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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.46 no.162 São Paulo oct./dic. 2016  Epub 01-Abr-2016

https://doi.org/10.1590/198053143684 

ARTIGOS

A fundação da Escola Plural

The implementat ion of the "Escola Plural"

La créat ion de la "Escola Plural"

La fundación de la "Escola Plural"

Juarez Melgaço Valadares1 

1Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG -, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. juarezm@ufmg.br


Resumo

Neste trabalho, procuramos compreender os desejos e os impasses surgidos durante a implantação da Proposta Escola Plural, desde o ano de 1995, na cidade de Belo Horizonte. Como os professores receberam as novas diretrizes? Como o texto público se alterou a partir das resistências encontradas? Para responder a essas perguntas, entrevistamos 20 gestores da Secretaria Municipal de Educação, que participaram do momento originário da Proposta. Para tanto, utilizamos conceitos retirados do referencial psicanalítico do francês René Kaës. Esperamos, com este trabalho, contribuir para melhor compreensão das condições em que ocorrem as mudanças nas políticas educacionais.

Palavras-chave: Política Educacional; Reforma Educacional; Escola Plural; Belo Horizonte (MG)

Abstract

In this paper, we seek to understand the needs and dilemmas encountered during the implementation of the "Escola Plural" [Plural School] Proposal, since 1995, in the city of Belo Horizonte. How did the teachers receive the new guidelines? How did the public text change with the opposition found? To answer these questions, we interviewed twenty managers from the Municipal Department of Education, who were present when the Proposal was made. To this end, we use concepts based on the psychoanalytical framework of the Frenchman René Kaës. We hope, with this study, to contribute to better understand the conditions under which changes in educational policies occur.

Keywords: Educational Policy; Educational Reform; Escola Plural; Belo Horizonte (MG)

Résumé:

Ce travail cherche à comprendre les désirs et impasses liés à l'implantation de la Proposition concernant l'"Escola Plural" [École Plurielle], a partir de 1995, dans la ville de Belo Horizonte. Comment les professeurs ont-ils reçu ces nouvelles directives? Comment ce texte officiel a été altéré au vu des resistances à son égard? Pour répondre à ces questions, 20 gestionnaires du Secrétariat Municipal de l'Éducation ayant participé à l'élaboration de la Proposition ont été interrogés. Les concepts utilisés dans ce travail sont issus du référentiel du psychanalyste français René Kaës. Nous souhaitons que ce travail puisse contribuer a à mieux comprendre les conditions dans lesquelles se produisent les changements dans les politiques éducationnelles.

Mots Clés: Politique de L'éducation; Réforme de L'enseignement; Escola Plural; Belo Horizonte (MG)

Resumen

En este trabajo tratamos de comprender los deseos y los impasses que surgieron durante la implantación de la Propuesta "Escola Plural" [Escuela Pural], desde el año de 1995, en la ciudad de Belo Horizonte. ¿Cómo los profesores recibieron la nuevas directivas? ¿Cómo el texto público se alteró a partir de las resistencias encontradas? Para contestar dichas preguntas, entrevistamos a veinte gestores de la Secretaría Municipal de Educación, que participaron en el momento originario de la Propuesta. Para ello utilizamos conceptos retirados del referente psicoanalítico del francés René Kaës. Esperamos con este trabajo contribuir para mejorar la comprensión de las condiciones en que ocurren los cambios en las políticas educacionales.

Palabras clave: Politica de la Educación; Reforma Educativa; Escola Plural; Belo Horizonte (MG)

A adoção de ciclos - ou progress ão cont inua da - fez parte de diversas reformas educacionais no Brasil, ancorada em um discurso sobre a necessidade de se construir uma escola de direitos. Em muitas cidades, deparamos com diretrizes que geraram controvérsias e hostilidades e, com diferentes argumentos, foram interrompidas rapidamente. A Proposta Escola Plural, implantada em 1995, na cidade de Belo Horizonte, encontra-se nesse enquadramento. Porém manteve-se durante um tempo bem longo, e em textos diversos encontramos que a ampliação da jornada escolar, a partir de 2006, com o Programa Escola Integral/Integrada, foi uma continuidade da Escola Plural. Seguindo essa ideia, seus eixos continuam até os dias atuais. Buscamos aqui compreender o momento originário da Proposta.

