1 INTRODUÇÃO
Este artigo é um recorte de pesquisa realizada no ano de 2018, com a finalidade de elaboração de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), intitulado “A formação do professor alfabetizador no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa-PNAIC: desafios e contribuições”, com o objetivo geral de investigar a prática pedagógica de docentes que participaram do Curso de Formação Continuada de Professores Alfabetizadores, oferecido no âmbito do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), buscando compreender as contribuições e os desafios que essa formação trouxe para o fazer pedagógico de três professoras que atuam com turmas de 1º, 2º e 3º ano do Ensino Fundamental. Considerando a relevância do tema, o impacto positivo na Banca de Defesa e a atualidade do debate ao tratar de políticas públicas para a educação, mais especificamente sobre a formação continuada de professores, apresentamos o estudo, que incorpora ao relatório de TCC novas problematizações e atualizações.
O Curso do PNAIC, ofertado para professores da rede pública durante o período de 2013 a 2017, é considerado o maior programa de formação continuada direcionado a professores do Ensino Fundamental, por meio do qual os docentes tiveram acesso à oferta de materiais didáticos, literatura e tecnologias educacionais para subsidiar os estudos que enfatizavam o processo de alfabetização como princípio do sucesso escolar. A organização metodológica da Formação contemplou o princípio da ação-reflexão-ação, com encontros presenciais que promoviam a reflexão sobre a prática docente, a partir de uma vasta coleção de livros e materiais que visavam enriquecer as ações em sala de aula, conjuntamente com seus estudantes.
Nesse contexto, faz-se relevante refletirmos sobre a contribuição do PNAIC à prática docente, com vistas à consolidação do processo de alfabetização, uma vez que, no Brasil, esses indicadores ainda estão distantes daqueles previstos em políticas, como o Compromisso Todos pela Educação e o Plano Nacional de Educação (PNE). Alferes e Mainardes (2019, p. 47) apontam, ainda, ser necessário compreendermos “a política de alfabetização e de formação continuada de professores alfabetizadores, da forma mais ampla possível”. Nesse sentido, este estudo almeja contribuir para os trabalhos na área, considerando a pesquisa realizada.
De acordo com Ball (2013, p. 9), a criação de uma política, geralmente, apresenta no seu bojo uma proposta de melhoria, de progresso ou de aperfeiçoamento, “[...] a partir das insuficiências do presente para algum estado futuro de perfeição, onde tudo funciona e funciona bem, como deveria ser”. Assim sendo, discutimos o PNAIC, de modo contextualizado e articulado a outras políticas que buscam melhorias nos resultados de alfabetização.
Outro aspecto a destacar nesta Introdução é a compreensão acerca do caráter normativo, inerente às políticas públicas. Segundo Farenzena (2011, p. 100), “o termo normativo, nesse caso, diz respeito a haver fins a atingir, a um ‘dever ser’ resultante das decisões/ações que constituem a política”, o que implica que o seu sentido não é, sobremaneira, unívoco. Ao contrário, é o caráter normativo da política, em geral incoerente e contraditório, que demanda “para os pesquisadores, a tarefa de reconstruir as lógicas de sentido e de ação no processo de elaboração e de implementação”, conclui a autora (FARENZENA, 2011, p. 100).
Ball, Maguire e Braun (2016), por sua vez, trazem uma importante contribuição para a análise e compreensão da política, ao afirmar que os atores que atuam no âmbito educacional também produzem a política e, portanto, não podem ser entendidos como meros implementadores, submetidos a uma relação de determinação. Os pesquisadores afirmam, ainda, que a política é feita por meio de negociações, de articulações, de lutas e de resistências. Assim, ao nos propormos a analisar a prática docente de professoras que participaram do PNAIC, buscamos fazê-lo considerando que a “política é feita por e feita para os professores, pois eles são atores e sujeitos, sujeitos e objetos da política” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 13). Dito de outra forma, não podemos desconsiderar o contexto de implementação e nem a participação dos sujeitos nesse processo, pois, de diferentes formas e com diferentes intensidades, eles interferem na materialização da política.
