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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.29 no.66 Campo Grande maio/ago 2024  Epub 24-Set-2024

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v29i66.1846 

Artigo

Dispositivo da família: problematizando o discurso de família-afeto

Family dispositif: problematizing the family-affection discourse

Dispositivo familiar: problematizando el discurso de familia-afecto

Luciana Kornatzki1 

Luciana Kornatzki: Doutora em Educação em Ciências e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola da Universidade Federal do Rio Grande (GESE/FURG). E-mail:lukornatzki@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-2677-2354


http://orcid.org/0000-0002-2677-2354

Paula Regina Costa Ribeiro2 

Paula Regina Costa Ribeiro: Pós-Doutorado na Escola Superior de Educação de Coimbra e no Instituto Politécnico de Coimbra, Portugal. Doutora em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Grupo de Investigación en Educación y Sociedad (Gies). Líder do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola (GESE). Professora titular do Instituto de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail:pribeiro.furg@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-7798-996X


http://orcid.org/0000-0001-7798-996X

1Escola de Educação Básica Olavo Bilac, Joinville, Santa Catarina, Brasil.

2Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil.


Resumo

Nosso objetivo consiste em analisar o discurso de família-afeto em sujeitos de famílias homoparentais, como parte da produção do dispositivo da família. Para tanto, nós nos valemos dos estudos foucaultianos, a partir dos conceitos de discurso e dispositivo como ferramentas teóricas e analíticas. Na construção da pesquisa, foram realizadas entrevistas com membros de famílias homoparentais e, a partir dos dados produzidos, observamos uma determinada forma de enunciar a família pelas/os sujeitos que corresponde à formação de um discurso de família-afeto. Problematizamos o afeto como argumento para legitimar, justificar e autorizar as relações homoeróticas, a partir de uma higienização dessas relações, promovendo uma aceitação da homossexualidade sem questionar os padrões heteronormativos que se ligam a essas noções. Observarmos como o conceito de família, enquanto diferentes configurações familiares unidas por afeto, respeito e responsabilidade mútuos, é capaz de produzir subjetividades. Destacamos o discurso de família-afeto encontrado em destaque na atualidade enquanto possibilidade de afirmação desses sujeitos e de suas formas de significação de família.

Palavras-chave: família; afeto; dispositivos

Abstract

Our objective is to analyze the discourse of family-affection among individuals from homoparental families as part of the broader production of the family dispositif. To achieve this, we draw on Foucauldian studies, utilizing the concepts of discourse and dispositif as both theoretical and analytical tools. In conducting our research, we conducted interviews with members of homoparental families. The data revealed a distinctive way these individuals articulate the concept of family, corresponding to the formation of a family-affection discourse. We critically examine how affection is employed as a rationale to legitimize, justify, and authorize homoerotic relationships by sanitizing them, thus promoting the acceptance of homosexuality without challenging the heteronormative standards tied to these notions. We explore how the concept of family, understood as various configurations united by affection, respect, and mutual responsibility, contributes to the production of subjectivities. We emphasize the current prominence of the family-affection discourse as a means of affirming these individuals and their interpretations of what constitutes family.

Keywords: family; affection; dispositif

Resumen

Nuestro objetivo es analizar el discurso de familia-afecto en sujetos de familias homoparentales como parte de la producción del dispositivo familiar. Para eso, utilizamos los estudios foucaultianos, con los conceptos de discurso y dispositivo como herramientas teóricas y analíticas. En la construcción de la investigación, se llevaron a cabo entrevistas con miembros de familias homoparentales y, a través de los datos proporcionados, observamos una forma específica de enunciar la familia por medio de los sujetos, lo que corresponde a la formación de un discurso de familia-afecto. Problematicamos el afecto como argumento para legitimar, justificar y autorizar las relaciones homoeróticas, frente a una higienización de estas relaciones, promoviendo una aceptabilidad de la homosexualidad sin cuestionar los estándares heteronormativos vinculados a dichas nociones. Observamos cómo el concepto de familia, desde diferentes configuraciones familiares unidas por afecto, respeto y responsabilidad mutua, puede producir subjetividades. Subrayamos el discurso de familia-afecto que se encuentra en la actualidad como una posibilidad de afirmación de estos sujetos y de sus formas de significación de familia.

Palabras clave: família; afecto; dispositivos

1 INTRODUÇÃO

Atualmente, em diferentes campos de saber, entende-se família não mais como o restrito modelo nuclear, tradicional e heterossexual. O conceito contemporâneo é assumido a partir de uma multiplicidade de arranjos, tendo como aspectos definidores os laços de afeto e responsabilidade mútuos. O conceito de família, representado pela sua pluralidade, corresponde a uma produção do discurso e, assim, está voltado a fabricar conceitos, significados1, formas de verdade, de saber e de poder, que atuam na produção de sujeitos e suas subjetividades. A fabricação do conceito de família na contemporaneidade está ligada aos discursos que sobre ela emergem e representam regimes de verdade, que possibilitam o controle e o governo dos sujeitos, produzindo suas subjetividades.

Na medida em que os discursos de família operam na constituição de sujeitos, entende-se a possibilidade de serem analisados a partir do conceito de dispositivo (Agamben, 2005; Deleuze, 2005; Foucault, 2015a, 2015b). A análise da família como dispositivo nos possibilita compreender sua potencialidade na produção de formas de subjetividades, tendo por base elementos que o compõem, tal como o conceito de família. Assim, o conceito de família na contemporaneidade, como elemento discursivo do dispositivo de família, é problematizado como possibilidade de produzir sujeitos e suas formas de significação de mundo e, neste caso, de significar família.

