CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Discutir acerca de enfoques curriculares da formação do/a professor/a de Educação Infantil nos impulsiona a trazer à tona importantes questões que perfazem histórico, social e politicamente a formação de professores/as da Educação Básica, por estarem interligadas e se constituírem em primeira etapa da Educação Básica. Portanto, ao tratarmos, neste texto, de aspectos da formação de professor/a em uma perspectiva curricular mais ampla, também estamos nos referindo à formação do/a professor/a da Educação Infantil, sem negligenciar suas especificidades e seus limites.
Ressaltamos que, ao se analisar a realidade das políticas de formação de professores/as no Brasil, sendo elas um produto sócio-histórico, portanto, resultado do trabalho humano, que por seu turno é afetado pela práxis transformadora dessa realidade, torna-se imprescindível que se considere a historicidade das políticas curriculares nacionais, sua transitoriedade e as transformações para a formação dos/as professores/as. Para Kosik (1976, p. 124), esse movimento práxico significa “[...] a relação entre gênese e validade, entre as situações válidas e a realidade, entre a história e a realidade humana, entre o transitório e o eterno, entre a verdade absoluta e a relativa [...]”, e nós acrescentamos: entre o realizável e o realizado no contexto da formação de professores/as da Educação Infantil.
Esclarecemos que a produção deste artigo se ancora na necessidade de produzir, explicar e expandir conhecimentos que circunscrevem uma pesquisa de doutorado, concluída no ano de 2022, pelo PPGE/ICED/UFPA, cujo objetivo central foi analisar as contribuições do lúdico no Currículo do Curso de Pedagogia do Campus de Caxias da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e suas possíveis implicações na formação do/a professor/a de Educação Infantil. Desenvolver essa investigação nos mobilizou compreender alguns enfoques curriculares que impactam a formação inicial de professores, seus modos de ser e de se fazer na profissão docente, e, mais especificamente, uma formação de professor/a da Educação Infantil pautada na omnilateralidade.
Desse modo, este artigo está fundamentado em teóricos como Martins (2010), Freitas (2002), André (2009), Teles (2018), Freire (2015), Saviani (2008), Vygotsky (2001, 2003), entre outros; e em documentos oficiais que direcionam historicamente a formação de professores, com destaque para a própria LDBEN/1996, o PNE/2014, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em nível Superior, estabelecidas a partir do Parecer do CNE/CP nº 9, de 8 de maio de 2001, e da Resolução CNE/CP nº 1, de 18 de fevereiro de 2002.
Metodologicamente, o artigo contempla os princípios da pesquisa qualitativa, do tipo bibliográfica e documental (Minayo, 2012; Ludke; André, 1986). Assim, após as leituras dos textos selecionados, seguidas de fichamentos e quadros esquemáticos, foi possível organizar, com um considerado grau de aprofundamento das unidades de sentido que foram previamente selecionadas, a análise do conteúdo que deu materialidade a esta reflexão (Medeiros; Abreu, 2021), a qual se situa, especificamente, no campo do currículo e da formação de professores.
O texto está organizado, inicialmente, por essa seção introdutória, na qual apresentamos a contextualização da temática a ser tratada, seguida de duas seções: na segunda, explicitamos, com base em dados bibliográficos e documentos oficiais, alguns enfoques curriculares que vêm subsidiando a formação de professores desde os direcionamentos políticos dos anos de 1990 até os tempos atuais; e, na terceira seção, apresentamos outra concepção de educação como possibilidade para se pensar a formação de professor/a, apoiando-nos nos referenciais da Teoria Histórico-Critica. Por último, apresentamos, em nossas reflexões finais, o que acreditamos e defendemos ser mais apropriado à formação de professores, considerando a égide curricular que necessariamente perfaz essa formação e a direciona.
ENFOQUES CURRICULARES PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DOS ANOS 1990 AOS TEMPOS ATUAIS
A formação de professores/as no Brasil tem tomado assento em renomadas instituições de estudos e pesquisas (ANFOPE, ANPEd, CEDES, FORUMDIR, Universidades Públicas, entre outros) como objeto de estudo nas discussões e debates que vieram se ampliando desde o final da década de 1970 (Martins, 2010; Freitas, 2002; André, 2009), ganhando maior dinamismo e notoriedade a partir da implementação da LDBEN/1996.
Evangelista e Shiroma (2003) afirmam que o Fórum Nacional intitulado “Um modelo para a educação do século XXI”, realizado em agosto de 1998, reuniu especialistas e representantes do Ministério de Educação (MEC) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, trouxe como principal discussão a formação docente, sobre a qual, ocasionalmente, o quadro do magistério nacional foi considerado inadequadamente formado, visto que 53,49% dos professores da Educação Básica - Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio - não possuíam o Ensino Superior completo. As referidas autoras consideram que esse encontro foi um dos muitos que aconteceram como parte das medidas que sucederam a aprovação da LDBEN.
Ressaltamos que, entre essas medidas, foram gestados os dispositivos jurídiconormativos que remodelaram a profissionalização de professores no Brasil, a partir da década de 1990. Dentre outros destaques, a Resolução CNE/CP 01/99, que dispôs sobre os institutos superiores de educação; a Resolução CNE/CP 02/02, que instituiu a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da Educação Básica, em nível superior; o Decreto 3276/99, que dispôs sobre a formação em nível superior de professores para atuar na Educação Básica e dá outras providências; a Resolução CNE/CP 01/02 e o Parecer CNE/CP 09/01, que instituíram as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena (Evangelista; Shiroma, 2003). Nessa mesma direção, Limonata (2009) faz a seguinte consideração:
A LDB 9.394/1996 pode ser considerada o marco legal oficial que deu início a um amplo processo de reformas políticas e mudanças institucionais na educação brasileira, considerando o grande número de pareceres, resoluções e decretos que se seguiu à promulgação dessa lei. Dentre os documentos oficiais, destaca-se o Edital nº 4, de 04 de dezembro de 1997, que convoca as Instituições de Ensino Superior para a discussão sobre a reestruturação curricular dos cursos de graduação, dando orientações gerais para a elaboração desta (Limonata, 2009, p. 119).
