1 Introdução
Apesar da importância do trabalho docente para a educação emancipatória, no Brasil, historicamente, esse âmbito é marcado por diversos desafios. Gatti (2017) corrobora que a aprendizagem dos alunos é construída sobre o trabalho dos professores, que, por sua vez, está intimamente ligada à formação docente. No entanto, desde os primórdios, a educação brasileira enfrenta impasses no trabalho e no padrão formativo dos professores, que não os capacita suficientemente para atender às novas demandas pedagógicas.
A profissionalização docente é uma das medidas inescusáveis para o alcance da educação de qualidade, todavia diversas contradições impedem a concretização desse movimento político vital para a eficiência das instituições educativas e dos professores. Escolas públicas deficitárias, mercantilização da educação e privatizações são apenas algumas das incoerências (Tardif, 2013). Os reveses não se limitam aos professores, mas afetam os alunos, como é o caso das vulnerabilidades de acesso às Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) e a outros recursos didáticos, bem como do não atendimento das particularidades dos estudantes que precisam de educação inclusiva.
Com a pandemia da Covid-19, embora o ensino remoto emergencial (ERE) tenha se mostrado uma estratégia viável para minimizar os danos causados pela suspensão das aulas presenciais, tornou-se ainda mais evidente a exclusão digital de alunos e professores (Neves; Fialho; Machado, 2021; Neves; Valdegil; Sabino, 2021). Em todo o sistema educativo, intensificaram-se os dilemas do trabalho docente com reflexos multidirecionais, como o adoecimento físico, mental e emocional dos professores relacionado à reformulação e ao aumento das demandas laborais (Fialho; Neves, 2022).
No tocante aos docentes, a precarização é escalonada, em que os substitutos, devido à falta de estabilidade laboral e aos baixos salários, experienciam condições mais degradantes (Silva; Maia Filho; Rabelo, 2020). Quanto aos alunos, em uma graduação prejudicial, os alunos com alguma deficiência, como a intelectual, tiveram um impacto maior na aprendizagem (Mendonça; Viana; Nascimento, 2023).
Diante dessa perspectiva, a pergunta que se levanta é: quais são os temas mais enfáticos nos estudos brasileiros sobre o trabalho docente? Em busca de respostas, realizou-se um estudo bibliométrico com o objetivo principal de compreender as principais discussões científicas suscitadas nas pesquisas brasileiras sobre o trabalho docente.
As pesquisas acerca do trabalho docente despertam a atenção de cientistas interessados em compreender as diversas dimensões do fenômeno educativo, tais como as que dizem respeito à formação inicial e continuada e à profissionalização dos professores (Fialho; Sousa; Nascimento, 2020). Usualmente, os estudos nessa vertente colecionam um número significativo de citações (Nascimento, 2020), o que indica sua relevância para a comunidade científica, uma vez que é um assunto que não se limita a discussões pontuais, mas requer reflexões aprofundadas em uma pauta permanente de monitoramento dos contornos presentes na docência.
Além disso, os avanços e retrocessos na educação são parte integrante dos embates dos sujeitos comprometidos com a educação de qualidade (Ferreira; Aragão; Andrade, 2019). As ponderações nesse sentido são indispensáveis, haja vista que o trabalho docente envolve uma série de elementos que devem estar no centro do debate acadêmico, científico e social (Araújo; Rodrigues; Aragão, 2017) promovido por intelectuais e professores em luta com suas organizações, como os sindicatos (Assis et al., 2022).
No âmbito deste trabalho, portanto, os achados do levantamento bibliométrico são apresentados e discutidos para além dos aspectos quantitativos. Argumenta-se, em confluência com a literatura atual, sobre as variantes que historicamente influenciam o trabalho docente no Brasil, destacando-se a pouca efetividade social de certas políticas educacionais, especialmente diante do advento da pandemia da Covid-19.
