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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.46 no.160 São Paulo abr./jun. 2016  Epub 01-Abr-2016

https://doi.org/10.1590/198053143305 

Artigos

Yalorixás e educação: discutindo o ensino religioso nas escolas

Yalorixás and education: discussing religious education in schools

Yalorixás et éducation: discussion sur l'enseignement religieux dans les écoles

Yalorixás y educación: la discusión de la enseñanza religiosa en las escuelas

Kelly RussoI 

Alessandra AlmeidaII 

IFaculdade de Educação da Baixada Fluminense, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, kellyrussobr@gmail.com

IiPrograma de Pós-Graduação em Educação, Comunicação e Cultura em Periferias Urbanas, Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, ale-almeida@ig.com.br


RESUMO

Yalorixás são mães de santo do Candomblé; possuem reconhecimento social e força de mobilização e, ao mesmo tempo, convivem com situações de racismo e intolerância dentro ou fora de suas comunidades. Neste artigo, procuramos discutir a relação entre educação escolar e religiosidade a partir da visão de cinco Yalorixás do Candomblé da Baixada Fluminense. Por meio de entrevistas e observações realizadas entre maio de 2014 e janeiro de 2015, em quatro diferentes terreiros dessa região, identificamos como essas líderes religiosas percebem a intolerância, o racismo e discutem criticamente o ensino religioso na rede pública do Rio de Janeiro.

Palavras-Chave: Educação Pública; Ensino Religioso; Candomblé; Racismo

ABSTRACT

Yalorixás are mães de santo, priestresses of the Candomblé religion. Although they receive social recognition and have the power to mobilize people, they also suffer from racism or intolerance inside or outside their own communities. This article aims to discuss the relationship between school education and religiosity from the point of view of five Yalorixás, in the Baixada Fluminense area. Through interviews and observations, carried out between May 2014 and January 2015 in four different terreiros (sacred sites) of the region, we identified how these religious leaders perceive intolerance and racism and how they critically approach religious education in the public school system of Rio de Janeiro State.

Key words: Public Education; Religious Education; Candomblé; Racism

Résumé

Les Yalorixás sont des mères-de-saint du Candomblé ; elles sont reconnues socialement et ont une force de mobilisation, en même temps, elles vivent des situations de racisme et d'intolérance à l'intérieur et à l'extérieur de leurs communautés. Dans cet article, nous cherchons à discuter le rapport entre l'éducation scolaire et les religiosités à travers la vision de cinq Yalorixás du Candomblé de la Baixada Fluminense. À partir d'entretiens et d'observations réalisés entre mai 2014 et janvier 2015, dans quatre différents terreiros situés dans cette région, nous avons examiné de quelle manière ces leaders religieux perçoivent l'intolérance et le racisme, et discutent d'une perspective critique l'enseignement religieux dans le réseau publique à Rio de Janeiro.

Mots-clés Éducation Publique; Enseignement Religieux; Candomblé; Racisme

RESUMEN

Yalorixás son madres de santo del Candomblé; poseen reconocimiento social y fuerza de movilización y, a la vez, conviven con situaciones de racismo e intolerancia dentro o fuera de sus comunidades. En este artículo intentamos discutir la relación entre educación escolar y religiosidad a partir de la visión de cinco Yalorixás del Candomblé de la región de Baixada Fluminense. Por medio de entrevistas y observaciones realizadas entre mayo de 2014 y enero de 2015, en cuatro diferentes terreiros de la mencionada región, identificamos cómo dichas líderes religiosas perciben la intolerancia, el racismo y discuten críticamente la enseñanza religiosa en la red pública de Rio de Janeiro.

Palabras-clave: Educación Publica; Enseñanza Religiosa; Candomblé, Racismo

Ai! Minha mãe Menininha do Gantois/A estrela mais linda, hein/Tá no Gantois/E o sol mais brilhante, hein/Tá no Gantois/A beleza do mundo, hein/Tá no Gantois/E a mão da doçura, hein/Tá no Gantois/O consolo da gente, ai/Tá no Gantois/E a Oxum mais bonita hein/Tá no Gantois/Olorum quem mandou essa filha de Oxum/Tomar conta da gente e de tudo cuidar... Oração à Menininha do Gantois (Dorival Caymmi, 1972)

Desde 2000, a partir da Lei n. 3.459/00, que instituiu o ensino religioso no estado do Rio de Janeiro, as escolas públicas estaduais passaram a contar com a disciplina de forma confessional, sendo obrigatória a oferta e facultativa a frequência para os alunos. Apesar de os documentos que orientam a implementação dessa Lei indicarem um perfil "ecumênico" para a disciplina, vários estudos apontam a presença quase hegemônica de religiões cristãs nas escolas, assim como são cada vez mais comuns manifestações desrespeitosas ou até discriminatórias contra as práticas e as religiões de matrizes africanas1 nesses espaços (CAPUTO, 2012).

Pesquisas acadêmicas, meios de comunicação e associações negras têm denunciado os constantes ataques sofridos pelos terreiros de Candomblé e Umbanda2 com a expansão das religiões neopentecostais. Narcotraficantes "convertidos" têm expulsado inúmeros terreiros dos morros cariocas, dentre outras formas de racismo e violência historicamente impetradas contra as religiões de matrizes africanas, inclusive pelo Estado.3

Os dados sobre discriminação contidos no livro Presença de Axé: mapeando terreiros no Rio de Janeiro (FONSECA; GIACOMINI, 2013) apontam que, das 847 casas pesquisadas, 430 sofreram discriminação ou possuem adeptos que foram vítimas de agressões mais de uma vez em locais públicos, como a rua próxima à casa religiosa. Os agressores foram identificados como: evangélicos (32%), vizinhos (27%) e vizinhos evangélicos (7%). Mas também foram apontados como agressores: profissionais ou colegas da escola (4%), do trabalho (3%), outros religiosos não evangélicos (3%) e policiais (1,5%). Dos 430 casos, só 15% foram denunciados ou apurados.