Há que se notar que a LDBEN/96 trouxe avanços significativos para a implementação de políticas de valorização dos profissionais da educação com vistas à melhoria da educação básica, com destaque para a formação docente, embora tenhamos que reconhecer também as contradições e os paradoxos nem sempre percebidos devido ao obscurantismo da cotidianidade no contexto dessas políticas, requerendo, assim, análise mais sistemática da realidade, pois, conforme Kosik (1976, p.120), “[...] o homem capta a realidade, e dela se apropria com todos os sentidos, como afirmou Marx, mas estes sentidos, que reproduzem a realidade para o homem, são eles próprios um produto histórico-social”.
A formação docente, enquanto realidade produzida histórico-socialmente, circunscreve-se dialeticamente no devir, em que essa realidade é o que é, mas contém também a possibilidade do vir a ser. Do vir a ser uma formação docente de maior qualidade do que a que se tem no momento; do vir a ser uma formação docente de maior reconhecimento social quanto à sua importância para a formação humana, e de melhor preparo e oportunidades para o mundo do trabalho, de maior reconhecimento profissional do/a professor/a, pois essa realidade, da qual estamos tratando, está em movimento o tempo todo e nela estão todas as impressões humanas historicamente construídas.
Tomando como referência alguns dispositivos legais do Sistema Nacional de Educação, perquirimos e trazemos como destaque à nossa análise a Meta 15 do Plano
Nacional de Educação (PNE), 2014 a 2024, com vigência vencendo no corrente ano, o qual, respaldado no art. 61 da LDBEN/96, que trata da política nacional de formação dos profissionais da educação, define que, pelo prazo de um ano, a contar a partir de sua vigência, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Munícipios, em regime de colaboração entre si deverão garantir e assegurar que todos os/as professores/as da educação básica, possuam formação específica de nível superior, obtida em cursos de licenciatura na área de conhecimento em que atuam. Entretanto, é perceptível o fato de que essa meta do PNE não será cumprida, pois sua vigência finda-se em 2024, e, apesar de tais exigências legais, o Censo Escolar de 2020 tem mostrado que ainda existe um número considerável de professores/as da educação básica sem formação adequada e sem formação em curso superior.
Essa situação se reflete de forma considerável na formação do/a professor/a de Educação Infantil, pois, conforme o referido Censo, nessa etapa de ensino atuam 593 mil professores/as, dos quais 79,1% deles possuem nível superior completo, sendo que, desse percentual, 76,5% têm grau acadêmico em licenciatura e 2,6% em bacharelado. Consta também que 14,3% desses professores/as têm curso de ensino médio normal/magistério e 6,6% com nível médio ou inferior. Vejamos o demonstrativo dos dados no gráfico 1, a seguir:

Fonte: Dados da pesquisa. Data: 20 ago. 2022.
Gráfico 1 Formação dos Docentes na Educação Infantil/Brasil/Ano 2020
Conforme podemos observar no gráfico 1, desses dados, os que mais nos chamam a atenção são os que se referem às formações de bacharel (2,6%), visto que os cursos de bacharelado não se voltam à construção de conhecimentos técnico-pedagógicos, filosóficos, sociológicos e políticos essenciais ao exercício da docência e suas especificidades no âmbito da Educação Infantil. Outro dado que avulta nossos olhos é o fato de que ainda existam professores/as com nível médio ou inferior (6,6%) atuando no ensino de Educação Infantil. Vale ressaltar que o termo inferior, tratado no Censo, se refere ao professor leigo, ou seja, sem qualificação pedagógica.
Portanto, podemos inferir que, conforme os dados do Censo Escolar de 2020, expostos acima, acerca da formação de professores/as na educação básica, as políticas de formação de professores/as implementadas no Brasil, forjadas em grande medida pelas discussões pós LDBEN/96, ainda não foram suficientes, até o presente momento, para suprir a demanda de formação docente apresentada no Fórum Nacional realizado em 1998, ao qual nos referimos no início desta seção. Naquela ocasião, segundo Evangelista e Shiroma (2003), o quadro do magistério nacional apresentava déficit de 53,49% milhões de professores/as da educação básica que não possuíam o Ensino Superior completo. Passados mais de 20 anos de realização do referido Fórum, ao considerarmos os dados do Censo Escolar 2020, expressos anteriormente, ainda encontramos, no contexto da Educação Infantil, professores/as de nível médio (14,3%) e professores leigos (6,6%) (Brasil, 2020) no exercício da docência.
Diante desse quadro, cabe-nos refletir sobre a formação de professores/as no Brasil, notadamente a formação do professor e da professora de Educação Infantil, no contexto dos cursos de Licenciatura em Pedagogia. Outro aspecto que merece nossa atenção se refere à forma como se expressam as políticas educacionais e as concepções de formação do/a professor/a de Educação Infantil nos documentos oficiais que orientam as mudanças nos currículos das licenciaturas, aspectos esses a serem tratados de forma mais específica em seções subsequentes.
