INTRODUÇÃO
Este artigo trata da produção da escrita de jovens estudantes da educação profissional federal. Uma escrita de pessoas que vivem uma época em que querem escrever tudo sobre si, seu corpo, seus sonhos e interesses, mas, ao mesmo tempo, uma época na escola em que nada sobre si podem escrever, pois as exigências acadêmicas lhes pedem temas específicos com estruturas e linguagem convencionais à estética exigida pelos programas de seleção como o ENEM.
Trata do que jovens estudantes pensam acerca do processo de escrita. Para tanto, foi selecionado como locus de pesquisa o Instituto Federal de Sergipe (IFS). O fato de as pesquisadoras estarem vinculadas ao Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica do IFS contribuiu com a escolha do campo empírico e dos participantes da pesquisa. E o fato de terem formação em Letras, lecionarem Redação por duas décadas, foi fundamental para tomarem a escrita autoral como objeto de estudo. Ao longo de aulas de redação, da preparação em cursos voltados para concursos e vestibulares, é sempre muito comum se deparar com a angústia da escrita: por que escrever, por onde começar, que linguagem usar, o que pode ou não ser dito, como a minha verdade pode ser vista como verdade para quem vai ler, como convencer alguém sobre algo que muitas vezes nem estamos ainda convencidas. Essas são algumas questões que afloram no processo de escrita.
Nossos estudos situam-se entre dois pontos-chave: Educação Profissional e Tecnológica (EPT) e Autoria no contexto escolar. A priori, as considerações sobre a EPT são indispensáveis, tendo em vista que esta pesquisa foi resultado das atividades que antecederam a realização de um minicurso de redação, um produto educacional para educandos do Ensino Médio Integrado do Instituto Federal de Sergipe (IFS). Esse curso na condição de produto fez parte de uma prática educativa da EPT, portanto, é preciso conhecer os princípios que embasam a formação profissionalizante preconizada na referida instituição, assim como em toda a rede de ensino que integra a EPT no Brasil, a saber: integração, politecnia e omnilateralidade.
Do mesmo modo, faz-se necessário considerarmos o conceito de práticas pedagógicas integradoras. Aqui se insere a escrita autoral como uma prática pedagógica do componente curricular Língua Portuguesa e Produção Textual no Ensino Médio Integrado. Como esse componente curricular trata o processo da escrita, como tem contribuído ou não com a formação de um sujeito que escreve. Impedir o posicionamento do sujeito, silenciá-lo, provoca não só o insucesso do processo de ensino-aprendizagem no que diz respeito à produção textual, como também expõe a lacuna deixada pelo impedimento de esse jovem em formação expressar adequadamente suas ideias, de modo autoral, por meio do texto escrito.
Portanto, os receios que antecedem um processo de escrita, o que pensam os estudantes acerca da redação é o problema com o qual nos defrontamos. Esse artigo está organizado em mais quatro sessões, uma que apresentará os princípios básicos da rede de educação profissional, outra que apresentará o que pensamos sobre escrita autoral. Depois cuidaremos dos textos dos estudantes que produziram depoimentos sobre o seu processo de escrita. Discorremos sobre eles ressaltando as dificuldades sentidas, os medos vivenciados diante do desafio da escrita. Por fim, nossa compreensão dessa vivência estudantil, desses sinais de autoria, bem como algumas propostas de como minimizar os entraves perante o escrever.
EPT E CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA
No que se refere à Educação Profissional e Tecnológica (EPT), temos um ideal de formação humana, integrada e omnilateral. Em outras palavras, seu compromisso é formar pessoas críticas e atuantes, que se reconheçam como sujeitos históricos na transformação da sociedade. Porém, diante da incapacidade de o indivíduo expressarse no contexto escolar, como a educação poderá cumprir seu papel de prepará-lo para o trabalho e para o exercício da cidadania, assim como garantir-lhe “a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (Brasil, 1996, p. 13)? A ideia de formar educandos mais habilitados a interagir e atuar socialmente nas mais variadas situações de comunicação, sendo capazes, inclusive, de intervir socialmente por meio dos seus textos se constitui, pois, em um dos propósitos da EPT.
Preparar-se para escrever bem não só é uma exigência da vida hodierna, mas também um meio de favorecer a realização dos pressupostos de uma educação politécnica. O conceito de politecnia, por sua vez, trata da necessidade de superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre instrução profissional e instrução geral. Nesse sentido, de acordo com Saviani (1989), a ideia de politecnia:
[...] postula que o processo de trabalho desenvolva, numa unidade indissolúvel, os aspectos manuais e intelectuais. Um pressuposto dessa concepção é de que não existe trabalho manual puro, e nem trabalho intelectual puro. Todo trabalho humano envolve a concomitância do exercício dos membros, das mãos, e do exercício mental, intelectual. (Saviani, 1989, p. 15).
Segundo o mesmo autor, "a concepção de politecnia foi preservada na tradição socialista, sendo uma das maneiras de demarcar esta visão educativa em relação àquela correspondente à concepção dominante” (Saviani, 2003, p. 146). Já Ciavatta (2014, p. 190), ao traçar um histórico sobre o termo, explica que “sua origem remota está na educação socialista que pretendia ser omnilateral no sentido de formar o ser humano na sua integralidade física, mental, cultural, política, científico-tecnológica”.
