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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.46 no.159 São Paulo mar. 2016  Epub 07-Jan-2016

https://doi.org/10.1590/198053143514 

Tema em Destaque - Estudos sobre reconhecimento escolar: tendências e perspectivas

Norbert Elias e o conhecimento: contribuições para o debate sobre currículo

Norbert Elias and knowledge: contribution to the debate on curriculum

Norbert Elias et la connaissance: contributions au débat sur le curriculum

Norbert Elias y el conocimiento: aportes para el debate sobre el currículo

Maria das Mercês Ferreira Sampaio

Cláudia Valentina Assumpção Galian

IDoutora em Educação pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, São Paulo, São Paulo, Brasil; mercesfsampaio@gmail.com

IIIDoutora em Educação pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, São Paulo, Brasil; claudiavalentina@usp.br


Resumo

Partindo da análise desenvolvida por Norbert Elias, este artigo discute, em linhas gerais, o processo de produção do conhecimento, derivando daí o papel da instituição escola no desenvolvimento das sociedades modernas - em especial no que se refere ao currículo escolar. Assim, inicia-se a discussão pela identificação da perspectiva evolucionista do autor, claramente atrelada às concepções darwinianas, para, em seguida, ressaltando suas escolhas metodológicas, destacar sua visão do processo de construção do conhecimento pelos seres humanos. Por fim, busca-se enfrentar a discussão sobre o papel social da escola em consonância com o referencial teórico focalizado.

Palavras Chave: Desenvolvimento Humano; Conhecimento; Currículo; Escola

Abstract

From the analysis developed by Norbert Elias, this article discusses in a general way the process of the production of knowledge, highlighting the role of the school in the development of modern societies - especially referring to school curriculum. It begins by identifying the evolutionist perspective of the author - clearly tied to Darwin's concepts. Next, it points out his methodological choices and his point of view about the process of construction of knowledge by human beings. Finally, it discusses the social role of school according to the theoretical reference focused on in this paper.

Keywords: Human Development; Knowledge; Curriculum; School.

Résumé

À partir de l'analyse développée par Norbert Elias, cet article traite des grandes lignes du processus de production de la connaissance, d'où dérive le rôle de l'institution scolaire dans le développement des sociétés modernes - en particulier en ce qui concerne le curiculum scolaire. La discussion identifiera d'abord la perspective évolutive de l'auteur, clairement liée aux concepts darwiniens, afin de souligner ensuite, à travers les choix méthodologiques de ce dernier, son point de vue concernant le processus de construction des connaissances par l'homme. En conclusion, le débat se concentrera sur le rôle social de l'école, à l'intérieur du cadre théorique proposé.

Mots-clés: Développement Humain; Connaissance; Curriculum; École.

Resumen

Partiendo del análisis desarrollado por Norbert Elias, este artículo discute en líneas generales el proceso de producción del conocimiento, y de ello deriva el rol de la institución escuela en el desarrollo de las sociedades modernas - en especial en lo que se refiere al currículo escolar. De este modo tiene inicio la discusión por la identificación de la perspectiva evolucionista del autor, claramente sujeta a las concepciones darwinianas, para, en seguida, resaltando sus elecciones metodológicas, destacar su visión del proceso de construcción del conocimiento por los seres humanos. Por fin, se intenta enfrentar la discusión sobre el papel social de la escuela en consonancia con el referente teórico enfocado.

Palabras Clave: Desarrollo Humano; Conocimiento; Curriculum; Escuela

Este texto tem o objetivo de explorar as ideias de Norbert Elias sobre o significado adaptativo da produção do conhecimento pelo homem, entendida como resultado de uma ruptura evolutiva na relação do ser humano com aquilo que é por ele aprendido e memorizado - elemento distintivo, portanto, em relação aos demais animais. Uma aproximação ao pensamento de Norbert Elias no que se refere ao conhecimento obrigou-nos a retomar leituras, revisitar conceitos, identificar repetições, uma vez que as ideias apresentadas por ele são frequentemente reiteradas, a partir de uma nova questão.

O incômodo diante dessas reafirmações e da abordagem da mesma temática em vários de seus textos foi amenizado com a centralidade da leitura de Teoria simbólica (ELIAS, 2002), último trabalho preparado pelo autor para publicação em vida, numa versão preliminar, em 1988 (Elias faleceu em 1990, aos 93 anos de idade). Segundo seu organizador, Richard Kilminster, o texto introdutório foi incluído inacabado na versão final do livro.

À medida que avançamos na leitura, a volta de itens tratados em outros trabalhos foi entendida como a necessária retomada para novas sínteses, uma vez que o livro é, de fato, um documento de sistematização, reflexão e síntese do que Elias tratou em seus textos anteriores, de investigação sobre as sociedades humanas numa longa escala temporal. Kilminster assinala que o autor insistiu na manutenção de passagens repetitivas e que as "repetições benignas" são "uma característica geral do seu estilo, que lhe permitem regressar diversas vezes às mesmas questões, trabalhando-as em cada ocasião segundo perspectivas diferentes" (ELIAS, 2002, p. viii). O organizador alerta, ainda, sobre a forma de apresentação dos escritos de Elias em comparação com outros textos acadêmicos, pois ele não se atém a começos convencionais, discutindo a literatura ou os debates contemporâneos sobre o problema abordado - os símbolos, no caso de Teoria simbólica. Contudo, no decorrer do texto, nota-se a presença explícita e muito desenvolvida dessa interlocução com teóricos e teorias, especialmente da Filosofia e da Sociologia.

Observamos, mais ainda, que seu texto enreda as questões de tal modo que suas repetições parecem uma "conversa" com os trabalhos que traz consigo - estão todos em suas mãos, ou em seus livros, ou em sua memória criativa. E então, como ele nos ensina, linguagem, memória e pensamento não se separam no processo complexo de conhecimento. Isso lhe permite tecer uma figura rendilhada, de fios que se juntam, se afastam e se movimentam numa estrutura próxima ao que chamamos mandala, em que não há um ponto zero, inicial, mas linhas e direções concêntricas, repetições e inovações, interdependência como princípio, tudo necessário para um desenho original. A aproximação que encetamos foi exigente e instigante. O esforço para isolar um dos fios, sem perder de vista a trama, produziu um movimento esclarecedor, resultando na apresentação que se segue.

Um novo equilíbrio entre o aprendido e o não aprendido: a grande ruptura evolutiva

Ao analisar a forma pela qual os estudos psicológicos e biológicos abordam as emoções humanas, Elias (1998a) critica a separação analítica entre o humano e o não humano aí construída. Para ele, é estabelecida uma dualidade nessa forma de análise: ou se focalizam as aproximações entre o homem e os demais animais, ignorando as inovações evolutivas, ou se faz a total distinção entre o que é humano e o que não é. O autor também se ressente da referida dualidade analítica quando focaliza as ciências humanas de forma mais ampla, tecendo crítica especial à Sociologia (ELIAS, 1998a, p. 294).