Em contrapartida aos casos de discriminação e violência, é possível perceber grande quantidade de ações sociais e antirracistas empreendidas pelos movimentos negros e mais especificamente pelos terreiros. Trata-se de uma rede de solidariedade que se sustenta nas bases dos próprios adeptos e membros dos terreiros, mas que também atua nos cenários nacional e internacional pela defesa da liberdade de expressão religiosa e de fé. Em 2001, por exemplo, algumas Yalorixás do Rio de Janeiro - mães de santo do Candomblé, que possuem reconhecimento social e força de mobilização e, ao mesmo tempo, convivem com situações de racismo e intolerância dentro ou fora de suas comunidades - tiveram importância significativa durante a realização da Conferência de Durban. Elas também participaram dos debates sobre o Estatuto da Igualdade Racial, projeto importante que passou por dez anos de tramitação no Congresso Nacional até ser aprovado pela Lei n. 12.288, em julho de 2010. Posteriormente, a legitimidade das políticas de ação afirmativa, o reconhecimento identitário, o sentimento de pertencimento e da valorização da cultura afro-brasileira foram conquistas relevantes para o debate sobre as relações étnico-raciais no país.

Entendemos que a discussão sobre os casos de discriminação e preconceito contra os praticantes das religiões de matriz africana faz parte de um debate mais amplo sobre o racismo estrutural existente na sociedade brasileira. Esse artigo é parte de uma pesquisa que procurou localizar Yalorixás ainda pouco apresentadas na grande mídia, mas reconhecidas em suas comunidades, buscando perceber suas visões sobre esses espaços de disputa e tensão que cercam a relação entre religião e cotidiano escolar. A escolha pela Baixada Fluminense deve-se à grande presença de terreiros nessa região que, como aponta Alves Filho (1997), já na década de 1990 concentrava mais de três mil locais desse tipo.4

Em relação às opções metodológicas da pesquisa, os dados discutidos neste artigo foram coletados durante trabalho de campo realizado entre maio de 2014 e janeiro de 2015, que incluiu entrevistas com cinco Yalorixás: três negras, uma parda e uma branca, segundo autodeclaração, com idades entre 52 e 77 anos, todas em efetivo exercício do sacerdócio. Quatro Yalorixás são da nação nagô-Ketu e uma, da nação Jeje.5 Durante o período de trabalho de campo também foram realizadas observações e entrevistas em quatro terreiros (uma das Yalorixás entrevistadas não possuía terreiro devido a dificuldades financeiras para construção, atendendo há mais de uma década em sua própria casa) e visitas às casas das Yalorixás. Todas foram muito reticentes ao aceitarem esse convite, alegando que tais conhecimentos estão nos livros, sites ou universidades. Todas precisaram ser convencidas de que estavam sendo sujeitos da pesquisa pelo valor de seus conhecimentos. Importante ainda ressaltar que elas foram firmes na defesa de sua religião como um espaço de valorização de uma história negra e ancestral, incluindo a Yalorixá que se autodeclarou como branca, mas disse reconhecer sua ancestralidade ao "descender de casas de negros" e por "cultuar deuses negros ancestrais", como será visto mais adiante.

Em relação aos marcos teóricos que nortearam esse trabalho, além dos estudiosos do campo do Candomblé (BENISTE, 2012; CAPPELLI, 2007; GAMA, 2012; COSTA NETO, 2010; SANTOS, J., 1984; SANTOS, M. S., 2010; SANTOS, E., 2005) e de pesquisadores que procuram discutir a interface entre religião e educação (CAPUTO, 2012; OLIVEIRA; RODRIGUES, 2013; OLIVEIRA; SOBREIRA, 2011), também foram fundamentais os autores que fazem parte do grupo Modernidade/Colonialidade,6 como Dussel (2005), Quijano (2005), Mignolo (2005), Maldonado-Torres (2007) e Walsh (2007), para procurar discutir a produção das diferenças e a hierarquização dessas relações como fruto das desigualdades de poder existentes em nossa sociedade.

O artigo está organizado em cinco partes. Na primeira, procuramos fazer alguns esclarecimentos iniciais sobre o Candomblé e a figura das Yalorixás nessa religião. Em seguida, situamos a legislação e o desenvolvimento do ensino religioso no âmbito das escolas públicas do estado do Rio de Janeiro. Na terceira, realizamos uma breve apresentação das Yalorixás, sujeitos dessa pesquisa, para expor suas visões sobre o ensino religioso no estado. Na quarta, relacionamos o aprendido e vivido com as Yalorixás durante o trabalho de campo com as contribuições do grupo de pesquisa Modernidade/Colonialidade ao discutir a luta antirracista e a busca por "epistemologias outras", que fomentem o debate sobre a existência do racismo e a hegemonia da matriz moderna, colonial e eurocêntrica que conforma não só a educação escolar, mas também as sociedades latino-americanas, impedindo uma relação mais próxima entre escolas e terreiros de Candomblé. Na quinta e última parte, apresentamos nossas reflexões sobre a (im)possibilidade de pensar uma prática intercultural crítica e decolonial para o ensino religioso nas escolas, questionando a possibilidade de esse espaço educativo constituído sobre bases modernas conseguir propor um diálogo real com as religiões de matriz africana, como argumentaremos ao longo do artigo.