A fim de cumprir o proposto, este artigo encontra-se assim organizado: inicialmente, é apresentada a metodologia do estudo; a seguir, é explanada uma breve descrição do PNAIC, pois é importante compreender o programa no contexto do real, ou seja, tanto como proposta para melhorar os índices de alfabetização quanto na promoção de formação continuada para os docentes que atuam nessa etapa. Na sequência, apresentamos a discussão dos dados coletados em relação ao objetivo do programa e, por fim, as considerações finais, quando evidenciamos que o PNAIC promoveu algum tipo reflexão nas professoras pesquisadas, assim como promoveu mudança em aspectos da prática docente. Outrossim, destacamos que, apesar de as professoras participarem do Curso durante cinco anos, ainda há o uso de práticas tradicionais, com aulas voltadas à exposição de informações e memorização de conteúdo. Tais constatações levam-nos a reafirmar a importância e necessidade da formação continuada de docentes.
2 METODOLOGIA
Este estudo é de abordagem qualitativa e de cunho exploratório, tal qual concebido por Prodanov e Freitas (2013, p. 52), para quem “a pesquisa exploratória possui planejamento flexível, o que permite o estudo do tema sob diversos ângulos e aspectos”. Os sujeitos participantes do estudo foram três professoras que lecionam nos três primeiros anos do Ensino Fundamental, com experiência na alfabetização e que atuam em uma escola pública municipal de uma cidade de pequeno porte na região do Vale do Rio do Sinos, no Rio Grande do Sul. O critério estabelecido para a seleção das professoras foi ter participado e concluído o Curso de Formação Continuada de Professores Alfabetizadores, no âmbito do PNAIC, durante o período de sua oferta, ou seja, nos anos de 2013 a 2017. As três professoras têm Magistério como formação inicial e entre 12 e 16 anos de exercício na docência. A professora A, que atua no 1° ano, cursou posteriormente Pedagogia e pós-graduação em Alfabetização e Letramento; a professora B, que atua no 2° ano, também fez Pedagogia; e a professora C, que atua no 3° ano, fez licenciatura em História, além de pós-graduação em Alfabetização e Letramento.
A coleta de dados para o estudo ocorreu em três etapas, nesta ordem: a) levantamento e estudo dos documentos basilares do PNAIC; b) observações da prática docente de professoras alfabetizadoras; c) realização de entrevistas semiestruturadas com as docentes participantes da investigação. A primeira etapa envolveu a seleção dos materiais distribuídos aos professores, livros didáticos e cadernos de apresentação enviados aos cursistas. Esses cadernos, cabe destacarmos, foram elaborados por professores de várias universidades federais, em parceria com o Governo Federal, que, por meio de estudos e discussões, em âmbito nacional, desenvolveram materiais basilares. Consideramos, também, a legislação que estabeleceu a criação do Curso, cujo teor assegurava o direito dos professores à formação continuada, uma vez que as políticas de educação visam ao aprimoramento das ações do ato educativo, na prática.
A observação da prática docente, por sua vez, teve como propósito identificar as possíveis aprendizagens construídas pelas professoras durante sua participação no Curso de Formação. Para tanto, realizamos doze horas de observação em cada turma, sendo registrados em um diário de campo os aspectos relevantes para o estudo.
Por último, foram realizadas as entrevistas semiestruturadas, individuais, com cada uma das professoras que atuavam no ciclo, buscando investigar as contribuições e os desafios que a formação trouxe para o seu fazer docente. Objetivamos, ainda, compreender a formação continuada em sua trajetória profissional.
Para o exame dos dados, utilizamos a análise de conteúdo de Bardin (2010), nas suas três fases: pré-análise, exploração do material e procedimento de codificação.
A seguir, discutimos o PNAIC, como proposta pela garantia do direito à alfabetização plena.
3 O PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA (PNAIC): UMA PROPOSTA PELA GARANTIA DO DIREITO À ALFABETIZAÇÃO PLENA
O PNAIC foi estabelecido pela Portaria n. 867, de 4 de julho de 2012, no governo da presidenta Dilma Rousseff. Por meio da instituição do Pacto, o governo federal, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios reafirmaram e ampliaram o compromisso, já assumido anteriormente, por intermédio do Decreto n. 6.094/2007, de alfabetizar todas as crianças com até oito anos de idade.