Assim, Elias (1998a) reclama que se tente traçar um caminho evolutivo para explicar a espécie humana, enfrentando o silêncio que paira sobre a passagem das espécies não humanas para as humanas - silêncio entendido como o resultado do total desaparecimento das espécies pré-humanas, com a quase inexistência de sinais de sua passagem pelo planeta, sobrepujadas que foram pela espécie atual. Pensando especificamente na questão das emoções, ele afirma:

O interesse sociológico e processual pelas emoções humanas centra-se em ambas as características, quer dizer, naquelas emoções humanas que são compartilhadas com espécies não humanas e nas outras que são unicamente humanas e sem paralelo no reino animal. (ELIAS, 1998a, p. 293, grifo do autor)

Nesse caminho, o autor busca evidências do processo de continuidade e ruptura que caracteriza a evolução humana. O central é a ideia de que a espécie humana atual representa uma ruptura com as espécies de hominídeos que viveram anteriormente, o que explica, na luta pela sobrevivência, que tenha restado apenas ela. A ruptura teria ocorrido pela alteração no equilíbrio entre o aprendido - aquilo que resulta do processo de aprendizagem dos indivíduos - e o não aprendido - os elementos definidos na bagagem genética dos indivíduos da espécie. Ou seja, diferentemente do que acontece nos demais animais, as formas aprendidas de comportamento tornaram-se predominantes para o homem, o que representou elemento relevante para a sobrevivência da espécie:

No caso dos humanos, as mesmas espécies se adaptaram a condições muito diferentes entre si, principalmente por meio de uma diferenciação social, enquanto que as variações biológicas nunca afetaram a identidade da espécie. Os humanos povoaram o planeta aprendendo pela experiência e transmitindo-a em forma de conhecimento de uma geração a outra. (ELIAS, 1998a, p. 299-300, grifo do autor)

Nesse sentido, Elias destaca que a aprendizagem não somente foi possível, mas necessária para que os indivíduos pudessem ser incorporados aos grupos sociais. Para ilustrar esta ideia, o autor aborda a questão da comunicação oral, pela aquisição da linguagem, ressaltando com este exemplo que a própria aprendizagem torna possível ativar o potencial do não aprendido, ou seja, a experiência e a interação ativam a possibilidade biológica de aprender, aquilo que potencialmente está definido no patrimônio genético da espécie. Assim:

Uma criança, ao aprender uma linguagem, é integrada a um grupo humano específico. Este processo característico da natureza humana e não-aprendido, ajuda a preparar o caminho para uma estreita integração da pessoa a um grupo, pode servir como uma advertência de que, no caso humano, uma forte disposição natural e biológica enlaça a natureza com o grupo humano. (ELIAS, 1998a, p. 310-311)

Para o autor, o próprio conceito de natureza deve ser redefinido na abordagem do ser humano, de modo a considerar a existência de dois tipos de estruturas "naturais": as inacessíveis à mudança pela aprendizagem; e as incapazes de funcionar se não forem estimuladas pela relação de afeto e aprendizagem (ELIAS, 1998a, p. 305).

Segundo Elias (1998a), o maior impacto das formas aprendidas de comunicação sobre a comunicação por meio de sinais não aprendidos tem consequências transcendentais, estando na raiz da diferença entre as sociedades humanas e as sociedades animais (marcadas pela rigidez genética). Sociedades pré-humanas são sempre espécies específicas, ou seja, suas características são definidas pela estrutura genética dos indivíduos da espécie; as mudanças só ocorrem no curso do processo evolutivo - se acontecem mudanças no patrimônio genético, portanto. As sociedades humanas atuais, por outro lado, podem mudar sem que sejam necessárias alterações biológicas dos indivíduos que as constituem. Em outras palavras, o que Elias (1998a) ressalta é que, nos seres humanos, o fato de as características aprendidas serem dominantes sobre as não aprendidas faz com que um esquema biológico favoreça um desenvolvimento social que pode se dar sem mudanças biológicas, ou seja, independentemente do processo evolutivo biológico e, portanto, num intervalo de tempo muito menor (ELIAS, 1998a, p. 312). A este respeito, afirma o autor:

O fator cego do azar [acaso] presente no processo evolutivo só pode trabalhar muito lentamente. Uma espécie biologicamente equipada para controlar sua conduta principalmente com a ajuda do conhecimento aprendido, tem grandes vantagens sobre todas as espécies cujos comportamentos são amplamente governados por mecanismos inatos. (ELIAS, 1998a, p. 302)

Em outro texto, o autor ressalta essa diferenciação no ritmo da evolução humana, menos dependente de alterações biológicas da espécie, relacionando-a à evolução das sociedades humanas:

É uma peculiaridade, específica das sociedades formadas pelos homens, a possibilidade de alteração de sua estrutura, da forma das interdependências entre indivíduos, sem que se altere a estrutura biológica dos seres humanos. Os representantes individuais da espécie Homo sapiens podem formar entre si as sociedades mais distintas sem que haja uma alteração da própria espécie. Em outras palavras, a constituição biológica da espécie [sua capacidade de aprendizagem e de controle dos comportamentos] torna possível que o modo de sua convivência social se desenvolva sem que haja um desenvolvimento da própria espécie. (ELIAS, 2001, p. 37)

Tentando traçar o caminho evolutivo das emoções humanas, Elias segue a concepção de que formas aprendidas (controle de condutas aprendido no processo civilizatório) e não aprendidas (marcadores genéticos, inclinação biológica) se entrelaçam na configuração dos diferentes comportamentos. Nesse sentido, ele exemplifica tal processo identificando o sorriso como uma forma de comunicação, de aprendizagem mais elementar do que a linguagem, mas que também é útil para a adaptação do homem ao grupo social, bem como o é a capacidade de entender o seu significado. E destaca que o sorriso de um bebê, marcado pela rigidez da resposta a situações específicas (no que se assemelha ao de outros mamíferos), é distinto do sorriso de um adulto, carregado das aprendizagens e experiências, ou seja, marcado pela aquisição do controle da conduta. O primeiro, o sorriso do bebê, portanto, representaria a expressão das características impressas na bagagem genética do indivíduo, enquanto o sorriso do adulto expressaria um acúmulo de aprendizagens relacionadas às condutas mais adequadas para a configuração social na qual o indivíduo vive. Essas aprendizagens, portanto, tornam-se mais interessantes para a adaptação social do que aquilo que se encontra como marcador genético que define rigidamente alguns comportamentos, podendo, inclusive, subjugar estes últimos: "No caso dos humanos, algumas formas não aprendidas perderam, ainda que não totalmente, sua rigidez genética. Converteram-se em algo maleável e inclusive em diversos casos chegaram a fundir-se com formas aprendidas" (ELIAS, 1998a, p. 303).

No que interessa particularmente à reflexão proposta neste texto, vale destacar que Elias identifica uma tarefa essencial para as ciências sociais: descobrir mais sobre a forma pela qual o potencial humano para aprender, potencial não aprendido e único em seu gênero comparado com outras formas de vida, é ativado e modelado pelo processo de aprendizagem:

Sem adquirir o conhecimento social acumulado [os homens] não podem sobreviver nem se tornar humanos. De fato, estão biologicamente constituídos de tal forma que tanto é possível como necessário orientarem-se por meio do conhecimento aprendido. (ELIAS, 1998a, p. 304)

E afirma, ainda, reforçando essa ideia, a importância do conhecimento social acumulado para a constituição das figurações humanas:1

A modificação das figurações humanas liga-se estreitamente à possibilidade de transmitir as experiências de determinadas gerações, como um saber social adquirido. Essa acumulação social contínua do saber contribui para a modificação da convivência humana e para que se alterem as figurações formadas pelos homens. (ELIAS, 2001, p. 38)

Identificada a relevância do potencial para o aprendizado no sentido do sucesso evolutivo da espécie humana, vale a pena tentar delinear os pressupostos do autor no que se refere ao processo de produção do conhecimento pela humanidade.

Remeter a alguns desses pressupostos significa buscar o caminho de sua própria investigação sobre o conhecimento como produção e característica dos seres humanos, o que se faz necessário, tendo em vista a especificidade e complexidade de sua abordagem.

Pressupostos, ou algumas questões de método

Elias esclarece continuamente sua perspectiva de investigação - evolutiva e também processual e relacional - na busca por compreender os seres humanos, seu desenvolvimento, sua vida em sociedade. Sua insistência nessa perspectiva impregna o leitor como exigência de método; mas método em Elias tem uma significação bastante específica e peculiar. Não se trata de buscar um modelo de investigação, um recurso técnico, um método determinado como critério de ciência, pois essas são questões formais, que ele afasta. Insiste, contudo, na associação indissociável de teoria e método: "A evolução da concepção que as pessoas têm sobre o objeto fundamental é inseparável da concepção que têm sobre um método adequado à investigação" (ELIAS, 2008, p. 62).