O texto se organiza em cinco segmentos. O introdutório contextualiza a temática e especifica o problema, o objetivo e a relevância do estudo. O metodológico detalha o percurso da pesquisa em conformidade com o método bibliométrico. As discussões e os resultados sintetizam as evidências e as analisam. As considerações finais retornam ao problema de pesquisa e aos principais resultados, expõem as inferências autoral e as limitações da pesquisa, além de sugerirem estudos futuros.
2 Metodologia
Este estudo é exploratório-descritivo e se baseia no método bibliométrico, que utilizou o software VOSviewer®, versão 1.6.18, para estabelecer mapas de coocorrência de palavras-chave de acordo com a média anual de publicações e com as similaridades temáticas.
O VOSviewer® é uma ferramenta de redes de publicações, pesquisadores, países, palavras-chave e instituições de pesquisa, que permite visualizá-las e interpretá-las (van Eck; Waltman, 2022). As pesquisas bibliométricas, por meio de técnicas quantitativas avaliativas, revelam o estado da arte de certos campos de conhecimento e emitem relatórios bibliográficos sobre o progresso da produção científica (Vianna; Pinto, 2017).
Os estudos exploratórios permitem uma maior familiaridade com o problema de pesquisa, esclarecendo-o. Já as descritivas, como a própria denominação sugere, descrevem as características do fenômeno em questão e estabelecem a associação entre suas variáveis. De tal modo, pesquisadores com foco na atuação prática costumam desenvolver estudos, simultaneamente, exploratórios e descritivos (Gil, 2008).
A investigação seguiu as seguintes etapas: a) balizamento do tema de pesquisa; b) escolha da base de dados para a obtenção dos dados; c) designação do termo e dos requisitos de busca; d) demarcação dos critérios de elegibilidade; e) exportação do arquivo contendo os metadados para o programa bibliométrico; f) submissão dos registros ao VOSviewer®; g) leitura integral dos textos referenciados; e h) interpretação e apresentação dos resultados.
Os registros foram extraídos da coleção principal da Web of Science (WoS) em 8 de setembro de 2023, mediante o termo “teaching work” aplicado ao campo “tópico”, que corresponde aos títulos, resumos e palavras-chave. A predileção pela WoS foi fundamentada na qualidade e abrangência da produção científica que divulga mundialmente.
Os critérios de inclusão foram: artigos publicados de 2008 até 8 de setembro de 2023, data da recolha dos dados, nos quais, pelo menos, um autor fosse afiliado a alguma instituição brasileira, mesmo que em coautoria com outros países. Excluíram-se documentos distintos de artigos ou que nenhum dos autores estivesse vinculado ao Brasil. Essa etapa foi otimizada com os refinamentos: “países/regiões: Brazil” e “tipo de documento: artigo, artigo de conferência e artigo de revisão”.
Um arquivo com seleção personalizada de todos os metadados disponíveis na WoS foi exportado e processado no VOSviewer®. Esse conjunto está disponível em: https://doi.org/10.5281/zenodo.10028511 1.
As palavras-chave mais recorrentes, agrupadas nos clusters em razão da proximidade temática, contribuíram para identificar os principais eixos temáticos que perpassam a produção examinada, cuja síntese de evidências consta na próxima seção.
3 Resultados e discussão
Inicialmente, a busca retornou 921 registros, mas, como o interesse investigativo recaiu sobre artigos de autores brasileiros, aplicaram-se os filtros descritos na metodologia, o que resultou em 286 documentos, sendo artigo (n=278), artigo de conferências (n=4) e artigo de revisão (n=4).
Cinco países estabeleceram coautoria com o Brasil: Canadá (um artigo), Suíça (um artigo), Portugal (dois artigos), Estados Unidos (dois artigos) e Chile (dois artigos).
O estudo Brasil e Canadá evidenciou a maneira como a agenda acadêmica afeta os professores de um programa de pós-graduação brasileiro de uma universidade federal, em que as mulheres foram as mais acometidas. Além do burnout, houve uma diminuição no acompanhamento satisfatório dos alunos e uma baixa produção de pesquisas e publicações (Borsoi; Pereira, 2013). Bandeira e Marques (2023), afiliados ao Brasil e aos Estados Unidos, focalizaram o planejamento participativo como uma forma de práticas mais efetivas e colaborativas na solução dos problemas que afetam professores universitários.