O PNAIC faz parte de um conjunto de políticas instituídas pelo governo federal no intuito de melhorar a qualidade da educação e os resultados de aprendizagem alcançados. No que se refere aos anos iniciais do Ensino Fundamental (EF), com vistas à alfabetização, destacamos a primeira alteração que ocorreu por meio da Lei n. 11.114, de 16 de maio de 2005, e modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - n. 9.394/96), estabelecendo a obrigatoriedade da matrícula aos 6 (seis) anos no EF. Em seguida, foi promulgada a Lei n. 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, que alterou, entre outros, o artigo 32 da LDB, ficando estabelecido que “o ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuitos na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão” (BRASIL, 2006, s. p.).
Com uma nova configuração para o EF, o Conselho Nacional de Educação (CNE) estabeleceu, por meio da Resolução CNE n. 7, de 14 de dezembro de 2010, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos (DCNs). A partir da Resolução, o ciclo de alfabetização passou a ser inserido nas escolas brasileiras com a duração de três anos, visando à melhoria dos resultados de aprendizagem nessa etapa. De acordo com o parágrafo primeiro do Art. 30 da Resolução,
Mesmo quando o sistema de ensino ou a escola, no uso de sua autonomia, fizerem opção pelo regime seriado, será necessário considerar os três anos iniciais do Ensino Fundamental como um bloco pedagógico ou um ciclo seqüencial [sic] não passível de interrupção, voltado para ampliar a todos os alunos as oportunidades de sistematização e aprofundamento das aprendizagens básicas, imprescindíveis para o prosseguimento dos estudos. (BRASIL, 2010, p. 36, grifos nossos).
Para implementar o ciclo de alfabetização e qualificar a prática docente, o PNAIC constituiu-se uma estratégia fundamental, pois um dos seus princípios para melhoria e qualificação do ensino público é a formação continuada. Nesse sentido, reiteramos a alfabetização como uma área em que são necessários investimentos constantes na formação docente. Além disso, vale sempre lembrarmos que a prática pedagógica reflexiva e desafiadora (ALARCÃO, 2001) empodera os sujeitos, impulsiona-os a pensar, o que, nesta etapa de ensino, é fundamental para a construção e reconstrução de hipóteses de leitura e escrita.
O PNAIC, conforme já explicitado, foi desenvolvido nos anos de 2013 a 2017 e estava organizado em quatro principais eixos de atuação, quais sejam: Materiais Didáticos e Literatura; Avaliação; Formação Continuada de Professores Alfabetizadores; e Gestão, Controle e Mobilização (BRASIL, 2012a, s. p.). O Programa, cabe destacarmos, estava diretamente ligado ao atual Plano Nacional de Educação (PNE), que institui as metas a serem alcançadas em 10 anos na educação brasileira. A meta 5, por exemplo, estabelece “alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do terceiro ano do ensino fundamental”.
Para atingir essa meta até 2024, o PNE apresenta sete estratégias, as quais estão diretamente ligadas ao trabalho pedagógico do professor, considerado o principal sujeito de transformação em seu contexto. Os itens 5.1 e 5.6 da meta 5 são os que seguem:
5.1 - Estruturar os processos pedagógicos de alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental, articulados com as estratégias na pré-escola, com qualificação e valorização dos professores alfabetizadores e apoio pedagógico específico, a fim de garantir a alfabetização plena de todas as crianças.
5.6 - Promover e estimular a formação inicial e continuada de professores (as) para a alfabetização de crianças, com o conhecimento de novas tecnologias educacionais e práticas pedagógicas inovadoras, estimulando a articulação entre os programas de pós-graduação stricto sensu e ações de formação continuada de professores (as) para a alfabetização. (BRASIL, 2014a, s. p.).
Com as metas estabelecidas, o Ministério da Educação desenvolveu estratégias que garantissem a sua implementação, como o PNAIC, por meio do Curso de Formação Continuada de Professores Alfabetizadores e do investimento nos docentes. Esses movimentos e articulações estão diretamente ligados aos objetivos do PNE, garantindo o desenvolvimento do Programa.
Ampliando suas ações, o MEC, por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), distribuiu para os docentes um conjunto de livros didáticos, divididos por eixos temáticos. Essas produções didáticas embasavam os encontros e promoviam a ampliação do conceito do ato de alfabetizar, norteando as discussões realizadas nos encontros presenciais, bem como o trabalho pedagógico em sala de aula. Os materiais utilizados na formação tinham bases na corrente epistemológica construtivista, a qual evidencia a interação entre todos os sujeitos envolvidos na construção de uma nova aprendizagem, o professor, o estudante e o objeto de conhecimento (SILVA, 2018a).