Em busca de compreender a transição para processos mais científicos de pensar a sociedade, nessa relação intrínseca entre concepção e método, Elias (2008) explicita pontos centrais da sociologia dos processos, tais como distanciamento e interdependência.

Ao tratar do distanciamento dos pesquisadores em relação ao objeto, o autor refere-se a uma relação impessoal com os acontecimentos, uma relação de afastamento do que lhe apontam suas experiências imediatas. Essa perspectiva implica perceber que modelos de pensamento desenvolvidos pelas pessoas sobre suas próprias intenções, ações, planos e fins nem sempre são adequados, "quer para a compreensão quer para a manipulação de relações entre acontecimentos" (ELIAS, 2008, p. 59). Torna-se necessário buscar o distanciamento e o autodistanciamento, uma vez que são muitas as dificuldades dos homens para compreender as suas próprias interconexões sociais (ELIAS, 2008, p. 60).

Na passagem para essa outra percepção, mais objetiva e impessoal, uma variedade de ações e intenções é concebida como um tipo distinto de relação factual; na transição para processos científicos de conhecimento, os instrumentos conceituais usados passam, lentamente, de conceitos de ação para conceitos de função, com o reconhecimento crescente da autonomia relativa de um campo de investigação, encarado como tipo especial de relação funcional (ELIAS, 2008, p. 61).

Nesse processo, há sempre grupos em relação. No exemplo de dois grupos rivais que caçam e disputam alimentos numa floresta Elias (2008, p. 83) mostra que ambos dependem um do outro como num jogo de xadrez, ou seja, que os movimentos de um grupo determinam os movimentos do outro - os grupos desempenham função recíproca, que deve ser entendida, assim, como atributos de relações e de interdependência. Interdependências funcionais existem, por exemplo, entre trabalhadores e empresários, entre homens e mulheres, entre pais e filhos, entre cidadãos e governos, entre diferentes Estados. Ações, planos e objetivos de cada grupo só podem ser compreendidos na relação entre os grupos de uma figuração (ELIAS, 2008, p. 84). O importante é que as pessoas não atribuam os acontecimentos a seres sobrenaturais ou a seres humanos especiais, e entendam que a transição para tipos científicos de conhecimento não depende essencialmente da utilização de determinado método de investigação: "Na verdade, a concepção teórica de uma relação de acontecimentos e o método de a investigar desenvolveram-se numa interdependência funcional" (ELIAS, 2008, p. 61).

Nessa perspectiva, também se articulam fortemente o distanciamento e a interdependência. Elias (2008, p. 59) aponta que o começo do conhecimento e do pensamento sobre a sociedade humana foi vagaroso e intermitente, acelerando-se a partir da Renascença. Quando analisa a transição para processos mais científicos de pensar a sociedade, iniciada nos fins do século XVIII e desenvolvida nos séculos seguintes Elias (2008, p. 66) enfatiza a interdependência, como um outro aspecto de seu método, ou de seu proceder científico, elemento intrinsecamente enraizado em sua teoria, em seu arcabouço teórico-explicativo: a interdependência desse processo de transição com todas as mudanças sociais, os conflitos, as transformações no comportamento das pessoas - uma dimensão da mudança sempre imersa na mudança global de estrutura das sociedades e das figurações que as pessoas formam. Interconexões e figurações são elaboradas pelas pessoas, que desenvolvem ligações afetivas, políticas, econômicas, por exemplo. As esferas políticas, econômicas e sociais da sociedade, nesta perspectiva, são relações funcionais de pessoas interdependentes, "todas elas se referem a relações específicas de funções que as pessoas desempenham para si próprias e para os outros" (ELIAS, 2008, p. 69).

O seu quadro teórico-explicativo, sempre relacional e processual, é, portanto, o de uma sociologia das figurações, das redes de interdependências. Segundo o autor, interdependência e distanciamento são dimensões fundamentais para a compreensão do caráter relacional de todas as ações humanas. Reafirma-se também, nesse quadro, a sua concepção de conhecimento - relacionado às mudanças nas sociedades, que são acompanhadas de mudanças na percepção e na vida dos indivíduos, e também articulado ao distanciamento dos homens em relação aos fenômenos naturais.

Elias (1998b, p. 150-156) acrescenta, ainda, a necessidade de comparações, no estudo das sociedades humanas, considerando que isso é possível porque há uma ordem nos acontecimentos, uma ordem não linear, perceptível como uma sequência de níveis diferentes de integração, mas que enlaça os acontecimentos anteriores e posteriores. Ele indica essa ordem com o exemplo do desenvolvimento da pessoa, cuja identidade "repousa, acima de tudo, no fato de que cada fase posterior emerge de uma fase anterior, numa sequência ininterrupta" (ELIAS, 1994b, p. 156). Em outro texto, o autor menciona também "a sucessão processual, pela qual um fato não se pode produzir se um outro fato, anterior, não se produziu previamente" (ELIAS, 2002, p. 3) e, ainda, que:

Todos os conceitos de alta generalidade, existentes num elevado nível de síntese, descendem de conceitos de sentido muito mais específico, representantes de um nível muito alto de particularidade e de um nível muito mais baixo de síntese. (ELIAS, 1994b, p.132-133)

Discutindo a questão dos conceitos, mas também preocupado com temas relativos a conflitos e à própria sobrevivência dos homens, ele aponta um particular traço do processo de conhecimento - a enorme distância do conhecimento objetivo e adequado à realidade entre os campos das ciências naturais e os campos das ciências sociais (ELIAS, 1991, p. 21-25).

Na atual fase de desenvolvimento social, o autor observa essa "peculiar desigualdade no desenvolvimento de seu arsenal de conhecimentos" - destacando o notável crescimento do saber objetivo sobre as conexões não humanas da natureza, da tecnologia física e do controle e da manipulação de processos naturais para fins militares e pacíficos, a aplicabilidade prática do conhecimento no domínio da medicina e outras frentes abertas pela investigação, permitindo, num longo processo, que durou séculos, que a natureza venha sendo progressivamente desmitificada, por meio do avanço do conhecimento científico, mesmo que não se ofereça uma imagem global do universo particularmente atraente para os homens:

É este, se assim quiserem, o segredo da ciência: através da renúncia ao pensamento guiado pelo desejo, às fantasias embelezadoras ou, eventualmente, também ao receio e à angústia, desenvolver o saber sobre o mundo de modo que ele se adapte o mais rigorosamente possível ao mundo real. Se possuirmos um tal saber, poderemos empreender a transformação de um mundo não desejado e talvez até atemorizador, por forma a fazê-lo melhor corresponder às necessidades humanas. (ELIAS, 1991, p. 22)

E é esse saber sobre o mundo que Elias defende como necessário ao campo das ciências sociais, apontando-o como conquista da espécie humana, que pode desenvolvê-lo a seu favor. Para justificar nossa afirmação, há que se examinar como ele explica o conhecimento socialmente produzido, num quadro em que aparece claramente sua argumentação em defesa do conhecimento congruente com os dados reais.

Conhecimento: sua produção social

A partir das ideias comentadas anteriormente, compreende-se que, na perspectiva de Elias, o processo de conhecimento só tem explicação como parte ou dimensão do processo de desenvolvimento, sua direção se faz numa sequência de níveis - um grau mais simples para outro mais complexo de síntese - e seu crescimento supõe um processo de longa duração. Entende-se, ainda, que é num contexto de interdependência que se desenvolvem a vida em sociedade e, portanto, todas as dimensões da vida humana, incluindo o conhecimento. Como, então se alcança e se explica o conhecimento do mundo, nessa perspectiva?