As transformações recentes do trabalho docente em razão do uso massivo das TDIC atraíram a atenção de Zani, Bueno e Dolz (2020), que, vinculados a instituições brasileiras e suíças, perceberam ser urgente capacitar os professores para mitigar a precarização das relações laborais, como a uberização. Neves, Fialho e Machado (2021) explicam que “uberização” é um fenômeno análogo ao modo de funcionamento do transporte privado Uber, no qual os professores são compelidos a prover suas ferramentas de trabalho sem o devido ressarcimento remuneratório, o que resulta em expropriação dos seus recursos.
Quanto à distribuição temporal da produção, o artigo mais antigo foi publicado em 2008 (n=1), seguido por uma produção variável de um a quatro textos até 2017 (n=4), com lacunas em 2014 e 2016. A partir de 2018 (n=44), a produção se sustentou em alta e sem vácuos, mas houve um pequeno decréscimo em 2019 (n=40). Concorde o Gráfico 1:
A temporalidade da produção examinada evidencia que as configurações que atravessam o trabalho docente no Brasil há muito atraem o interesse investigativo. O trabalho mais antigo, de Monteiro e Bueno (2008), procurou entender os saberes e as práticas dos professores alfabetizadores nas décadas de 1950 a 1980, em que a dedicação dos professores foi fundamental para os resultados do processo alfabetizador.
Inobstante a produtividade comunicada no Gráfico 1 refletir apenas o cenário da base WoS, sugere-se que a maior expressividade das publicações, a contar de 2018, advenha do maior número de periódicos brasileiros que passaram a integrar a WoS, dos dossiês temáticos e do crescente interesse dos cientistas de diversos campos do conhecimento pelo trabalho docente.
A propósito, o interesse pelo trabalho docente é compartilhado por 11 categorias cadastradas na WoS. As maiores cifras são para a “Education Educational Research” (n=180), “Humanities Multidisciplinary” (n=35), “Social Sciences Interdisciplinary” (n=15), “Language Linguistic” (n=12) e “Public Environmental Occupational Health” (n=12).
As palavras-chave atribuídas nos artigos representam a temática principal dos estudos. Clusters maiores têm mais palavras-chave e os que estão mais próximos uns dos outros possuem maior similaridade no conteúdo (van Eck; Waltman, 2022). Então, estabeleceu-se que o programa VOSviewer® construísse a rede com as palavras-chave recorrentes no mínimo três vezes. Do total de 655 palavras-chave, 40 se alocaram na rede apresentadas no formato “network visualization”, que destaca cada cluster por meio de cores distintas de acordo com a familiaridade temática entre os artigos, como mostra a Figura 1.
A interface do programa, por meio da rede no formato “overlay visualization”, ainda informou a temporalidade média em que os artigos foram publicados. O Quadro 1 apresenta uma compilação das formulações do programa VOSviewer®. Nele, as palavras-chave foram organizadas por ordem em que se ostentaram nos clusters, com suas ocorrências, força total dos links e média anual de publicações.
Fonte: Elaboração própria com base nos dados processados pelo VOSviewer® (2023).
O link é uma conexão entre dois itens. Cada link tem uma força específica e aqueles com maior força indicam um número maior de publicações, nas quais duas palavras-chave estão associadas. A força total do link marca o número de ligações da palavra-chave com os outros termos da rede. Agora, a ocorrência é a contagem dessas palavras em todos os artigos analisados (van Eck; Waltman, 2022).
As 40 palavras-chave que atenderam aos parâmetros de elegibilidade formaram seis clusters. A meditação autoral sobre esses agrupamentos e a leitura dos artigos inspiraram a identificação e a interpretação dos principais eixos temáticos nos 286 artigos analisados, conforme sintetizados e discutidos a seguir.