Entendemos que aqui merece uma diferenciação, ou melhor, uma explicação, acerca de uma questão de gênero, quando nos referimos, neste texto, ao professor e à professora, e mais especificamente no contexto da Educação Infantil. Destarte, a tradição tem mostrado historicamente que a docência na Educação Infantil tem sido exercida apenas por mulheres, professoras, no entanto, esse perfil tem mudado ao longo do tempo e, embora o sexo feminino tenha predominância, atualmente já encontramos um número considerável de docentes do sexo masculino na Educação Infantil. Segundo o Censo de 2020, dos 593 mil docentes que atuam na Educação Infantil brasileira, 96,4% são do sexo feminino e 3,6% do sexo masculino. Isso justifica nossa opção, neste texto, pelo uso dos termos “professores e professoras” ou “professor/a” para designar esse profissional.
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS: UMA FORMAÇÃO EDITADA PELA LÓGICA DAS COMPETÊNCIAS
Para Teles (2018), a formação docente, em qualquer licenciatura, é aspecto de fundamental importância para a transformação do que se espera encontrar na escola. Vemos aí uma relação intrínseca entre a formação docente (na perspectiva do sujeito que ensina) e a formação humana na sua ominiteralidade (na perspectiva do sujeito que aprende), uma vez que, dadas as contradições e circunstâncias em seu interior e para além dela, é na escola que a formação docente se expressa, por meio da prática pedagógica, da prática docente, e enfim, da prática educativa, realizando-se como possibilidade de formação omnilateral.
Nessa lógica, afirma Teles (2018, p. 52): é na arena do currículo que “[...] as mudanças precisam acontecer como resultado de um processo crítico-reflexivo de amplo debate”. Entendemos que esse processo se torna relevante em todos os níveis e esferas (Federal, Estaduais e Municipais) do sistema escolar, sobretudo no contexto das instituições de ensino (escolas, universidades e institutos), dado o fato de que é nesses espaços que, efetivamente, o/a professor/a, como intelectual transformador, poderá se libertar das imposições e amarras de um sistema tecnocrático (Giroux, 1997), que, muitas vezes, o imobiliza.
Kramer (2002) adverte que, quando se trata de Educação Infantil, o assunto quase sempre se torna um grande desafio, pois, embora tenha ocorrido, a partir da década de 1980, um crescente aumento na qualificação profissional de professores e professoras, esse processo foi carregado de polêmicas e acirradas discussões. A exemplo disso, afirma que uma questão problemática na formação do profissional da Educação Infantil foi a supervalorização da racionalidade tecnocrática e instrumental que “treinou” os/as professores/as para executarem técnicas focadas na repetição de comportamentos desejados e controle absoluto das crianças com ênfase na perspectiva behaviorista comportamental.
Destarte, tal preparação consistia em um ritual de arranjos para o acesso da criança ao ensino fundamental (Teles, 2018), que, no âmbito da formação de professores, “[...] em vez de aprenderem a refletir sobre os princípios que estruturam a vida e a prática em sala de aula, os futuros professores aprendem metodologias que parecem negar a própria necessidade do pensamento crítico” (Giroux, 1997, p. 159). Entendemos que, nessa situação, instaura-se um paradoxo, uma vez que se trata do/a professor/a como um intelectual, pois, a esse profissional, embora não seja uma regra geral, em muitos casos, não é dada a possibilidade de pesquisar, estudar e refletir sobre os princípios e fundamentos teóricos e práticos que delineiam seu fazer docente, bem como sobre as circunstâncias políticas, éticas e pedagógicas da sua prática docente.
A negação a essas possibilidades, a nosso ver, tem origem na formação inicial, que, quando ainda em cursos de graduação, o aluno não se apropria dos conhecimentos científicos e pedagógicos necessários ao entendimento da prática educativa crítica, libertadora e autônoma, seja por causa das formações aligeiradas que vêm se firmando como tendência brasileira, desde os anos de 1990, seja pela necessidade pessoal do/a graduando/a de trabalhar (como meio de subsistência) e estudar ao mesmo tempo, não dispondo de tempo para aprimorar sua formação ou ainda pelas fragilidades das políticas curriculares imputadas aos cursos de formação inicial de professor/a. Como tornar-se um/a professor/a intelectual transformador, na perspectiva de Giroux, com essa negação de possibilidades?
Como uma tendência à negação ao pensamento crítico, uma perspectiva de formação do professor e da professora que tem ganhado força no contexto da educação brasileira e que foi grandemente influenciada aqui no Brasil pela literatura internacional, com destaque para autores como Perrenoud (2002), Schon, (2000), Tardif e Guathier (2001) e Sthenhouse (1985), foi a de uma formação pautada na abordagem do/a professor/a reflexivo, cujo princípio pedagógico se fundamenta na epistemologia da prática. Do nosso ponto de vista, tal abordagem se baseia em propostas pragmáticas, que seguem modelos hegemônicos e praticistas de formação do/a professor/a, que se fundamentam numa razão instrumental, centrada no “cotidiano em si” da educação de crianças, jovens e adultos, sendo uma formação tanto eficaz quanto coerente para os imperativos da prática imediata.
Segundo Raupp (2012), a abordagem do professor reflexivo defende o aprender a aprender, o/a professor/a pesquisador/a e o desenvolvimento de competências, com isso, articula-se a um determinado campo epistemológico e ontológico, qual seja, o da epistemologia da prática e o da ontologia empírica; por conseguinte, o da secundarização tanto da formação quanto do trabalho docente. Reiteramos que, no âmbito da formação de professores/as da Educação Infantil, a perspectiva da epistemologia da prática por si só não propõe uma reflexão que transcenda a realidade concreta (creche, pré-escola, prática pedagógica, ensino, currículo, aprendizagem, entre outros), ela comporta reflexões pautadas apenas nas vozes de professores/as, não os habilitando a alcançar um nível de conhecimento teórico e prático que os possibilite realizar um trabalho docente para além do nível empírico (Raupp, 2012), ou seja, intervindo e mudando conscientemente a realidade.