Sem falar de um ponto zero ou da produção de um indivíduo isolado, Elias explica as interdependências e o distanciamento que permitiram ao ser humano sair de interrogações egocêntricas e avançar na compreensão, mais objetiva e adequada ao real, dos acontecimentos: "A expectativa de um tipo específico de explicação não se deve à experiência pessoal de um indivíduo, mas às experiências coletivas de um grupo como um todo ao longo de muitas gerações" (ELIAS, 2002, p. 10).

Em seu estudo sobre o tempo, o autor também discute essa questão de distanciamento (ELIAS, 1998b, p. 136-137), retomando questões egocêntricas, mais primitivas, dos seres humanos em face dos acontecimentos, tais como: isso é bom ou mau para mim, ou para nós? E cita a passagem para interrogações mais impessoais e distantes, como: que tipo de relação existe entre esses acontecimentos? O que significam eles em si, independentemente de mim ou de nós? E, nessa passagem, o saber humano aumentou seu grau de adequação ao real em toda uma série de campos - amplia-se a capacidade humana de controlar os acontecimentos e eleva-se o grau de certeza que os homens têm da origem e da ligação mútua dos acontecimentos.

No seu estudo sobre a operação de determinação do tempo e da evolução do calendário, Elias exemplifica esse movimento, apontando que, quando atualmente se pensa no calendário, que resolve muitos problemas e tem sua expressão nesta época, em que a vida humana está fortemente integrada num mundo carregado de símbolos, não se tem ideia da sucessão de etapas por meio das quais nossos ancestrais encontraram soluções para essas questões. Mas essa compreensão se faz necessária e pode se valer de comparações que ajudam a entender como "a passagem de um nível antigo para um novo nível de síntese é eivada de dificuldades" (ELIAS, 1998b, p. 157).

No estudo sobre a condição humana, Elias (1991) alerta, ainda, para a pouca consciência da morosidade desse processo, desse desenvolvimento de um saber altamente ajustado à realidade - problema que faz parecer a muitos homens que o saber atual seja resultado de sua razão natural, da racionalidade humana universal. Isso não explicaria, entretanto, porque os homens fazem uso da sua "razão" ou "racionalidade" em relação apenas à natureza e não à sua vida social e coletiva.

Mas quem, exatamente, faz avançar o conhecimento e a sua investigação? Elias aponta, em certas sociedades, a presença de grupos que aceitam as crenças e o pensamento pré-científico e pequenos grupos que lutam contra esses sistemas de pensamento, não comprovados experimentalmente. E acrescenta:

Grupos que pensam de um modo científico são grupos que geralmente criticam ou rejeitam as ideias dominantes aceitas pela maioria da sociedade em que vivem, mesmo quando defendidas pela autoridade reconhecida, pois descobriram que não correspondem aos fatos observáveis. Por outras palavras, os cientistas são destruidores de mitos. (ELIAS, 2008, p. 55, grifo do autor)

Isso não significa, entretanto, que alguns grupos isolados que produzem uma reorientação do discurso e do pensamento mudem amplamente a sociedade. Para que se transforme a compreensão de modo mais amplo, para que uma grande maioria de pessoas venha a aprender e reaprender, e se acostumar a todo um complexo de conceitos novos, é preciso um período de várias gerações: "Torna-se necessária uma reorganização da percepção e do pensamento de todas as muitas pessoas interdependentes numa sociedade". (ELIAS, 2008, p. 21)

Considerando que as pessoas vivem em figurações, ou redes de indivíduos interdependentes, que exercem forças umas sobre as outras e sobre si mesmas, formando cadeias cada vez mais complexas, retoma Elias que isso "torna crescentemente óbvio como é inadequado explicar os acontecimentos sociais em termos pré-científicos, singularizando pessoas como se estas fossem a sua causa" (ELIAS, 2008, p. 74).

No percurso da investigação de Elias sobre o conhecimento, detendo-nos sobre a localização dos fatos e acontecimentos numa sequência de diferentes estágios de integração e de sua compreensão de modo amplo, é preciso, ainda, indagar: nesses diferentes níveis, tendo em vista toda a rede social de interdependências, como se expressa ou se representa o conhecimento?

Essa é uma questão crucial contemplada na sua obra Teoria Simbólica (2002), na qual afirma que o conhecimento se expressa por representações simbólicas que evidenciam diferentes níveis de síntese. São exemplos de representação simbólica os mapas, mas também as línguas e as palavras ou nomes. No caso das línguas, com uma ampla gama de padrões sonoros, os seres humanos têm a capacidade de se comunicar entre si, podem armazenar conhecimento na memória e transmiti-lo de uma geração para outra. Uma forma muito definida de padronização permite que os mesmos padrões sonoros sejam reconhecidos por todos os membros de um grupo social mais ou menos com o mesmo sentido, ou seja, como símbolos que representam o mesmo tipo de conhecimento. Fica evidente a importância dos símbolos:

Podemos admitir que todas as sociedades humanas partilham entre si um fundo comum de experiências e, portanto, de conhecimento. Por isso, podemos verificar que algumas sociedades possuem representações simbólicas de conhecimento que estão ausentes em outras sociedades. (ELIAS, 2002, p. 5)

Diferentes representações simbólicas indicam diferentes graus de conhecimento, entre sociedades diferentes - o autor cita de novo, como exemplo, experiências do tempo, que "podem ser representadas linguisticamente a um nível inferior de síntese numa sociedade e a um nível superior em outra sociedade" (ELIAS, 2002, p. 5).

A comunicação por meio de símbolos, que pode, portanto, variar de uma sociedade para outra, é uma singularidade da espécie humana e uma condição para o crescimento do conhecimento. Se, no início de sua vida, os seres humanos estão preparados para aprender uma língua, o amadurecimento desse traço biológico exige um processo de aprendizagem social (ELIAS, 2002, p. 6-7). Trata-se de uma aprendizagem que se dá, portanto, por meio de símbolos e que depende indiscutivelmente da interação, do contato social.

Daí resulta a importância de se compreender as condições sociais da produção de conhecimento, ou seja, as possibilidades que as pessoas encontram para aprender e para fazer avançar esse processo. Entende-se que tudo isso:

Pressupõe uma constituição biológica de uma espécie que permite aos seus membros individuais aprender, armazenar e agir sobre experiências realizadas e transmitidas a uma pessoa através de uma longa linha de gerações antecedentes. (ELIAS, 2002, p. 16)

No processo de transmissão, "depósitos de experiências anteriores podem ser reforçados, bloqueados e, tanto quanto sabemos, talvez mesmo extintos pelos depósitos de gerações posteriores" (ELIAS, 2002, p. 16).

Depósitos de experiências ou fundo de conhecimento são conceitos-chave para se acessar, com clareza, a relação entre conhecimento e etapa de desenvolvimento social, dentro da perspectiva evolutiva de Elias. Para compreender tais conceitos, há que se enveredar, cuidadosamente, pelo desencadear de sua exposição, em torno de alguns itens, como aprendizagem, comunicação, atividade de pensar, transmissão, caráter social e crescimento do conhecimento.

Sobre a aprendizagem inicial, Elias (2002, p. 38) afirma que "por natureza, um ser humano está preparado para a vida em companhia de outros, com os quais pode se comunicar, está preparado para a vida em sociedade". Dessa forma, as crianças adquirem a sua língua e também partes do fundo de conhecimento coletivo, pois "os seres humanos integram-se num universo de conhecimento que resulta das experiências de muitas pessoas".

No caso da linguagem, a criança tem de realizar esforço para reproduzir padrões sonoros, precisa lembrar-se do que eles significam e usar os símbolos da forma padronizada pelos adultos - natureza e cultura, indivíduo e sociedade, assim como as funções de linguagem, memória e pensamento, tudo se mistura ou se articula, e nada se separa nesse exemplo, que já nos aproxima um pouco mais do conceito de fundo de conhecimento.