3.1 Síntese de evidências
O cluster 1, com média de publicações entre 2017 e 2021, indicou o eixo temático “condições de trabalho adversas à saúde dos professores”. D’Oliveira et al. (2021) identificaram que, devido ao legado neoliberal e às imposições por maior produtividade, os professores de enfermagem assumem diversas funções sem o devido acrescimento remuneratório, além de sofrerem danos à saúde. Com essas apreensões, corroboram Rodrigues et al. (2020), embora a intensificação e o prolongamento da jornada laboral se configurem em um problema antigo, denunciado por Marx; novas configurações aumentam as consequências para a saúde física e mental dos professores.
Os estudos apresentam sugestões de estratégias para a promoção da saúde ocupacional. Goebel e Carlotto (2019) aconselham o dimensionamento adequado aluno/ professor; a concessão de maior autonomia ao professor para determinar suas atividades de acordo com as especificidades de seus discentes; a promoção de um ambiente laboral saudável; e a formação contínua para o manejo das TDIC.
A educação tem um lugar privilegiado na Constituição Federal do Brasil. Existem diversos diplomas legais e administrativos vigentes, mas é perceptível o distanciamento entre o que está escrito e o que está sendo implementado. Por esse motivo, postula-se uma atuação mais efetiva das políticas públicas em todo o sistema educacional. Como prova, Alves e Côco (2020) alertam que, na educação infantil de todo o Brasil, o trabalho docente está impactado pelas metas de mercantilização, privatização e expansão. Sendo assim, as políticas educacionais precisam reverter o enfraquecimento atual e se direcionar para a qualidade delineada nos textos legais.
O cluster 2, com o tempo médio de publicação de 2019 a 2021, expressou o eixo temático “as TDIC no trabalho docente”. O relato de Magalhães, Silva e Paula (2021), sobre a docência em universidades públicas durante a pandemia da Covid-19 documentou os prejuízos ao processo educativo, como a desigualdade no acesso dos alunos, a alteração da jornada de trabalho e as modificações nos processos de avaliação, o que requereu uma reformulação imediata do trabalho pedagógico.
Muitos professores das instituições educativas públicas e privadas não estavam familiarizados com as TDIC aplicadas ao campo educacional e, subitamente, foram designados para o ERE (Bortolon; Nauroski, 2022; Fialho; Neves, 2022). No entendimento de Nunes, Raic e Souza (2021), sequer a experiência anterior com a educação a distância deu conta dos novos desafios. Castro, Rodrigues e Ustra (2020) elucidaram que, apesar de a rede privada oferecer condições materiais mais propícias do que a pública, no início da pandemia verificaram-se uma insuficiência de recursos tecnológicos, uma piora na precarização do trabalho e uma deficiência nos saberes docentes para o manejo eficaz das TDIC.
Não obstante as dificuldades assinaladas no ensino por meio das TDIC, os estudos perquiridos revelaram desdobramentos positivos. Para Magalhães, Silva e Paula (2021), estudantes e professores, juntos, estiveram mais engajados com práticas interdisciplinares com vistas a superar as incongruências no ensino e na aprendizagem, mas não é suficiente enquadrar apenas professores na formação para práticas educativas mediadas por TDIC, uma vez que os estudantes carecem de recursos materiais e currículos compatíveis com a incorporação dessas tecnologias (Nunes; Raic; Souza, 2021).
Ademais, a expansão das TDIC e as inovações do mundo do trabalho impõem novas práticas pedagógicas e novas formas de comunicação, em que o saber-fazer educacional não se aparta de metodologias que fomentem o protagonismo dos alunos e superem o uso tecnológico meramente tecnicista (Prados; Lamas, 2022). É crucial, portanto, que as TDIC sejam coadjuvantes do trabalho docente e que não obscureçam a criticidade criativa dos alunos.