Moll (2009) afirma que o ato de alfabetização é consolidado por meio de diferentes aspectos dispostos no ambiente e sua interação com o sujeito. No que se refere à escola, a ação do professor demanda forte intencionalidade para que ocorra, de fato, a aprendizagem. Nesse sentido, a prática docente deve ser redefinida, pois “a intervenção docente é um elemento dinamizador da prática pedagógica e se efetiva na proposição de atividades desequilibradoras e reequilibradoras das estruturas de pensamento do educando” (MOLL, 2009, p. 179).
A realização do Curso de Formação Continuada de Professores Alfabetizadores, oferecido no PNAIC, ocorria por meio de encontros que promoviam atividades e discussões que tinham o intuito de reforçar os direitos de aprendizagem das crianças, a devida inclusão de todos no processo de ensino, tendo acolhidas suas respectivas individualidades, por meio da diversidade de metodologias e recursos para a efetivação do conhecimento e ações do Programa. Além disso, os encontros presenciais, de acordo com os documentos basilares, deveriam apoiar a docência, de maneira que fossem trabalhadas as dificuldades encontradas no cotidiano dos professores, e, a partir disso, desenvolver ações que amparassem a profissão docente em distintos aspectos.
Durante a formação, eram priorizadas as discussões sobre o processo de alfabetização, bem como a relevância da reflexão sobre a prática docente. Para tanto, os docentes explanavam e socializavam com seus pares suas indagações e desafios diários do contexto escolar. A partir dessas discussões e reflexões, os professores puderam repensar sua prática, aprimorando a didática e qualificando sua ação, em alinhamento às afirmações de Libâneo (2005, p. 36), para quem [...] “o conhecimento provido da didática é o que permite uma contínua reelaboração da experiência profissional, de modo que o professor possa pensar sobre sua ação”.
Dessa maneira, o professor tem o entendimento de que não é mero reprodutor de conhecimentos adquiridos, mas um pesquisador de novas metodologias e, por isso, deverá adequá-las ao contexto em que está inserido. Ou seja, o docente pode elaborar as condições para se constituir “um educador que problematiza o conhecimento e a realidade, num processo permanente de elaboração e reelaboração de estruturas de pensamento e dos níveis de consciência” (MOLL, 2009, p. 108).
Em relação ao financiamento, o governo federal investiu em obras literárias e de apoio pedagógico enviados pelo PNLD, materiais didáticos, jogos e tecnologias educacionais. O Programa também previa bolsas de incentivo aos professores cursistas e à coordenação de curso, em valores, de 2018, definidos entre R$ 200,00 e R$ 2.000,002.
Em 2017, no governo do presidente Michel Temer, o MEC reorganizou o PNAIC e divulgou um novo documento orientador, descrevendo as alterações e as ações do Programa. O documento destacava a importância da formação continuada dos professores como um “componente essencial da profissionalização e da valorização docente [pautado] no direito dos profissionais do magistério de buscarem atualização e aperfeiçoamento ao longo da vida” (BRASIL, 2017, p. 4).
Dois aspectos desse novo documento merecem destaque. O primeiro refere-se aos resultados das avaliações nacionais para o ciclo de alfabetização, por meio da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) e da Provinha Brasil. O texto destaca a pouca articulação entre as estratégias do Curso e sua efetivação em sala de aula, uma vez que os resultados das avaliações não se alteraram significativamente. O segundo aspecto refere que, quando a equipe escolar reafirma seu compromisso e responsabilidade pela aprendizagem, os resultados são significativos. Esses dois aspectos revelam a posição do novo governo junto ao Programa, expressa pelo então diretor de currículo e educação integral do MEC, ao afirmar que o PNAIC “[...] teve foco em concepções teóricas muito dissociadas da prática, trazia materiais padronizados para todo o País, além de ter uma gestão muito centrada nas universidades e pouco monitoramento” (ALVES, 2017, s. p.).
Na nova versão do PNAIC, as formações passaram a ser organizadas e aplicadas pelos municípios participantes e foram excluídas as bolsas para os professores cursistas, mantendo-as apenas para as equipes de gestão, formação e de pesquisa. Nesse formato, os municípios que aderissem ao Pacto deveriam organizar os encontros, realizar editais de processos seletivos para compor a equipe de formadores, composta, preferencialmente, por professores que realizassem boas experiências na alfabetização (BRASIL, 2017). Em síntese, a partir de 2017, o MEC diminuiu sua atuação e atribuiu aos municípios a responsabilidade pela formação, sob o argumento da autonomia docente para a criação de propostas com base nos materiais enviados nos anos anteriores.