Sobre a comunicação, atento às características da espécie, Elias (2002, p. 47) observa traços da forma humana de comunicar-se, e explica:

Pela aquisição da competência de enviar e receber mensagens na forma codificada de uma língua social, as pessoas obtêm acesso a uma dimensão do universo que é especificamente humana. Elas continuam a estar localizadas nas quatro dimensões do espaço-tempo, à semelhança de todos os fatos pré-humanos, mas estão, além disso, localizadas numa quinta dimensão, a dos símbolos, que servem aos seres humanos como meio de comunicação e identificação [...]. [Elas] tornam-se sujeitos e objetos de uma comunicação simbólica.

Por um lado, a comunicação exige símbolos, e, por outro lado, os seres humanos estão, por natureza, dotados de uma capacidade ilimitada para produzir e receber padrões sonoros, que podem servir como símbolos de qualquer objeto de comunicação no interior de um grupo (ELIAS, 2002, p. 59). Compreende-se, pois, que é no contexto de comunicação, na relação entre os emissores e os receptores das mensagens, que se dá a aprendizagem, ou seja, a aquisição de conhecimento, sob a forma de uma língua, com base em símbolos: "O que não pode ser representado pela teia de símbolos de um grupo humano específico, não é conhecido pelos seus membros" (ELIAS, 2002, p. 59).

Dessa forma, Elias ressalta a relação da aprendizagem da língua, da aquisição de símbolos, com a produção do conhecimento: "Sem as mudanças inovadoras dos padrões sonoros de uma língua, não seriam possíveis as mudanças inovadoras do conhecimento" (ELIAS, 2002, p. 5).

Sobre a relação com o fundo disponível de conhecimento, destaca-se que ele permite não só evocar o que já é conhecido, mas também pensar e avançar para novas relações e representar o novo, o que ainda não foi pensado, alcançando níveis mais complexos de síntese.

Quanto à atividade de pensar, ele relembra que os símbolos são indiscutivelmente necessários na comunicação, e atividades humanas como falar, pensar e conhecer, fortemente articuladas, sempre têm a ver com o manuseio dos símbolos (ELIAS, 2002, p. 67). E, na rota de explicação social dos símbolos e do fundo disponível de conhecimento, Elias explica o pensar como uma atividade humana que não acontece apenas como atividade individualizada - ressaltando que são comuns atividades de pensamento em grupos, por meio de discussões. E ressalta: "De fato, o pensamento em silêncio e sem qualquer forma manifesta de oralidade tem de ser aprendido" e essa tendência foi reforçada pela difusão da instrução (ELIAS, 2002, p. 67).

Além desse engano sobre o caráter isolado do pensar, o autor alerta que:

Uma longa tradição e os usos linguísticos que lhe estão ligados criaram a impressão de que o pensamento, o conhecimento e a linguagem existem, por assim dizer, em diferentes compartimentos de um ser humano. (ELIAS, 2002, p. 68)

Fica difícil escapar a essa ideia de uma imagem humana dividida. Elias, no entanto, compreende que o conhecimento ocorre por um complexo articulado: conhecimento, linguagem, memória e pensamento, ou linguagem, memória e conhecimento (ELIAS, 2002, p. 6 e 12) - são funções diferentes de um mesmo complexo de conhecimento; e são aspectos entendidos como individuais e sociais ao mesmo tempo (ELIAS, 2002, p. 13).

Consequentemente, "aquilo que é designado por mente como uma estrutura de funções cerebrais, estrutura que compreende diversos níveis e que muitas vezes é representada como pensamento" (ELIAS, 2002, p. 71), com funções inseparáveis de linguagem, razão ou pensamento e conhecimento, ocorre como atividades que se relacionam, além disso, com a manipulação de imagens aprendidas e armazenadas na memória, outra função do complexo de conhecimento.

"As imagens da memória podem ser manipuladas em diferentes níveis de síntese", sendo que tal "manipulação" poderia ser entendida como novos arranjos e combinações, numa operação peculiar dessa estrutura de funções cerebrais, a partir de símbolos armazenados que podem ser reativados ou relembrados quando necessário (ELIAS, 2002, p. 72), e podem, num instante, iluminar a relação espaço-tempo de um acontecimento em face de outros acontecimentos - as imagens, os símbolos, a memória articulam-se como função ativa e, portanto, "têm um caráter integrador" (ELIAS, 2002, p. 74).

Ponto importante de sua teoria é o que se refere à transmissão do conhecimento entre as pessoas e às características estruturais do conhecimento que possibilitam a transmissão interpessoal e, portanto, também intergeracional do conhecimento. Como já assinalado, as comunicações linguísticas desempenham papel fundamental nessa transmissão, que recebe tratamento escasso por parte das teorias tradicionais de conhecimento, porque elas se preocupam com indivíduos isolados e independentes, sobre o que Elias (2002, p. 85) comenta: "Uma pessoa imaginária deste tipo é considerada o sujeito do conhecimento". Mas essas são teorias concebidas sem levar em consideração:

[...] quer os aspectos físicos do conhecimento, sob a forma dos padrões sonoros de uma língua e das imagens da memória cerebral, quer a estandardização dos padrões sonoros que lhes permite funcionar como símbolos de objetos específicos de comunicação, ou seja, como conceitos. (ELIAS, 2002, p. 87)

Assim, já que Elias desenvolve sua teoria sobre o conhecimento no contexto da evolução biológica e do desenvolvimento a longo prazo, entende-se porque o autor afirma que, ao se ignorar esses marcos, o conhecimento é tratado como um objeto estático das ciências naturais, e não se explica o modo como a natureza, a cultura, a política, a economia, o conhecimento e todos os símbolos abrangentes da linguagem são coerentes entre si e não desconexos e independentes. Desse modo, o conhecimento é muitas vezes tratado "como se o seu modo de existência fosse o de uma entidade incorpórea" (ELIAS, 2002, p. 91).

O caráter relacional e social é também parâmetro para explicar o crescimento do conhecimento. Discorrendo sobre a contribuição de filósofos e cientistas sociais2 sobre sua atuação no conjunto da produção intelectual, Elias (2002, p. 122) conclui que não se pode "avaliar a contribuição de um indivíduo para o crescimento do conhecimento sem uma referência ao seu ponto de partida no seio do crescimento global do conhecimento". Como um ambiente, um clima ou um patamar em que se situam as pessoas, esse ponto de partida social é, então, relacionado ao fundo coletivo de conhecimento: "À medida que o fundo de conhecimento aumenta, podemos afirmar que, em geral, aumentam as possibilidades de um indivíduo inovar" (ELIAS, 2002, p. 123).

Nessa direção, o autor complementa que o conhecimento das pessoas "sofre uma expansão explosiva" se, por meio de uma língua, elas se articulam com o "fundo de conhecimento" de uma sociedade (ELIAS, 2002, p. 92). Assim, viver em conjunto possibilita aos indivíduos utilizar os resultados das experiências de gerações precedentes, o que é apontado como socialmente vantajoso.