Em suma, compreende-se que a politecnia deriva da problemática do trabalho, sendo sua referência o conceito de trabalho como princípio educativo. Sendo assim, ao aluno, devem ser oferecidos tanto o conhecimento teórico quanto o prático. Nas palavras de Saviani (1989), a educação politécnica:
[...] tem que garantir o fundamental [...] qualquer que seja a função específica que o aluno seja chamado a exercer, ele tem os fundamentos, os princípios, os pressupostos para poder exercê-la com uma compreensão plena do lugar que ela ocupa na totalidade do social. Esse é o princípio básico da articulação teoria e prática, que não é uma formação meramente teórica, mas uma formação prática em que a teoria é compreendida como algo que informa a prática. (Saviani, 1989, p. 40)
Conectado firmemente ao conceito de politecnia, está o conceito de omnilateralidade, que remete a “uma formação humana oposta à formação unilateral provocada pelo trabalho alienado, pela divisão social do trabalho, pela reificação, pelas relações burguesas estranhadas” (Sousa Júnior, 2009, n. p.). Em outras palavras, a formação omnilateral é multilateral, integral, e torna o ser humano capaz de produzir e fruir ciência, arte e técnica. Diz respeito também à sua emancipação como sujeito, consciente das implicações da sua participação no sistema produtivo do capital.
A compreensão do homem enquanto omnilateral pressupõe proporcionar condições para que ele possa, diante das atrocidades e brutalidades de uma sociedade desigual, se sobressair de forma consciente e autônoma, como uma pessoa que compreende a realidade em que está inserido (Silva, Melo e Nascimento, 2015). Tanto quanto compreender, uma formação omnilateral supõe a formação de uma pessoa para atuar com autonomia diante das demandas sociais. Nesse sentido, entendemos a escrita como uma ação, uma tomada de posicionamento. A escrita é um processo em que o sujeito se expressa, comunica o que pensa, o que os outros pensam. É a escrita uma elaboração do pensamento, dos seus argumentos. Por meio dela, o sujeito demanda, questiona, aponta suas ideias e defesas. A prática da escrita autoral ou emancipatória, portanto, favorece a construção do sujeito omnilateral.
Outro conceito muito caro na EPT é o de integração. Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012), a integração almeja superar a divisão histórica do ser humano pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e ação de pensar, dirigir ou planejar. O que se busca numa formação integrada é “garantir ao educando o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política” (p. 85). Ler o mundo e atuar nele exige uma posição de autor que, assumindo um lugar no discurso, assume uma voz ou aquilo que profere. A autoria dá ao discurso certo lugar social, histórico e cultural, sem o qual aquele se perde (Aguiar, 2010).
Ramos (2012), numa análise crítica sobre a equivocada política curricular dos Parâmetros Curriculares Nacionais à época, traz-nos o seguinte esclarecimento sobre o tipo de formação pretendida pela EPT:
A formação integrada entre o ensino geral e a educação profissional ou técnica (educação politécnica ou, talvez, tecnológica) exige que se busquem os alicerces do pensamento e da produção da vida além das práticas de educação profissional e das teorias da educação propedêutica que treinam para o vestibular. (Ramos, 2012, p. 94).
Em suma, entendendo a escrita autoral como propulsora de autonomia, como expressão de subjetividade, vimos a necessidade de elaborar e de participar de algumas práticas pedagógicas a fim de perceber como os discentes expressam suas ideias, suas aprendizagens, seus contentamentos e descontentamentos, enfim, como veem o mundo que os afeta.
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INTEGRADORAS
Conforme explicitado, a EPT, como a entendemos, tem como propósito a formação integrada, politécnica e omnilateral. Porém, para que isso seja possível, as práticas pedagógicas precisam caminhar nessa direção. Sobretudo, precisam estar inseridas num plano de sociedade que vise à transformação social por meio da superação da dicotomia trabalho manual/intelectual. Nesse sentido, a educação deve não só incorporar a dimensão intelectual ao trabalho produtivo, como também formar trabalhadores capazes de atuar como dirigentes e cidadãos (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2012).
Araújo e Frigotto (2015) defendem como princípios básicos para as práticas pedagógicas condizentes com o currículo integrado: a contextualização, a interdisciplinaridade e o compromisso com a transformação social. Como procedimentos de ensino integrado, são propostos: a problematização, o trabalho cooperativo e a auto-organização. Nesse contexto, são estabelecidas duas premissas: a) a valorização da atividade e da problematização como estratégias de promoção da autonomia; b) o estímulo ao trabalho colaborativo como estratégia de trabalho pedagógico. A atividade, segundo os autores, “na perspectiva da transformação da realidade e visando à ampliação das capacidades humanas, coloca-se como um componente a ser considerado no planejamento, no desenvolvimento e na avaliação das práticas pedagógicas que se querem integradoras” (Araújo; Frigotto, 2015, p. 73).
Quando pensamos em prática pedagógica é preciso ressaltar que não é somente “desenvolver as atividades propostas e planejadas, é um trabalho integrado e interdisciplinar que envolve todo o contexto social no qual estão inseridos (Duarte, de Sousa, 2023. p. 56). Assim, a produção escrita deve ser entendida como um fazer pedagógico sob a perspectiva de transformação social, tendo como função o desenvolvimento da capacidade crítica e consciente dos educandos, que devem agir para adaptar a realidade às suas necessidades. Por isso, quando nos propusemos ir ao Campus Aracaju, à Coordenação do curso Química, seguimos os princípios supramencionados, planejamos e realizamos visitas que se configuraram em observações participantes e aplicamos um questionário com perguntas abertas que nos permitissem conhecer o problema - o que pensam sobre escrever, o que escrevem na/para a escola, sobre o que gostariam de escrever.