Neste contexto, nos parece importante olhar para a produção discursiva2 de família nos dias de hoje, nomeadamente para os significados que sujeitos membros de famílias homoparentais a ela atribuem, enquanto formas de produção de verdades. Assente em nossa investigação com famílias homoparentais, chamou-nos a atenção a incidência do elemento afeto para dar significado à família, evidenciando processos de subjetivação a partir do discurso da família como união de pessoas por afeto.

2 ALGUMAS PALAVRAS SOBRE DISPOSITIVO, FAMÍLIA E AFETO

Segundo Foucault (2015b), um dispositivo funciona a partir de uma rede que se estabelece e articula diferentes instâncias e elementos – discursivos e não discursivos –, envolvidos em relações de saber-poder que produzem os sujeitos. Os elementos discursivos de um dispositivo são os ditos, as enunciações e os enunciados que vão compondo os discursos; já os elementos não discursivos estão presentes em materialidades de práticas não ditas, mas visíveis, palpáveis, tais como imagens, comportamentos, instituições3, disposições arquitetônicas.

Destacamos o conceito trazido por Agamben (2005), na medida em que sua abordagem contribui para pensarmos a família (os ditos e não ditos a ela relacionados) operando como dispositivo na produção de sujeitos e suas subjetividades. Analisamos, precisamente, o conceito de família enquanto elemento discursivo do dispositivo e o modo como é capaz de produzir significados em sujeitos de famílias homoparentais e, assim, de operar na produção de determinadas formas de subjetividades.

Para Agamben (2005), um dispositivo é qualquer coisa que tem a capacidade de capturar os seres viventes, transformando-os em sujeitos. Nas palavras do autor,

[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes (Agamben, 2005, p. 13).

Com esta perspectiva, Agamben nos permite extrapolar a abrangência do conceito de dispositivo, compreendendo

[...] não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – porque não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar (Agamben, 2005, p. 13).

Entendemos que a família pode ser compreendida como dispositivo, na medida em que possibilita a captura dos sujeitos, transformando-os em pais, mães, filhos/as, avós, tios/as etc. Tais sujeitos, capturados pelo dispositivo, produzem relações de poder e saber que correspondem a práticas discursivas e não discursivas, a partir de gestos, posturas, ditos e opiniões que resultam em suas subjetividades, construindo formas de conjugalidade, paternidade, maternidade e filiação.

Sendo um dispositivo composto por diferentes elementos – discursivos e não discursivos –, tomamos o conceito de família como um dos elementos discursivos que pertencem à produção do dispositivo familiar. O conceito de família que circula nos dias de hoje, definido a partir de determinados aspectos que permitem a abrangência das diferentes configurações familiares, corresponde a um elemento discursivo do dispositivo familiar, na medida em que, de algum modo, intercepta os indivíduos, capturando-os de modo a contribuir para suas formas de se entender no mundo.

O afeto é um dos aspectos utilizados para conceituar a família nos dias de hoje, contribuindo para a produção desse dispositivo, mas é interessante observar como ele aparece historicamente no interior da família, articulado com outros dispositivos. De acordo com Foucault (2015a), a partir da modernidade, as relações familiares estabelecidas exclusivamente pelo princípio da aliança, pela transmissão do nome e dos bens, passam a considerar o elemento afetivo como princípio balizador da formação familiar.

Segundo o autor, a transformação social da família é decorrente de um processo no qual o dispositivo da aliança perde força e é abarcado pelo dispositivo da sexualidade. A família é a instância responsável por essa transposição, de forma a possibilitar ao regime da aliança, a apropriação de uma economia do prazer e de sensações, e ao dispositivo da sexualidade, a apropriação da lei e da dimensão do jurídico (Foucault, 2015a). Assim,

Essa fixação do dispositivo de aliança e do dispositivo de sexualidade na forma da família permite compreender certo número de fatos: que a família se tenha tornado, a partir do século XVIII, lugar obrigatório de afetos, de sentimentos, de amor; que a sexualidade tenha, como ponto privilegiado de eclosão, a família (Foucault, 2015a, p. 118).

A família, conforme Foucault (2015a), é o ponto onde mais se desenvolve o dispositivo da sexualidade; no entanto, o dispositivo da aliança nem por isso deixou de existir. Ele ainda permanece atualizado através da lei e da dimensão do jurídico por novas formas de regulação dos casamentos, de registro filial e de transmissão de bens. Casamento, filiação e patrimônio: resquícios de ideais familistas de uma cultura burguesa, cristã, patriarcal, heterossexista e heteronormativa, que conjuga aliança e sexualidade.

A família, como um dispositivo que colabora no controle do exercício da sexualidade dos sujeitos, pode ser vista como dispositivo também articulado ao Estado no governamento das populações. O Estado necessita apropriar-se da regulação das famílias para que possa regular, por sua vez, os sujeitos e suas sexualidades.