O cluster 3, com a maior parte dos artigos publicados no interregno de 2015 a 2021, designou o eixo temático “singularidades no trabalho docente”, que abarcou diferentes nuanças, que, ao longo do tempo, permeiam as variadas dimensões do trabalho docente, como a educação inclusiva, as questões de gênero e a pandemia da Covid-19, que incitam os professores a reverem suas práticas em cumprimento aos desígnios funcionais.
Neste cluster, o termo mais frequente foi “Covid-19”, confirmando os ecos deletérios, sem precedentes históricos, projetados pela pandemia sobre a educação. No estado de São Paulo, Venturelli (2021) verificou desvalorização do trabalho dos professores e uma degradação das suas condições de saúde, incluindo a exaustão relacionada ao teletrabalho. Esses malefícios, desde o ano inaugural da pandemia, ocorreram por todo o Brasil (Fialho; Neves, 2022; Neves; Valdegil; Sabino, 2021; Silva; Maia Filho; Rabelo, 2020).
Afora o problema da Covid-19, em uma universidade federal brasileira, 60% das professoras apresentaram escores compatíveis com assédio e violência institucional. Entre os homens, esse percentual foi de 48,7%, o que sugere a necessidade de tomar medidas para prevenir essas afrontas à dignidade dos professores (Figueiredo; Silva; Santana, 2020).
Na Rede Municipal de Curitiba, estado do Paraná, Faria e Camargo (2021), ao estudarem as emoções dos professores em relação à educação inclusiva, identificaram alegria e satisfação, mas também se depararam com sentimentos negativos, tais como: frustração, insegurança e pena. Os autores concordam que é fulcral proporcionar condições aos professores para atenderem integralmente aos alunos com deficiência, porque as emoções influenciam o processo educativo. Por isso, não devem ser negligenciadas.
Na educação de jovens e adultos (EJA), Trentin (2022) percebeu práticas docentes incompatíveis com a normatização vigente, nas quais as disciplinas eram fragmentadas e as aulas, em sendo idênticas para todos os alunos, desconsideravam as individualidades dos discentes e dificultavam a aprendizagem.
Nas propostas corretivas, o estudo de caso de Silva e Moreira (2021), com professores de Educação Física, apresentou o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) como uma forma de incentivar a aquisição de saberes docentes e de uma postura crítica em relação às práticas pedagógicas. Trentin (2022) acrescentou que reflexões sobre como a docência pode (re)construir saberes compatíveis com as demandas dos alunos.
O cluster 4, com a maioria dos estudos entre 2018 e 2021, salientou o eixo temático “trabalho docente e políticas educacionais”, com artigos que questionaram os efeitos das políticas educacionais sobre o trabalho e a formação dos professores, bem como sobre a aprendizagem dos alunos.
A análise das circunstâncias que envolvem o trabalho docente em diferentes estados do Brasil certifica que as políticas educacionais carecem de mais efetividade social. Raimann e Farias (2020), ao perscrutarem o Plano Municipal de Educação de um município de Goiás, perceberam que foi dada prioridade à avaliação em larga escala, contudo as melhorias laborais para os professores daquela rede foram negligenciadas.
O trabalho de Pereira e Previtali (2018) mostrou a persistência da crise capitalista que viola os direitos dos professores universitários mineiros. No estado do Ceará, Olímpio (2022) identificou hiatos na formação de professores de Geografia. Ainda na Educação Básica, em específico na disciplina de Geografia, não se prioriza a integralidade curricular, segmenta-se a teoria da prática e engendram-se arranjos em conformidade com o modo de produção capitalista.
O ensaio de Rocha e Hypolito (2021) refletiu sobre a função social do professor, que é desprestigiada em razão do neoliberalismo, o que lhe acarreta ambivalência em meio às disputas hegemônicas que afetam à escola pública. Como explicam, em toda a América Latina, as políticas neoliberais têm orientado as reformas educacionais e se traduzido em mercantilização da educação, incluindo privatizações.
Entretanto, entre as proposições para a suplantar o descompasso formativo inicial e continuado dos professores, Pereira e Previtali (2018) indicam reelaboração e constância no debate analítico de conjuntura, para tornar a dinâmica dessa realidade mais inteligível e oportuna à correção de rotas.