Yalorixás e o Candomblé: esclarecimentos iniciais

Conhecidas como mães de santo, as Yalorixás do Candomblé são consideradas eruditas senhoras guardiãs dos saberes tradicionais de matrizes africanas, baseados nos valores civilizatórios da cultura afro-brasileira. Como demonstra Caputo (2011), o terreiro é um espaço educativo e as Yalorixás são educadoras, regentes desse processo de aprendizagem. É pelas mãos e palavras dessas mulheres, suas visões de mundo e ações educativas que se compõe um forte legado na luta antirracista: a reconstrução da história negra aludindo à diáspora, à escravidão e à luta histórica para sobrevivência, bem como a reconstituição do culto aos orixás no Brasil.

O Candomblé como tema de pesquisa é algo relativamente recente, ainda que crescente. Essas investigações têm revelado a situação de preconceito e resistência dos terreiros. Autores como Verger (1956), Bastide (1945), Capone (1996), Carneiro (1964), entre outros, pesquisaram terreiros históricos de Salvador e apontaram a força e a importância das Yalorixás para a garantia de continuidade dessa religião de matriz africana no Brasil.

Segundo Cappelli (2007) e Gama (2012), o desenvolvimento das religiões de matrizes africanas no Brasil passa por fases que dão conta da lógica estrutural delineada de acordo com o momento histórico e as relações raciais. Na primeira, ainda antes da abolição, há registro em jornais da perseguição aos cultos negros e, após a abolição, houve licença requerida na polícia e perseguição da imprensa e da própria polícia pressionada pela imprensa. Por volta da década de 1940, com os Congressos Afro-brasileiros e o Projeto Unesco,7 entre outros movimentos que estimulam estudos para incluir a cultura negra como contribuição na formação do povo brasileiro, passa-se pela disputa interna impetrada pelos próprios estudiosos que se debatiam entre origem banto e nagô e pela busca por manifestações "puras" ou a denúncia daquelas consideradas "impuras" ou menos originais, sem problematizar o sincretismo que, afinal, estava em ambas. Por último, tem-se a fase do confronto entre o saber laico e letrado com outros dados que legitimam o poder, em que as atribuições das Yalorixás são testadas e comparadas aos livros clássicos. Fruto dessas etapas, hoje, existe um número significativo de produções acadêmicas que fazem do Candomblé objeto de pesquisa: rituais, idioma, cânticos, organização espacial do terreiro, vestimentas, entre outros aspectos que Cappelli (2007) chama de "terreiro de biblioteca".

A literatura especializada, assim como o trabalho de campo realizado para esta pesquisa, reafirma como a figura da Yalorixá é fundamental para situarmos a centralidade dessas senhoras em todo o processo do culto aos orixás e de ensino nos terreiros de Candomblé. Em contato com elas, foi possível obter alguns subsídios sobre a possibilidade de construção de epistemologias "outras" na perspectiva da educação intercultural, conforme será discutido mais adiante. Entretanto, antes disso, cabe conhecer um pouco melhor o significado do termo.

Maria Stella Azevedo Santos (2010, p. 68), conhecida como Stella de Oxóssi, que é Yalorixá do terreiro histórico Opô Afonjá de Salvador, além de integrante da Academia Baiana de Letras, define seu sacerdócio:

Em nossa casa, a Yalorixá reúne as condições de mãe do Orixá e mãe do Axé, na acepção do elemento sagrado. É quem une o homem ao Orixá pelo processo de iniciação e quem distribui o axé. Só ela tem o direito de iniciar e completar o ciclo de iniciação. Mas é ela também quem responde e zela pelo seu Egbé,8 na condição de porta voz de Xangô. É o elemento catalisador, a "regente da orquestra". Cabe a iyalorixá escolher os Oloyé9 de acordo com as determinações "superiores" (e superior a Iyalorixá, no Terreiro, só os deuses).

Essa definição permite uma melhor compreensão das atribuições das Yalorixás como mediadoras, regentes, elementos catalisadores, tradição viva personificada numa mulher, principais responsáveis por um longo processo de iniciação delas e de seus "filhos de santo". Mas, para entender o seu papel, é preciso conhecer a história do Candomblé.

Beniste (2012), pesquisando as religiões oriundas do grupo Nagô-Yorubá, identifica como o povo de Ketu chegou escravizado no Brasil, em levas sucessivas a partir de 1790. Os povos de Oyó, Éjibò, Ilobú e outros, e de Dahomé, Lagos, na atual Nigéria, chegaram a partir de 1870. Nesses grupos, estavam sacerdotes e tradicionalistas que trouxeram ao país seus orixás, mas foi no decorrer da vida no Brasil que foram incluídas novas divindades. Segundo Beniste (2012, p. 20), foi "através do processo escravo que os negros destas regiões trouxeram suas tradições que aqui foram agrupadas num só local, centralizando o culto aos Orixás para uma prática comum a todos e tornando diferente das práticas de território africano".