Foucault (2008) destaca que, com a emergência da problemática da população no século XVIII – ocupação essa do dispositivo de segurança –, a família se torna um elemento para o desenvolvimento de uma arte de governo. Foucault (2008) mostra a ligação entre governo-população-segurança, evidenciando como a segurança representa um dispositivo que se desenvolve de formas específicas no estado moderno, com o fenômeno da urbanização e da imigração, a partir da produção de uma arte de governar cujo foco se centra no problema da população. No entanto, tal arte de governar, também chamada de governamentalidade, que tem por objetivo a população, encontra na família um segmento necessário a considerar.

A partir do momento em que [...] a população vai aparecer como absolutamente irredutível à família, a família passa para o nível inferior em relação à população; aparece como elemento no interior da população. Portanto, ela não é mais um modelo; é um segmento, segmento simplesmente privilegiado porque, quando se quiser obter alguma coisa da população quanto ao comportamento sexual, quanto à demografia, ao número de filhos, quanto ao consumo, é pela família que se terá efetivamente de passar (Foucault, 2008, p. 139).

Assim, a família tornou-se, desde o século XVIII, um elemento de governamentalidade do Estado em torno da população. Por governamentalidade, Foucault (2008, p. 143) entende “[...] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa de poder que tem por alvo principal a população”.

O Estado depende da família e do controle sobre ela para gerenciar as populações, governando-a através do controle sobre as funções que a ela são atribuídas (funções parentais, conjugais, por exemplo), por isso o seu interesse em regulamentá-la e legislar sobre ela. Deste modo, a governamentalidade da família se torna possível na medida em que ela se produz como dispositivo que opera na produção de sujeitos e no controle de suas práticas, sendo uma de suas bases o ordenamento jurídico.

O Estado atribui, através da lei, as funções pelas quais a família é reconhecida. No entanto, isso não significa que as famílias sejam subjetivadas de modo a exercer tal e qual essas funções. As subjetividades produzidas pelo dispositivo da família não são sempre as mesmas, já que “[...] o dispositivo é, na realidade, antes de tudo, uma máquina que produz subjetivações, e só enquanto tal é uma máquina de governo” (Agamben, 2005, p. 15). Isso porque o modo como os sujeitos se produzem não corresponde sempre ao esperado pelo Estado, pois há subjetividades que escapam das normas instituídas, por isso, torna-se necessário lançar instrumentos para o seu controle e regulação.

Uma das formas de exercício do poder do Estado no controle dos sujeitos dá-se pelo exercício da lei e do discurso jurídico no âmbito, precisamente, do sistema de aliança, isto é, pela regulação do casamento ou da união civil, e de quem tem o direito a acessá-los, bem como o exercício do controle sobre as relações de filiação. O Estado, através da aplicação do Direito sobre as famílias, permite controlar quem pode casar, quem tem o direito à pensão, mas também o reconhecimento filial, o direito à herança, o exercício dos direitos e deveres parentais, o acesso à programas sociais, a regularização do divórcio, o controle sobre a guarda dos/as filhos/as, entre outros.

A governamentalidade busca a todo momento a normalização dos sujeitos, pois, conforme os sujeitos vão se produzindo de diferentes modos, há estratégias de atualização dos dispositivos para abarcar a todos/as na rede de normalidade.

O exercício da governamentalidade do Estado sobre as famílias está ligado intrinsecamente ao conceito de família presente no âmbito jurídico, uma vez que só são possíveis de serem reconhecidas como tal as uniões enunciadas no ordenamento jurídico. Portanto, na medida das transformações nos modos de organização familiar, é preciso uma atualização deste conceito também no âmbito jurídico, produzindo, por sua vez, uma atualização do dispositivo da família.

Deleuze (2005) nos ajuda a entender a possibilidade de atualização dos dispositivos, isto é, a capacidade que o dispositivo tem de operar mudanças, de se tornar diferente, novo, de produzir devir. As mudanças operadas no dispositivo são propriamente a sua atualização. É nessa direção que se entende a ampliação do significado de família como parte da atualização do dispositivo familiar, a partir da visibilidade de outras formas de ser e se entender no mundo, de outras formas de dar significado à família e de produzir, assim, outras subjetividades.

Assim sendo, sujeitos que não correspondem ao padrão de família historicamente construído em torno das normas heterossexuais, da família monogâmica, reprodutiva, cristã, formada a partir do matrimônio, podem produzir suas subjetividades como forma de família a partir do processo de atualização desse dispositivo, produzindo processos de assujeitamento.

A transformação do conceito de família encontrado nos discursos jurídicos, como parte da atualização do dispositivo familiar, deu-se a partir de leis que possibilitaram a sua ampliação, bem como de decisões jurídicas que reconheceram a união civil homossexual. Na esteira de conquistas sociais no âmbito dos Direitos Humanos, a partir da busca por igualdade, dignidade e liberdade, sujeitos homossexuais, com ou sem filhos, podem, apoiados pelo ordenamento jurídico, entender-se como “entidade familiar”.

Citamos os discursos jurídicos e a sua contribuição para a formação do dispositivo da família tendo o ordenamento jurídico como forma de legislar e regular os sujeitos e suas condutas, através de determinadas formas de discurso que viabilizam o governamento das subjetividades que compõem uma população. Assim, os discursos jurídicos podem ser entendidos como instrumentos do Estado no controle das populações, por meio da família.

Conforme Foucault (2015b), entre os elementos heterogêneos que compõem um dispositivo, encontramos as leis e normas que estão envolvidas na sua produção, portanto, o ordenamento jurídico pode ser visto com um dos elementos que também contribuem para a formação do dispositivo da família.

