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Revista Educação e Políticas em Debate

versão On-line ISSN 2238-8346

Rev. Educ. Polít. Debate vol.13 no.2 Uberlândia maio/apr. 2024

https://doi.org/10.14393/repod-v13n2a2024-70974 

DOSSIÊ - “INTERNACIONALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: TENDÊNCIAS GLOBAIS E DESAFIOS NACIONAIS”

O Projeto Principal de Educação e a internacionalização da reforma curricular latino-americana: reverberações na BNCC

The main education project and the internationalization of Latin American curriculum reform: reverberations in the BNCC

El principal proyecto educativo y la internacionalización de la reforma curricular latino-americana: repercusiones en la BNCC

Bruno Nicolau Cerine da Cruz

Mestre em Educação.

1 
http://orcid.org/0000-0002-7469-2332

Jorge Henrique de Lima Monteiro

Mestre em Educação.

2 
http://orcid.org/0000-0002-7493-3191

Telma Adriana Pacifico Martineli

Doutora em Educação.

3 
http://orcid.org/0000-0003-2997-2957

1Universidade Estadual de Maringá (Doutorando em Educação), Maringá, Paraná, Brasil. E-mail: bruno-piaui@hotmail.com;

2Universidade Estadual de Maringá (Doutorando em Educação), Maringá, Paraná, Brasil. E-mail: jlima_monteiro@hotmail.com;

3Universidade Estadual de Maringá (Docente no Departamento de Educação Física e no Programa de Pós-Graduação em Educação), Maringá, Paraná, Brasil. E-mail: telmamartineli@hotmail.com;


Resumo

Este artigo teve como objetivo analisar os boletins informativos publicados pela Unesco/Orealc, de 1982 a 1999, para orientar o Projeto Principal de Educação e a reforma curricular na América-Latina, em particular a BNCC, no Brasil. Tratou-se de uma pesquisa de caráter documental fundamentada pelos pressupostos teórico-metodológicos de Shiroma, Campos e Garcia (2005). Por meio da análise do discurso, foi possível identificar que o Projeto Principal de Educação influenciou a construção da política educacional brasileira com alguns princípios, tais como: a gestão financeira da educação, o aluno como protagonista no processo de ensino-aprendizagem e o desenvolvimento de habilidades para atender às demandas do mercado de trabalho.

Palavras-chave Política Educacional; Projeto Principal; Reformas Curriculares

Abstract

This article aimed to analyze the newsletters released by Unesco/Orealc between 1982 and 1999, to guide the Main Education Project and the curriculum reform in Latin America, particularly the BNCC, in Brazil. It was a documentary research based on the theoretical and methodological framework of Shiroma, Campos and Garcia (2005). Through discourse analysis, it was possible to pinpoint the influence of the Main Education Project on shaping Brazilian educational policy with some principles, such as the financial management within education, students as protagonists in the teaching-learning process and the development of skills to meet the demands of the labor market.

Keywords Educational Policy; Main Project; Curricular Reforms

Resumen

Este artículo tuvo como objetivo analizar los boletines publicados por Unesco/Orealc entre 1982 y 1999, con el fin de orientar el Proyecto Principal de Educación y la reforma curricular en América Latina, específicamente la BNCC de Brasil. Se trató de una investigación documental basada en los supuestos teórico-metodológicos de Shiroma, Campos y García (2005). A través del análisis del discurso, se logró identificar que el Proyecto Principal de Educación influyó en la construcción de la política educativa brasileña con algunos principios, como la gestión financiera de la educación, el alumno como protagonista en el proceso de enseñanza-aprendizaje y el desarrollo de competencias para atender a las demandas del mercado laboral.

Palabras clave Política Educativa; Proyecto Principal; Reformas Curriculares

Introdução

A política educacional, enquanto política pública, tem sido objeto de muitos estudos e pesquisas de grupos científicos, no Brasil e na América Latina, alcançando dimensões globais. O conjunto de produções sobre o tema é relativamente amplo, porém carece de novas incursões, tanto no âmbito de estudos teóricos como de dados empíricos, à medida que a sociedade está em constante movimento e as políticas educacionais e curriculares emergem desse contexto dinâmico e contraditório.

Na conjuntura da reestruturação produtiva do capitalismo global, formam-se as bases da acumulação flexível e da consolidação do ideário neoliberal. A globalização e a mundialização regulam as ações políticas de acordo com a lógica do capital. Nesse sentido, o grande desafio que se coloca tem sido analisar o encadeamento dos discursos presentes nessa conjuntura e o contexto das orientações advindas dos organismos e organizações multilaterais, bem como suas influências nas políticas para a educação dos países em desenvolvimento e periféricos, entre eles o Brasil.