4 AS CONTRIBUIÇÕES DO PNAIC PARA A PRÁTICA DOCENTE NA PERCEPÇÃO DAS PROFESSORAS
O ato educativo é uma prática social carregada de intencionalidade, daí seu caráter mediador, favorecendo o desenvolvimento dos indivíduos (LIBÂNEO, 2005). A mediação, nessa perspectiva, é estabelecida a partir do diálogo, que, segundo Freire (2005), é o caminho para se produzir e construir conhecimento.
A organização do trabalho pedagógico, no modo como é compreendido pelo PNAIC, pressupõe uma relação baseada no diálogo, em que “todos se envolvem em uma relação horizontal, em que todos aprendem, professores e alunos, em que o que detém mais experiência ou mais conhecimento sobre um assunto contribui com o seu saber e ajuda os outros a avançar” (BRASIL, 2014b, p. 19). Assim, ao se tratar da construção da leitura e escrita, evidenciamos a prática do professor mediando estratégias e intervenções junto ao sujeito do ato educativo. Suas metodologias e abordagens, destacamos, demonstram suas concepções e colaboram para a formação e consolidação de saberes. Nesse sentido, o investimento e a disponibilidade de formação continuada tornam-se importantes, uma vez que os docentes estão em constantes transformações. Sendo assim, com o intuito de ouvir e observar as professoras que tiveram a oportunidade de participar do Curso de Formação Continuada de Alfabetizadores, passamos a discutir suas percepções sobre o Programa e as possíveis implicações da formação realizada em suas práticas.
Durante as entrevistas, as professoras foram questionadas sobre sua participação no Curso, respondendo se, durante a formação, perceberam avanços e aprimoramentos em sua prática docente. As professoras A e B relataram que sim, que o Programa foi significativo e que realizaram as atividades sugeridas ao longo da Formação. Ambas recordaram o material distribuído, afirmando que foi de grande relevância no desenvolvimento de suas aulas. Nas palavras da professora B: “Percebi avanços na aprendizagem da turma. Utilizei bastante os materiais e os recursos que o MEC disponibilizou. As atividades que eram solicitadas e desenvolvidas na formação, tentei aplicar. O Curso foi significativo para mim e para a minha turma”.
Durante a observação da ação pedagógica, pudemos perceber que as respostas das professoras A e B condizem com o que foi observado. Ambas utilizaram os materiais distribuídos, realizaram intervenções de acordo com as discussões que ocorreram no Curso, dando significado ao momento da escrita e leitura e possibilitando que seus estudantes explorassem cada momento, cada um à sua maneira. Observemos o relato no diário de campo em uma turma de estudantes que ainda não dominavam a leitura, mas, por meio dessas intervenções, são instigados em seu processo de construção da leitura e escrita.
Primeiro momento da aula: Os alunos organizam seu material e vão até ao fundo da sala onde está disponibilizada uma caixa com livros de histórias infantis (maior parte delas são as que o PNAIC disponibilizou para o professor em formação). A professora A oportuniza quinze minutos para os alunos realizarem a leitura, em seguida faz a seguinte pergunta: Quem vai querer iniciar a leitura? A turma demonstra empolgação e então inicia o momento, com a apresentação de oito alunos, colocando-se na frente da sala, com seu livro, dramatizando e interagindo com os colegas. (SILVA, 2018a, p. 60).
A professora C, mesmo ao afirmar que considerava toda a Formação importante, acredita que não houve mudanças em sua maneira de trabalhar, bem como no resultado das aprendizagens dos alunos. A professora relatou, ainda, que havia “muita coisa repetida, que a gente já usava e teve atividades que a gente olhava e refletia sobre utilizar ou não”.
A proposta do Curso era, essencialmente, oportunizar o aprofundamento dos temas tratados nas formações a cada avanço de ano, como destaca o documento orientador de 2017, bem como contribuir, por meio das atividades propostas, com ações que viessem a interferir positivamente “na progressiva autonomia dos educadores para resolver os desafios da sala de aula e para buscar seu próprio desenvolvimento profissional” (BRASIL, 2017, p. 6). Nesse sentido, Perrenoud (1997) reitera que a prática docente não significa a concretização de receitas e modelos, mas uma ação transformadora do habitus de ser professor, o que faz com que, por meio de situações do cotidiano escolar, ele possa refletir e concretizar novas práticas e metodologias em seu fazer pedagógico.