As leis não são, no entanto, um elemento exclusivo do dispositivo da família, pois perpassam diferentes dispositivos, tal como destacou Foucault (2014) ao abordar o dispositivo disciplinar e o dispositivo da segurança (Foucault, 2008).

No contexto brasileiro, destacamos alguns marcos importantes no âmbito do ordenamento jurídico que possibilitaram algumas transformações no conceito de família e a ampliação da governamentalidade sobre os sujeitos. Não obstante, como destacado, eles possibilitam a atualização do dispositivo da família, uma vez que produzem outras formas de compreender tal instância, e nela a ampliação da rede de normalização sobre os sujeitos. Tal é o caso da Constituição Federal (CF) de 1988 (Brasil, 1988), a Lei Maria da Penha (Brasil, 2006), a lei que regulamenta o Programa Bolsa Família (Brasil, 2004) e as decisões do Supremo Tribunal Federal no reconhecimento das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo (Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n. 4.277 (Brasil, 2011a) e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n. 132 (Brasil, 2011b) e na possibilidade de adoção por casais homossexuais.

Citamos, de início, o estabelecimento do princípio de igualdade entre homens e mulheres pela CF (Brasil, 1988), a igualdade entre filhos havidos fora do casamento e o reconhecimento da monoparentalidade e da união estável, mudanças que já representaram a desconstrução do conceito de família exclusivamente derivado do casamento.

É por meio das leis n. 10.836 (Brasil, 2004) e n. 11.340 (Brasil, 2006) que se produz uma ampliação do conceito de família, estabelecendo-a como:

[...] a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se mantém pela contribuição de seus membros (Brasil, 2004).

A Lei n. 11.340 (Brasil, 2006) compreende família como “[...] a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.

Assim, não será a união civil ou religiosa que dará base para a formação de família, bem como o restrito conceito relatado a partir de laços biológicos. Será a convivência de sujeitos unidos com a finalidade de compartilhar suas vidas, por laços naturais, afinidade e/ou afetividade.

É interessante observar como o afeto passa a ser um elemento presente nos discursos acerca do Direito de Família por autores/as desse campo (Dias, 2015; Baranoski, 2016; Calderón, 2017), a fim de reconhecer e legitimar o que se tem chamado de as diferentes configurações ou arranjos familiares. Conforme estabelece Rios (2013, p. 7),

[...] o direito de família caminha cada vez mais em direção ao reconhecimento da natureza familiar de relações humanas, estáveis e duradouras, fundadas na sexualidade e no afeto, com a intenção de estabelecer-se uma plena comunhão de vida.

Foi com base em preceitos constitucionais, bem como no elemento afeto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) se fundamentou na decisão por reconhecer as uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Assim, o direito à homoparentalidade deriva do direito à união civil homossexual dada através de julgamento no STF (ADI n. 4.277 [Brasil, 2011a]) e ADPF n. 132 (Brasil, 2011b), em 2011, bem como do direito à adoção conjunta por casais homossexuais, também pelo STF, em 2015. Estes, por sua vez, estão de acordo com os princípios fundamentais de liberdade e dignidade humanas, bem como o respeito ao pluralismo, postulados na CF (Brasil, 1988).

A submissão às normas do Estado, no entanto, é questionada por Judith Butler (2003, p. 226), no sentido de que “[...] ser legitimado pelo Estado é aceitar os termos de legitimação oferecidos e descobrir que o senso público e reconhecível da pessoalidade é fundamentalmente dependente do léxico dessa legitimação”. Submeter-se às normas do Estado representa o desejo de fazer parte, de ser incluído, de aceder ao centro. No entanto, isso corresponde à ampliação do poder do Estado sobre sujeitos que estavam às margens, não deixando de produzir, ao mesmo tempo, outras margens. Reforçar a ideia da vivência da sexualidade dentro das normas da união reconhecida pelo Estado é reproduzir essa forma de legitimidade; assim, uma família constituída por um casal homossexual será legítima somente na medida em que for produzida através dessas normas.

Para Rios (2013), o reconhecimento da união civil homossexual pode incorrer na produção de um “assimilacionismo familista”, isto é, uma tendência à adoção dos padrões hegemônicos de família, nomeadamente heteronormativos, por sujeitos de grupos de minorias sexuais. Neste ponto, a heteronormatividade, como uma produção do dispositivo da sexualidade, conjuga-se ao dispositivo da família, tornando o afeto um elemento de imbricamento entre esses dispositivos. Por isso, o afeto como superlativo na definição de família deve ser questionado, pois, “[...] como fator distintivo dos relacionamentos e identificador dos vínculos familiares, cumpre função anestésica e acomodadora da diversidade sexual às normas da heterossexualidade compulsória” (Rios, 2013, p. 15).

O afeto seria o argumento para legitimar, justificar e autorizar as relações homoeróticas, já que as “purifica” e higieniza, promovendo assim uma aceitação da homossexualidade, sem questionar os padrões heteronormativos que se ligam a estas noções. Assim, não é de estranhar que, ao falar em relações entre pessoas do mesmo sexo, utiliza-se, em contexto brasileiro, o termo homoafetividade, ressaltando o aspecto do afeto em detrimento do exercício livre da sexualidade (Costa; Nardi, 2015). Revela-se uma prática preconceituosa, pois há a hierarquização das relações homoeróticas entre aquelas que se aproximam do “normal” e aceitável, pois higienizadas pelo afeto, e aquelas vivências que não se deixam assimilar por tais padrões (Rios, 2013).