Dale (2004, p. 423), ao tratar da globalização e sua relação com a educação, demonstra a existência de uma "Agenda Globalmente Estruturada para a Educação" (AGEE), que implica, especialmente, “forças econômicas operando supra e transnacionalmente para romper, ou ultrapassar, as fronteiras nacionais, ao mesmo tempo que reconstroem as relações entre as nações”. A existência da AGEE e da internacionalização da educação move esforços de pesquisadores para compreender suas repercussões e impactos nas reformas curriculares e orientações pedagógicas advindas dos países dominantes.

O objeto da pesquisa ora apresentada é o Projeto Principal de Educação (PPE) enquanto expressão desse processo de reconstrução das relações entre as nações no âmbito da educação e como exemplo de conformação e padronização de um modelo de base comum que conduz e orienta as reformas curriculares latino-americanas e que culminou na elaboração, aprovação e implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), no Brasil, em 2017; em outros países latino-americanos, também foram elaborados documentos como a Ley de Educación Nacional, na Argentina, em 2006 (ARGENTINA, 2006), a Lei General de Educación, no Uruguai, em 2008 (URUGUAI, 2008), e as Bases Curriculares, no Chile, em 2015 e 2019 (CHILE, 2018).

A problemática que norteou a pesquisa orientou-se na direção de questionar: Como os pressupostos e princípios como Necessidades Básicas de Aprendizagem e Pedagogia Ativa, indicados nos cadernos da Unesco/Orealc para divulgação dos resultados alcançados pelo Projeto Principal de Educação (PPE), ramificam-se e foram/são incorporados aos currículos para a educação básica de países latino-americanos? Como tais princípios aparecem nesses documentos?

Uma das justificativas apresentadas no PPE e em seus documentos (pareceres, declarações e boletins informativos) é que, para que ocorresse a reforma qualitativa da educação, nos países latino-americanos, nas décadas de 80 e 90, dever-se-iam reformar a gestão e os próprios currículos. Ao defender-se a reforma curricular, alega-se, no PPE, que é necessário romper com a forma tradicional de ensino (ultrapassada) e renovar os conteúdos, além de centralizar a ação educativa no aluno e não no professor, bem como na criatividade, com foco na investigação permanente. Para esse processo se solidificar, subsidiaram-se nos princípios da pedagogia nova, baseando-se nos procedimentos, na atitude e no conceito.

O objetivo da pesquisa, cujas sínteses são apresentadas neste manuscrito, foi analisar os boletins informativos publicados pela Unesco/Orealc, de 1982 a 1999, que orientam o Projeto Principal de Educação e a reforma curricular na América-Latina, em particular a BNCC no Brasil.

Metodologia

Este estudo tem caráter documental. As fontes primárias para obtenção dos dados foram os Boletins publicados periodicamente pela Oficina Regional de Educação da Unesco para a América Latina e o Caribe (UNESCO/OREALC4), com o objetivo de registrar e divulgar as ações realizadas no marco do Projeto Principal de Educação para a América Latina e Caribe (PPE). Considerando a Declaración de México, publicada em 1979, como documento em que o PPE foi idealizado, o marco histórico temporal do projeto abrange o período de 1979 a 1999. Segundo a UNESCO (2001, p. 8, tradução nossa), durante esse período, o PPE passou por três etapas: “A etapa de fundação do PPE: de México (1979) a México (1984); a Segunda etapa do PPE: de Bogotá (1987) a Quito (1991); a Terceira etapa do PPE (1993 – 1999): Santiago (1993) e Kingston (1996)”.

Os Boletíns informativos cumpriram um papel importante na difusão das ações realizadas no âmbito do PPE. Como nos informa a Unesco (2001, p. 144, tradução nossa): “As publicações da UNESCO são muito valorizadas nos países, particularmente o Boletim do Projeto Principal de Educação [...]. As publicações chegaram, sobretudo, aos Ministérios de Educação [...]”. Entendemos essa informação como um ponto importante, pois em termos de proposições de políticas educacionais, os Ministérios de Educação possuem ou deveriam possuir participação efetiva. No total, foram publicados cinquenta (50) Boletíns, de 1982 a 1999. Essas publicações são de acesso livre, podendo ser encontradas na íntegra na Biblioteca Digital da Unesco5.

Para a compreensão dos objetivos e princípios que nortearam as estratégias, ações e atividades propostas no âmbito do Projeto Principal de Educação para a América Latina e Caribe, as análises dos discursos e narrativas dos Boletíns foram realizadas à luz dos contextos indicados por Shiroma, Campos e Garcia (2005). Com base nas autoras, entendemos que os Boletíns apresentam e representam as narrativas que deram suporte às políticas educativas engendradas no marco do PPE e influenciaram os currículos nacionais. Outros autores balizaram nossas análises, tais como Galiani (2009), Souza e Martineli (2012), Noma (2011) e Pereira (2017).