Adentramo-nos na realidade acadêmica destacando que, nessa construção de pesquisa, eles poderiam reconhecer-se como protagonistas, isto é, como autores, pois nosso objetivo era contribuir com a formação integral. Participar das aulas de Língua Portuguesa ao lado da professora da turma foi o modo facilitador para realizarmos a pesquisa e colhermos as percepções deles sobre autoria, sobre produção escrita.
LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO INTEGRADO
Atualmente, o IFS dispõe de dez campi. Oferece Cursos Técnicos de nível médio como os Integrados, Susequentes, Concomitantes, Formação Inicial e Continuada e os Cursos de Graduação e de Pós-Graduação como Licenciaturas, Engenharias, Tecnólogos, Bacharelados e os de Mestrado.
À nossa pesquisa, interessam os cursos integrados do Campus Aracaju, locus da nossa investigação. Investigamos o ensino de Língua Portuguesa no EMI do IFS, inicialmente, mediante o conhecimento do Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de cada um dos seis Cursos Integrados oferecidos no Campus Aracaju.
Na Ementa comum às disciplinas Língua Portuguesa I, II e III, temos, de forma genérica, os seguintes assuntos: aspectos linguísticos; aspectos de leitura e produção textual; aspectos de literatura. Tanto na bibliografia básica como na complementar são encontradas obras que abordam o estudo dos gêneros textuais, em consonância com o que preconizam os parâmetros educacionais vigentes. Paulo Freire também aparece na lista, dando pistas do tipo de educação - libertária - pretendida naqueles cursos. Esse estudo das ementas nos confirmou que podíamos prosseguir com a ideia de autoria: há indícios de autoria nos textos que os estudantes fazem como atividades realizadas em sala de aula.
AUTORIA NO CONTEXTO ESCOLAR
No Brasil, a questão da autoria ganhou espaço, sobretudo no que diz respeito à escrita na escola. Diferentemente da tradição foucaultiana, os autores nacionais definem a autoria por certa relação de quem escreve com textos que podem ser classificados como comuns - trata-se de uma relação entre sujeito e texto, não entre autor e obra.
Eni Orlandi (2007) considera que os discursos que produzem a possibilidade e a regra de formação de outros textos de “discursos fundadores” e procura estender a noção de autoria para o uso corrente, enquanto função enunciativa do sujeito. Para ela, a função-autor não está limitada a um quadro restrito e privilegiado de produtores de uma obra, conforme entende Foucault (1969); na verdade, ela está presente no uso corrente, em todo texto que é produzido com “unidade, coerência, progressão, nãocontradição e fim” (Orlandi, 2007, p. 69). Tratando mais especificamente do contexto escolar, a linguista torna o conceito de autor ainda mais claro:
[...] do autor se exige: coerência; respeito aos padrões estabelecidos, tanto quanto à forma do discurso como às regras gramaticais; explicitação; clareza; conhecimento das regras textuais; originalidade; relevância e, entre outras coisas, “unidade”, “não contradição”, “progressão” e “duração” de seu discurso. É, entre outras coisas, nesse “jogo” que o aluno entra quando começa a escrever. (Orlandi, 1987, p. 78)
Consideramos que tal ponto de vista corrobora o entendimento de Possenti (2013), segundo o qual são autores aqueles que escrevem um texto adequado. Em seu artigo Enunciação, autoria e estilo traz uma pergunta fundamental: “quais seriam e como poderiam ser organizados os indícios de autoria em textos de escolares?” (Possenti, 2001, p. 17). A fim de respondê-la, propõe uma ressignificação do conceito foucaultiano de autoria, que comporte outros espaços que não sejam os de uma obra ou de uma discursividade, e defende que a Análise do Discurso caberia bem a esse propósito.
Segundo ele, quando se trata de autoria, devem-se reconhecer alguns elementos fundamentais: a presença de alguma manifestação peculiar relacionada à escrita; a inscrição do autor em discursos, em uma memória social que faça sentido; certa pessoalidade, singularidade. Outrossim, atesta que o verdadeiro problema é tentar verificar em cada caso, em cada gênero, em cada instituição, de que tipo de autoria se trata, considerando o processo de inscrição do sujeito:
[...] trata-se de não deixar de analisar, como se se tratasse de uma questão menor, o fato de que alguém que escreve (ou tenta escrever) é homem ou mulher (menino ou menina, no caso da escolarização), é mais ou menos conservador, pobre ou negro, é marcado por um sotaque e não por outro (o que interfere na aquisição de aspectos da escrita), já foi ou não perseguido pela polícia ou pertence ou não a uma família de alguma forma desajustada, sonha ou não ser jogador de futebol ou pagodeiro, pelas milhares de razões que levam alguém a vislumbrar essas e não outras saídas, etc. (Orlandi, 1987, p. 18)
Tal entendimento é deveras importante para esta pesquisa, tendo em vista que nosso foco é o fomento de uma escrita autoral, especificamente de educandos da Educação Profissional e Tecnológica, do Ensino Médio Integrado do IFS. Logo, defendemos a importância de refletir sobre o processo de inscrições dos sujeitos pesquisados, assim como de considerar o contexto no qual foram produzidos os textos analisados no que diz respeito à presença de marcas de autoria.