Em torno da heterossexualidade produzem-se normas e padrões que são, muitas vezes, perseguidos por sujeitos homossexuais, na busca por adequarem-se ou aproximarem-se das normas estabelecidas para serem aceitos pela sociedade, poderem se colocar como sujeitos também “normais”, que constituem uma forma de família. O afeto, portanto, emerge como uma das normas de legitimação do dispositivo da família. Há, desse modo, uma busca dos sujeitos pela submissão às normas de governo, evidenciando como a família, compreendida como dispositivo, interpela e produz os sujeitos.

3 PERCURSOS METODOLÓGICOS

As análises aqui produzidas partem de uma pesquisa realizada por meio de entrevistas semiabertas4 com membros de famílias homoparentais. As entrevistas foram gravadas e transcritas, bem como os nomes alterados, para preservar a identidade dos/as participantes. Dessas entrevistas, uma foi realizada via Skype, porque divulgamos a pesquisa em uma página de rede social, porém apenas uma pessoa nos contactou, disposta a conceder-nos a entrevista. As demais entrevistas foram realizadas presencialmente, em locais escolhidos pelos/as participantes. Entre as questões que compunham o questionário para a entrevista semiaberta, havia uma pergunta direcionada a conhecer o significado de família para os sujeitos entrevistados.

Os sujeitos participantes da pesquisa foram sete membros de cinco famílias homoparentais. Em duas entrevistas, participaram o casal, e, em três delas, apenas um dos membros. À época da entrevista, os/as participantes tinham entre 25 e 52 anos de idade. Apenas uma dessas famílias era constituída por dois pais, e as outras quatro, portanto, formadas por duas mães. Todos os sujeitos tinham filhos/as, crianças ou adolescentes em idade escolar.

Sobre a constituição da família, três eram formadas por filho(s)/a(s) de relacionamentos heterossexuais anteriores de uma das mães; uma por meio de adoção e; em outra, a criança residia com o tio biológico, seu companheiro e os avós maternos. Vale destacar que, nesta última família, o tio sempre cuidou do sobrinho, tendo um vínculo de pai em relação à criança. Após a morte da mãe, o menino permaneceu com os avós e o tio, tendo o companheiro deste ingressado na família há quatro anos, na ocasião da entrevista. Não obstante, dentre as cinco famílias, três haviam realizado união civil ou união estável, e duas estavam em busca de legalização.

4 PROBLEMATIZANDO ENUNCIAÇÕES DE MEMBROS DE FAMÍLIAS HOMOPARENTAIS: O DISCURSO DE FAMÍLIA-AFETO

A partir da leitura das entrevistas transcritas, observamos uma determinada forma de enunciar a família pelas/os participantes, forma essa que pode ser vista como correspondente ao que podemos entender como formador do discurso de família-afeto. Por esse discurso, entendemos a produção de significados para a família como instância social, formada a partir da união de pessoas por laços afetivos e/ou biológicos, que residem ou não no mesmo lar, mas que têm entre si relações de cumplicidade, de respeito, união, responsabilidade e comprometimento. Esta representação deriva da ação do dispositivo da família na produção de discursos que visibilizam determinados sujeitos.

O discurso de família-afeto, em afirmação no Brasil contemporâneo, captura os sujeitos de famílias homoparentais e pode ser observado nas seguintes enunciações5:

[Família] É um grupo de pessoas que se gostam (Rita). Olha, pra mim, família são aquelas pessoas que, consanguíneas ou não, vivem juntas, se respeitam, se ajudam, né? Tem aquela vontade de cuidar umas das outras. Tem aquele sentimento que independe de sangue, é aquele sentimento, é um laço afetivo, e não é o sangue que vai determinar. [...]. Porque eu acho que independente [sic] de sangue, o que vale pra conceituar a família, se ter [sic] essa noção, é justamente a afetividade (Elis). Pra mim, família, significa pessoas que vivem junto e que cuidam uns dos outros. Então eu acho que, pessoas que moram não necessariamente na mesma casa, mas principalmente que convivem na mesma casa e que uns cuidam dos outros. [...]. Pra mim, definição de família é isso, é ter amor, é ter aceitação, é ter compreensão, é isso, eu acho que família é isso. Porque assim, eu acho que casa qualquer um pode ter, agora lar, nem todos têm um lar e eu acho que o verdadeiro lar é onde as pessoas têm laços de afeto e cuidam uns dos outros (Marisa).

Em alguns diálogos, nas entrevistas em que o casal participou, também observamos as seguintes significações para família:

É um pouquinho a cada dia, uma nova descoberta. É que nem aqui em casa, a família é isso aqui, ó, a gente se conhecer um pouquinho a cada dia. Tu meio que invadir [sic] um pouquinho de cada um a cada dia, conquistar o teu [sic] espaço ali, né? Esse carinho, essa... (Elis). O respeito, né? (Clara). A cumplicidade que a gente tem uns com os outros. (Elis). Família é onde existe o amor... (Caetano). É... o respeito... (Gilberto). Onde as pessoas se amam, onde as pessoas se respeitam... Se acolhem, se protegem, né? (Caetano). [...] Independe o gênero, independe qualquer coisa, desde que exista amor e respeito. (Gilberto). O que importa é amor, acolhimento e proteção. Encaminhamento também, né? Porque os pequenos não se encaminham sós, né? A gente tem muita responsabilidade, né? (Caetano).