O Projeto Principal de Educação na América Latina e a reforma da educação latino-americana A década de 1980: publicação dos primeiros Boletíns e a narrativa da reforma curricular como um dos pilares para melhorar a qualidade e a eficiência dos sistemas educativos

Nesta subseção, apresentamos e discutimos alguns dos princípios e objetivos que balizaram as ações propostas a partir do Projeto Principal de Educação para a América Latina e Caribe. Para a concretização dos objetivos e atividades do PPE, produziu-se um discurso que se tornou hegemônico a partir da década de 1970, reproduzido e materializado nas políticas educacionais e curriculares desenvolvidas pelos países latino-americanos.

Esse discurso foi intensamente propagado por canais de comunicação, tais como: reuniões e o conjunto de Boletíns publicados e disseminados pela Oficina Regional de Educação da Unesco para a América Latina e o Caribe (UNESCO/OREALC). Por meio dos Boletíns informativos foi possível propagar as ideias debatidas, conforme indicado no Boletín nº 1 (UNESCO/OREALC, 1982, p. 3, tradução nossa): “O Boletín se propõe a registrar, comentar e difundir as atividades que os Estados Membros da região realizem no marco do Projeto Principal [...]”.

O Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe teve suas ações desenvolvidas ao longo de vinte (20) anos. Entre as ações promovidas, estão as chamadas Reuniões do Comitê Regional Intergovernamental do Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe (PROMEDLACs6). Dessas reuniões originaram-se declarações, pareceres, informes e outros documentos ligados ao PPE, os quais orientaram e sustentaram a elaboração e o desenvolvimento das políticas educacionais de países como o Brasil, o Chile e o Uruguai (CERINE DA CRUZ, 2021).

Historicamente, o PPE teve suas bases políticas e ideológicas firmadas em 1979, com a elaboração e divulgação da Declaración de México, a qual foi resultado das discussões realizadas no âmbito da Conferência de Ministros da Educação e Ministros Encarregados pelo Planejamento Econômico que, por sua vez, foi organizada pela própria UNESCO em cooperação com a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) (UNESCO, 2001). O objetivo da conferência foi “[...] identificar os problemas educativos da região e elaborar um projeto “principal” que teve como horizonte os anos 2000” (UNESCO, 2001, p. 8, tradução nossa).

Diante desse objetivo, entendemos que com a constituição e elaboração de um Projeto educacional para a região latino-americana foram lançados os encaminhamentos e delineamentos para o processo de internacionalização e padronização das políticas educativas, em todas as suas instâncias, especialmente a curricular, no contexto dos países dessa região. Compreendemos ainda a Declaración de México, de 1979, como marco histórico inicial do Projeto Principal de Educação, o qual foi base para o desenvolvimento da educação no século XXI na América Latina.

Nesse sentido, ainda que as ações desenvolvidas no âmbito do PPE tenham sido colocadas em movimento principalmente nos anos 80 e 90, período de sua vigência efetiva, ressaltamos que seus princípios e objetivos ainda se projetam nas políticas educacionais para a educação básica dos países latino-americanos até os dias atuais, agora somando-se a outras ações, capitaneadas não só pela própria UNESCO, como também por instituições internacionais.

Buscando articular suas ações gerais com as particularidades de cada país da região, o Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe teve três objetivos principais, os quais foram firmados na Recomendación de Quito7. Segundo o que está disposto no Boletín nº 2 (UNESCO/OREALC, 1982, p. 4, tradução nossa), são eles:

1) Assegurar escolarização a todas as crianças em idade escolar até 1999, bem como oferecer-lhes uma educação geral mínima de 08 a 10 anos; 2) Eliminar o analfabetismo antes do fim do século e desenvolver e ampliar serviços educativos para adultos; e, 3) Melhorar a qualidade e a eficiência dos sistemas educativos por meio da realização de reformas as quais forem necessárias.

É no terceiro objetivo que reside o enfoque das nossas análises, pois, no movimento das reformas para melhorar a qualidade e a eficiência da educação dos países latino-americanos, a reforma curricular foi um dos pilares que sustentaram o discurso de melhoramento e eficiência da educação básica.

A qualidade e eficiência dos sistemas educativos também foi um ponto central nos debates realizados na Reunión de Santa Lucia8, em 1982. O texto do Boletín nº 2 indica que, nos debates dessa reunião, foram determinadas quatro (4) áreas necessárias para se alcançar o objetivo almejado, dentre as quais estão: “1. A formação de educadores para as populações-alvo do Projeto Principal; 2. O desenvolvimento e a avaliação de currículos mais relevantes” (UNESCO/OREALC, 1982, p. 8, tradução nossa).

A seguir, na Figura 1, sintetizamos algumas das temáticas e conceitos centrais incorporados aos debates realizados para discutir as atividades e ações promovidas no âmbito do PPE.

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos Boletins divulgados pela UNESCO.

Figura 1 Temáticas centrais a respeito do currículo nos Boletíns divulgados na primeira década do PPE (1979 a 1989) 

A temática do currículo flexível e para o trabalho, que promovesse a autodependência/autossuficiência e a formação técnico-profissional do indivíduo, também foi apresentada no Boletín nº 2: “A reunião chamou atenção sobre a necessidade de mudar o atual currículo de orientação acadêmica por um currículo funcional, pertinente e prático. [...] As reformas necessárias devem apontar para a autodependência do aluno e a preparação para o trabalho” (UNESCO/OREALC, 1982, p. 8, tradução nossa).