Ainda na seara da escola, Possenti (2002) traz o debate sobre o que é um bom texto - compreendido por ele como sinônimo de texto com indícios de autoria. Em seu ponto de vista, a qualidade diz mais respeito ao “como” do que a “o quê”. Sua avaliação não pode ser restrita a categorias gramaticais nem de textualidade (a exemplo de coesão e coerência); ela deve acontecer em termos discursivos. É importante perceber como um texto se constrói, qual a relação entre seu modo de ser construído e os efeitos de sentido que produz, considerando sua inserção num quadro histórico - ou seja, num discurso.
Ademais, faz-se mister considerar a noção de singularidade, como uma forma peculiar de o autor estar presente no texto, que se aproxima com a questão do estilo. Mesmo assumindo uma posição que é histórica, um sujeito pode ser diferente de outro que esteja na mesma posição e apresentar certo estilo. Pode-se afirmar que o discurso do autor não pertence a ele, mas sim a toda uma comunidade cultural. Seu discurso é atravessado pelo do outro; porém, há algo do autor: é o seu jeito próprio, o “como”. Em suma, para dizer se um texto é bom - por conseguinte, autoral -, devem-se levar em conta tanto sua singularidade como a tomada de posição.
Possenti (2022) destaca ainda a importância de tornar objetiva a noção de autoria, a fim de que seja possível detectá-la em traços, ou indícios, nos textos dos estudantes. De início, chama nossa atenção para o equívoco de julgar, de forma automática, certas marcas como definidoras da presença ou ausência de autoria, afirmando que não há, para isso, uma lista de opções necessárias e suficientes. Tais marcas são nada mais que indícios de autoria. Sua ideia de indícios vem do paradigma indiciário de Guinzburg (1986, apudPossenti, 2002). Podemos considerar, no contexto dos textos escolares, os indícios como sinônimos de pistas, sinais, signos; estes podem ser conscientes ou inconscientes, encontrados de forma mais explícita ou nos pormenores. Seriam como “rastros” deixados pelo discurso.
Questionando-se sobre como distinguir um texto com noção de autoria de outro sem ela, são feitas algumas considerações. A primeira é que “não basta que um texto satisfaça exigências de ordem gramatical” (Possenti, 2002, p. 110), afinal, correção gramatical não é critério suficiente para garantir a boa qualidade de um texto. A segunda é que coesão e coerência também não caracterizam um bom texto, que deve ter como característica a posição marcada do autor. Mais importante do que isso, é a presença de densidade, avaliação, tomada de posição, conhecimento de mundo, presença de outros discursos (intertextualidade), de memória social, entre outros elementos. A terceira consideração é que “as verdadeiras marcas de autoria são da ordem do discurso, não do texto ou da gramática” (idem, p. 112). Ou seja, é preciso ter historicidade, tratar de eventos e coisas que têm sentido.
Ampliando suas ideias, o linguista afirma que alguém se torna autor quando assume duas atitudes, de forma consciente ou não, a saber: dar voz a outros e manter distância em relação ao próprio texto. A primeira delas implica que sejam trazidas falas de outros enunciadores, de forma implícita ou explícita, mediante a apresentação de pontos de vista além do seu, retomando opiniões correntes, apelando para uma memória do seu interlocutor (o que implica um coenunciador com traços específicos), avaliando o discurso alheio por meio de escolhas lexicais cuidadosas. Possenti defende que um texto de qualidade é aquele que sabe “como” dar voz aos outros, evitando a mesmice e buscando variações que obedecem a tomadas de posição adequadas ao contexto e que possam deixar o texto mais denso.
A segunda atitude de um autor é a de manter distância em relação ao seu próprio texto, marcando sua posição em relação ao que diz e em relação a seus interlocutores. Afinal, o sujeito sempre enuncia de uma posição, mas a língua não é um código que sirva a cada posição de forma transparente. Vemos exemplos desse distanciamento quando o autor: suspende o que está dizendo para explicar-se, diante de uma possível reação do outro; explicita em que sentido está empregando certas palavras; resume; retoma o que já disse; fala da própria linguagem, definindo, traduzindo, analisando ou avaliando certas expressões. Tais intervenções demonstram a singularidade do autor, sua originalidade.
De modo resumido, a tese de Possenti (2002, p. 105) é de que “a autoria é um efeito simultâneo de um jogo estilístico e de uma posição enunciativa”. Ser autor implica em agenciar mais ou menos pessoalmente diversos recursos da língua, que só fazem sentido quando tratados a partir de condicionamentos históricos. Concordamos com seu ponto de vista, logo, defendemos que práticas pedagógicas que fomentam a escrita autoral são fundamentais para a formação omnilateral porque esta compreende o ser como histórico.