A que se notar que, subjacente à concepção de formação do/a professor/a fundamentada na abordagem pragmática e instrumental de educação, está também a concepção mais ampla de formação do homem e da mulher para o mercado de trabalho, que, num passado não tão distante, significava ensinar apenas o básico, limitando-se a aprender a assinar o próprio nome, a seguir instruções e a dominar operações matemáticas básicas, na expectativa de que aprendessem em serviço os demais conhecimentos necessários à sua ocupação.
Com o amplo avanço de tecnologias cada vez mais sofisticadas no mundo do trabalho, depreendendo daí novas relações entre capital e produção, novas formas de relação/exploração foram surgindo (Limonata, 2009). Nessa perspectiva, Kuenzer (1999) afirma que a qualificação para o trabalho deixa de ser de base técnico-operacional e passa a ser de base cognitivo-abstrata. Segundo a referida autora, era necessário desenvolver de imediato uma formação geral, que possibilitasse capacidades de acesso, escolha e compreensão de informações e que fosse exigido um tempo de escolarização maior e diferenciado, visando mais o aprendizado de habilidades cognitivas do que de conhecimentos já constituídos nas diversas ciências. “A emblemática expressão “aprender a aprender” sintetiza essa nova fase do processo de escolarização, mais uma vez submetido às necessidades da reorganização do sistema produtivo” (Limonata, 2009, p. 96).
Contudo, a partir do momento em que as bases técnico-operacionais, cujas máquinas e funções humanas são mecânicas, foram substituídas pelas bases cognitivoabstratas, cujas máquinas são eletrônicas e mudam as formas de relação e de controle humanos sobre elas, faz-se necessário pensar de forma diferente a execução das tarefas a elas imputadas, passando a serem exigidos, nesse contexto, novas habilidades de pensamento e novos tipos de conhecimento. Subjacente à concepção neotecnicista (Campos, 2002; Evangelista; Shiroma, 2003; Kuenzer, 1999) de formação e de trabalho está a concepção pragmatista de conhecimento, de acordo com a qual só tem sentido aprender o que é imediatamente aplicável na realidade e que garanta a eficiência e a eficácia (Kuenzer, 1999), coadunando-se com a lógica das competências técnicas necessárias à formação do homem/mulher para o mundo do trabalho.
Altmann (2002), citada por Limonata (2009), em contraposição à epistemologia da prática, afirma que é inegável a obviedade de que a escola é também espaço de formação para o/a professor/a, mas esse espaço não pode se tornar preferencial, como supõem algumas propostas, e explica que, ao se situar o local de trabalho (creches, pré-escolas, escolas) como lócus preferencial da formação do/a professor/a, corre-se o risco de se desconsiderar as principais características do trabalho docente, sua complexidade e sua importante função social na formação humana, que exigem, também, sólida formação teórica.
Na perspectiva de concepção de formação docente pragmática e cunhada na ideologia hegemônica, o trabalho do/a professor/a é lançado sob bases, as quais têm como pressuposto o imperativo de que não é necessário a esse profissional possuir conhecimentos (filosóficos, sociológicos, psicológicos, antropológicos, pedagógico, entre outros) para ser professor/a da Educação Básica (Limonata, 2009), bastando-lhe, apenas, ter habilidades e competências técnicas. Diante disso, materializa-se, nos cursos de licenciaturas, uma concepção de formação docente fundamentada na/para a prática. A competência prática do professor, nessa perspectiva, é entendida como um conjunto de capacidades as quais lhes permitam resolver problemas concretos e imediatos do cotidiano escolar com maior rapidez e eficiência, desconsiderando o contexto de precarização material e intelectual presente nas escolas.
Limonata (2009) corrobora essa ideia, ao afirmar:
As mudanças que têm ocorrido nos cursos de Licenciatura evidenciam uma alteração epistemológica na concepção de formação de professores, com maior evidência para uma visão pragmatista, numa espécie de retorno ao tecnicismo em educação, configurado sob novas formas de realização do trabalho que, no momento atual, são mais cognitivas e virtuais (substituição da mecânica pela eletrônica) do que operacionais (Limonata, 2009, p. 93).
A lógica das competências é fortalecida pela concepção de educação voltada para a mobilização ou transferência de saberes, ou seja, transferência de recursos para o agir imediato, para a resolução de problemas práticos da vida diária do/a professor/a e do/a aluno/a. Nessa mesma direção, Perrenoud (1998) afirma que competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações complexas e inéditas do cotidiano. Para esse autor, a transferência e a mobilização das capacidades não são inatas. De fato, não o são, nesse ponto concordamos com o autor, e, por não serem inatas, Perrenoud (1998) afirma que é preciso trabalhá-las e treiná-las. Nessa perspectiva, o/a professor/a toma a sua ação docente como treineiro do/a aluno/a, é preciso capacitá-lo para desenvolver uma dada tarefa.
É inegável o fato de que, desde a última década do século XX, mais precisamente a partir da promulgação da atual LDBEN, os sistemas de ensino brasileiro têm sido regidos pela lógica das competências. Nesse sentido, o curso de Pedagogia, salvaguardadas as controvérsias e contradições em seu interior, é o responsável pela formação de professores/as da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, portanto, organiza-se e se estrutura, em suas bases curriculares, mediante um conjunto de dispositivos legais (Diretrizes, Resoluções, Decretos) que visam “[...] adequar a formação das novas gerações às exigências postas pelas transformações no mundo do trabalho” (Freitas, 2002, p. 150). Nesse cenário, o conteúdo e a organização das instituições de formação de professores/as passam a ter sua centralidade na garantia do desenvolvimento de Educação Básica de tal forma que corresponda a essa necessidade.