Para o processo de crescimento do conhecimento humano, o que Elias considera sua condição crucial é a transmissão, "sob a forma de símbolos, de uma geração para outra":

Ela permite a uma geração posterior utilizar o conhecimento sem ter de passar por todos os ensaios e experiências que foram necessários aos seus antepassados para produzir este conhecimento. [...] Um indivíduo pode utilizar a língua e o conhecimento na forma que eles assumem quando entra na comunidade dos vivos e não ter consciência do fato de que, para a sua elaboração, contribuiu o trabalho e a experiência das gerações agora mortas. (ELIAS, 2002, p. 120)

Não saber de tudo o que precedeu o conhecimento que se utiliza é um limite, assim como o é, segundo o autor, a própria língua, que abre a porta para o mundo simbólico e à possibilidade de adquirir mais conhecimento, mas essa porta se abre de um modo fortemente seletivo e de algum modo limitador, porque é apenas a língua de uma sociedade particular. Por outro lado, Elias (2002, p. 129) alerta que essa aprendizagem é fundamental, ainda que implique experiências das crianças, padronizadas por condições preexistentes, até porque tais condições são essenciais para o conhecimento sobre o mundo tal como ele é realmente. Tudo isso faz parte desse fundo disponível de conhecimento, que vai orientar as pessoas no mundo, possibilitando o seu desenvolvimento:

De fato, a orientação através de um conhecimento acumulado e alargado intergeracionalmente é, provavelmente, a melhor e a mais eficiente das diversas técnicas de orientação com que as criaturas vivas foram dotadas pelos processos evolutivos cegos da natureza. (ELIAS, 2002, p. 130)

Nessa direção, o conhecimento, a comunicação e a aprendizagem explicitam a grande vantagem evolutiva da espécie humana sobre outras espécies. É isto o que ele designa como a "emancipação simbólica da humanidade, a sua libertação da submissão a sinais geralmente inatos ou não aprendidos e a transição para a dominação de uma padronização da voz geralmente aprendida visando os propósitos da comunicação" (ELIAS, 2002, p. 55).

Ao pensar, essa vantagem se traduz na capacidade humana de ativar símbolos, antecipar uma sequência de ações e orientar o seu comportamento em certa direção, ou seja, fazer escolhas. Assim, o uso de símbolos da linguagem pode referir-se não só à comunicação, "mas também como meio de orientação, sob a forma de conhecimento e de raciocínio" (ELIAS, 2002, p. 70).

Outras espécies se orientam com o auxílio de seus instintos ou sinais específicos a cada espécie, "porém, os seres humanos, estão dotados com a necessidade de conhecer". O autor usa o exemplo do conhecimento sobre o Sol, sobre seu poder, sobre as regularidades e irregularidades de sua presença, sobre sua relação com a vida cotidiana, conhecimento sem o qual os seres humanos seriam impotentes em muitas questões de sua vida cotidiana (ELIAS, 2002, p. 75).

Por este motivo, a sobrevivência dos grupos humanos tem dependido, largamente, de um conhecimento congruente com os objetos. Muitas investigações sobre o conhecimento preocupam-se com o seu valor cognitivo e não com a sua função para a sobrevivência:

No entanto, os seres humanos estão, por natureza, organizados de um modo que implica a aquisição, através da aprendizagem, de um fundo social global de conhecimento como condição para eles poderem orientar-se no seu mundo e manter a sua existência entre as outras existências. (ELIAS, 2002, p. 76)

Elias sabe, entretanto, das direções diversas dos processos de desenvolvimento humano, nem sempre numa direção civilizadora ou pacífica, mas acredita que essa direção possa estar presente, com a ajuda do conhecimento de caráter mais realista e mais científico.

Na longa duração, o sucesso na luta por sobrevivência lhe sugere que os seres humanos estão de fato equipados "para se orientarem de forma realista no seu mundo". E acrescenta:

Nada nas experiências do passado e do presente justifica a suposição de que a humanização da humanidade é uma tarefa impossível, nem há nenhuma boa razão para a suposição de que ela é mais provável do que a descivilização. Não é mais nem menos provável. (ELIAS, 2002, p. 83)

Fica assim esclarecido, na perspectiva evolutiva de Elias, o conceito de fundo comum de conhecimento e, principalmente, a importância do conhecimento e de sua transmissão, no desenvolvimento social e na própria sobrevivência da espécie.

Educação, escola e conhecimento no contexto do pensamento relacional

O conhecimento acumulado pelos homens, na perspectiva do processo civilizador em Elias, deve ser compreendido como um processo bastante amplo, cuja abrangência compreende, inclusive, condutas e comportamentos orientados na direção do autocontrole dos impulsos, de acordo com a forma de integração e com o código de comportamento em vigor na sociedade. Na aprendizagem desses comportamentos e condutas, a pressão das instituições sociais se exerce desde a infância sobre os indivíduos. Entende-se, então, que o potencial humano para a aprendizagem que se desenvolve na relação constante com a estrutura social - nas relações com os outros, enfim - encontra nas diferentes instituições sociais possibilidades diversas e complementares de expressão.

Nesse processo de desenvolvimento do indivíduo, até a idade adulta e como adulto, cada um apreende o que já foi conquistado socialmente. Num prazo bem curto, as crianças aprendem sínteses que custaram séculos do processo de desenvolvimento humano. Por exemplo,

No desenvolvimento da humanidade foram precisos milhares de anos para que o homem começasse a compreender as relações entre os fenômenos naturais, o curso das estrelas, a chuva e o sol, o trovão e o raio, como manifestações de uma sequência de conexões causais cegas, impessoais, inteiramente mecânicas e regulares. (ELIAS, 1994a, p. 237)

Compreender essas relações como leis naturais exigiu, segundo Elias (1994a, p. 244), um tal nível de controle emocional e de distanciamento, que possibilitou conceber os processos naturais como esfera que opera sem intenção ou finalidade, que tem significação, possivelmente, de controle, por meio de conhecimento e investigação objetiva, ou seja, científica. Àquele que nasce num patamar avançado da torre do conhecimento,3 esse processo de longo prazo é desconhecido, e essas relações são apreendidas como algo simples e estabelecido de forma natural pelas pessoas. Elas não percebem que chegaram num momento ou estágio em que se beneficiam dos resultados de um processo constante de crescimento do saber.

Entende-se que é no contexto de interdependência e múltiplas interações que se explica a presença das instituições e suas funções, que se tornam necessárias conforme a complexidade dos grupos sociais, para organizar a vida e educar/civilizar os mais jovens. Sociedades que tendem à maior diferenciação e integração apresentariam uma rede mais complexa de interdependências e exigiriam, então, a atuação de instituições mais especializadas para educar as crianças.

Retomando o conceito de função, na perspectiva em foco, há que se pensar em cadeias de interdependência que articulam as pessoas em configurações, nas quais todos dependem dos outros em relações funcionais, nas quais alguns têm maior poder do que outros, num equilíbrio processual - que se transforma, não é estático. O conceito de função implica o conceito de relação, o que exige considerar, no caso das instituições, que elas não desempenham apenas certas funções para a sociedade, como a de conservação e manutenção de um sistema social particular. Elias aponta que, sobre as instituições, no contexto de interdependência em que se situam, incidem as demandas dos adultos e dos mais jovens em seu interior, além da sua destinação prevista por exigências da sociedade.

Nesse sentido, instituições sociais, tais como a igreja e a escola, participam do processo civilizador, na relação com a estrutura da sociedade, com as exigências vigentes de controle de emoções para a sustentação da vida social, nas relações mais ou menos complexas em que se encontre tal estrutura, ou seja, de acordo com o tipo de integração e interdependência em que são tecidas as vidas das pessoas. A função da escola no processo civilizador liga-se, pois, ao controle das pulsões, pela maior complexidade da rede de relações e interdependências em que a criança começa a conviver: torna-se necessário controlar-se, seguir regras, desenvolver certos comportamentos; também se impõe a aprendizagem de símbolos, conceitos, relações de conhecimento. Entende-se, ainda, graças à complementaridade das instituições na formação dos comportamentos e condutas, que suas funções se cruzam e são interdependentes, mesmo com especificidades de atuação. A escola, numa direção educadora e disciplinadora, revelaria, nos diferentes momentos e configurações sociais, cruzamentos com a atuação da família e da igreja.

Mas, no processo da educação, a escola se reserva também a dimensão de iniciar no conhecimento, de atualizar todos os homens na etapa socialmente atingida do processo de conhecimento especializado, ou seja, distinto do conhecimento da experiência. Pode-se inferir, então, que essa atualização é ampla, refere-se ao uso do fundo comum de conhecimento disponível, que inclui a experiência e o conhecimento especializado.