No final de 1994, a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte - SMED-BH - apresentava ao município a proposta pedagógica Escola Plural. A SMED-BH assumia, como proposta de governo, a pluralidade de práticas pedagógicas em curso em diversas escolas da cidade, cujos eixos recusavam o papel de agentes de uma exclusão escolar e social. O caderno de apresentação, conhecido como Caderno Zero (BELO HORIZONTE, 1994), apontava os principais eixos vertebradores da Proposta: primeiro, sugeria uma concepção mais plural do direito à educação, isto é, uma sensibilidade com a totalidade da formação humana e a construção de uma escola como tempo de vivência cultural. Em segundo, apontava uma redefinição das estruturas do sistema escolar, com a implantação dos ciclos de formação e a construção de uma estrutura mais democrática, que respeitasse tanto as diferenças e ritmos dos alunos como a participação da comunidade nas decisões. Nessa perspectiva, a proposta curricular sugeria novos vínculos entre os conhecimentos disciplinares, a sala de aula e os problemas contemporâneos e sociais.

A SMED-BH reconhecia a tensão entre a escola aceita e a escola emergente - transgressora do ordenamento institucional. Assim, do ponto de vista da comunidade escolar, surgiam questões relacionadas às novas modalidades de trabalho, isto é, a possibilidade de adesão ou recusa em relação ao papel ofertado pela política institucional; do ponto de vista da SMED-BH, constituía-se em uma medida que carregava uma potencialidade capaz de modificar a organização do trabalho escolar, mas respeitando a multiplicidade de práticas que seriam construídas pelas escolas a partir da especificidade de seus profissionais e do público atendido. Indagamos: como os professores metabolizaram a nova proposta? Como os gestores modificaram o texto público a partir da forma como a Proposta foi recebida?

Referencial teórico

Mencionamos os valores instituintes que a Escola Plural carregava com ela, bem como a ruptura que provocou. Cada profissional ajustou sua história de vida a esse quadro organizacional, destacando os lugares ofertados a seus profissionais pela Escola Plural e aqueles assumidos pelos docentes, bem como os conflitos advindos desse interjogo de papéis. Na esperança de compreender as relações entre sujeito, grupo e instituição, e na tentativa de responder às questões anteriores, utilizamos conceitos extraídos do referencial formulado pelo psicanalista René Kaës (1984, 1991, 1997, 2005). Ainda levamos juntos, nessa caminhada, Paulo Freire, Miguel Arroyo, Boaventura de Sousa Santos, entre outros. O embasamento psicanalítico procura responder às nossas indagações sobre as mediações entre o sujeito singular e a realidade histórica. Tal embasamento permite-nos compreender o investimento dos sujeitos recortados pela história cotidiana e unir a intersubjetividade e o social a partir da diacronia. A nossa intenção é compreender: os conflitos identificatórios que se fazem e se desfazem no cotidiano das organizações, enquadradas pelo tempo histórico; os enunciados de certezas e as ilusões que nutriam o grupo fundador; as alianças e os interditos fundamentais. Buscamos novas articulações teóricas, que acreditamos necessárias para conhecer de forma mais aprofundada alguns dilemas que perpassam as políticas públicas para a educação.

É nesse sentido que a obra de René Kaës torna-se importante para a análise de nossos dados. Para esse teórico (1991), a instituição é uma ordem na qual se funda um coletivo com o objetivo de realizar uma tarefa necessária para o funcionamento social. Os investimentos e contrainvestimentos na tarefa primária são elementos da realidade comum, compartilhada e conflitiva simultaneamente, uma vez que tal tarefa reforça, em seus membros, o sentimento de pertencimento e a identidade da instituição.