No mais, o cluster 4 notabilizou as potencialidades educativas da “pedagogia histórico-crítica”. Segundo Neves e Sales (2021), essa pedagogia é alicerçada nas concepções marxistas e se apresenta como uma proposta viável para compreender as contradições que atingem a formação e o trabalho docente e desqualifica a educação. Lopes e Silva (2018) inferiram haver coerência nos pressupostos da pedagogia histórico-crítica frente às demandas da educação do campo e da profissionalização docente, porque se concentra na formação humana crítica, reflexiva, inclusiva e libertadora.
Destarte, compreende-se que é impossível conceber o trabalho docente desvinculado das políticas públicas educacionais, as quais devem estar atentas às diferentes perspectivas que tocam estudantes, professores, escolas e sociedade.
O cluster 5, que tem uma média de tempo de publicação de 2019 a 2020, instituiu o eixo temático “precarização do trabalho docente”, que se comunica com diferentes domínios educacionais. Neste conjunto de palavras-chave, a precarização surgiu em referência às instituições educativas em geral, o que indica ser um problema abrangente, multifacetado e recorrente.
Nas conexões com os demais clusters, Correia e Souza (2022) constataram que as exigências neoliberais e produtivistas impõem aos professores de escolas públicas e privadas múltiplas funções, perdas de direitos, danos à saúde e à formação docente, além de causar uma série de injustiças sociais.
No ensino superior em saúde, Matos, Boneti e Ferla (2023) verificaram a insatisfação dos professores de Medicina de uma universidade federal do Sul do Brasil devido aos retrocessos e à insuficiência de investimento institucional. Em Petrolina, estado de Pernambuco, Macêdo, Amorim e Souza (2021) desvelaram que as interferências nas rotinas profissional, pessoal e familiar causaram adoecimento nas professoras de Enfermagem, Medicina e Psicologia. Gomes, Leher e Costa (2020), ao estudarem os conflitos trabalhistas nas instituições de ensino superior privadas de grupos empresariais abertos com ações na bolsa de valores, constataram que, para intensificar os lucros, aumentam a exploração por meio do rebaixamento salarial, da transformação de professores em tutores, da substituição de aulas presenciais por educação a distância e das demissões.
Diante desse panorama aviltante à dignidade docente, os estudos apontam para o/a: incorporação e continuidade das lutas de resistência às opressões neoliberais (Correia; Souza, 2022); engajamento multiprofissional, familiar, institucional e das políticas públicas para melhorar as condições de trabalho e de saúde dos professores (Macêdo; Amorim; Souza, 2021); mais investimento na formação inicial e continuada (Matos; Boneti; Ferla, 2023); e articulações coletivas mediadas pelas organizações sindicais (Farfán; Diniz-Pereira, 2023).
Dessa forma, é possível inferir que, dada a complexidade das vicissitudes que surgem e se prolongam sobre o trabalho docente, reflexões perenes a fim de desmantelar as afrontas existentes e coibir o agravamento desse quadro adverso são prementes.
O cluster 6, com um prazo estimado de publicação de 2017 a 2022, remeteu ao eixo temático “trabalho docente na educação infantil”. Em seus artigos representativos, as particularidades da educação infantil determinam o perfil idealizado para os professores. Contudo, ao contrário da relevância das funções sociais desempenhadas pelos professores da educação infantil, segundo Alves e Côco (2020), essa é uma das etapas mais privatizadas no Brasil. Até mesmo nas escolas conveniadas, que recebem recursos públicos sem perder o caráter privado, o trabalho docente é marcado por desencontros, em parte devido às pressões para atingir as metas mercantilistas.