IMPORTÂNCIA DO TEXTO AUTORAL PARA OS EDUCANDOS DA EPT
Para que o ensino da produção textual tenha características de uma prática integradora, é preciso, sobretudo, buscar a escrita de um texto autoral, em que o autor do discurso reconheça a si mesmo como produtor de sua história, inserido no contexto histórico de sua época. Nesse sentido, para produzir textos autorais e eficazes comunicativamente, os discentes têm de saber o que querem dizer, para quem escrevem e qual é o gênero que melhor exprime essas ideias. É preciso ressaltar a importância de guiarmos nossa ação didática pela ampliação de gêneros discursivos capazes de valorizar e responder às práticas sociais vivenciadas pelos estudantes, proporcionando uma participação ativa, crítica e aderente às atuais demandas de comunicação.
Ademais, a escola precisa reconhecer a relação intrínseca entre linguagem e subjetividade, muitas vezes descartada ou relegada a um segundo plano nas salas de aula em virtude de diversos motivos, entre eles, as orientações institucionais muitas vezes burocráticas e até mesmo o trabalho intenso a que docentes são submetidos dificultando a realizaçao de atividades que promovam a a subjetividade. Infelizmente, nas produções de texto produzidas em sala de aula, excluem-se as marcas de subjetividade em detrimento de modelos de funcionamento linguístico-cognitivo, almejando a aprendizagem e o desenvolvimento uniforme de todos os alunos com relação às diferentes aptidões ou à apreensão de conteúdos formais (PINTO, 2012). Essa retirada do que é de ordem individual e particular apaga-lhes as marcas de identidade. Alves (2001) critica, de forma contundente, o objetivo da escola de “moldar” os aprendizes, tornando-os todos iguais. O autor compara as nossas escolas a fábricas:
As linhas de montagem denominadas escolas se organizam segundo coordenadas espaciais e temporais. As coordenadas espaciais se denominam “salas de aula”. As coordenadas temporais se chamam “anos” ou “séries”. Dentro dessas unidades espaço-tempo os professores realizam o processo técnico-científico de acrescentar sobre os alunos os saberes-habilidade que, juntos, irão compor o objeto final. Depois de passar por esse processo de acréscimos sucessivos - à semelhança do que aconteceu com os “objetos originais” na linha de montagem de uma fábrica - o objeto original que entrou na linha de montagem chamada escola (naquele momento ele chamava “criança”) perdeu totalmente a visibilidade e se revela, então, como um simples suporte para os sabereshabilidades que a ele foram acrescentados durante o processo. (Alves, 2001, p. 134)
Na produção textual escolar, o resultado dessas escolas semelhantes a fábricas - nas quais o indivíduo é transformado “num produto igual a milhares de outros” - é o fracasso da produção textual como um espaço de intersubjetividades, como uma forma de interação entre autor e leitor, como uma experiência de significação. Há, pelo contrário, uma falsa produção, “uma falsificação do processo ativo de elaboração de um discurso capaz de preservar a individualidade de seu sujeito e de renová-la, desdobrá-la na leitura de seus possíveis interlocutores” (Pécora, 2002, p. 15). Aos educandos, devem ser oferecidas práticas de linguagem relacionadas à interação e à autoria (individual ou coletiva) do texto escrito, oral e multissemiótico, com diferentes finalidades e projetos enunciativos, a fim de colocar-lhe em seu lugar de produtor de textos, de interlocutor, conforme orientam os documentos norteadores do ensino de Língua Portuguesa.
Por outro lado, o cenário que costumamos encontrar com relação à produção de texto escolar, notadamente do Ensino Médio, é de angústia e mal-estar, de ausência de voz e esvaziamento de sentido comunicativo dos pretensos autores. Isso se dá, a princípio, por uma concepção equivocada da linguagem, que permeia os espaços escolares:
Muito frequentemente, o que acaba ocorrendo é que o aluno adquire uma imagem escolar da linguagem em que ele não tem lugar - quando muito o seu lugar é o de quem não pode olhar para os lados e precisa de nota - e que o torna avesso a tudo que se refira a ela: Deus me livre de português! (Pécora, 2002, p. 45, grifo do autor)
Os jovens não se enxergam como interlocutores de uma situação de comunicação, mas apenas como “cumpridores” de uma mera tarefa escolar. Essa visão deturpada de si mesmos obstrui o desenvolvimento da sua capacidade crítica e consciente, impedindo a formação omnilateral preconizada pela EPT.
Na Educação Profissional, tal cenário torna-se ainda agravante, tendo em vista que essa especificidade de ensino demanda práticas educativas que vão além do ensino tradicional da língua, buscando mostrar que saber usar a língua materna de forma adequada não é apenas respeitar o uso da variedade de prestígio, com suas normas gramaticais rígidas, mas sim, saber interagir por meio dos gêneros na situação comunicativa em que eles são produzidos. O ensino de produção de texto na EPT deve compreender as relações inerentes às estruturas sociais e às práticas sociodiscursivas pertinentes a tais estruturas, a fim de que os educandos possam, futuramente, atuar no mundo do trabalho como agentes políticos capazes de contribuir, transformar e relacionar-se “com” e “no” ambiente de trabalho.
Para isso, precisam ser, efetivamente, autores dos seus próprios textos, indivíduos autônomos e conscientes das implicações da sua participação na realidade social em que vivem e no sistema produtivo do capital. Nessa perspectiva, apresentamos a seguir a metodologia a qual direcionou as nossas intervenções a fim de saber deles como se sentiam numa produção escrita.