Para Kaës (1991, 2005), duas dificuldades impõem-se para se pensar a instituição. Na primeira, experimentamos nossa dependência nas identificações simbólicas e imaginárias que mantêm juntas a cadeia institucional e a trama de nossos vínculos; corremos o risco de que a singularidade de nossa fala não se faça reconhecer. A segunda dificuldade revela a sua função de pano de fundo de nossa subjetividade, uma vez que a instituição nos precede, nos determina e nos inscreve nas suas malhas e nos seus discursos. Descobrimos que a instituição nos estrutura, e que contraímos com ela relações que sustentam a nossa identidade.

Estamos, assim, diante de uma organização do discurso que evidencia as tensões entre o sujeito e a instituição. Esta, para dar conta de toda heterogeneidade, realiza um investimento psíquico considerável, destinado a fazer coincidir, em uma unidade imaginária, esses âmbitos e lógicas diferentes, de forma a reduzir ao máximo seus aspectos conflitantes e a criar uma relação isomórfica entre sujeito e grupo, isto é, um sentimento de pertencimento, por meio de matrizes identificadoras e ideais compartilhados. Para proceder à busca pela ligação e gerenciamento entre o espaço do sujeito singular e o espaço constituído pela sua inserção na instituição, Kaës, em seus textos, utiliza o conceito de formações intermediárias, cuja tarefa é dar conta de uma transformação temporal ou de uma ligação ou mediação entre estruturas heterogêneas. Somente após uma ruptura, ou em espaços fronteiriços, podemos compreender o que estava compartilhado anteriormente entre os diversos sujeitos e a instituição, bem como os lugares até então assinalados, as representações e formações comuns e necessárias tanto ao sujeito singular quanto ao conjunto do qual ele procede e que ele ajuda a compor.

É nesse caminho que o conceito apresenta seu vigor na obra de Kaës. O autor (1984) interroga, como objeto de pesquisa, o que ocorre quando essa experiência de ruptura questiona o sujeito na continuidade de si mesmo, na organização de suas identificações, no emprego de certos mecanismos de defesa, na coerência entre as suas formas de pensar e atuar, na confiança depositada em seus grupos de pertencimento, e na eficácia dos códigos comuns a todos aqueles que pertencem a um conjunto. Na resposta a cada um desses itens, deparamo-nos com aspectos pertinentes à alteridade (KAËS, 1997). Dessa forma, ele foca a sua análise no momento de ruptura ou crise, entre uma perda da segurança e uma aquisição ainda incerta, no momento em que os novos laços ainda não são confiáveis e não estão construídos.

Várias características associadas ao conceito de intermediário são enumeradas (KAËS, 2005). A primeira característica refere-se a seu processo de articulação, pensada como uma redução de antagonismos em uma situação de conflito, que ocorre em um campo de forças em oposição: trata-se de articular os elementos em conflito. Essa oposição associa-se a momentos de crise e rupturas, isto é, como necessidade do contínuo. A segunda característica do conceito revela-se diante da necessidade de se estabelecer uma continuidade entre elementos separados. Por fim, é um processo de ligação entre vários elementos de um sistema, segundo os modelos metonímico ou metafórico. No primeiro modelo, prevalece a identidade das percepções e das representações, do regime das identificações; no segundo, o metafórico, ocorre a diferenciação dos processos, dos papéis, dos lugares e das tarefas. Essas duas modalidades organizacionais são polaridades antagônicas e em oposição dialética. Nesse jogo, podem ainda articular-se outras polaridades, percebidas sob outro viés: entre a posição ideológica e a posição mitopoética. Nesse caso, a configuração de um grupo na posição ideológica cumpre uma dupla função: na primeira, uma função identificatória ou de reconstrução de uma identidade comum e de representações partilhadas; na segunda, a função é cognitiva, uma representação coerente da razão de as coisas serem de um modo e não de outro. A função dessa configuração é redutora, uma vez que a incerteza e a complexidade com respeito às relações são negadas. Por sua vez, a posição mitopoética refere-se às posições e condutas mais flexíveis, adaptadas aos acontecimentos e às suas transformações, tolerando os sentidos imprevistos. Essas tensões entre o aberto (modelo metafórico ou posição mitopoética) e o fechado (modelo metonímico ou posição ideológica) acentuam e mobilizam deslocamentos nos investimentos diante de uma situação de ruptura ou crise.