De acordo com Juana Santos (1984, p. 27), apesar da escassez de documentos escritos, pesquisas anteriores e fontes orais dão conta da chegada dos nagôs no Brasil no final do século XVIII e início do XIX. Segundo essa perspectiva, os nagôs trouxeram sua religião para o Brasil. Eles cultuam os Orixás e os Eguns, ancestrais que assumem formas corporais, e as Esá, ancestrais coletivos que fundaram o culto na Bahia, primeiros ancestrais coletivos dos terreiros afro-brasileiros. O conceito de prática religiosa na definição Yorubá significa:

Conjunto de crenças-igbagbó-, obrigações-Oró-, e práticas-Iló, através das quais se reconhece o mundo divino-Orun-, cumpre-se seus preceitos-Rúbo-, e pedem seus favores-Axé. Como todas as religiões se baseiam na crença de divindades subalternas-Orixá-, e na fé de um ser supremo-Olorun-, na existência e sobrevivência da alma-Émú KéhÙn, na reencarnação-Árunea-, no mérito-úwá-, e no demérito-Enikeni-das ações humanas. (BENISTE, 2012, p. 32)

Assim, o Candomblé pode ser dividido em nações: Ketu, Jeje e Angola, de acordo com os povos de origem e grupos linguísticos. Após essa breve apresentação do Candomblé, cabe discutir como tal religião tem sido representada nos debates sobre o ensino religioso no estado do Rio de Janeiro.

Ensino religioso no estado do Rio de Janeiro

Quanto ao ensino religioso na escola como elemento do projeto de formação de um povo, concordamos com Oliveira e Sobreira (2011, p. 54) ao apontarem que "o estudo sobre o trinômio negro, currículo e formação de professores quando se refere à religião, não está deslocado do tema ensino religioso em nossa história, em especial no que tange às tensões entre pluralismo e exclusivismo religioso nas escolas".

A discussão sobre a ausência das religiões de matriz africana no currículo precisa ser entendida de forma mais ampla, além de fazer referência à formação do Estado, ao debate sobre laicização e secularização e, claro, ao reconhecimento das diferenças culturais na sociedade brasileira. Caputo (2012, p. 210), ao fazer um levantamento sobre a legislação que oferece suporte ao ensino religioso no estado, mostra que a Constituição de 1988 manteve a oferta obrigatória do ensino religioso no ensino fundamental, mas a Leis de Diretrizes e Bases - LDB - de 1996 retirou o ônus dessa responsabilidade dos cofres públicos até 1997, quando foi alterada pela Lei n. 9.475, considerando o ensino religioso parte da formação básica dos cidadãos e eliminando, assim, a restrição quanto aos gastos com verbas públicas. Essa Lei incumbiu aos estados a regulamentação dos procedimentos para definir o conteúdo das disciplinas, bem como a forma de selecionar e contratar seus professores.

Em 2000, no Rio de Janeiro, o governador Antony Garotinho sancionou a Lei n. 3.459/00, elaborada pelo ex-deputado católico Carlos Dias (PP-RJ), que estabelece o ensino religioso confessional na rede estadual. Vale ressaltar que essa Lei apresenta várias contradições, apontadas por Caputo (2012). A autora destaca, sobretudo, a opinião dos professores de Umbanda que lecionam ensino religioso: a dificuldade de encontrar livros e outros materiais escolares direcionados para esse trabalho que não sejam produzidos por católicos e evangélicos. Também não são oferecidas, conforme estabelece a Lei, alternativas para quem não quer assistir às aulas e, além disso, orações católicas e/ou evangélicas são tratadas como "universais", sendo muito comum encontrar, nesse contexto, a tentativa de conversão dos alunos ou, pior, a negação e o silenciamento quanto à existência de adeptos de outros credos.

Essa lógica excludente e discriminatória é colocada em prática nas escolas do estado do Rio de Janeiro e, com isso, o ensino religioso passa a ser quase sinônimo da religião cristã dominante, que confirma a histórica ligação da Igreja Católica com a construção e a manutenção dos Estados Nacionais, como criticam Oliveira e Rodrigues (2013). Esse recorte da cultura historicamente legitimada e garantida, que favoreceu a religião dominante Católica e atua com predominância nos currículos, ritos e festejos escolares brasileiros, hoje se reconfigura numa disputa epistêmica nas tensões existentes com as igrejas neopentecostais, principalmente na discussão sobre o campo das ciências. Oliveira e Rodrigues (2013, p. 7) afirmam que

[...] o discurso religioso assinala um questionamento do discurso científico, as interpretações sagradas não dialogam com outras visões seculares e o espaço escolar é palco de uma disputa pela autoridade epistêmica através de sujeitos variados, não somente aqueles presentes no espaço escolar.

Nesse contexto de disputas e estruturas seculares de racismo e preconceito contra as religiões de matriz africana, procuramos nos aproximar de cinco Yalorixás da Baixada Fluminense para conhecer suas opiniões sobre o ensino religioso no estado.

As Yalorixás da pesquisa e suas visões sobre o ensino religioso

As cinco Yalorixás que colaboraram para a pesquisa têm em comum em suas histórias de iniciação uma posição de recusa, em um primeiro momento, em assumir o cargo que lhes foi designado. As Yalorixás e Babalorixás10 relataram que souberam de suas missões por meio do oráculo de Ifá, o jogo de búzios. Elas também mencionaram que, quando se iniciaram no Candomblé, enfrentaram medo e discriminação entre familiares e pessoas de sua comunidade. Após a recusa e o medo inicialmente sentidos, todas parecem ter assumido o cargo de forma profundamente comprometida, estando orgulhosas e apaixonadas pelo Candomblé.

Duas Yalorixás com idades ao redor de 70 anos foram iniciadas ainda crianças. As outras três, na faixa etária de 50 a 60 anos, foram iniciadas na adolescência e juventude, mas só uma, a única que se autodeclarou branca, frequentava religião de matriz africana, a Umbanda, por ter também a tradição candomblecista na família.

Como dito anteriormente, as Yalorixás têm centralidade e protagonismo na religião. As cinco entrevistadas, com diferenças e semelhanças, são responsáveis pela vida religiosa de cerca de 200 pessoas, entre adeptos e membros mais contínuos, sem contar os que procuram em seus terreiros ajuda, cura e trabalhos diversos, mas não professam a religião.