No Boletín nº 3, identificamos que a temática da reorganização dos conteúdos é uma dimensão da qualidade da educação (UNESCO/OREALC, 1983). Nessa ótica, basicamente, no Boletín nº 3, foram apontadas duas justificativas em defesa da reorganização dos conteúdos: a primeira diz respeito ao fato de que foi constatada “[...] uma disfuncionalidade entre os conteúdos educativos e as necessidades sociais e econômicas [...]”; e a segunda é que, além de tal disfuncionalidade, “[...] havia uma inadequação na organização dos conteúdos e metodologias em relação aos avanços das categorias de aprendizagem e das técnicas educativas” (UNESCO/OREALC, 1983, p. 15, tradução nossa).

Essa inadequação, segundo o próprio documento, gerou certos questionamentos no que se refere à percepção setorizada da realidade e do indivíduo e a divisão do saber em disciplinas enclausuradas (OREAL/UNESCO, 1983). A partir disso, no Boletín nº 3, enfatizou-se a existência de novos enfoques integrais de aprendizagem, tais como: Educação para a Paz, Educação para o Desenvolvimento, Educação Ambiental, entre outas. Segundo o que está disposto no documento: “Estes novos enfoques implicam não somente a reorganização dos conteúdos em uma forma interdisciplinar, como também a promoção de metodologias de ensino-aprendizagem que permitam a análise crítica e a participação responsável do indivíduo [....]” (UNESCO/OREALC, 1983, p. 15-16, tradução nossa). Participação que ocorre tanto no processo educativo quanto no contexto da comunidade.

A partir da análise do Boletín nº 4, ressaltamos que o Brasil foi um dos países que, em 1983, movimentou ações com vistas ao processo de reorganização curricular e melhora da qualidade e eficiência do sistema educativo, como o “[...] apoio à criação de alternativas curriculares com participação das universidades [...]” (UNESCO/OREALC, 1983, p. 7, tradução nossa).

Em relação à questão da reestruturação curricular, da pedagogia ou das metodologias de ensino-aprendizagem, bem como da flexibilização do currículo, a partir das narrativas apontadas no Boletín nº 6, ressaltamos o seguinte: 1. É preciso produzir mudanças e inovações na orientação, conteúdo e métodos da educação no sentido de uma maior funcionalidade [...]; 2. Aplicação de uma pedagogia que fomente a criatividade, a compreensão das realidades e os problemas mundiais, regionais, nacionais e locais, assim como o exercício das faculdades críticas e dos valores de solidariedade e participação social; 3. Reestruturação dos currículos com fins de assegurar o desenvolvimento de atitudes e capacidades do indivíduo e sua preparação para a solução de problemas, bem como de facilitar sua adaptação às diferentes características de diversos grupos de educandos, particularmente os grupos menos favorecidos; 4. Flexibilização curricular alinhada à flexibilização dos aspectos administrativos e financeiros da educação; por fim, 5. Será necessário também superar a rigidez e o formalismo de muitas das normas nacionais reguladoras dos processos educativos como a organização escolar, curricular, tarefas dos professores e avaliação dos resultados (UNESCO/OREALC, 1985).

Chamamos a atenção para o fato de que, já nos primeiros anos de vida do Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe, foram incorporados conceitos como capacidades e atitudes, criatividade e resolução de problemas, solidariedade e participação social e adaptação. Conceitos estes que, ainda que sob nova roupagem, revigoram em diversas políticas educacionais e curriculares, após as décadas de 1980 e 1990, como a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018).

Em síntese, diante da breve análise de alguns dos Boletíns divulgados pela UNESCO/OREALC, na década de 1980, ressaltamos que o discurso de defesa da reforma curricular para a educação básica tem sua fundação nesse período. Contudo, com a chegada dos anos de 1990, segunda década de operação do PPE, a narrativa para a melhora e eficiência dos sistemas educativos foi intensificada, uma vez que foram resgatadas e incorporadas novas temáticas e conceitos, os quais veremos mais à frente. Inclusive, esse processo de intensificação também ocorreu por meio da participação de outras instituições internacionais, além da UNESCO.

A década de 1990: a satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem como critério de transformação curricular

Se nos anos de 1980, a reforma curricular foi um dos pilares que sustentaram o discurso de melhoramento e eficiência dos sistemas educativos no âmbito do Projeto Principal de Educação para a América Latina e Caribe, com a virada para a década de 90, as Necessidades Básicas de Aprendizagem tornaram-se critério para a transformação curricular pretendida.

Em nossas análises, o que identificamos foi que o discurso em prol da qualidade da educação, engendrado até então, não só permaneceu como também se intensificou, principalmente porque às ações de reforma curricular, a partir do Projeto Principal de Educação, somaram-se outras ações, também capitaneadas pela UNESCO e em parceria com outras instituições internacionais, com vistas a um contexto de internacionalização mais global da educação (NOMA, 2011).