Como podemos perceber, historicamente, a formação de professores/a no Brasil, buscando corresponder às necessidades postas pelas transformações do mundo do trabalho, tem se fundamentado na lógica das competências. Desse modo, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em nível Superior, estabelecidas a partir do Parecer do CNE/CP nº 9, de 8 de maio de 2001, que apresenta a proposta de formação referendada nas Resoluções CNE/CP nº 1 e nº 2, datadas respectivamente de 18 e 19 de fevereiro de 2002; são importantes marcos legais que enquadram a formação de professores/as nessa perspectiva. Vejamos o que a Resolução CNE/CP nº 1/2002 apresenta, em seus artigos 3º e 4º, para as propostas curriculares de formação de professores:
Art. 3º A formação de professores que atuarão nas diferentes etapas e modalidades da educação básica observará princípios norteadores desse preparo para o exercício profissional específico, que considerem: I - a competência como concepção nuclear na orientação do curso; II - a coerência entre a formação oferecida e a prática esperada do futuro professor, tendo em vista: a) a simetria invertida, onde o preparo do professor, por ocorrer em lugar similar àquele em que vai atuar, demanda consistência entre o que faz na formação e o que dele se espera; [...]; c) os conteúdos, como meio e suporte para a constituição das competências; d) a avaliação como parte integrante do processo de formação, que possibilita o diagnóstico de lacunas e a aferição dos resultados alcançados, consideradas as competências a serem constituídas e a identificação das mudanças de percurso eventualmente necessárias.
Art. 4º Na concepção, no desenvolvimento e na abrangência dos cursos de formação é fundamental que se busque: I - considerar o conjunto das competências necessárias à atuação profissional; II - adotar essas competências como norteadoras, tanto da proposta pedagógica, em especial do currículo e da avaliação, quanto da organização institucional e da gestão da escola de formação (Brasil, 2002, p. 2, grifos nossos).
Conforme esses dispositivos, o eixo central da formação de professores/as é norteado pala aquisição de competências e habilidades pedagógicas, sendo o projeto pedagógico dos cursos de licenciaturas instrumento privilegiado, por sua flexibilidade, para abrigar uma organização curricular capaz de prever e materializar, no processo formativo, as competências que se esperam do/a professor/a (Silva, 2006). Nessa direção, o Art. 6º da referida Resolução destaca ainda a importância das competências a serem consideradas na construção dos projetos pedagógicos dos cursos de licenciaturas, fortalecendo cada vez mais a ideia da formação docente pela lógica das competências.
Na construção do projeto pedagógico dos cursos de formação dos docentes, serão consideradas:
I as competências referentes ao comprometimento com os valores inspiradores da sociedade democrática;
II) as competências referentes ao papel social da escola;
III) as competências referentes ao domínio dos conteúdos a serem socializados, aos seus significados em diferentes contextos e sua articulação interdisciplinar; IV) as competências referentes ao domínio do conhecimento pedagógico;
V) as competências referentes ao conhecimento do processo de investigação que possibilitem o aperfeiçoamento da prática pedagógica;
VI) as competências referentes ao gerenciamento do próprio desenvolvimento profissional (Brasil, 2002, p. 3).
Como podemos perceber, a lista de competências elencadas no Art. 6º acima não deixa dúvidas quanto à concepção pragmatista/tecnicista que norteia a formação de professor/a no Brasil. Nesse sentido, os documentos que orientam os cursos de formação, expressam a ideia de que sua grande tarefa é possibilitar ao/a futuro/a professor/a da Educação Básica o domínio dos conteúdos específicos de suas ciências e repassá-los com competência aos/as alunos/as, garantindo a estes o aprender a aprender, assemelhandose à perspectiva do modelo de formação docente regido pela simetria invertida (Oliveira; Bueno, 2013), que, nas palavras de Mello (2000, p. 102):
É imprescindível que o professor que se prepara para lecionar na educação básica demonstre que desenvolveu ou tenha oportunidade de desenvolver, de modo sólido e pleno, as competências previstas para os egressos da educação básica, tal como estabelecidos nos artigos 22, 27, 32, 35 e 36 da LDB e nas diretrizes curriculares nacionais da educação básica. Isso é condição indispensável para qualificá-lo como capaz de lecionar na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino médio.
Conforme expressa a autora, nesse modelo de formação, as competências não podem ser reduzidas a princípios abstratos nem se restringir apenas a preceitos legais, pois, para que tenha efeito formativo concreto, é preciso que o/a graduando/a domine-as, por conseguinte, exerça-as posteriormente em seu trabalho na escola.
Nesse sentido, Mello (2000, p. 102) afirma:
[...] ninguém facilita o desenvolvimento daquilo que não teve oportunidade de aprimorar em si mesmo. Ninguém promove a aprendizagem de conteúdos que não domina, a constituição de significados que não compreende nem a autonomia que não pôde construir.
De certa forma, até concordamos com a autora, de que não se pode ensinar aquilo que não se sabe, mas, não podemos esquecer que o processo de ensino e aprendizagem é um processo de mão dupla, em que eu aprendo ao ensinar, e aquele que aprende também ensina ao aprender. Ademais, prescindindo daí um ato político-social, cuja função é libertar o sujeito pela conscientização (Freire, 2015). Essa é a ideia de processo ensinoaprendizagem que nos referenda, enquanto docentes. Ressaltamos que essa compreensão de docência não se evidencia no domínio de competências e habilidades por si mesmas, para o ser professor ou professora.
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES E PROFESSORAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL: A QUE SERÁ QUE SE DESTINA?