Ao longo de suas trajetórias já foram responsáveis por outras tantas pessoas. Durante suas vidas, recontam a história do negro no Brasil, consideram-se descendentes deles e recuperam e reelaboraram essas tradições. Importante destacar que a descendência é entendida aqui como a identificação de uma ancestralidade coletiva (SANTOS, 1984, p. 110). Desse modo, mesmo a Yalorixá que se identifica como branca diz se reconhecer como parte dessa ancestralidade negra e escravizada no Brasil e faz a sua história no Candomblé.

Outro ponto importante a considerar sobre a história dessas mulheres é a dificuldade para se reconhecerem e serem reconhecidas como Yalorixás. São sacerdotisas em uma sociedade machista. Elas cultuam uma ancestralidade negra em uma sociedade racista; são da Baixada Fluminense, região periférica em um estado repleto de desigualdades sociais; e são idosas e percebem como positivo o ensino religioso na escola: quatro, das cinco Yalorixás entrevistadas, disseram ser favoráveis ao ensino religioso, apesar de reconhecerem limites no modelo vigente.

Mãe Maria, 77 anos, diz ser favorável ao ensino religioso, porque "a religião traz muita coisa boa para as crianças e deve ser ensinada na escola". Mãe Sônia, 62 anos, tem opinião semelhante: apoia o ensino religioso, mas discute o formato segmentado atualmente existente:

Acho que podia ter ensino religioso na escola. Um professor obrigado a estudar todas as religiões, o professor pra falar um pouco de cada uma. Porque não tem o professor de matemática, de história, de português? De religião também. Não [tem] um pra cada... Teria que falar de todas sem discriminar nenhuma. Ensinar a cultura africana.

Mãe Vera de Belford Roxo, 53 anos, também concorda com a importância do ensino religioso, mas faz ressalvas ao modelo atual, que "obriga a criança a escolher", e critica como essa estrutura silencia e discrimina os que são de religiões de matriz africana. Ela atua como inspetora em uma escola pública e, ao falar sobre ensino religioso nas escolas, conta as tensões que percebe na relação entre aqueles que valorizam ou não os elementos culturais de matriz africana que circulam no espaço escolar:

O professor, a pessoa tem que ser neutra... Que estudasse um pouco de cada uma [das religiões] e tirasse aquilo que é bom pra passar pras crianças. [...] Lá na escola onde eu trabalho, tem um rapaz que ensina capoeira e tem umas professoras que limitam assim, por exemplo, vem a festa de Zumbi, então o que acontece? Ele vai colocar um pouco de arte, mas as professoras em si, elas mesmo retiram aquela parte do Candomblé, os cânticos, e o rapaz da capoeira não, ele coloca. Então tenho visto isso, ele bota no meio da escola as crianças dançam. As crianças não falam se são de axé não, fica tudo quieto. [...] Tem sempre um que fala o fulano é macumbeiro!

Mãe Vera de Tinguá, 54 anos, também afirmou ser favorável ao ensino religioso, desde que seja realmente ecumênico, e critica com firmeza o modelo confessional atual:

Se nós vivemos num país democrático isso [ser confessional] já fere a Constituição do Brasil. Se dizem os políticos que vivemos num país livre, que a religião, [assim como] a sexualidade é opção sua, escolha sua. Então, a partir do momento que não ofenda o próximo e que não fira seus deveres como cidadão e como cidadã, o seu filho não é obrigado a estudar [religião] evangélica. Não precisa ser professor de cada religião: ele teria que estudar um pouco de budismo, um pouco de islamismo, um pouco de afro, do indígena também - porque o índio, a cultura dele praticamente dizimou, né? - pra dar aula, falando de todas um pouco.

Das cinco Yalorixás entrevistadas, apenas Mãe Ceci, de 74 anos, foi contrária ao ensino religioso nas escolas. Ela criticou de forma explícita o desequilíbrio de poder existente na relação entre religiões de matriz africana e a força da religião cristã no espaço escolar, além de defender a prerrogativa do protagonismo da família na escolha da religião da criança, questionando duramente o modelo vigente, que ela considerou "obrigatório" em resultados práticos:

Acho que a escola não devia vir com isso [ensino religioso], os pais é que têm que ser mentores da educação familiar. Os filhos evangélicos seguem seus pais evangélicos, os católicos seguem os católicos e os filhos religiosos espíritas seguem seus pais espíritas. Entendeu? Sabe por quê? Você é uma professora, não quero te ofender, você vai ensinar a seus alunos tudo sobre uma determinada religião, a qual você acredita ou você, obrigatoriamente, por profissionalismo terá que ser dada a ensinar, estudar aquilo e ensinar [...] O que eles fazem aí é uma lavagem cerebral no povo aí que tem pouca cultura, pouco entendimento e pouca sabedoria pra definir seu próprio destino.