Falamos, aqui, especialmente, da Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, entre os dias 5 e 9 de março de 1990, na qual, conforme disposto no Boletín nº 21, foi aprovada a Declaração Mundial sobre Educação para Todos e o Marco de Referência para a Ação Encaminhada a Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem (UNESCO/OREALC, 1990). Essa conferência foi convocada pela UNESCO, UNICEF, Banco Mundial e PNUD, a qual se firmou como “[...] uma revitalização do Projeto Principal de Educação para América Latina e Caribe, o qual constitui-se um precedente importante deste evento e via fundamental para lograr seus objetivos na região” (UNESCO/OREALC, 1990, p. 4, tradução nossa).

No início dos anos 90, a partir da Conferência, a satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem, como indicado no Boletín nº 24, tornou-se critério para a transformação curricular:

A reorientação do currículo para o melhoramento da qualidade da educação básica, transferindo o eixo curricular embasado em disciplinas a outro sustentado nas necessidades básicas de aprendizagem, derivadas das características e orientação de cada país. Entre elas são consideradas tanto as de caráter instrumental como aquelas de caráter ético-transformativo, as quais se referem à relação consigo mesmo, à identidade cultural e ao meio ambiente

(UNESCO/OREALC, 1991, p. 36, tradução nossa, grifo nosso).

Todo o debate em torno da PROMEDLAC IV resultou na elaboração da Declaración de Quito, a qual reitera que melhorar a qualidade da educação significa “[...] promover a transformação curricular através de propostas embasadas na satisfação das necessidades educativas básicas do indivíduo e da sociedade” (UNESCO/OREALC, 1991, p. 45, tradução nossa).

Na Figura 2, a seguir, sintetizamos o que temos discutido até o momento.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 2 As necessidades básicas de aprendizagem para a reforma curricular no âmbito do Projeto Principal de Educação na década de 1990. 

Como indicado na Figura 2, conceitualmente, as Necessidades Básicas de Aprendizagem, dispostas na Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem (UNESCO, 1998) e resgatadas no Boletín 31 (UNESCO/OREALC, 1993), referem-se “[...] tanto aos instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto aos conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes) [...]” (UNESCO, 1998, p. 3).

Nos discursos apresentados na série de Boletíns publicados pela UNESCO/OREALC, especialmente a partir da década de 1990, defende-se constantemente uma virada na concepção de currículo pautado na perspectiva tradicional, o que é chamado de Modelo Frontal, em que “[...] o professor fala e os alunos escutam passivamente” (UNESCO/OREALC, 1993, p. 9, tradução nossa), para uma nova concepção de currículo para a educação básica dos países latino-americanos, estruturado a partir da lógica das necessidades básicas de aprendizagem e não de conteúdos específicos. Essa concepção se propagou, especialmente, a partir do Boletín 31:

Do ponto de vista pedagógico, sinalizaram a necessidade de introduzir nos desenhos curriculares uma nova lógica: a de satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem (NBA), pertinentes para o desempenho nos diferentes âmbitos da sociedade. Agora é mais evidente a necessidade de pensar a educação desde as competências requeridas pelos sujeitos e pela sociedade, ou seja, superar o enfoque tradicional, centrado em uma oferta educativa desvinculada das demandas da sociedade. Isto implica ampliar o número de atores sociais que definem os objetivos do currículo e desenhar modalidades pedagógicas que formem indivíduos criativos e solidários

(UNESCO/OREALC, 1993, p. 9, tradução nossa, grifos nossos).

Outra ação que impactou a educação básica latino-americana, no período dos anos 90 e, atualmente, ainda impacta, foi a elaboração e divulgação do Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, presidido e coordenado por Jacques Delors, sob o seguinte título: “Educação: um tesouro a descobrir”; a primeira edição desse documento foi publicada em 1996.

A partir da década de 90, tanto o conceito de Necessidades Básicas de Aprendizagem quanto os quatro (4) Pilares da Educação passaram a balizar as reformas curriculares engendradas pelos países da América Latina, conforme as particularidades de cada um. Não só no período, mas ainda na atualidade, ambos os conceitos permanecem presentes.

Em síntese, articulado com a Conferência e o Relatório, o PPE, por meio de suas ações, contribuiu e intensificou o processo de reforma, padronização e internacionalização dos diferentes currículos no contexto da educação básica latino-americana. Isso porque, a partir das ideias produzidas por ambos – Conferência e Relatório -, foram incorporados ao discurso disseminado no âmbito do PPE, para a reforma curricular, ideias que se pautam em um método de ensino ativo, que, no nosso entendimento, contribuem para a compreensão dos rumos que a formação humana e a formação pedagógica do professor tomaram.

O discurso e a reprodução de ideias na direção de uma perspectiva ativa de ensino será analisado e discutido a seguir.