Nestas falas, ressalta-se o significado de família enquanto elemento discursivo do dispositivo que captura os sujeitos e contribui para a formação de seus discursos, sendo explicitado a partir de algumas regularidades. A partir da análise destas regularidades – aquilo que se repete, ainda que de forma diversa nas enunciações –, observa-se a captura dos sujeitos pelo dispositivo. Tal captura tem como base o elemento afeto, e a ele se juntam cuidado, compreensão, auxílio, respeito, acolhimento e proteção mútuos. Há uma captura dos sujeitos em torno do afeto que os provoca a pensar a casa, o espaço que habitam, como um lar, na medida em que for construído como um espaço afetivo.

Esse dispositivo opera na produção de sujeitos a partir do desenvolvimento de sentimentos como felicidade e realização no convívio com o outro. É, portanto, um dispositivo que suscita o cuidado com o outro e a responsabilidade com cada um como princípio para a realização e para a felicidade. Podemos nos lembrar de Agamben (2005, p. 14), ao afirmar que “[...] na raiz de cada dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo em uma esfera separada constitui a potência específica do dispositivo”.

O dispositivo da família opera com o princípio da busca e do encontro da felicidade com o outro, como pode também ser evidenciado nas seguintes enunciações de Elza:

[...] família é a base de tudo. Tu ter [sic] uma família feliz é a base de tudo. É o que te [sic] dá estrutura quando tu tá [sic] na pior, é o que te dá [sic] estrutura quanto tu tá [sic] no fundo do poço, porque eu já tive, tive uma fase bem complicada, e o que me levantou foi a minha família, foi a minha esposa, foi o meu filho, entendeu? Família é tudo, assim, de melhor que a gente pode ter, com certeza. [...]. Tenho o maior orgulho de falar que eu tenho essa família, que a minha felicidade é viver com uma mulher, sim.

Assim, nas palavras de Elza, “uma família feliz é a base de tudo”, a realização pessoal e uma existência plena são conquistados quando se tem uma família feliz, pela completude possibilitada a partir da união de seus membros. Elza nos permite perceber a forma de captura e de subjetivação deste desejo de felicidade, operada pelo dispositivo da família, que produz uma relação de dependência com os demais membros. Tal dependência é construída com base no pressuposto da complementariedade entre os sujeitos de uma família.

De acordo com Jane Felipe (2007, p. 39), a ideia de completude nos relacionamentos é representada pelo “desejo de que alguém nos complete e nos transforme em seres melhores, especiais, justamente porque amamos”, daí decorrendo a felicidade como resultado da existência de amor. Amor, este, consolidado como norma para a existência de uma família.

Na medida em que família é afeto, carinho, compreensão e respeito, os sujeitos são capturados e tendem a produzir suas relações conforme esse discurso, já que os discursos produzem os sujeitos, ou, nas palavras de Foucault (2004, p. 55), precisamos entender os discursos “[...] como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”. A partir de tais enunciações podemos perceber como o conceito de família que circula na sociedade, operando como elemento do dispositivo da família, contribui para a atualização das formas de governar sujeitos de famílias homoparentais, além de produzir formas de significar tais famílias, de dar sentido às suas existências e às suas famílias a partir do afeto. Assim, o Estado cuida da família por meio de estratégias voltadas ao governo da população, e a família cuida dos seus indivíduos entre si.

Podemos destacar a atualização do dispositivo da segurança por meio da modificação de táticas de governamento da população dada através da ampliação jurídica do conceito de família. Isto porque sujeitos homoconjugais passam a ser reconhecidos como família e, assim, são capturados pelas malhas de poder da governamentalidade, produzindo novas normas e novos padrões de consumo, de ser e estar, e de felicidade.

O dispositivo da família, produzido segundo noções de afeto, trata-se de uma articulação com táticas de governamentalidade do dispositivo da segurança, a fim de alcançar o governo das famílias como espaços de cuidado, proteção, segurança, como espaços amorosos, bem como de consumo, uma vez que assim se individualiza tais responsabilidades ao “núcleo familiar”. No entanto, famílias homoparentais agora também são capturadas por esse dispositivo de segurança, isto porque é necessário aos sujeitos entrarem nas normas de um dispositivo para que dele possam fazer parte. O reconhecimento destes arranjos familiares, no âmbito da ampliação do conceito de família, portanto, corresponde a uma tática do dispositivo da família de normalização de subjetividades que dele escapavam.

A produção da família-afeto serve ao governo da população por meio de cuidados com a infância e adolescência, para que as famílias cuidem do processo de escolarização, levem as crianças para tomar vacina ou para terem acompanhamento médico e/ou psicológico conforme a necessidade. A família-afeto é uma família responsável, de cuidado e de segurança para que se façam viver as novas gerações, agora não mais restrita ao modelo heterossexual.

Entendemos a potência de pensar a família como dispositivo para entender o exercício do poder no controle dos sujeitos. Isto porque o Estado necessita regular, controlar e governar os sujeitos, e isso se dá através das famílias, do exercício da sexualidade, dos casamentos e nascimentos. Também o conceito de família que circula na sociedade, enquanto uma produção discursiva, opera no governamento dos sujeitos a partir de processos de subjetivação destes discursos.