Quando se trata da formação do/a professor/a de Educação Infantil, a situação descrita no subitem anterior torna-se mais evidente do que nas demais etapas. Entendemos que, no caso dessa etapa de ensino, a ocorrência de formação docente pautada na epistemologia da prática, e, nesse caso em especial, prática voltada para o cuidado e o zelo com a criança, distanciando-se dos critérios pedagógicos e conhecimentos científicos do fazer docente, associa-se à tradição de que a Educação Infantil foi compreendida ao longo da história das sociedades, especialmente na sociedade capitalista burguesa, como extensão da família, desvinculada da escola e mediada por uma concepção assistencialista-higienista de currículo (Kuhlmann Jr., 2007) em que o professor tinha como função principal o cuidar da criança.
Seguindo o curso da história da Educação Infantil, seu surgimento desvinculado da escola, a tradicional concepção assistencialista de currículo e o histórico das funções higienistas do perfil profissional do professor contribuíram para a constituição de uma formação docente associada a ações, eminentemente práticas (Teles, 2018) e sem qualquer exigência de aprofundamentos de bases teóricas (psicologia, pedagogia, sociologia, filosofia, entre outras) que possibilitassem ao professor compreender como a criança se desenvolve, como se constitui socialmente no espaço da Educação Infantil e como se apropria de repertórios necessários à sua ação nos contextos escolares e para além deles (Teles, 2018), consolidando-se, contudo, uma concepção de formação docente na/para a prática, a iniciar pela Educação Infantil.
Por muito tempo, a função do professor de Educação Infantil foi limitada à observação e organização dos espaços físicos nos quais a criança estava presente na instituição, a acompanhar os interesses das crianças e a fazer sua higienização quando necessário. Não queremos com isso desqualificar a importância dessas ações, pois reconhecemos seu grau de relevância, porém apenas elas são insuficientes para definir a real finalidade do professor na Educação Infantil.
Para Teles (2018), essa perspectiva reforça uma organização curricular para Educação Infantil em que o professor se afasta, literalmente, de qualquer deliberação e reflexão crítica sobre o processo de aprendizagem e produção de conhecimento, para se prender ao papel de mero executor de rotinas na escola, distanciando-se do seu real papel de docente, que requer uma ativa participação na produção e execução de um currículo adequado ao contexto cultural e social em que trabalha, reforçando, com isso, a concepção de formação docente na/para a prática cunhada em competências técnicas.
Atualmente, a que será que se destina a formação de professoras e professores da educação infantil? Sem fugir à regra das legislações anteriores, essa formação permanece tal qual como antes, ou seja, orientada por bases curriculares pautadas na lógica das competências. A título disso, a Base Nacional Comum de Formação de Professor (BNC-FP) define no Art. 2º da Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019, como pressuposto para a formação docente o desenvolvimento das competências gerais previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Básica, tendo em vista tanto o desenvolvimento das aprendizagens essenciais a serem garantidas aos/as licenciandos/as, quanto aos aspectos intelectual, físico, cultural, social e emocional de sua formação, tendo como perspectiva o desenvolvimento pleno das pessoas, visando a educação integral (Brasil, 2019).
Além das competências gerais docentes, a BCN-FP define as competências específicas e as habilidades correspondentes a elas. Desse modo, as competências específicas se organizam em torno de três dimensões fundamentais para a formação docente: o conhecimento profissional, a prática profissional e o engajamento profissional. Com isso podemos observar que a referida Base se fundamenta na noção de competências segundo a ideia de Perrenoud (1998), ideia essa muito trabalhada nos contextos de formação da educação brasileira na década de 1990, ou seja, competências têm o sentido de mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), de habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais) e de atitudes e valores que buscam resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.
Mais especificamente, sobre a formação inicial do/as professor/as de Educação Infantil inserida no curso de Pedagogia, a referida Resolução define, no § 2º do Art. 13, parâmetros e aspectos específicos a essa área, com vista à organização curricular dos Projetos Pedagógicos de Curso das instituições de Ensino Superior. A partir disso, e nos termos da Resolução, fica definido para os cursos de licenciatura, no que se refere à formação de professores da Educação Infantil, uma carga horária de 1600 horas a ser integralizada à carga horária total do curso (3.200h), conforme definido na mesma Resolução, em seu Art. 10, sendo que, na totalidade dos cursos de licenciatura, deve ser considerado o desenvolvimento das competências profissionais (gerais e específicas) explicitadas no Capítulo I da BNC-FP (Brasil, 2019).
É perceptível o fato de que a história se repete nos atuais documentos de orientação curricular e pedagógica para a formação de professores/as da educação infantil. Assim, Pasqualini e Martins (2020) afirmam que é nítido, nesses documentos, a opção por não se utilizar termos como escola, ensino, aula, aluno. “Não se trata de pensar em aulas de educação física na educação infantil” (Brasil, 2018, p. 34, grifos nossos), alerta o capítulo dedicado ao campo de experiência denominado corpo, gestos e movimento. E ainda: “Atitudes como a de transmissão de conhecimentos já sistematizados na cultura que deverão ser aprendidos pelas crianças também precisam ser superadas.” (p. 8). No nosso entendimento, os conteúdos expressam a diversidade de culturas que devem ser apropriadas pelo/a aluno/a na escola, com a mediação do professor, desde a educação infantil.
Entendemos que não existe atividade humana isenta de conteúdo, inclusive as atividades escolares da criança, sendo necessário, portanto, garantir-lhe seu direto de acesso aos conteúdos da cultura, que deverão ser o esteio de suas experiências e atividade de primeira ordem na Educação Infantil, o que significa dizer que, quando se trata de elaborar e implementar propostas curriculares para a Educação Infantil, não basta somente levantar a bandeira do lúdico e não explicitar quais os conteúdos com os quais a criança poderá se relacionar de forma lúdica (Pasqualini; Martins, 2020).