O discurso por uma metodologia ativa no PPE: John Dewey

É possível identificar, a partir das incursões documentais realizadas, que a influência do pensamento escolanovista esteve presente na base da política educacional. As ideias pedagógicas de John Dewey (1859- 1952) tiveram forte impacto na educação estadunidense entre os finais do século XIX e meados do século XX. Cunha (2001, p. 86-87), um dos principais estudiosos do pensamento deweyano no Brasil, destaca que a produção de Dewey data de uma época em que

[...] as sociedades ocidentais - e a sociedade norte-americana, em particular - vivenciavam profundas transformações em curto espaço de tempo. A mudança assumia aspecto de celeridade jamais vista até então, seja no terreno científico, seja na economia, seja no campo da moral e dos costumes.

Na tentativa de amenizar as desigualdades sociais, Dewey propôs um novo modelo educacional, cujo objetivo era “formar uma consciência nacional e preparar uma mão-de-obra qualificada, condição indispensável para a produtividade na indústria” (GALIANI, 2009, p. 73). Com esse intuito, algumas nações passaram a desenvolver Sistemas de Ensino para concretizar tais objetivos.

A escola, na interpretação de Galiani (2009, p. 73), assume a função:

[...] amenizadora das contradições sociais, o espaço escolar apresenta-se como neutro, em local onde todos teriam as mesmas oportunidades, os conteúdos ensinados tinham a função de habilitar os alunos para a ascensão social, que depende, porém, muito mais do esforço e da capacidade de cada um.

A escola-laboratório procurava, colocando o aluno como agente ativo da aprendizagem, desenvolver a solidariedade com o objetivo de formar o cidadão. Nesse sentido, apresentamos na figura a seguir uma síntese da influência escolanovista e do construtivismo sobre os métodos de ensino.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 3 Influência de John Dewey sobre o ensino 

É possível perceber que a experiência e a reflexão se apresentam como processos mediadores da aprendizagem. Ademais, é fundamental destacar que os experimentos com a pedagogia nova já tinham sido desenvolvidos em países da América Latina, inclusive no Brasil, por meio da influência do pensamento do filósofo e educador John Dewey.

Souza e Martineli (2012, p. 160) procuram traçar uma trajetória histórica da influência de John Dewey, na educação brasileira. Os autores destacam que: “É possível estabelecer dois momentos distintos dessa influência deweyana no Brasil: o período 1930 a 1950 e, posteriormente, a década 1990”. Os autores consideram que o primeiro momento foi marcado pelo embate político de introdução do ideário escolanovista no Brasil, presente no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em que merece destaque Anísio Teixeira (1900-1971), principal interlocutor de Dewey no Brasil, e outros importantes defensores da educação daquele período como Fernando de Azevedo e Lourenço Filho. Souza e Martineli (2012, p. 160) destacam ainda que, no segundo período da influência, “Dewey aparece atrelado à Formação de Professores, sobretudo a partir da noção de Professor Reflexivo. A retomada, nessa segunda fase, se dá pela adoção de educadores estrangeiros, como: Nóvoa, Schön, McLaren, entre outros”.

De acordo com Souza e Martineli (2012), do ponto de vista epistemológico, Dewey possui o pragmatismo como pressuposto de pensamento. Já no que corresponde ao posicionamento político, é crítico tanto do liberalismo quanto do capitalismo, todavia deixa claro ser adepto ao liberalismo clássico. Essas informações fornecem subsídios para compreender que as concepções pedagógicas oriundas da escola nova tendem a ser próximas de uma educação para atender ao desenvolvimento do capital e à manutenção do status quo.

Impressões do PPE na reforma curricular brasileira: BNCC em foco

A “Base Nacional Comum Curricular: educação é a base (2017)” é um documento curricular recente na política educacional brasileira para a Educação Básica. De referência nacional, a BNCC normatiza e “[...] define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica [...].” (BRASIL, 2018, p. 7).

A BNCC surgiu de um longo processo de formulação, que contou com a participação de sujeitos organizados de forma individual e/ou coletiva, com diferentes interesses ideológicos, políticos, econômicos e educativos, ligados tanto às instituições públicas quanto às privadas, com e/ou sem fins lucrativos (PERONI; CAETANO, 2015).

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 4 Marco Histórico da Base Nacional Comum Curricular. 