METODOLOGIA: A PESQUISA E OS ACONTECIMENTOS
Quanto à abordagem, a pesquisa classifica-se como qualitativa, pois se preocupa com aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais no universo escolar. No que diz respeito aos procedimentos, optamos pela pesquisa participante, cuja característica é o envolvimento e a identificação do pesquisador com as pessoas investigadas. De acordo com Zago, Carvalho e Vilela (2003, p. 187), a observação participante "pressupõe o envolvimento do pesquisador em múltiplas ações, entre elas o registrar, narrar e situar acontecimentos do cotidiano com uma intenção precípua”. O instrumento de coleta de dados utilizado foi o questionário, com questões objetivas de múltipla escolha e questões subjetivas, compartilhado no aplicativo Formulários Google por meio de link disponibilizado aos discentes. Teve como objetivo sondar aspectos que pudessem contribuir para a superação dos problemas associados à falta de autoria na produção textual dos educandos dos cursos integrados do IFS Campus Aracaju. Como técnica de análise de dados, escolhemos a interpretativa.
Há, nesse Campus, o total de dezoito turmas do Integrado, compondo o 1º, o 2º e o 3º ano de cada um dos seus seis cursos. O critério prioritário para selecionar a amostra foi a compatibilidade de horários com a disponibilidade da pesquisadora, já que a pesquisa foi participante e, portanto, exigiu sua presença. Após conferência do horário das turmas, disponível na página eletrônica da instituição, chegamos a algumas possibilidades. Inicialmente entramos em contato com a professora Cristiane Mirtes da Fonseca. Ela se mostrou bastante interessada e até mesmo animada em contribuir com a pesquisa, aceitando nosso convite de forma muito gentil e prestativa.
O primeiro passo para criar um produto educacional que atendesse aos objetivos desta pesquisa foi investigar problemas associados à falta de autoria na produção textual dos discentes dos cursos integrados do IFS Campus Aracaju - se existiam e quais as possíveis causas. Isso foi possível mediante a aplicação de um questionário. Uma parte dele continha questões subjetivas e é sobre estas que nos detivemos na análise e sobre as quais alicerçamos este artigo.
Em março do ano de 2020, iniciamos os encontros presenciais com os sujeitos da amostra. No primeiro encontro com o 2º ano do Curso Integrado de Química, falei sobre mim e sobre a pesquisa. Fui muito bem recebida por todos. Expliquei-lhes que a participação não era obrigatória, porém todos os presentes aceitaram prontamente participar da pesquisa, mostrando-se animados com a possibilidade de aprender algo novo.
Ao relevar minha trajetória como professora de Redação, com foco no Enem, encheram-me de perguntas e requisitaram-me “dicas” - o que me surpreendeu, pois acreditava que estudantes do 2º ano de um curso profissionalizante não teriam tamanho interesse por esse exame. Ledo engano. Ao contar que eu mesma já havia sido, em minha adolescência, aluna da antiga Escola Técnica (atual IFS), do curso de Química, senti que conquistei o afeto deles; havia se estabelecido ali o rapport.
Nesse dia, também apliquei o Questionário sobre Escrita Autoral a todos os 26 educandos ali presentes. O instrumental está hospedado na plataforma Formulários Google e foi respondido nos seus próprios smartphones, como também em alguns computadores com acesso à internet na sala de aula. Anteriormente, havia solicitado à professora que reservasse um espaço com esses recursos, para que fosse possível responder ao Questionário naquele momento, on-line, formato ao qual os sujeitos estavam acostumados.
A parte que remete a questões abertas possuía o seguinte comando: “Desabafe, reclame, critique, elogie, comemore... Diga qualquer coisa que quiser sobre a relação entre você e a escrita (suas respostas são anônimas!). Este espaço é seu, fique à vontade! Obrigada e até a próxima!”.
As declarações foram as mais diversas e nos revelaram muito, especialmente sobre a dualidade presente na relação desses jovens com a escrita: ora a amam, ora a temem; ora desejam aprender a “seguir as regras”, ora querem liberdade para expressar-se ao seu modo. Tais falas foram importantes para compreender mais profundamente onde se encontravam as forças e as fragilidades dos participantes em sua relação com a escrita e, por conseguinte, na constituição de si mesmos como autores.
ANÁLISES E RESULTADOS
O sujeito e a escrita: medos, desejos, reflexões
Alguns estudantes focaram suas respostas na escrita inserida no contexto escolar, trazendo as dificuldades de se adequarem ao que é esperado nas atividades curriculares e nos exames de seleção. Está presente a ideia de que, nesse espaço, escrever é uma “obrigação”, uma preocupação advinda não necessariamente da aprendizagem relacionada à produção textual, mas sim da conquista de boas notas por parte de seus únicos leitores - o professor ou o avaliador da banca do exame de seleção.
- “A obrigação de escrever textos apenas para receber notas boas acabou dificultando na minha relação com a escrita, sempre estando condicionado a escrever textos seguindo os mesmos padrões deixando de lado traços de personalidade e opiniões para seguir as regras assim recebendo uma nota boa”. (Estudante 23).