Indagadas sobre os momentos de formação junto a outros professores e formadores, as professoras A e B mencionaram que os participantes do Curso realizavam leituras dos livros distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), faziam dramatizações em grupos e, em seguida, apresentavam para todos os participantes. Além disso, participavam de oficinas de jogos pedagógicos, o que promoveu, na visão delas, a ampliação de seu repertório para utilização em sala de aula.
Ao analisar esses relatos, podemos inferir que, a partir dessa ação de exploração e conhecimento do material, os docentes poderiam ampliar o seu repertório pedagógico, aprimorando sua prática. Nesse sentido, ao socializar e refletir com seus pares, permite-se o constante movimento de construção e ressignificação de saberes (ALARCÃO, 2001), além de tornar a reflexão como prática de transformação e modificação de hábitos, como destaca Vickery (2016, p. 88): “A prática reflexiva, no entanto, é bem mais do que apenas pensar no que você está fazendo. Envolve uma análise proativa de experiência e baseia-se em um repertório de competências e experiências, a fim de aprender e evoluir a partir dessa experiência”.
Diante das falas das professoras, podemos perceber que o processo de aprendizagem acontece pelas interações, o que vai ao encontro dos estudos de Libâneo (2005), que descreve a aprendizagem como uma interação entre os conhecimentos dos sujeitos, por meio do meio e da inter-relação com fatores internos e externos. Ou seja, o ser humano está em constante desenvolvimento, e o conhecimento pode colaborar na constituição de sua personalidade.
Além disso, as professoras foram questionadas se haviam sentido dificuldades em colocar em prática os conhecimentos desenvolvidos ao longo da Formação. As professoras A e C responderam que não houve dificuldades para a aplicação das atividades com suas turmas, destacando somente algumas questões de origem administrativa do município. Uma delas, a professora C, referiu-se a uma atividade em que eram utilizadas receitas como um gênero textual. Entretanto, como o município3 não autorizava a entrada de alimentos na escola quando trazidos pelos estudantes, esta questão se apresentou como um obstáculo para a preparação e o desenvolvimento de atividades diferenciadas. Tal afirmação leva-nos a questionar a possibilidade de adaptação dessa atividade, de modo a alcançar o mesmo objetivo. Questionada nesse sentido, a professora não vislumbrou essa possibilidade, mesmo utilizando alimentos da cozinha da instituição, proporcionando, assim, novas experiências às crianças.
Além dos destaques já mencionados, a professora B relatou que a sua maior dificuldade no desenvolvimento das atividades foi o fato de que, em sua turma, havia alunos com diferentes níveis de hipóteses de escrita. Dessa forma, algumas propostas que planejava pôr em prática não puderam contemplar esses alunos, e ela questionou: “Como fazer para trabalhar com eles, era esse o problema, esses sempre estavam em um nível abaixo. Então de que maneira fazer diferente? Essa era a dificuldade abordada nas discussões dos encontros, com outros professores”. Entendemos que tal questionamento indica que a professora B ainda não havia compreendido a necessidade de propor a formação de grupos com diferentes níveis quanto à construção da escrita, bem como as diversas possibilidades de exploração de atividades, visando ao avanço na construção de hipóteses de escrita.
Silva (2018a) destaca que, mediante as singularidades e particularidades encontradas em cada sala de aula, o trabalho do professor é desenvolver intervenções de maneira que seja possível contemplar todos os seus estudantes, assegurando o direito da aprendizagem e respeitando o processo de construção de cada um que pertence àquele grupo. Nessa direção, Tardif (2002) explica que a função do professor tem como peculiaridade o trabalho com sujeitos e que esses têm diferenças individuais, o que implica diretamente no seu cotidiano escolar, pois ele deve ter habilidade para trabalhar tanto com o grupo como também atender às especificidades de cada aluno.