Consideramos aqui três principais formações intermediárias, articuladas entre si, e que sustentam o vínculo social e uma parte da identidade do sujeito. A primeira formação é o contrato narcísico. Kaës, em vários de seus trabalhos, retoma o texto de Freud (1914/1974), em seu livro Sobre o narcisismo: uma introdução, ao mencionar que todo sujeito leva uma dupla existência: ser um fim em si mesmo e, simultaneamente, elo, beneficiário e servidor de uma cadeia social e geracional, possuindo um lugar assinalado no grupo, e que, para assegurar esse lugar e sua continuidade, o conjunto deve investir nele, em um efeito de mútua determinação.

A segunda formação considerada por Kaës, buscada em O mal-estar na civilização, de Freud (1930/1998), é a comunidade de direito, que diz respeito às compensações do sujeito na formação do vínculo e obtidas a partir de suas renúncias: parte de sua soberania e de suas tendências agressivas. Dessa forma, ela é uma formação biface: tem uma função para o sujeito e para o grupo.

Por fim, os pactos denegativos, um acordo comum e inconsciente entre os membros do grupo daquilo que deve ser rejeitado, cumprindo uma função tanto para o sujeito quanto para a manutenção do conjunto. Para que esse conjunto se mantenha, não há somente a necessidade da identificação com um objeto comum: espera-se que algo deva ser deixado de fora, excluído das representações. Os pactos mergulham os sujeitos no desconhecimento e seus mecanismos são múltiplos:

[...] o recalque, o qual produz a retirada de representações que possam gerar rupturas; a repressão, forma mais dura para a retirada de circulação do indesejado; a negação, elemento essencial de toda regulação social e fundador da realidade humana e social. (FERNANDES, 2005, p. 131)

Esses conceitos possuem apoios múltiplos na obra de Kaës. Além de Freud, o autor retoma também as contribuições de Winnicott (1975) e Piera Aulagnier (1989). Do primeiro, retira a experiência do brincar, como espaço de transição e mediação entre a mãe e a criança. Winnicott (1975) considera que, na apropriação da herança social, o sujeito tem a necessidade de ter um lugar onde colocar aquilo que encontrou, um espaço para recolher os significantes até então indisponíveis. Nos esforços que o sujeito realiza para criar esse espaço, encontramos uma "área de transicionalidade, onde coexistem, sem crise, nem conflito, o que já está lá e o ainda não advindo, a herança e a criação" (KAËS, 2005, p. 25).

Nas palavras de Kaës, Piera Aulagnier descreve um espaço que é simultaneamente psíquico, social e cultural, no qual o sujeito pode se constituir. Da análise de seus textos, Kaës retira a sua visão do portavoz como efeito de grupo, cumprindo, assim, uma função intermediária na transmissão psíquica e cultural. Piera Aulagnier constrói o conceito de porta-voz a partir da relação da mãe com o infans, isto é, a primeira apresenta, ao segundo, a herança e a ordem social. Porém uma ordem à qual a própria mãe se submete e que organiza sua própria subjetividade na sua relação com a subjetividade da criança, numa relação de coapoio. Sobretudo em função de sua adesão ao discurso do/no grupo, o porta-voz cumpre a sua função sob o modelo metonímico ou metafórico.

É com essa herança teórica sobre as rupturas, continuidades e fronteiras que procuramos compreender as mudanças provocadas pela Escola Plural. Entre a criação de um intermediário e seu uso como objeto, há um "período de hesitação", o qual favorece a emergência da criatividade dos sujeitos. O que é interpretado como resistência, nesse campo teórico, pode ser uma tentativa do sujeito de encontrar "certa intimidade" a partir da qual possa dar a sua contribuição e investir no novo lugar assinalado após a mudança.