Foco maior na aprendizagem da disciplina e da sociabilidade estaria ligado, nessa perspectiva, à necessidade de maior controle sobre as populações atendidas. Mas, no cuidado com a função específica relativa ao conhecimento, o que se conhece e o que se pergunta sobre a escola? Como se explica o caráter disciplinador que impregna todo o discurso pedagógico e, como explica Bernstein (1996), é sempre regulador do comportamento e da conduta, mesmo quando se volta para instruir, para introduzir no conhecimento necessário?

Compreende-se controle social e relação com o conhecimento como faces ou dimensões, complementares, da atuação da escola - desvendar essa trama com a ajuda de Elias exige retomar detidamente essas duas questões: a do controle, pela busca de compreender as relações entre os homens e entre adultos e crianças; e a do conhecimento, pela tentativa de compreender a distribuição, transmissão e atualização do conhecimento socialmente produzido entre todos os membros das sociedades.

Elias trata detidamente das relações de controle em La civilización de los padres y otros ensayos (1998a). O autor constata a acelerada mudança na relação entre pais e filhos no decorrer do século XX e busca os rastros dessa mudança em retrospectiva até a Idade Média. Persegue a descoberta da infância, de sua especificidade, com suas necessidades distintas daquelas referentes aos adultos, em face da dificuldade ainda atual de entender e ajudar as crianças (ELIAS, 1998a, p. 409-410).

Busca na longa duração essa compreensão, das crianças, que não são pequenos adultos, que constituem um grupo definido por sua idade e que depende dos adultos, especialmente de seus pais. Elias (1998a, p. 411) analisa, então, as relações entre pais e filhos sob a perspectiva das "relações de dominação; uma relação entre umas pessoas que mandam e outras que obedecem".

O autor afirma e enfatiza que é preciso ter presente o curso do processo civilizatório dessa relação, para que se entenda a peculiaridade da figuração pais-filhos nas nações mais desenvolvidas de nossos dias. Busca provas em mostras de diferentes épocas e figurações, como elos de um processo, que revela uma grande linha de desenvolvimento - não uma ordem clara de sucessão, mas seguindo o desenvolvimento do processo de civilização. Muda a função dos filhos, para camponeses e famílias de contextos urbanos, por exemplo. De início, as crianças se encontram por completo sob o poder dos pais: "Durante um prolongado período, a relação entre pais e filhos era uma relação de domínio, com um equilíbrio de poder extremamente desigual" (ELIAS, 1998a, p. 418). É necessário contextualizar essas mudanças numa teoria da civilização, para que sejam percebidas, em referência à sociedade, as mudanças na personalidade de muitos homens na trama de relações entre eles (ELIAS, 1998a, p. 423).

Na direção de estudar as mudanças em relação a contextos mais amplos, o autor focaliza os costumes de habitação que exemplificam a direção de apartar dos adultos o mundo das crianças, assim como a escola e os movimentos juvenis, para compreender o distanciamento crescente na época moderna. Importa notar o crescente isolamento dos indivíduos, ao lado do impulso amplo de individualização da época moderna, assim como de duração maior do período das aprendizagens que se exigem das crianças: "quanto mais complexa e diferenciada vai se tornando a sociedade dos adultos, mais prolongado e mais complexo se vai fazendo também o processo de transformação civilizatória de cada um" (ELIAS, 1998a, p. 434).

Essa afirmação implica cuidado, para não julgarmos questões referentes à educação em outros momentos e situações sociais pelos padrões que conhecemos. Há que situar essas questões e também compreender as exigências de conhecimento e capacidade de autocontrole, mais curtas numa sociedade agrária, mais simples, e mais prolongadas numa sociedade complexa, urbano-industrial. Comentando essas exigências na sociedade moderna, o autor aponta o exemplo da aprendizagem de leitura e escrita e da aritmética, que demanda uma alta medida de regulação de pulsões e afetos, bem como dois ou três anos da infância e o trabalho de uma instituição fora da família (ELIAS, 1998a, p. 437).

Ele alerta e enfatiza, contudo, que nada desse período preparatório cada vez mais prolongado ocorreu "de modo planejado e consciente", ou "seguindo leis naturais", reafirmando sua perspectiva de um modelo de processos, na compreensão de que algo socialmente inevitável tem a ver com a interdependência nas relações entre os homens: "A interação das ações planejadas de muitos homens resulta em um desenvolvimento das unidades sociais por eles conformadas, que não foi planejado por nenhum dos implicados" (ELIAS, 1998a, p. 438).

Nesse contexto, uma das modificações observadas foi a renúncia ao uso da violência física no trato de adultos com as crianças na família e também na atuação dos professores com as crianças na escola - relaxam os usos de trato violento, mas não as exigências de autocontrole, que crescem nas sociedades mais desenvolvidas, em que se experimentam novas formas de convivência.

No processo de desenvolvimento, e no contexto amplo de mudanças, o autor observa a família com novas funções, a educação dos filhos fora de seu âmbito, uma crescente independência dos jovens frente aos pais, maior distribuição de poder entre homens e mulheres, e entre pais e filhos, o que não significa que a família seja o núcleo e origem de todas as transformações. Cada relação familiar é um processo, e as relações estão sempre em mudança, pois não se constituem como algo dado, algo da natureza das pessoas envolvidas. Mudanças nas relações dentro da família são relacionadas, portanto, a mudanças na sociedade mais ampla e também na estrutura de personalidade dos indivíduos - evidentemente se refletem em mudanças nas instituições sociais, como a escola, e nas funções/relações funcionais que exercem no tecido social.

Assim como a família constitui uma figuração dentro do tecido social, também a escola precisa ser compreendida como figuração, ligada à construção da ordem urbana, caracterizada pela organização de funções e pessoas, de privações e exclusões distribuídas a diferentes parcelas da população; pela formação de comportamentos e atitudes característicos da convivência em novas relações de interdependência. Nessa nova ordem, escola é peça e instrumento do processo civilizador.

A escola básica é chamada em momentos especiais da organização social não só para atualizar a população no conhecimento necessário para enfrentar as questões presentes, mas principalmente para harmonizar a população em torno das novas necessidades e aspirações, para atuar, acima de tudo, como instituição disciplinadora - e essa função vai se fundamentar no conhecimento da experiência, no saber cotidiano, ou vai partir desse patamar para fazer avançar o conhecimento mais objetivo da realidade. Ainda que não se possa indicar a direção desse processo, é possível ponderar sobre a importância de possíveis alternativas, na relação com o desenvolvimento social.

Para além de afirmar a impossibilidade de se prever a direção que será assumida no desenvolvimento humano, Elias aponta para o acesso ao fundo comum de conhecimento como condição para a sobrevivência e para a humanização da espécie. Especificamente sobre esse segundo ponto, o autor define o que representam para o homem as teorias científicas, que condensam o resultado do longo processo de desenvolvimento do conhecimento:

Em certos aspectos, as teorias assemelham-se a mapas. Se estamos num ponto A, em que se cruzam três caminhos, não podemos "ver" se aquela estrada ou aquele caminho conduzem a uma ponte sobre o rio que pretendemos atravessar. Portanto, usamos um mapa. Por outras palavras, uma teoria dá ao homem que se encontra no sopé da montanha, a visão que um pássaro tem dos caminhos e relações que esse homem não consegue ver por si próprio. A descoberta de relações previamente desconhecidas constitui uma tarefa central da investigação científica. Tal como os mapas, os modelos teóricos mostram as conexões entre acontecimentos que já conhecemos. Como os mapas de regiões desconhecidas, mostram espaços em branco onde ainda não se conhecem as relações. Como os mapas, a sua falsidade pode ser demonstrada por uma investigação ulterior, podendo ser corrigidos. (ELIAS, 2008, p. 175)

Fica clara a centralidade da aquisição do conhecimento produzido pelas gerações anteriores - expresso em teorias científicas - como recurso para a orientação e a sobrevivência dos ingressantes nas configurações sociais.