Outro aspecto importante a ressaltar é o ambiente em que as atividades foram desenvolvidas, ou seja, a sala de aula, visto que, durante a formação do PNAIC, no início do Programa, em 2013, foram proporcionados estudos e discussões sobre a organização do ambiente alfabetizador. Constatou-se, ao longo das observações, que, na sala da professora B, era disponibilizado um espaço para a leitura, “o canto para leitura”, que dispunha de um tapete colorido, livros de histórias infantis distribuídos pelo Programa e algumas almofadas. As professoras A e C mantiveram a organização de uma sala com aspectos tradicionais, com os livros e jogos dentro de armários, aos quais somente elas pudessem ter acesso, dificultando a autonomia do aluno em apreciar os recursos disponíveis.
A seguir, apresentamos o relato de uma situação observada pela pesquisadora na sala de aula da professora C:
A professora escreve um texto no quadro, os alunos o copiam em seus cadernos. Os alunos que estão em processo de alfabetização sentam-se ao fundo da sala, separados dos demais que já dominam a leitura e escrita. A professora C possui uma pasta na qual contém atividades fotocopiadas. Os alunos ainda não alfabetizados recebem essas atividades durante todo o turno de aula; a professora, ao distribuir essas atividades, pergunta aos alunos: Você já fez essas? Então, os alunos realizam as atividades propostas, porém sem nenhuma intervenção da docente. (SILVA, 2018b, s.p.).
Apesar de as professoras terem concluído sua participação no Curso, constatamos que há divergências entre as situações vivenciadas e discutidas no PNAIC e a sua ação docente. Diante dessa situação, cabe questionarmos: o que ainda pode ser feito para que o docente permita-se aprender a aprender, tornando sua prática realmente efetiva?
A reflexão leva-nos a pensar que mudanças efetivas no fazer pedagógico dependem, em grande parte, dos professores, do quanto se permitem aprender e aprimorar seus conhecimentos, por meio do constante movimento de ação e reflexão sobre suas vivências. Como é destaque no Curso de Formação, as ações que dão continuidade à aprendizagem relacionada à profissão docente passaram por diversas transformações ao longo dos anos.
Assim, uma das questões que o Curso reiterou é a importância dos saberes que os professores já desenvolveram ao longo de sua prática e de sua formação acadêmica. Porém, destaca, também, a necessidade de compreender que “o que eles já sabem pode ser modificado, melhorado, trocado, ratificado, reconstruído, refeito ou abandonado” (BRASIL, 2012b, p. 14). Nesse sentido, Tardif (2002) explica que os saberes dos professores são utilizados em diferentes situações do trabalho docente, ou seja, os conhecimentos não são estritamente cognitivos, mas se dão a partir das relações mediadas pelo trabalho: “o saber do professor traz em si mesmo as marcas de seu trabalho, que ele não é somente utilizado como um meio no trabalho, mas é produzido e modelado no e pelo trabalho” (TARDIF, 2002, p. 17).
Disso posto, ao longo da pesquisa, pudemos observar algumas implicações da participação dos docentes no Curso de Formação Continuada de Alfabetizadores, por meio dos relatos que seguem. A professora B enfatizou, inúmeras vezes, a sua participação na formação como sendo de extrema importância para sua trajetória docente:
Em diferentes momentos contribuiu, tudo que foi colocado eu tentei da melhor forma aplicar e fazer, eu vejo que realmente busquei o que eles estavam oferecendo, tentei aplicar e fazer funcionar, eu acho que deu certo, para mim foi efetivo na prática. (PROFESSORA B).
Embora a professora C tenha afirmado que a participação em formação continuada seja sempre necessária, não foi possível identificar aspectos remetidos ao PNAIC no exercício de sua prática docente. Além disso, em um comentário, ela explanou sua insatisfação ao ser convocada a participar do Curso: “aqui [no município] fomos obrigadas e empurradas a participar, não fomos questionadas sobre nossa vontade em ir ao Curso. Essa é a questão ruim de uma formação” (PROFESSORA C).