Mãe Ceci também questionou o que ela identifica como "aculturação", ao se levar a religião para a escola de forma descontextualizada e em uma situação de desigualdade de condições. Também falou sobre o racismo que impede a possibilidade de um ensino religioso verdadeiramente ecumênico e de um maior comprometimento do zelador ou zeladora (Babalorixá ou Yalorixá) da religião com essa questão ancestral afro-brasileira:

Como que você vai saber dialogar daquilo que você não conhece? Se eu tô lendo aqui foi porque eu fui a um colégio e eu aprendi a ler e escrever, mas como é que eu vou explicar pra você dentro do roncó11 o que é? [...] Poderia fazer cursos, cursos de quê? Sobre o quê? Cultura negra. O que é cultura negra? É nossa raiz, o povo brasileiro é negro, ele tem que saber quem ele é, ele não é louro de olhos azuis. [...] Teria que ter, na minha visão, teria que ter zeladores e zeladoras mais capacitadas, fora a ambição financeira, fora a vaidade peculiar. [...] Esses zeladores antigos que tivessem conceitos afros, dos africanos, dos pretos velhos, dos escravos (chego a me arrepiar), negros acorrentados, sofridos naqueles navios embaixo daquela senzala que tinham que guardar pra si a dor de ver seu orixá mazelado. A Igreja católica ali: "você vai ter que cultuar isso aqui!" e por debaixo das mesas, debaixo, eles botavam suas coisinhas. Aí quando era descoberto, ia pro tronco levava um castigo de se lascar todo, mas eles não desistiam. Eles estavam ali ó, firmes: "Eu vou apanhando mas eu vou até o dia de eu morrer!".

A visão de Mãe Ceci aproxima-se da opinião de vários pesquisadores que apontam a impossibilidade de a escola - constituída a partir dos preceitos da religião dominante - oferecer um ensino ecumênico, como proposto em documentos oficiais. Também é reafirmada a importância de se defender a laicidade da escola. Oliveira e Rodrigues (2013), por exemplo, denunciam a rotina de negação e invisibilidade da cultura negra existente no país, como resultado do racismo epistêmico que impõe uma visão eurocêntrica e de hegemonia branca como única válida. Para os autores, o que existe na escola pública hoje é "uma disputa epistêmica sobre a concepção de sociedade, história, ciência e identidade" (OLIVEIRA; RODRIGUES, 2013, p. 1).

Colonialidade do saber e do ser

As Yalorixás, com suas práticas educativas, militância e sacerdócio, nos encaminham para o questionamento das matrizes educacionais que impedem o pensamento, colaboram com a intolerância e fortalecem o racismo. Para compreensão do fenômeno e dos pressupostos teóricos que nos orientam ainda hoje na educação, faz-se necessário esse debate que desconstrói a universalidade dos conhecimentos da matriz europeia, o paradigma moderno da ciência e a pós-modernidade, que o critica, mas não se estende em direção da violência imposta por ele nem questiona o eurocentrismo que o conforma, negando os demais modos de conhecer.

Para Dussel (2005, p. 6), "a modernidade como paradigma de vida cotidiana, de compreensão da história, da ciência e da religião surge no final do século XV e com a conquista do Atlântico". Analisando as contribuições de Quijano (2005) sobre a modernidade e o eurocentrismo, aquele autor diz que os europeus se declaram autocriadores e protagonistas da modernidade, entendida como racionalização e secularização negadas às outras culturas. Para ele, pela primeira vez na história da humanidade, existe atualmente um sistema-mundo global, congregando elementos comuns a todos: colonialidade do poder, capitalismo e eurocentrismo. As heterogenias que foram criadas na modernidade, como família burguesa, Estado-nação, empresa e racionalidade eurocêntrica, juntam-se a isso.

Dussel (2005) destaca que é na América que a raça fará a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de recursos e produtos que estarão em torno do capital e do mercado mundial. Raça determinará o papel dos não brancos. Branco será o que é diferente da cor e traços fenotípicos dos indígenas e dos negros. Assim, o capitalismo será a nova estrutura de controle de trabalho aliada à cor.

Nessa perspectiva, o eurocentramento vai estabelecer que a racionalidade é o eurocentrismo e que, para além da colonização, haverá a colonialidade, novo padrão de poder mundial. Assim haverá servidão, escravidão e salário na América, que, simultaneamente, criam identidades geoculturais, referentes ao grupo europeu dominante, expropriando culturalmente nas invasões, na repreensão de outras formas epistêmicas e de racionalidade e na imposição da cultura dominante.

Os europeus desenvolveram a tese da sua própria supremacia racial diante do mundo, ao aliarem etnocentrismo colonial à classificação racial universal, inaugurando, então, a "natureza" superior. Cria-se outra perspectiva de conhecimento: a nova perspectiva temporal da história que re-situa os colonizados, suas histórias e culturas no passado da humanidade, cujo futuro será a Europa, o eurocentrismo.

O colonialismo europeu findando deixará o colonialismo interno e esse deixará como legado a colonialidade do poder, do saber e do ser. A colonialidade permaneceu. Para Maldonado-Torres (2007, p. 2):

Ela se refere a relações de poder e concepções de ser e de saber que produzem um mundo diferenciado entre sujeitos legitimamente humanos e outros considerados não só como explorados ou dependentes, sim fundamentalmente como dispensáveis, sem valor, ou com denotação negativa e exótica nas distintas ordens da vida social.

Colonialidade, para Oliveira e Candau (2010), é um padrão de poder que vem do colonialismo moderno, mas vai além da relação formal de poder entre dois povos. Como apontam os autores, a colonialidade transcende a relação entre povos diferentes e permanece no Estado-nação, na unidade nacional, na constituição progressista e nas práticas humanas, determinando as formas como trabalho, conhecimento, autoridade e relações intersubjetivas se articulam a partir do mercado mundial e da ideia de raça.

Esse projeto de desvalorização e delimitação do espaço racial vai impregnar especificamente a forma de conhecer e produzir conhecimento. As ciências modernas, principalmente das áreas naturais e sociais, também vão inventariar o ser humano nessa perspectiva. O espaço europeu será o nascedouro de quem tem a cultura fetichizada, de quem tem a lógica de pensamento valorizado, das línguas que detêm as cosmovisões aceitas, que podem classificar e nomear o mundo, historicizar e escrever com suas lógicas exclusivas seus tratados, num efeito perverso em que o discurso científico e religioso justificam as práticas de extermínio.