Enfim, é preciso que o professor e a professora (da educação infantil ao ensino superior) sejam capazes de pensar acerca de qual homem/mulher e qual sociedade se espera do futuro, diante das crianças que temos na escola hoje. Para isso, é imprescindível que seja dado, tanto no âmbito da formação inicial quanto da continuada, as condições materiais e intelectuais aos profissionais que já se encontram no mundo do trabalho, mas também para aqueles que ainda estão em processo formativo, mediante a formação inicial. Entendemos que isso perpassa, necessariamente, pela elaboração e implementação de uma política curricular pautada em princípios que advoguem a formação docente para a autonomia e (re)elaboração da consciência crítica, que, na perspectiva de Giroux (1997), possamos afirmar um/a professor/a intelectual, crítico/a e transformador/a, entendendo a si mesmo e entendendo ao outro como elementos circunscritos e marcados historicamente por múltiplas relações e determinações diversas.
A FORMAÇÃO DOCENTE: UMA FORMAÇÃO PARA ALÉM DO ENSINO DE COMPETÊNCIAS E HABILIDADES
Iniciamos essa subseção destacando que existem outras concepções que se contrapõem a essa forma de pensar a formação de professor/a, pautada nas pedagogias do aprender a aprender, do/a professor/a reflexivo/a, na lógica das competências. Assim, apoiando-nos nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, elaborada por Vygotsky, afirmamos que a formação humana e, nessa mesma esteira, a formação docente, quando fundamentadas nessa epistemologia, tem como possibilidade o desenvolvimento da personalidade consciente, depreendendo daí uma formação omnilateral de homem. Portanto, uma concepção de educação bem mais completa do que uma formação que priorize apenas o desenvolvimento de competências e habilidades. Há que se notar que, nessa perspectiva teórica, competências e habilidades serão também desenvolvidas, pois são importantes à completude humana, mas elas vêm como acréscimo ao desenvolvimento total do ser em formação.
Vale ressaltar que, a partir de seus estudos sobre o psiquismo humano, e tendo como eixo central a dialética marxista, Vygotsky desenvolveu o projeto de psicologia que teve como objeto de estudo o ser humano, “[...] compreendendo-o não como uma essência metafisica, imutável, mas como uma síntese contraditória de múltiplas determinações sociais” (Teixeira, 2022, p. 3), conforme denominou o autor, a dialética do humano. “Assim como a dialética da ciência natural é, ao mesmo tempo, dialética da natureza, a dialética da psicologia é, por sua vez, a dialética do humano como objeto da psicologia” (Vygotsky,1991, p. 290 apudTeixeira, 2022, p. 3).
Na busca por compreender em Vygotsky o desenvolvimento da personalidade consciente, e, nessa perspectiva, a educação como prática e caminho para a liberdade, destacamos dois termos russos utilizados pelo autor para se referir à educação e que, no nosso entendimento, quando se pensa em formação humana omnilateral, esses termos se comunicam, interagem entre si e se complementam formando um par dialético - vospitanie e obutchenia -, em que o primeiro se refere à formação geral (ética, moral, estética, política) constitutiva do desenvolvimento psíquico humano; e o segundo significa instrução e está mais relacionado à educação escolar (Teixeira, 2022).
A autora em referência afirma que a obutchenia, para Vygotsky, é um processo intencional, consciente e planejado que visa o ensino e a aprendizagem, no qual quem instrui (professor/a) tem a responsabilidade de organizar o meio social educativo, de modo a contribuir, deliberadamente, para o processo de desenvolvimento de quem aprende (aluno). Nesse sentido, Teixeira (2022, p. 17) considera:
Na perspectiva de Vigotski, o processo de desenvolvimento da personalidade e a educação, compreendidas nos termos de Vospitanie (formação) e obtuchenie (instrução), formam uma unidade dialética. Não há desenvolvimento da personalidade humana consciente sem educação. Por outro lado, educar significa intervir no processo de desenvolvimento do ser humano, organizando a vida na escola e na sociedade de modo a edificar a liberdade de ação e pensamento.
Conforme a citação acima, a instrução promove o desenvolvimento do/a aluno/a como um ser humano omnilateral, tendo como finalidade a construção de uma personalidade humana consciente e não somente o seu desenvolvimento intelectual. Nessa perspectiva, e diferentemente das concepções tradicionais de processo educativo, inclusive das que expressamos anteriormente nas diversas propostas curriculares, em que se toma apenas um de seus polos, ora o/a professor/a e outrora o/a aluno/a, como sujeito importante no processo educativo, a Teoria Histórico-Cultural “[...] compreende o processo educativo como uma totalidade, uma síntese dialética formada por três elementos: o professor, o aluno e o meio social educativo, no qual todos são ativos” (Teixeira, 2022, p. 17), nas próprias palavras do autor da referida Teoria, o processo educativo “[...] é trilateralmente ativo: o aluno é ativo, o professor e o meio existente entre eles são ativos” (Vigotski, 2003, p. 79).
Segundo Teixeira (2022), as ideias vygotskyanas desenvolvidas acerca da relação entre instrução e desenvolvimento, como um processo deliberado, realizado por pessoas de forma ativa, intencional e em constante colaboração na busca por objetivos almejados, nos permitem compreender que a educação escolar é um devir, é um complexo processo de formação social da personalidade consciente. Nessa perspectiva, o desenvolvimento que precisa ser potencializado por meio da atividade social na educação escolar é o desenvolvimento da personalidade consciente que constitui um caminho para a liberdade, para a omnilateralidade humana. Para tanto, é preciso que a educação assuma o papel de promover um trabalho dialógico, de compartilhamento da cultura e da política entre os sujeitos (Freire, 2015; Saviani, 2008), somente nesse sentido a educação poderá emancipar o sujeito, o qual transforma o mundo e por este é transformado, depreendendo daí a importância do trabalho educativo escolar.