Considerando que a formação proposta pelo PNAIC tenha sido oferecida aos entes federados que aderiram ao Pacto, por meio de convocação de todos os professores que atuavam nos anos correspondentes ao ciclo de alfabetização, é importante esclarecer que são os docentes quem decidem a relevância de sua participação, o modo como acontecerá e de que forma incidirá sobre sua prática.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O PNAIC tornou-se um dos maiores programas já oferecidos pelo Ministério da Educação, com este foco e escopo, repactuando com o Distrito Federal, os Estados e Municípios, o compromisso de alfabetizar e letrar os estudantes até o final do 3º ano do EF. As ações do Pacto, por meio de uma gestão compartilhada com os entes federados, concretizaram--se na oferta de um Curso de Formação Continuada de Professores Alfabetizadores, na distribuição de materiais e referenciais curriculares e pedagógicos sobre alfabetização e letramento, buscando garantir os direitos de aprendizagem. O processo de formação oferecido pelo PNAIC teve o efeito progressivo de conhecimento e de desenvolvimento de discussões sobre o processo de alfabetização, sendo planejadas ações que contemplam a reflexão constante sobre a prática docente alinhada à teoria, enfatizando uma maneira de pensar o processo de alfabetização.
Ao considerar o objetivo deste estudo, de analisar as contribuições do PNAIC à prática docente no ciclo de alfabetização, a partir da participação de três professoras no Programa, por meio da exposição dos dados coletados, algumas considerações puderam ser feitas. Destacamos que a prática das professoras A e C, as quais participaram da Formação por um período de cinco anos e tiveram a oportunidade de aprimorar e de conhecer novos estudos e métodos ativos para o processo de alfabetização, ainda desenvolve intervenções que contemplam a reprodução de atividades sem contextos, em que o estudante permanecia um mero receptor de informações. Evidenciamos, como exemplo, a utilização de folhas fotocopiadas e a falta de recursos lúdicos que tornariam suas aulas mais atrativas e significativas. Isso posto, durante as observações, constatamos que a prática desenvolvida por ambas se distanciou totalmente da proposta desenvolvida pelo PNAIC.
Já a professora B aderiu e comprometeu-se com o Curso oferecido. A docente buscou aprimorar suas ações e refletir sua prática diária, por meio de atividades, discussões e da socialização com outros docentes. Em sua rotina de sala de aula, percebemos o uso constante dos materiais do PNAIC, bem como em seu planejamento, voltado para as crianças que participavam ativamente das aulas.
As diferentes posturas docentes evidenciam o quanto as professoras observadas fazem a política, não apenas a implementam, como explicam Ball, Maguire e Braun (2016). Assim, reforçamos as imbricações entre as políticas de alfabetização e de formação continuada de docentes, apresentando, no contexto da prática, o quanto estão implicadas e precisam ser compreendidas da forma mais ampla possível (ALFERES E MAINARDES, 2019).
Por meio deste estudo, foi possível pensar sobre os desafios em torno do desenvolvimento do Programa, em que nem sempre ocorreu o engajamento de professores. É sabido que muitos relutam em aprimorar a sua prática pedagógica e acabam desenvolvendo ações sem reflexão, reduzindo a possibilidade de os sujeitos vivenciarem experiências educativas significativas, o que se pode observar nas práticas das professoras A e C. Os encontros e o desenvolvimento das atividades sugeridas demandaram do profissional da educação organização e planejamento prévio, para que ocorressem ações efetivas na prática. Esses, destacamos, são pontos importantes para que possam ocorrer mudanças de hábitos e reinterpretações de saberes que, embora já embasem as ações do professor na sala de aula, nem sempre estiveram presentes nas aulas observadas.
É preciso destacarmos, também, a importância da intervenção do docente nos três primeiros anos do ensino fundamental, uma vez que, tratados como um ciclo, correspondem a um bloco pedagógico sem interrupção, o que proporciona ao discente três anos para a consolidação de sua alfabetização. Segundo Silva (2018a), o trabalho pedagógico dos professores alfabetizadores somente será conquistado com formação qualificada e o comprometimento de todos os sujeitos envolvidos, uma vez que a qualificação e a preparação para estimular o processo de ensino-aprendizagem dá-se somente pela constante ressignificação de conhecimento.
Retomando a ideia de Farenzena (2011), quando refere que aos pesquisadores compete a tarefa de analisar as lógicas e as ações no percurso de uma política, é importante reiterarmos e defendermos que a temática de formação continuada para professores necessita ser compreendida e valorizada como importante e necessária política educacional, pois é por meio dela que os docentes aprimoram e qualificam seus saberes e suas práticas. Tratando-se da construção da leitura e da escrita, acreditamos na sua relevância, uma vez que o período de alfabetização é basilar para os anos seguintes de estudos, bem como fundamental à formação crítica de cidadãos, a fim de que possam ler não somente palavras, mas ler o mundo.