É importante salientar que a educação infantil requer a aptidão e a sensibilidade dos professores para lidar com crianças em fase de crescimento e desenvolvimento (Oliveira; Silva, 2021). A capacidade da criança em responder aos estímulos educativos direciona o professor, que se mantém em constante observação e avaliação, flexibilizando a práxis às especificidades dos infantes. Essa proposta didática difere daquelas que são adequadas para outras faixas etárias, o que inclui brincadeiras, estímulo às descobertas e convivência voltada para o desenvolvimento social e cognitivo (Martins; Rodrigues, 2023), uma vez que as relações dialéticas presentes nas brincadeiras e nos jogos educativos favorecem o desenvolvimento infantil e são úteis na organização do trabalho docente (Silvestre; Barbosa, 2022).
Outrossim, as palavras-chave deste cluster se endereçaram à teoria histórico- -cultural. Na visão de Lordani, Cruz e Araújo (2022), os aportes dessa teoria podem favorecer a formação acadêmica e continuada dos professores da educação infantil, porque, por meio do conhecimento sistematizado, historicamente enfatiza a humanização dos diferentes sujeitos sociais.
5 Considerações finais
Nesta pesquisa, questionou-se: quais são os temas mais enfáticos nos estudos brasileiros sobre o trabalho docente? De modo a responder à inquietação, foi elaborado um estudo bibliométrico, com o objetivo principal de compreender o que os pesquisadores brasileiros discutem em nível internacional a respeito do trabalho docente.
A análise abrangeu 286 artigos publicados entre 12 de março de 2008 e 8 de setembro de 2023. Até 2006, havia uma quantidade reduzida de registros na WoS, mas, a partir de 2018, os números aumentaram para 40 a 56 publicações anuais, inscritas em 11 categorias, sendo a educacional a mais expressiva, o que confirma o interesse interdisciplinar pelo trabalho docente. Os estudos, inclusive, foram assinados por cientistas do Canadá, Suíça, Portugal, Estados Unidos e Chile.
A rede de palavras-chave, ao elucidar a temática mais inovadora em relação ao trabalho docente (pandemia da Covid-19, ERE, aprendizagem, treinamento, políticas públicas e precarização) ratificou o impacto desse agravo sanitário nas atividades pedagógicas.
As 40 palavras-chave mais frequentes no corpus geral, ao se agruparem em seis clusters conectados uns aos outros, permitiram identificar seis eixos temáticos: 1) condições de trabalho adversas à saúde dos professores; 2) TDIC no trabalho docente; 3) singularidades no trabalho docente; 4) trabalho docente e políticas educacionais; 5) precarização do trabalho docente; e 6) trabalho docente na educação infantil.
A precarização do trabalho docente decorrente do neoliberalismo perpassou todos os outros eixos e as pesquisas realizadas durante e após a pandemia da Covid-19 afirmam a intensificação desse problema crônico. Os textos contextualizam matizes do trabalho docente no Brasil e os confrontam com as políticas públicas educacionais, problematizando sua pouca efetividade, mas também apresentam recomendações, dentre as quais se salienta a relevância da formação inicial e permanente dos professores, bem como de uma interlocução permanente de resistência contra a desvalorização da educação e dos professores.
É paradoxal as duas principais perspectivas que se confrontam no Brasil em relação ao trabalho docente, uma profissão considerada fundamental para a sociedade, mas, ao mesmo tempo, desvalorizada. O desprestígio experimentado pelos professores ultrapassa a questão da remuneração e repercute na produção do conhecimento e da ciência, na saúde dos professores e em diversos outros aspectos. Para mitigar essas rupturas, é oportuno continuar o debate, estendendo-o para dentro e para além da profissão, para a comunidade científica, para a sociedade e para os entes políticos.
O estudo não considerou a produção em outras bases e indexadores, entretanto, tendo em vista o rigor metodológico e a expressiva quantidade de 286 registros analisados, acredita-se ser relevante para demonstrar o panorama das comunicações científicas brasileiras sobre o trabalho docente.
Para estudos vindouros, recomenda-se replicar a metodologia neste texto delineada em outras plataformas, ou atualizar a análise atual para monitorar o estado das pesquisas brasileiras sobre o trabalho docente e compreender os argumentos que os estudiosos brasileiros suscitam e propagam.