Outra proposição teórica de Vygotsky que pode potencializar, cada vez mais, sua concepção de educação como prática e caminho para a liberdade é a compreensão do processo de ensino-aprendizagem. Nessa direção, Vygotsky (2001) afirma que a aprendizagem, mediada pelo trabalho educativo escolar, deve ser considerada a partir de dois movimentos inter/intra psicológicos, que significa dizer que o sujeito, criança em especial, mas também o adulto, quando colocado em contexto social (interpsicológico), planejado e intencionalmente objetivado ao aprender, ao construir conhecimentos, denotando daí duas atividades intelectivas (ensino e aprendizagem), há que se considerar o desenvolvimento real desse sujeito, isto é, a constatação daquilo que ele já consegue fazer por si mesmo de forma livre e autônoma. Marsiglia e Martins (2013) afirmam que o desenvolvimento real (efetivo) expressa conexões psíquicas interfuncionais já estabelecidas, que devem fornecer elementos para o trabalho do professor na área do desenvolvimento iminente.
É importante que se diga que o desenvolvimento iminente não representa unicamente o que o sujeito não consegue fazer de forma autônoma, mas também, e principalmente, aquilo que está em vias de ele realizar, mas que não conseguirá sozinho, de forma natural, exigindo daí a intervenção do ensino (Marsiglia; Martins, 2013). Essa intervenção, para Vygotsky, exige a colaboração do par mais experiente.
No contexto da prática docente, esse par mais experiente se consubstancia na figura do/a professor/a, sendo que esse é o sujeito que deverá ter as condições necessárias para conduzir e organizar a aprendizagem de forma planejada, identificando pendências cognitivas que precisam de ação sobre elas, garantindo as conexões intelectivas e mediações realizadas, de modo que ocorra efetivamente a apropriação do conhecimento pelo/a aluno/a (intrapsicológico). Esse processo de apropriação do conhecimento é imprescindível ao desenvolvimento da criança, e, também, exigido para a formação de professores/as, uma vez que esses profissionais precisam tomar para si os conhecimentos técnicos, pedagógicos e científicos de forma consciente para o melhor desenvolvimento do seu pensar e do seu fazer docente na prática educativa, levando em conta o movimento dialético da práxis educativa transformadora.
REFLEXÕES FINAIS
A título de reflexão, nesse ponto limite do texto, reafirmamos que o processo de apropriação do conhecimento que tem como matriz teórica a Psicologia Histórico-Cultural é o que nos possibilita compreender as contradições e as múltiplas determinações de uma dada realidade e, a partir dela, pensar, sentir, planejar e agir sobre ela, com e para os sujeitos a ela implicados. Entendemos que pensar, sentir e agir sobre uma dada realidade, considerando esse dispositivo teórico, e aqui nos reportamos mais especificamente ao contexto da formação dos/as professores/as de Educação Infantil, é tomá-lo como elemento imprescindível à compreensão e abstração da essência dos processos educativos, e, de modo especial, o ser professor/a, no que significa apreender ao máximo os nexos e as relações que o constitui como profissional, e, na perspectiva de Giroux (1997), como um professor intelectual.
A educação para o magistério, concebida a partir dessa ótica, possibilitará a revogação de práticas docentes retrógradas e limitantes aos/as futuros/as professores/as, levando-os à situação de meros técnicos, aplicadores de competências e habilidades previamente estabelecidas. Com isso, não queremos desdenhar da importância do desenvolvimento de competências e habilidades para a formação de professores, como já mencionamos, elas são importantes, sim. O que questionamos é a forma técnicooperacional e pragmática como elas são tratadas, tanto no contexto da escola, quanto nas instituições de Ensino Superior, em seus cursos de formação de professores/as, com destaque para a formação do/a professor/a de Educação Infantil no curso de Pedagogia.
Reconhecemos a importância do papel do/a professor/a na tomada de decisões, nas escolhas e mobilizações das práticas de ensino na escola, isso nos leva a pensar na elaboração de um programa de formação de professores/as pautado em um currículo que possibilite ao futuro docente uma formação crítica apoiada no inter-relacionamento de vozes, construídas tanto no contexto da formação docente quanto no chão da escola, bem como a compreensão de que a realidade é multideterminada e situada em um dado contexto social, econômico e histórico, rico de contradições que, em seu conjunto, perfazem a dialética do ser professor/a em formação. Desse modo, é imprescindível que a formação inicial do/a professor/a no campo da Educação Infantil fuja de modelos tradicionais, outrossim, contribua para a constituição de outros modos do agir, pensados a partir do enfoque pautado na práxis da formação humana.
Cabe-nos aqui afirmar, ainda, que, em conformidade com os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural acerca do processo educativo e, consequentemente, da formação humana, entendemos e defendemos essa teoria como alternativa viável à construção do conhecimento pedagógico, técnico e científico no campo da educação geral e, em especial, no campo da Educação Infantil, pela sua conexão direta à possibilidade da formação omnilateral da pessoa humana, e, por conseguinte, à formação de professores/as, uma vez que esses são, especialmente, sujeitos ativos do meio social educativo, que, anterior ao ingresso na vida profissional, envolvem-se oficialmente nas instituições de ensino, em seus processos de formação de professores/as; e que, como sujeitos ativos, formam, se formam e se reformam como profissionais e como pessoas, mediante uma base curricular instituída.