As culturas consideradas inferiores, que encontrarão aqui e que posteriormente trarão para cá, vão definir o modelo de ser humano que é igualmente sem valores éticos, morais, estéticos, constituindo mais uma forma de colonialidade, a do ser, como afirma Quijano (2005). Para o autor, a colonialidade, então, é esse legado racista, é o reflexo distorcido no espelho eurocêntrico, em que se distorcem as imagens ameríndias e africanas e de seus descendentes, promovendo uma colonização constante do pensamento.

O Candomblé, o samba, as lutas negras por igualdade de direitos, os gays e lésbicas e as mulheres podem amargar aparições determinadas na sociedade, apenas. O livro didático, os currículos, as reportagens, as universidades, as escolas vão realimentando as políticas e visões excludentes. "A colonialidade do ser é pensada, portanto, como a negação de um estatuto humano para africanos e indígenas, por exemplo, na história da modernidade colonial" (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 22).

É possível uma prática intercultural crítica e decolonial no ensino religioso?

A partir dos aportes de autores que formam o grupo Modernidade/Colonialidade, ressaltamos as contribuições de Catherine Walsh (2007), que defende o desenvolvimento de uma pedagogia decolonial, que evidencia o racismo e a desigualdade racial para discutir e desconstruir visões e práticas discriminatórias no sentido de encontrar propostas pedagógicas que possibilitem caminhos da transformação. A autora também defende a interculturalidade crítica, que denuncia a ausência de igualdade de condições para que esse diálogo aconteça, em lugar de simplesmente repetir sua necessidade. Ela questiona o lugar dos conhecimentos afro-indígenas e propõe reconhecimento de tradições ancestrais e outros modos de pensar, que derrubem as estruturas sociais e políticas da colonialidade do ser.

Almejamos na escola a valorização da cultura e da história afrodescendente como reparação e luta antirracista. Nessa perspectiva, os valores, saberes tradicionais e as epistemologias de povos tradicionais são as bases. Onde achar esses saberes? E como desvinculá-los do primitivismo e atraso conformado pelo padrão moderno de conhecer? Como descolonizar nossos pensamentos?

As Yalorixás e a educação nos terreiros de Candomblé nos oferecem indícios, elementos do que poderia ser essa pedagogia decolonial. Além de fazerem o trabalho "casa adentro", descrito por Walsh (2007) de reconhecimento e valorização étnico-racial, elas ainda identificam nas marchas e manifestações, nos processos judiciais, os elementos para exigirem seus direitos e na prática educam e contribuem na luta antirracista. Os saberes tradicionais se ampliam com consciência histórica e da cultura negra transmitidos oralmente dentro dos terreiros por meio dos mitos, cantos, danças, idioma, preceitos e não se relacionam com os saberes escolarizados porque os desmentem. Esses últimos são hierarquizados e eurocêntricos. Elas consideram que existem formas diferentes de aprender esses saberes, que os saberes escolarizados estão nos livros e são imprescindíveis, porém, pode haver relação entre eles. E quando essas mulheres fazem suas propostas de reorganização do ensino religioso na escola, à semelhança do que ensinam nos terreiros, vemos que não deixa de ser história e cultura do Brasil.

Para as entrevistadas, a escola atual, com ensino religioso, atua de forma errada ao fazer o ensino confessional. Elas defendem um ensino religioso democrático, sem exclusivismos ou proselitismo, uma escola que se reconheça como plural. Elas não têm relação com escolas que circundam os terreiros; não se negariam a ter, mas o preconceito racial não favorece essa relação. Nunca foram convidadas pelas escolas, apesar de serem conhecidas em suas comunidades, e uma delas, que trabalha como inspetora em uma escola, diz que não consegue discutir ou falar sobre cultura negra nesse espaço, "apesar de ver festa pra dia de Zumbi".

A desconstrução dessa ideologia racista, da colonialidade do ser que acomete os herdeiros das tradições culturais afro-brasileiras, requer muito estudo, muita discussão, muitos elementos históricos e o reconhecimento dessas ações concretas de luta desenvolvidas por essas mulheres de coragem e fé, na Baixada Fluminense.

As histórias dessas mulheres reverenciam a continuidade da memória de uma ancestralidade negra (orixás, pretos velhos), entendida como uma construção coletiva que conecta mesmo quem não se reconhece como mulher negra. Essa identidade é fortalecida à medida que alcança as pessoas para entenderem-se parte disso. Nos terreiros pesquisados, encontramos outras formas de saber, pensar e ser. A conexão com a história negra no Brasil e na África por meio da mitologia dos orixás, caboclos e pretos velhos é o marco inicial de todo pensamento. A cultura de veneração e respeito aos ancestrais divinizados e humanos deriva desse pensamento. A concepção de ser humano, vida e forma de estar no mundo também vem nesse bojo. A interligação com ancestrais e o cuidado deles com os filhos explicam a vida; é a continuidade, razão, motivação.

Para Beniste (2012, p. 35), Omoluwábi significa um bom caráter em todos os sentidos da vida, que inclui respeito aos mais velhos, lealdade aos pais e a tradição local, honestidade, assistência aos necessitados e um desejo irresistível ao trabalho. É um processo de vida longa em que toda a sociedade é a escola. O princípio Omuluwábi é dos yorubás. Eles deixaram um legado ético em que a moralidade é fruto da religião, bem como um sistema de educação iniciado ainda no ventre materno: a concepção Omoluwábi que guarda os princípios da educação nagô.