O nosso objetivo é compreender os efeitos provocados no texto público a partir dos impasses gerados pela implantação das novas diretrizes educacionais.

A rede municipal de educação

A cidade de Belo Horizonte foi fundada em 1897. Segundo dados da prefeitura, 15% da população do município se encontram em estado de extrema vulnerabilidade social. Além disso, o índice de desenvolvimento humano - IDH -, em 2000, era de 0,84. Na época da coleta de dados para esta pesquisa (2004/2005), a rede municipal de ensino de Belo Horizonte - RME-BH - tinha 182 escolas, que atendiam aproximadamente 170 mil alunos, sendo 7.400 na educação infantil, 145.000 no ensino fundamental, e 17.000 no ensino médio. Para esse atendimento, contava com um quadro de 10 mil professores. Observando-se os níveis de titulação, 9.193 professores possuíam licenciatura, 3.178 professores tinham especialização, 224, a titulação de mestre, e 5 tinham doutorado.

A administração do trabalho da SMED-BH era descentralizada, sendo realizada por nove Gerências Regionais de Educação - GERED. Cada GERED tinha um gerente de educação, que coordenava uma equipe responsável pelo acompanhamento pedagógico das escolas de ensino fundamental da sua região, e também um Centro de Educação Infantil - CEI -, responsável pelo acompanhamento, fiscalização e formação dos profissionais que atuavam na educação infantil.

Além das GEREDs, a SMED-BH possuía uma Gerência de Coordenação de Política Pedagógica - GCPP -, composta por professores da própria rede ou de recrutamento amplo. Era responsável, até 2002, pela formulação, coordenação e implementação das diretrizes político- pedagógicas da Escola Plural. A SMED investia também na formação de seus profissionais, por meio do Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação - CAPE. Na implantação da Escola Plural, o CAPE destacou-se na sistematização da Proposta e na produção de textos, bem como assumiu a liderança na formação dos profissionais.

Metodologia de coleta e análise dos dados

A nossa prática investigativa inscreve-se numa metodologia de pesquisa qualitativa, um estudo de caso. Utilizamos, como técnica de pesquisa, a entrevista de atores envolvidos e a análise de documentos públicos. A vivência do pesquisador na produção dos eventos pesquisados favoreceu as relações com os entrevistados; professor da RME-BH desde 1987, o pesquisador envolveu-se em todos os movimentos pertinentes à implantação da Escola Plural, como diretor de escola, professor e depois como membro da GCPP. Esse envolvimento foi essencial, pois funcionou como garantia da possibilidade de recuperar a posteriori dados significativos para a interpretação das situações (VILLANI et al., 2006).

Buscamos os nossos dados em 20 entrevistas realizadas com gestores (GCPP, CAPE e GEREDs) da Secretaria Municipal de Educação, com o objetivo de resgatar as representações individuais sobre as transformações operadas na vida institucional. Também foram lidos os textos públicos produzidos (Cadernos da Escola Plural, Portarias, Ementas, Normas, Circulares), visando a contextualizar o fenômeno e a esclarecer aspectos vinculados às falas dos entrevistados, bem como a completar informações à medida que achássemos necessário. Anteriormente à entrevista, o propósito da pesquisa foi esclarecido e discutido com cada gestor, para que soubessem o que esperar e se sentissem à vontade para participar ou não. Salientamos que não houve recusas.

Buscamos também o discurso fundador e a trajetória da Escola Plural a partir das recordações de cada um dos entrevistados, completando- as com os textos públicos. Essa memória individual se expressa apoiada em tempos e espaços institucionais, que se traduzem em dados histórico-afetivos de cada um. Segundo Kaës (2005), a memória é dependente de uma experiência vivida e integrada a uma história de um grupo, que sustenta as memórias comuns e partilhadas, seus contratos e pactos ao longo de sua trajetória.

