também do professor formador.
Ao investigar sobre a formação e o desenvolvimento profissional de formadores de professores de matemática, Gonçalves (2000) constatou que: 1) a formação acadêmica dos professores formadores, “enquanto profissionais do ensino superior, foi predominantemente técnico-formal, com ênfase quase que exclusiva na formação matemática” (p. 197); 2) a formação geral e a formação pedagógica dos professores formadores, “além de reduzidas, aconteceram dissociadas da formação técnico-científica e distanciadas das práticas profissionais do professor de matemática” (p. 198); 3) com relação aos saberes da prática docente, os professores formadores foram unânimes em afirmar que não foram obtidos na formação inicial. Esses saberes implicavam em “como preparar, produzir e avaliar as aulas; como relacionar-se com os alunos e seus colegas; que conteúdos e atividades priorizar, tendo em vista a formação dos alunos e professores, etc.” (GONÇALVES, 2000, p. 198). Assim, considerou-se, como principal formadora desses saberes da prática profissional, a própria experiência discente ou docente (GONÇALVES, 2000).
Tudo isso corrobora com a discussão apresentada por Maria Laura M. Gomes, nos anais do V Fórum Nacional das Licenciaturas em Matemática (SBEM, 2016, p. 22), ao destacar que no cotidiano profissional de muitos professores que atuam nas “licenciaturas em Matemática, o essencial da formação é o domínio dos conteúdos da matemática acadêmica, mesmo sem uma explicitação mais precisa de seu papel ou quaisquer questionamentos acerca de sua contribuição para a prática pedagógica na Educação Básica.”
Sabe-se que a Educação Matemática tem impulsionado mudanças com relação à forma de se conceber e de se trabalhar com a matemática em diferentes níveis de ensino. Uma mudança perceptível se refere à inserção de temáticas e tendências pertencentes ao âmbito da Educação Matemática, que têm sido contempladas no currículo do curso de Licenciatura em Matemática. Tomando-se por referência Fiorentini e Lorenzato (2006), pode-se considerar que a Educação Matemática no Brasil tem aproximadamente cinco décadas, o que possibilita inferir que atualmente há muitos professores formadores que, em razão do contexto histórico, social e político do país, vivenciaram uma formação escolar e acadêmica pautada na racionalidade técnica e que, portanto, esse aspecto pode incidir na prática pedagógica desses professores formadores. Isso vai ao encontro do que afirma Marcelo Garcia (2010, p. 13), segundo o qual “a forma como conhecemos uma determinada disciplina ou área curricular, inevitavelmente, afeta a forma como depois ensinamos.”
Considerações finais
A quantidade de lacunas reveladas nas diferentes pesquisas apresenta indícios de que a construção de um repertório de conhecimentos que atendam efetivamente as demandas do professor, sobretudo no ato de ensinar, pode não se concretizar de fato na formação inicial do professor de matemática. Não obstante, vale esclarecer que se considera que, embora haja uma variedade de lacunas, não se está questionando a importância e contribuição da licenciatura, como instância formativa, na formação profissional do futuro professor. Porém, chama-se a atenção para esses problemas, considerando-se que, se fossem ao menos minimizados, a contribuição da licenciatura para a formação docente poderia ser potencializada. Portanto, verifica-se a necessidade de haver mudanças no formato atual do curso.
Ao se compreender a formação do professor como um processo contínuo e que, portanto, não se limita à licenciatura, poder-se-ia deduzir que as lacunas resultantes da formação inicial poderiam ser supridas na formação continuada ou até com a experiência profissional. No entanto, assim como Cruz (2013, p. 21), considera-se que conhecimentos e “os saberes e as concepções que orientarão o desenvolvimento profissional do professor de matemática devem ser organizados na graduação.” Não no sentido de esgotar a construção dos conhecimentos, mas como um momento-chave, um ponto de partida para fornecer subsídios à atuação profissional e à ampliação de sua base de conhecimentos para o ensino. Portanto, explora-se a ideia de que a formação inicial pode contribuir para a construção de uma base mais abrangente de conhecimentos para o ensino, visto que o termo base remete a algo sólido, que fornece uma sustentação para a reformulação e a construção de novos conhecimentos.
Além do mais, a simples experiência profissional sem uma postura reflexiva, atrelada à compreensão e busca individual de continuar estudando, e, portanto, se formando continuamente, concomitantemente com cursos ou outras atividades pontuais que muitas vezes são intitulados de formação continuada, pode não ser suficiente para atender à diversidade de lacunas explicitadas. Cabe esclarecer que não se está afirmando que a prática profissional e a formação continuada não são importantes instâncias formativas para o professor. Contudo, da mesma maneira que há limitações na formação inicial, há também no contexto profissional. Sendo tais limitações agravadas pela ausência de uma política, portanto, de garantias, de formação continuada. E quando é oportunizada a formação continuada, geralmente não atende de forma efetiva as demandas dos professores. Desse modo, entende-se que essa pesquisa coloca em evidência a repercussão da formação acadêmica na atuação profissional, bem como a necessidade de se debater e de se pensar em mecanismos e estratégias a fim de suprimir as lacunas e, por conseguinte, maximizar as potencialidades do curso de Licenciatura em Matemática, como um dos lócus formativos do professor para a construção de conhecimentos profissionais da docência.