A ancestralidade reside na tradição afrodescendente e essa recriação da tradição é baseada na reverência e no culto a essa ancestralidade. Como lembra Mãe Ceci:

Antes de vocês nascerem, os escravos já tinham nascido já estavam nos navios negreiros, deportados, escravizados, comprados, dizimados, trucidados, vendidos, [...] massacrados, sofridos e morreram, mas nunca negaram sua cor e nem sua verdade religiosa.

O ensino religioso nas escolas, sobretudo um ensino religioso confessional baseado em um pensamento excludente, racista e cristão, jamais poderá dar conta da complexidade de culturas e histórias ancestrais que conformam o pensamento presente nas religiões de matriz africana. Nesse sentido, tendemos a concordar com Mãe Ceci em sua postura contrária ao ensino religioso nas escolas: a laicidade da escola permite desvelar a forma como essa instituição está sedimentada sobre solo cristão e colonial. A ancestralidade não cabe na lógica moderna. Busquemos, então, outros espaços para refletir e reconstruir essas histórias.

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1Religião de matrizes africanas é entendida aqui como forma da designação das diversas tradições religiosas transmitidas pelos africanos para o Brasil a partir de traços culturais, linguísticos, históricos e geográficos. Temos como base os trabalhos de Costa Neto (2010), Santos (2005) e M. S. Santos (2010), para considerar o Candomblé uma das religiões de matrizes africanas do Brasil por congregar cinco elementos distintos que as identificam: 1) a possessão mediúnica; 2) os rituais públicos e privados; 3) a comunidade; 4) o exercício do sacerdócio; 5) o oráculo africano, estando assim definido seu conceito.

2Essas duas religiões são de matriz africana, mas possuem diferenças históricas. O Candomblé é mais antigo, com origem africana e com registros no Brasil desde 1830, no contexto da escravidão. Nogueira (2007, p. 33) ressalta a importância dessa religião para a resistência negra, funcionando como um elo entre as diferentes nações trazidas da África ao criar "laços de parentescos religiosamente construídos". Já os caboclos e "pretos velhos" são o marco inicial da Umbanda, considerada genuinamente brasileira. Fundada por Zélio Fernandino de Melo, em 1908, no Rio de Janeiro, rompeu com o Espiritismo, apesar de trazer ainda consigo alguns de seus elementos, e absorveu também elementos das crenças indígenas, católicas e africanas.

3Para saber mais sobre o tema, ver: Oliveira e Rodrigues (2013), Oliveira e Sobreira (2011) e Costa Neto (2010).

4De acordo com levantamento feito pelo Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab), citado pelo autor, na Baixada Fluminense havia 3,8 mil terreiros contra apenas 1,2 mil na área de Salvador e do Recôncavo Baiano.

5Dos muitos grupos escravos vindos para o Brasil, três categorias, definidas como nações, se destacaram: negros Fons ou nação Jeje, negros Yorubás ou nação Ketu, negros Bantos ou nação Angola. Cada uma dessas nações tem dialeto e ritualística própria, mas também semelhanças e articulação entre elas. Importante destacar que essa subdivisão não corresponde a nações em termos étnicos, visto que nunca existiu uma etnia "jeje", por exemplo, mas sim à definição de traços culturais e ritualísticos comuns no desenvolvimento do Candomblé.

6O coletivo em questão é apresentado por Pachón Soto (2007) como representante de uma nova perspectiva filosófica na América Latina. Constituído transdisciplinarmente, o grupo Modernidade-Colonialidade - MC - vem realizando estudos sobre a dimensão epistemológica e política das ciências sociais e humanas. Propõe uma maior abertura dessas ciências para um diálogo interdisciplinar que valorize o papel dos movimentos sociais e das novas tecnologias na produção de conhecimentos, bem como no desafio da necessária articulação entre as práticas acadêmicas e formas não científicas de produção do conhecimento, de forma a (re)considerar as relações hierárquicas entre sujeitos e objetos do estudo acadêmico, questionando perspectivas e contextos de estudo e, principalmente, as próprias metodologias. Seus integrantes compartilham de concepções teóricas, realizam pesquisas e publicações conjuntas e reúnem-se em seminários e grupos de estudos. São eles o filósofo argentino Enrique Dussel, o sociólogo peruano Aníbal Quijano, o semiólogo argentino-estadunidense Walter Mignolo, o filósofo colombiano Santiago Castro-Goméz, o antropólogo colombiano Arturo Escobar, o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, o antropólogo venezuelano Fernando Coronil, o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado Torres, o sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel, e a linguista estadunidense Catherine Walsh.

7Nos anos de 1951 e 1952, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - Unesco - patrocinou uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil. As investigações foram desenvolvidas com o propósito de apresentar ao mundo os detalhes de uma experiência no campo das interações raciais julgada, na época, singular e bem-sucedida, tanto interna quanto externamente. O programa de estudos, que se convencionou denominar Projeto Unesco, não apenas gerou um amplo e diversificado quadro das relações raciais no Brasil, mas também contribuiu para o surgimento de novas leituras acerca da sociedade brasileira em contexto de acelerado processo de modernização capitalista. Para saber mais: Maio (1999).

8Sociedade, associação.

9Cargos.

10Pai de santo, pai de terreiro, babalorixá, babaloxá ou babá é o sacerdote das religiões afro-brasileiras. Seu equivalente feminino é a ialorixá ou mãe de santo.

11Espaço sagrado onde ficam recolhidos os iniciados no Candomblé.

Recebido: Maio de 2015; Aceito: Dezembro de 2015

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