O governamento exercido por esse dispositivo é necessário ao Estado para o gerenciamento das famílias, para que elas possam aproximar-se das normas, ainda que muitos sujeitos não correspondam a elas. Advém daí a necessidade de atualização dos dispositivos, para que nenhuma subjetividade fuja à rede de normalização.

O afeto emerge, assim, como norma para a existência de uma família, tornando “normal” a família-afeto, de modo que sujeitos homossexuais são capturados por essa norma e passam a formar suas próprias relações familiares a partir desse parâmetro. Isso é possível porque o dispositivo está articulado à produção de normas, do sujeito normal e do anormal, sendo o anormal tudo o que foge ao estabelecido.

Podemos identificar na emergência das famílias homoconjugais, a partir de parâmetros e normas heterossexuais, a produção de uma homonormalização (Duggan, 2002), isto é, a interpelação em sujeitos homossexuais de aspectos da heteronormatividade. A homonormatividade decorre da aproximação às normas heterossexuais de sujeitos que estavam às margens, porém tal processo também produz uma hierarquia entre aqueles/as que correspondem e os que fogem às normas (Duggan, 2002; Kies, 2016; Granda Henao, 2017). Tal como considera Granda Henao (2017), o processo de homonormalização estabelece quem pode aceder a uma plena cidadania, desde que corresponda a uma identidade branca, “fora do armário”, em relacionamento monogâmico, que tenha ou busque exercer a paternidade/maternidade, sobretudo que adote um padrão de consumo e produtividade ideal.

É possível considerar a homonormalização como uma atualização do dispositivo da sexualidade e articulado ao dispositivo da família. Lembrando que o dispositivo da sexualidade produz normas sobre o modo como os sujeitos devem se relacionar afetivo e sexualmente, como cuidar da sexualidade das crianças e adolescentes, pois a homonormalização conjuga este dispositivo com a família por meio do estabelecimento de normas em torno das práticas sexuais, mas também de normas sobre práticas de filiação e de casamento/união civil. Assim, há espaço, por exemplo, apenas para relações monogâmicas, duradouras e que realizem o exercício da paternagem/maternagem dentro de um mesmo lar.

O dispositivo da sexualidade possibilita um intercâmbio da homossexualidade com o dispositivo da família, de forma que tal elemento é apropriado pela família produzindo a homoparentalidade e permitindo, deste modo, que outras normas sobre relações familiares sejam produzidas, bem como outras formas de representar a felicidade, estas, no entanto, ainda fortemente ligadas à heteronormatividade.

É preciso considerar, então, que o dispositivo da família, produzido articuladamente à heteronormatividade, repercute valores tradicionais ligados a esta instância, como a monogamia, a filiação, o casamento. Sujeitos homossexuais, ao entrarem no discurso da norma, podem perder a possibilidade de produzir resistências e outros modos de existência.

Neste sentido, é preciso cuidado para que o discurso de família como afeto não signifique um processo de higienização das relações homoconjugais, pois na medida em que as relações entre pessoas do mesmo sexo tornam-se aceitas pela justificativa do afeto e não levando em consideração os princípios de liberdade, igualdade e não discriminação, estas relações subordinam-se a uma lógica assimilacionista (Rios, 2011). Tal lógica, “[...] na prática, distingue uma condição sexual ‘normal’, palatável e ‘natural’ de outra assimilável e tolerável, desde que bem comportada e ‘higienizada’” (Rios, 2011, p. 111). As famílias homoparentais têm direito a serem uma família pelo respeito aos direitos humanos em primeiro lugar.

No discurso de família-afeto, não cabe a problematização sobre uma perspectiva que aborde a família como local também de conflitos, de negligência e de violência, situações essas que precisam de enfrentamento. É preciso ter em consideração outra forma de perceber a família, a fim de não incorrermos em um processo de santificação e idealização desta, bem como de buscar formas de assegurar aos membros de uma família o exercício de seus direitos de segurança, proteção, dignidade e cidadania.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A partir de nossa análise, podemos observar como o conceito de família enquanto diferentes configurações familiares, unidas por afeto, respeito e responsabilidade mútuos, também presente nos discursos jurídicos como elemento do dispositivo que intercepta sujeitos, é capaz de produzir subjetividades. Deste modo, abordar o conceito de família por esse viés favorece formas de ser e formas de exercer a parentalidade, contribuindo para os sujeitos darem significado à própria família que formam.

É marcante o modo como membros dessas configurações familiares ressaltam o afeto em suas enunciações, bem como outros elementos que pertencem também a um discurso que supera a definição de família exclusivamente pela perspectiva biológica e heterossexual.

Nesta direção, podemos recordar Luiz Mello (2005, p. 40), ao postular que

Pensar a família no contexto das relações amorosas estáveis entre pessoas do mesmo sexo talvez seja uma oportunidade singular para a compreensão dos limites e possibilidades de construção de uma família plurívoca, desessencializada de qualquer determinação “natural”, em que a diversidade de formas possíveis de estruturação dos vínculos familiares tenha como substrato comum não apenas a preocupação com a reprodução biológica da espécie, mas, principalmente, a criação de condições que assegurem o bem-estar físico e emocional dos seres humanos em interação.