Como indicado anteriormente neste texto, a compreensão de relações entre os fatos e acontecimentos exige o domínio de símbolos que os representem e, também, a tomada de distância em relação ao objeto analisado, tal como um pássaro cuja visão vai além do sopé da montanha, como na analogia trazida por Elias na citação anterior.

Suas análises possibilitam apontar a escola como uma instituição com importante papel nas sociedades mais complexas, como lugar de acesso ao fundo de conhecimento, de articulação entre conhecimento, linguagem, memória e pensamento, de tomada de distância em relação à experiência mais imediata.

Sobre esse último aspecto, Charlot (2009, p. 93) parece ir na mesma direção, ao afirmar que:

A escola é um lugar onde o mundo é tratado como objeto e não como ambiente, lugar de vivência. Às vezes, esse objeto de pensamento tem um referente fora da escola, no ambiente em que vive o aluno [...]. Muitas vezes, o objeto de pensamento da escola não tem referente no meio de vida do aluno. Pertence a um universo específico [o mundo das disciplinas, desenvolvidas no campo acadêmico, em campos específicos de conhecimento, e ao mundo no qual ocorre a transmissão], construído pela Ciência e pela escola. [...] Controlar a relação entre o objeto de pensamento e os seus referentes no meio de vida, e introduzir o aluno em universos intelectuais constituído por objetos cujo sentido não decorre de uma relação com o mundo vivenciado é, sob duas formas correlatas, o problema central da pedagogia escolar.

De acordo com esse ponto de vista, o conhecimento a ser ensinado nas escolas deve ser diferenciado daquele que se desenvolve na experiência imediata dos estudantes; ele encontra suas bases nos diferentes campos do conhecimento, é parte do fundo de conhecimento de uma sociedade, construído pelo trabalho de muitas gerações.

Outro autor que aponta para a centralidade da escola como lugar onde se deve acessar o que Elias denomina de fundo de conhecimento é Bernstein. Ele focaliza a diferenciação elaborada por Durkheim entre o "sagrado" e o "profano" e, com base nessa caracterização, define duas classes de pensamento, o "pensável" (ou "mundano") e o "impensável" ou "ainda não pensado" (ou "esotérico"), afirmando que todas as sociedades as desenvolvem e que: "A fronteira entre essas duas classes de conhecimento é específica para cada período dado. O que é realmente esotérico em um período pode ser mundano em outro. Em outras palavras, o conteúdo dessas duas classes varia historicamente e culturalmente" (BERNSTEIN, 2000, p. 29, tradução nossa).4

O pensável e o impensável são formas de conhecimento que se referem, respectivamente, ao dia a dia e ao âmbito do transcendental. Bernstein afirma que todas as sociedades criam formas de relacionar essas duas classes de pensamento, produzindo ordens de significados. A relação dessas ordens de significado com a base material específica varia, assim como a sua distribuição entre os grupos sociais. Essa distribuição está ligada às relações de poder internas às sociedades. Explicando essa relação entre ordens de significado e a base material, o autor ressalta:

Se esses significados têm uma relação indireta com uma base material específica, os significados mesmos criam um vazio ou um espaço. Se os significados são consumidos pelo contexto e estão totalmente embutidos no contexto, não há espaço. Mas, se esses significados têm uma relação indireta com a base material específica, porque eles são indiretos, deverá haver um vazio. [...] Quero sugerir que esse vazio ou espaço pode se tornar (não sempre) um lugar para possibilidades alternativas, para realizações alternativas da relação entre o material e o imaterial. [...] Esse vazio ou espaço potencial, sugiro, é o lugar para o impensável. [...] Esse é o lugar crucial para o ainda não pensado. (BERNSTEIN, 2000, p. 30, grifo do autor, tradução nossa)5

Essa relação mais indireta do conhecimento com a base material remete à ideia de distanciamento em relação à prática social mais imediata, de tomada do mundo como objeto de pensamento, bem como ao trabalho com a linguagem e os símbolos que representam e expressam o conhecimento desenvolvido pelas gerações anteriores. Para Bernstein, as diferentes possibilidades de acesso a diferentes formas de conhecimento estão associadas ao desenvolvimento de diferentes formas de consciência também: "As relações de poder distribuem o pensável e o impensável e diferenciam e estratificam grupos" (BERNSTEIN, 2000, p. 31, tradução nossa).6

À luz da perspectiva de Norbert Elias, entendemos que tornar presente o fundo coletivo de conhecimento, as questões interdependentes presentes na prática social e desafiar o pensamento para novas possibilidades explicativas seria uma dimensão possível do trabalho escolar. Nesse sentido, se entendemos a escola como instituição que tem relação de função não só com o chamado "sistema", mas também com as pessoas que a constituem, uma hipótese é que essas pessoas, vivendo nas configurações em redes de interdependência, podem fazer predominar a função de atendimento a suas necessidades de conhecimento. Com isso, avançarão no conhecimento objetivo, na compreensão da realidade e na sua orientação dentro dela.

Tomar o conhecimento como construção, como resultado de um longo processo de evolução social, e entender a escola como lugar de acesso a esse fundo coletivo de conhecimento significa, portanto, reconhecer que o trabalho com conceitos desenvolvidos e legitimados no interior de comunidades epistêmicas - o mais próximo que se chegou da compreensão dos fenômenos sociais e naturais - representa vantagem evolutiva para a espécie, por um lado, e possibilidade de escolha por um caminho mais coerente com a emancipação simbólica da humanidade, por outro.

REFERÊNCIAS

BERNSTEIN, Basil. A estruturação do discurso pedagógico. Classes, códigos e controle. Petrópolis: Vozes, 1996. [ Links ]

BERNSTEIN, Basil. Pedagogy, symbolic control and identity. Theory, research and critique. London: Rowman & Littlefield, 2000. [ Links ]

CHARLOT, Bernard. A escola e o trabalho dos alunos. Sísifo - Revista de Ciências da Educação, Lisboa, n. 10, p. 89-96, set./dez. 2009. [ Links ]

ELIAS, Norbert. A condição humana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. [ Links ]

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994a. v. 1. [ Links ]

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994b. [ Links ]

ELIAS, Norbert. La civilización de los padres y otros ensayos. Santa Fe de Bogotá: Grupo Editorial Norma, 1998a. [ Links ]

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998b. [ Links ]

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. [ Links ]

ELIAS, Norbert. Teoria simbólica. Oeiras: Celta, 2002. [ Links ]

ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008. [ Links ]

1Roger Chartier, no Prefácio de A sociedade de corte (ELIAS, 2001, p. 13), retoma a definição do autor para o conceito de figuração: "é uma formação social, cujas dimensões podem ser muito variáveis [...], em que os indivíduos estão ligados uns aos outros por um modo específico de dependências recíprocas e cuja reprodução supõe um equilíbrio móvel de tensões".

2Elias (2002, p. 122) discute nesse trecho as perspectivas de Hegel, Descartes, Kant, Comte, Durkheim e Marx.

3A metáfora da torre e sua relação com a produção social do conhecimento e com o "esquecimento do passado histórico" é apresentada na obra Sobre o tempo (ELIAS, 1998a, p. 108).

4"The line between these two classes of knowledge is relative to any given period. What is actually esoteric in one perid can become mundane in another. In other words, the content of these classes varies historically and culturally".

5"If these meanings have an indirect relation to a specific material base, the meanings themselves create a gap or a space. If meanings are consumed by the context and wholly embeded in the context, there is no space. But if these meanings have an indirect relation to a specific material base, because they are indirect, there must be a gap. [...] I want to suggest that this gap or space can become (not always) a site for alternative possibilities, for alternative realisations of the relation between the material and the immaterial. [...] This potential gap or space I will suggest is the site of the impossible. [...] It is the crucial site of the yet to be thought".

6"Power relations distribute the unthinkable and the thinkable, and differentiate and stratify groups".

Recebido: Setembro de 2015; Aceito: Outubro de 2015

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