É como se cada estudante seguisse uma receita gráfica com apenas um intuito - obter uma boa nota - e para tanto tinha um passo a passo, não raro, palavras slogans que marcassem o início e/ou o final do texto. Ou como afirmou Pécora:
cada qual procurando empreender da forma menos comprometedora possível a via-crúcis gráfica que lhe cabe por dever e lição de casa. Ao fim e ao cabo, esse tipo de esforço há de ser pago com uma boa nota. (Pécora, 2012, p. 85 et seq., grifo do autor)
- “Minha escrita geralmente é voltada para temas impostos em salas de aula, de modo formal, já que mesmo tendo a oportunidade de escrever sobre algo relacionado a sentimentos ou algo semelhante, não consigo. Não possuo o hábito de escrever fora da escola, apenas se for algo relacionado ao Enem”. (Estudante 13).
- “Acredito que a escrita autoral não seja tão importante no âmbito da área tecnológica, mas que sim, ela é importante para que venhamos poder expressar nossas emoções e esse misto de sentimentos que nos consume diariamente”. (Estudante 17).
- “Parei de escrever (Histórias e poemas) no mesmo ano que entrei no IFS, para poder me dedicar. Sinto que perdi minha habilidade de passar o que eu sinto através da escrita, mas pelo menos sei fazer um relatório...”. (Estudante 26).
A impossibilidade de escrever sobre si é registrada como se fosse uma característica necessária para escrever bem para os concursos. Os textos solicitados na escola e, portanto, ensinados ou solicitados nas aulas são constructos que negam a subjetividade, tornam-na como impeditivo para se darem bem numa prova ou num exame com o ENEM. Há duas realidades incompatíveis. De um lado “um misto de sentimentos”, uma escrita artística. Do outro lado, há a produção na escola - “âmbito tecnológico”, “algo relacionado ao ENEM”. Eles não encontram um equilíbrio, pois entendem que é preciso anular um dos modos. Nesse viés:
Suas representações da escrita estão sempre relacionadas a um fazer predominantemente escolar; ou seja, que a escrita tem justamente a função de instrumento a serviço do ensino de diversos conteúdos, mostrando-se ineficaz no que diz respeito à constituição do sujeito-autor. (Aguiar, 2010, p. 270).
Sendo a produção textual prioritariamente um “instrumento” de acesso a uma boa nota, por vezes, os traços de singularidade na escrita são apagados, pois os educandos acreditam que as marcas autorais podem prejudicar o sucesso escolar conforme se vê acima.
- “Eu queria muito pode escrever bem, sem erra coisa básicas, espero conseguir corrigir isso logo.” (Estudante 04).
- “Eu n sei como escrever de forma ‘entendivel’. Muitas vezes é uma coisa que só eu entendo do meu jeito já que n consigo relacionar emoções ou coisas do tipo pq sou muito objetiva e n ‘entendedora’ dos conhecimentos de escrita (Ex: eu aprendi a escrever decorando as palavras kk).”. (Estudante 02).
- “Eu gosto muito de escrever, mas sinto que nada é bom o suficiente. Tenho dezenas de livros, fanfics e letras de músicas escritas e guardadas, não mostro pra ninguém. Todos os outros textos, até mesmo os dos meu colegas de classe, são melhores e mais valorizados. Isso me machuca e me desestimula”. (Estudante 09).
Há os participantes que demonstram dificuldades em escrever, de modo geral. Isto tem um peso grande em sua autoavaliação. Eles mesmos justificam as baixas notas atribuídas pelos docentes ou classificam seus textos como ruins por conta dos deslizes gramaticais. A experiência com os docentes, por certo, deixara marcas nestes estudantes, pois ainda existe o hábito de numa avaliação sobressaírem-se os erros em detrimento dos acertos. Os deslizes gramaticais aparecem circulados, as frases incoerentes são mais evidenciadas do que as coerentes. Enfim, para esses educandos, conseguir demonstrar indícios de autoria pode ser um desafio ainda maior, visto que o próprio ato da escrita já é carregado de angústias.
“Gosto muito de escrever”. Mas esse gosto não ocorre na escola. Como escrever sem o prazer? Mais uma vez se destaca aqui o teor de obrigação, de desprazer na produção de textos escolares. Se não há o gosto, como pode o estudante tomar posições no texto? Desconhecer se o texto agrada, se está bem escrito, gera certa frustração que em nada corrobora para futuras produções. Por vezes, o aluno até entende que é preciso expressar emoções, mas não sabe como e se reconhece “entendedora” da escrita. Supõe-se que um estudante de segundo ano do Ensino Médio Integrado (EMI) conheça o processo da escrita, mas, por alguma razão, diz desconhecer.
Não acreditamos neste desconhecimento, pensamos que são insuficientes as práticas pedagógicas de produção do texto escrito, oral e multissemiótico (Pécora, 2002), nas quais se considere o aluno na posição de produtor. O estudante precisa sentirse autor e, para tanto, deve saber que pode produzir textos com múltiplas linguagens.
Outros não têm essa mesma dificuldade; já lidam melhor com o processo, porém ainda almejam uma experiência de escrita mais conectada com seus anseios como sujeito, que vá além daquilo que experimentam na escola:
- “Gosto muito da minha relação com a escrita, no entanto, sinto (às vezes) que não consigo ter uma identidade própria nesta”. (Estudante 17).
- “Sobre a minha escrita: eu até gosto, mas sei que poderia melhorar. O triste é q eu não tenho muitas experiências para saber o que sentir ou como me comportar diante de determinada situação e isso dificulta bastante”. (Estudante 18).