Apesar de sua materialização em 2017, as influências sobre a construção da Base Nacional Comum Curricular apresentaram-se anos antes, com os preceitos neoliberais iniciados nas décadas de 1980 e 1990, principalmente sob influência dos organismos multilaterais como a OCDE e o Banco Mundial. Cabe ressaltar que, no próprio Projeto Principal de Educação para a América Latina e Caribe, em especial na Declaración de Ciudad de México, em 1979, dentre tantos outros, apresentavam-se os seguintes objetivos:

Emprender las reformas necesarias para que la educación responda a las características, necesidades, aspiraciones y valores culturales de cada pueblo y para contribuir a impulsar y renovar la enseñanza de las ciencias y a estrechar la vinculación de los sistemas educativos con el mundo del Trabajo [...] Utilizar todos los medios disponibles, desde la escuela y los medios de comunicación hasta los recursos naturales, y realizar un esfuerzo especial para que se alcance, a corto plazo, la transformación de los currículos en consonancia con las necesidades de los grupos menos favorecidos, contando para ello con la participación activa de la población involucrada [...] Propiciar una organización y una administración de la educación adecuadas a las nuevas exigencias las que, en la mayoría de los países de la región, requieren una mayor descentralización de las decisiones y procesos organizativos, una mayor flexibilidad para asegurar acciones multisectoriales y lineamientos que estimulen la innovación y el cambio.

(UNESCO-OREALC, 1979, p. 4, grifos nossos)

Percebe-se, portanto, que reformar os currículos dos países periféricos em consonância com as necessidades do mercado de trabalho é uma preocupação dos representantes neoliberais do capital. O ideal neoliberal, para os diversos setores sociais da política brasileira, em especial o educacional, advém de “intervenções” internacionais que incorporaram às políticas educacionais um caráter formativo pautado pedagogicamente no desenvolvimento das habilidades e competências, conforme apontam autores como Krawczyk e Vieira (2012), Marsiglia et al. (2017), Vasconcelos (2020), entre outros.

O foco nas competências é apresentado na BNCC na seção dos fundamentos pedagógicos e esse enfoque também é “[...] adotado nas avaliações internacionais da OCDE”, o que evidencia a influência dos organismos multilaterais nas políticas educacionais brasileiras. O objetivo almejado a partir da adoção das competências, de acordo com o documento, é que os estudantes aprendam, “[...] sobretudo, do que devem saber fazer” (BRASIL, 2018, p. 13).

A noção de competências, de acordo com Le Boterf (2003), oriunda da psicologia e da administração, surgida entre as décadas de 1970 e 1980, está concatenada com as transformações das relações de trabalho, correspondendo a recursos cognitivos que auxiliam as pessoas para a tomada de decisão em respostas exigidas pelo mercado de trabalho, favorecendo a empregabilidade.

Conforme o relatório da OCDE de 2015, a inserção das competências socioemocionais é imprescindível para o sucesso e desenvolvimento profissional, uma vez que a perseverança, a sociabilidade, o respeito, a autoestima, bem como aprender a administrar o estresse e a frustração e lidar com mudanças como divórcios e desemprego, todas essas competências precisam ser desenvolvidas para “[...] ajudar as pessoas a enfrentar os desafios do mundo moderno.” (OCDE, 2016, p. 34).

A Base Nacional Comum Curricular caminha na mesma perspectiva orientada pela OCDE e outros organismos, ao estabelecer o conceito de competências adotado no documento:

Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.

(BRASIL, 2018, p. 8).

Nesse sentido, a incorporação pedagógica de competências está associada à necessidade mercadológica imposta pelos organismos multilaterais, como a OCDE e o Banco Mundial. Isso, pois, para um processo de reestruturação produtiva, é preciso uma reestruturação da formação humana desses trabalhadores e, nesse sentido, os currículos de países periféricos sofrem alterações de acordo com as necessidades e avanços do mercado.

De acordo com Freitas (2018), essa influência dos organismos multilaterais sobre as reformas curriculares dos países periféricos consiste em uma reforma empresarial da educação. Além da ideia de competências, outras máximas corporativas foram adicionadas à construção da BNCC, como a noção de educação empreendedora e de trabalhador flexível. Trata-se de um projeto de formação do trabalhador para a manutenção e avanço do capital. Para ilustrar a intencionalidade do documento, destacamos que a palavra “habilidade”, que também é um conceito atrelado à competência, é utilizada 462 vezes na Base. De acordo com Borges (2020) a opção por habilidades, assim como as competências, corrobora a percepção de que a educação brasileira caminha no sentido de atender às necessidades imediatas do mercado, influenciadas pelo capital internacional representado pelos organismos multilaterais como a OCDE e o Banco Mundial.

A atuação da OCDE para a política de Educação Básica é efetuada por um discurso e consenso hegemônico. A ideia, segundo Pereira (2017), é padronizar junto aos países participantes as ideias de competências e habilidades exigidas pelo mercado de trabalho no mundo globalizado. A figura a seguir expressa, de forma sintética, as relações estabelecidas entre as Necessidades Básicas de Aprendizagem, orientadas pela OCDE, e as orientações efetuadas na BNCC.

Fonte: elaborado pelos autores.