Superados estes determinantes históricos da família moderna, biológica e matrimonial, volta-se o olhar para a família como instância que se preocupa com as relações entre seus membros, baseadas em elementos que possibilitem assegurar o bem viver dos sujeitos. Assim, tendo em conta estes aspectos, sujeitos em contextos homoparentais hoje podem existir e se entender enquanto configuração familiar, apoiados também pelos discursos jurídicos sobre família.

A atualização do conceito de família, que modifica por sua vez este dispositivo, ampliou as possibilidades de identificação de diferentes configurações familiares, reconhecidas inclusive no âmbito do Direito brasileiro, como o caso da união civil homossexual designada enquanto entidade familiar. Tal ampliação do conceito de família, em articulação com o afeto, não obstante, representa o alargamento das táticas de governamentalidade do Estado sobre a população, isto é, ampliação das formas de regulação sobre sujeitos que estavam à margem a partir da legislação sobre família e de suas formas próprias de conceituá-la. Portanto, não apenas a atualização do dispositivo da família, mas também a atualização do dispositivo da segurança e do dispositivo da sexualidade, uma vez que sujeitos homossexuais, em contexto de homoconjugalidade, podem se reconhecer como família.

Entendemos que formas de significar a família a partir de elementos afetivos que correspondem à ampliação da governamentalidade sobre os sujeitos são produções inseridas em determinadas condições de possibilidade, datadas no tempo e no espaço e que corroboram a produção do conceito de família como elemento discursivo desse dispositivo familiar.

Compreender o conceito de família contemporâneo como um elemento discursivo do dispositivo família implica reconhecer que tais discursos operam na produção dos sujeitos e nas suas formas de significação de si e de mundo, enquanto apropriação social de verdades, poderes e saberes que estão ligadas a esse dispositivo. Tal como afirma Agamben (2005, p. 14), “[...] todo dispositivo implica, com efeito, um processo de subjetivação, sem o qual o dispositivo não pode funcionar como dispositivo de governo, mas se reduz a um mero exercício de violência”.

O conceito de família articulado ao afeto, na medida em que é apropriado por sujeitos homossexuais na produção de suas famílias, realiza uma produção de subjetividades, constituindo esses sujeitos conforme as normas estabelecidas pelo Estado. Tal processo não se dá por imposição do Estado, mas por estratégias de subjetivação do desejo de fazer parte dessas normas, de possuir uma “família afetiva” e, assim, aceder ao centro.

Podemos assim entender o discurso de família-afeto como uma produção de verdade e o conceito de família operando como elemento discursivo desse dispositivo, produzindo relações de poder, saber e formas de subjetivação. Deste modo, pode-se evidenciar a produção de discursos que consideram aquilo que é enunciável e aceitável e aquilo que se distancia desse centro. Portanto, o reconhecimento da homoparentalidade em âmbito legislativo pode representar a produção de um centro, um novo processo de normalização, isto é, de homonor-malização, a partir de formas reconhecíveis de existência, e a exclusão daquelas formas que não se adequam ao estabelecido, por exemplo, os sujeitos que não desejam a contratualização de suas uniões. Tal como contesta Butler (2003, p. 226), “[...] a esfera da aliança íntima legítima é estabelecida graças à produção e intensificação de zonas de ilegitimidade”.

Pode-se perceber a linha tênue entre produção da homonormatividade, a partir da adoção de padrões heterossexuais de vivência por sujeitos homossexuais, e a produção da diferença a partir da construção de relações familiares que não obedecem aos parâmetros heterossexuais, quais sejam: monogamia, reprodução e necessidade de casamento. As relações homoconjugais precisam, então, pensar no reconhecimento da união civil homossexual como desafio para afirmação da sua diferença e não se deixar interpelar por esses parâmetros, bem como questionar o poder do Estado sobre a legitimação de suas uniões.

Neste artigo, portanto, abordamos elementos discursivos do dispositivo da família, buscando evidenciar algumas formas de produção de subjetividades em sujeitos de famílias homoparentais. Destacamos o discurso de família-afeto, encontrado em destaque na atualidade, enquanto possibilidade de afirmação desses sujeitos e de suas formas de significação de família. Não obstante, apontamos para a possibilidade de análise de outros elementos discursivos e não discursivos do dispositivo família, os embates, as resistências e os processos de normatização e normalização que se ligam à produção desse dispositivo, bem como de suas formas de conceituação.

01Utilizaremos aqui a palavra ‘conceito’ para designar a definição de família dada por instituições de produção do discurso. A palavra significado/significação refere-se aos processos de produção e apropriação de discursos por parte dos sujeitos e estão relacionados aos conceitos estabelecidos por essas instituições de produção do discurso.

02Ainda que, segundo Foucault (2015b), um dispositivo seja composto de práticas discursivas e não discursivas, neste trabalho exploramos apenas práticas discursivas, já que necessitamos delimitar nossa escrita aos parâmetros de um artigo.

03 Foucault (2015b, p. 368) caracteriza como sendo instituição “[...] todo comportamento mais ou menos coercitivo, aprendido. Tudo que em uma sociedade funciona como sistema de coerção, sem ser um enunciado, ou seja, todo o social não discursivo é a instituição”.

04Os/as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido na ocasião da entrevista, documento que evidenciava o objetivo geral da pesquisa, a permissão para gravação, bem como assegurava o uso de nomes fictícios para cada entrevistado/a e sua família.

05A fim de preservar a identidade das/os participantes, são utilizados codinomes para identificá-las/os.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 28 de Outubro de 2023; Aceito: 03 de Julho de 2024

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