- “Eu gosto de escrever, e gosto bastante da minha escrita. Mas, às vezes, me sinto culpado pois escrevo coisas que seriam minha ideologia de estar bem, mesmo sem estar bem”. (Estudante 01).
Por um lado, na escrita, eles conseguem (segundo suas próprias palavras) descarregar, entender o que sentem, encontrar respostas, tirar o estresse, curar a tristeza, se descobrir e descobrir o mundo em que vivem, ter acolhimento. Por outro lado, na escola, sentem-se tolhidos e obrigados a apagar sua singularidade em nome de necessidade de adequar-se a regras a fim de obterem boas notas. Ou seja: nos textos escolares, o silêncio parece ser, por vezes, a escolha mais conveniente e segura. O que têm a dizer é irrelevante ou incorreto; suas opiniões não cabem nas avaliações; seus questionamentos são inapropriados num ambiente onde a obediência é priorizada em detrimento das trocas multilaterais: diversas são as crenças que calam sua voz, a autoria dos seus escritos. Mesmo apreciando sua escrita dentro do contexto da escola, não vê na produção textual sua identidade, ou seja, sua marca autoral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um estudante traz consigo muitas vivências e, por certo, vivências em que precisou se expressar, defender um ponto de vista. Possivelmente, a ele já foi solicitado muito textos escritos e orais como resultado de atividades que implicavam notas, avaliações etc. Daí decorrem algumas situações, a saber: foram moldando a produção escrita de acordo com a gramática, com o modo como os livros didáticos apresentam os conteúdos e ainda com o modelo cedido por alguns docentes. Mas nem todos acompanharam os modelos preestabelecidos tampouco os moldes textuais lhes garantiriam sentir-se com alguém que escreve bem, com autoria.
Nossa compreensão nos leva a pensar que os princípios de uma educação omnilateral ainda não foram totalmente apreendidos. Para que a politecnia se realize em todos os componentes curriculares, precisamos considerar que dentro dos saberes técnico-tecnológicos, o sujeito aluno ao escrever ou ao falar não emprega somente a técnica, emprega também sua emoção. São jovens e, conforme vimos nessa pesquisa, compreendem que são tolhidos muitas vezes e são obrigados a silenciar sua singularidade em nome de necessidade de adequar-se a regras a fim de obterem boas notas e concluírem os estudos.
Vimos, por meio da escrita nas respostas dadas ao questionário, que os estudantes aprenderam na escola que, em um tipo de texto, pode expressar seu eu, seus sentimentos, e em outro não pode. Assim, é como se na escola o texto acadêmico fosse apenas a repetição do que veem nos livros ou nos ditos dos docentes. Não se deve assumir posição ou fazer defesas diante de uma ideia. Por que os textos que se fazem na escola ou nas seleções de vestibulares devem ser frios e distanciados? Eis a dificuldade de produzir um texto autoral; os que escapam dessa regra apresentam sinais de autoria, apenas.
É preciso, pois, desfazermos esses equívocos - de que a escola só produz um tipo de texto, que assumir posição é ser pessoal, consequentemente, inadequado para um texto acadêmico etc. É preciso promover uma educação dialógica em que docentes e discentes se reconheçam como interlocutores. É preciso promover uma educação dialógica em que educadores e educandos se reconheçam como interlocutores. Aqueles ouvem os questionamentos, incentivam a produção em que ouse a criatividade. Que as regras gramaticais ou da boa escrita não sejam para tolher a expressão do autor, mas sim para contribuir com ela. Juntos podem selecionar gêneros textuais que os educandos gostam e dominam. Podem ser organizadas, na escola, oficinas em que se promova formação para repensar as práticas educativas em torno da produção textual.
As práticas pedagógicas precisam considerar que os estudantes produzem sentidos, formas, modos de produção textual diferentes daquilo presente nos livros ou nas explicações do professor. Que estes sentidos dos discentes não sejam repudiados, mas redirecionados ou ressignificados por eles mesmos a partir de experiências que lhes convençam, que lhes permitam descobrir modos mais ricos de escrita. A leitura e produção de texto sugeridas pelos docentes podem ser diversificadas considerando a riqueza de gêneros textuais, autores de distintas épocas e estilos, por exemplo.
A proposta que tomamos diante das falas dos estudantes do segundo ano de Química do Campus Aracaju foi realizar com eles um minicurso de escrita autoral. Foi o produto educacional defendido ao término da pesquisa. Foi um produto construído com eles, a partir da participação nas aulas, aplicação de questionários, momentos de leitura e de debates. Foi um trabalho desenvolvido sem a urgência de prestarem um exame de vestibular e sem vincular as produções a uma avaliação típica do componente curricular.
Quaisquer outras propostas devem considerar o estudante como capaz de ser autor, de produzir textos escritos ou orais, de acordo com a sua singularidade, com os diversos contextos da vida. O docente precisa entender que cada educando responde de acordo com a sua história, seu capital cultural, suas circunstâncias de tempo e de espaço. Por isso, juntos, docentes e estudantes, podem elaborar estratégias para produzirem textos em que a subjetividade, a identidade autoral se manifeste. Assim, o estudante pode amadurecer e melhorar a produção textual. Escrever é um exercício de formação para as lutas coletivas. Corresponde a um exercício de liberdade. Liberdade para concordar e discordar, para seguir ou para desafiar modelos. Do contrário, como se perceberá a singularidade do sujeito?