Figura 5 Relação entre a BNCC e o padrão de aprendizagem internacional 

A figura relacional acima representa a contradição existente no interior da política educacional brasileira. Com um currículo nacional norteado pela satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem, a apropriação do conhecimento científico fica secundarizada mediante a imposição do desenvolvimento das capacidades subjetivas (habilidades e competências) pelos organismos multilaterais. Mas, por que o Brasil materializou esses pilares em seu projeto educacional? Isso ocorreu pois, juntamente ao Banco Mundial, a OCDE impôs a padronização de um sistema de ensino e avaliação como critério para financiamento dos países periféricos. O objetivo consiste em, de acordo com Pereira (2017), aferir o que os estudantes estão aprendendo. Esse movimento de relação entre o governo federal e os organismos internacionais representa a construção de um projeto que almeja impulsionar a competitividade entre os países em uma gestão gerencial-meritocrática (PEREIRA, 2017).

As modificações proporcionadas pela BNCC efetivam o processo de centralização e padronização curricular. Hypólito, Vieira e Pizzi (2009) sintetizam que, nas últimas décadas, as reformas educacionais brasileiras possuem, sempre, quatro objetivos principais: 1) estabelecer um sistema de avaliação padronizado nacionalmente; 2) firmar um currículo centralizado; 3) fomentar uma formação docente rápida e desqualificada; e 4) retirar a responsabilidade do Estado sobre a educação pública.

A Base Nacional Comum Curricular realiza uma centralização dos conteúdos e, ainda, objetiva flexibilizar o processo formativo dos estudantes, ao passo que a priorização das habilidades e competências sugere o desenvolvimento da subjetividade necessária para o mercado de trabalho e não a apropriação de conhecimento científico sistematizado. Todavia, não consiste em um projeto especificamente brasileiro, visto que, conforme apresentado no decorrer desta investigação, desde a década de 1980, há um projeto principal de educação que objetiva formar os trabalhadores, já na Educação Básica, com as qualidades exigidas para o mercado de trabalho, formando sujeitos flexíveis e autossuficientes.

Conclusões

Desde o final da década de 1970, principalmente com a Declaración de México, em 1979, houve uma preocupação em realinhar a educação nos países da América Latina, países esses periféricos do capital. Sob a liderança de organismos multilaterais como a UNESCO, OCDE e o Banco Mundial, foi realizado um Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe, orientando, direcionando e avaliando as implementações de políticas educacionais para os países membros.

O Projeto Principal de Educação objetivou orientar desde a gestão financeira de recursos até o currículo com as necessidades básicas de aprendizagem e a metodologia a ser empregada no ato educativo. Visando atender às demandas para o desenvolvimento da sociedade capitalista, o PPE colocou no centro do processo educativo o estudante, o qual, por meio da educação, deverá desenvolver suas habilidades e competências básicas, com vistas ao desenvolvimento pessoal, livrando-o do desemprego latente e, ainda, favorecendo o desenvolvimento da sociedade.

As ideias difundidas pelo Projeto Principal de Educação foram incorporadas pelos países participantes durante as reformulações curriculares efetuadas. No caso específico do Brasil, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2017, materializa diversas concepções educativas disseminadas durante o Projeto Principal, como a unificação curricular, a centralidade no estudante protagonista do seu aprendizado e o desenvolvimento de habilidades e competências técnicas e emocionais para o atendimento ao mercado de trabalho.

A análise dos documentos faz compreender que o andamento educacional dos países da América Latina, em especial o Brasil, nas últimas décadas, faz parte de um projeto estruturado via atuação de organismos multilaterais. Esse projeto hegemônico-conservador objetiva melhorar a reprodução do sistema, incluindo, na escola, uma formação humana pautada no desenvolvimento básico individual para suprir as necessidades mercadológicas de trabalho e, assim, colaborar para a diminuição de problemas sociais que abalam o mundo globalizado, como o desemprego.

4Sua sede fica na cidade de Santiago, no Chile.

6Foram realizadas sete (7) reuniões: Reunión de México, realizada em 1984 (PROMEDLAC I); Reunión de Bogotá, realizada em 1987 (PROMEDLAC II); Reunión de Guatemala, realizada em 1989 (PROMEDLAC III); Reunión de Quito, realizada em 1991 (PROMEDLAC IV); Reunión de Santiago, realizada em 1993 (PROMEDLAC V); Reunión de Kingston, realizada em 1996 (PROMEDLAC VI); Reunión de Cochabamba, realizada em 2001 (PROMEDLAC VII).

7A Recomendación de Quito resultou das discussões ocorridas na Reunião Regional Intergovernamental sobre os objetivos, estratégias e as modalidades de ação de um Projeto Principal na esfera da educação na região da América Latina e Caribe, realizada em Quito, no Equador, entre 06 e 11 de abril de 1981 (UNESCO/OREALC, 1981, tradução nossa).

8Reunião do Comitê Regional Intergovernamental Provisional do Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe, estabelecido pelo Conselho Executivo da UNESCO na sua 113ª sessão celebrada em 1981. A Reunião de Santa Lucía foi realizada entre 12 e 17 de julho de 1982, na cidade de Castries (UNESCO/OREALC, 1982).

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Recebido: 30 de Setembro de 2023; Aceito: 13 de Dezembro de 2023

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