Ressaltamos um aspecto interessante que inferimos sobre a implantação. Segundo diversos gestores, existia um isomorfismo entre a tarefa dos gestores e a tarefa institucional. Que diferenças entre os membros foram negadas de forma a garantir essa coincidência? Acreditamos numa ilusão de atalhos durante a implementação da Proposta, a qual esteve presente como pano de fundo no momento originário; seu recalcamento permitiu criar uma estrutura mais formadora no trabalho. Acreditamos que essa ilusão perpassou a proposta ao longo de sua história.

Desenvolvimento

Os processos de fundaçã o da Escola PluraL

Ao pesquisarmos as origens da Escola Plural, encontramos um discurso fundador: a existência de experiências transgressoras nas escolas da rede municipal. Um ponto em comum aos entrevistados foi perceber essa matriz identificadora espelhada em todos. Vejamos o excerto de um dos entrevistados,1 gestor de uma GERED naquele período inicial:

I: Começando pela discussão das práticas emergentes. E é fato, porque elas têm um lado de inovação e um lado de conservação. Então elas são emergentes mesmo. Essas práticas sempre existiram, elas foram a base teórica e a referência na escrita do primeiro caderno da Escola Plural. E fato porque foi feito um levantamento, tem um documento, na biblioteca tem também, com relato destas experiências.

A certeza do fato e a sua confirmação pela presença no texto público demonstravam um consenso que não podia ser negado. Em muitas escolas, tratava-se de projetos pedagógicos mais abertos e adequados ao perfil de seus alunos. Uma experiência desenvolvida em uma escola referia-se a projetos construídos para grupos de alunos, em fase inicial de alfabetização, que não ficavam retidos. Vejamos o relato a seguir:

Ar: Em 92, com a chegada deste grupo de professores que tinham experiências muito significativas, a professora R., que era uma referência lá de se entregar para que aquele aluno aprenda, e a gente começou mesmo a fazer projetos de intervenção dentro da escola. A gente tinha projeto de recuperação, tinha projeto de musicalização, tinha um projeto que o menino ficava na antiga primeira série e, chegava no final do ano, se a professora percebesse que faltava um pouquinho só assim para ele dar conta da leitura e da escrita, ele não tomava bomba, ele ia para a outra série e ficava um tempo intermediário vencendo as dificuldades, a gente vai fazer depois na Escola Plural, a Rede foi fazer e a gente já fazia.

Percebemos, nas práticas emergentes, preocupações com a aprendizagem dos alunos, sobretudo a criação de novas formas de organização do trabalho escolar que atendessem a um público em situação de vulnerabilidade social, cujos docentes demonstravam sensibilidade para lidar com a diversidade cultural do alunado:

I: Você tinha mais eram grupos dentro de escolas, no primeiro turno, no terceiro, no primeiro ciclo, no segundo ciclo, na EJA, muitos grupos que se reuniam fora do espaço da escola, que se reuniam sábados, que faziam churrascos nos domingos para ler, estudar e produzir; isso era muito comum.

Não temos dúvidas do papel desempenhado por essas experiências na formatação de um projeto para a rede, bem como para desempenhar sua função em um campo de ilusão, no sentido proposto por Winnicott (1975); para o grupo de gestores, o discurso fundador centrado nessas experiências tinha a função de ligação entre a realidade psíquica de seus sujeitos e a realidade exterior, social e política, ou seja, um discurso mítico. O mito tem exatamente como função ser uma corrente de transmissão, mensageiro na fronteira de dois códigos, coletivo e individual (GREEN, 1994). Tal aspecto entrava em ressonância com as expectativas dos gestores:

I: "O que as escolas estavam fazendo?" Junto com isso um desejo muito grande de mudança porque nós chegamos ao governo. Então, nós temos agora a possibilidade de fazer a mudança que queremos, e também uma pressão das escolas que, na época, tinham autorizações especiais para ter projetos, e isso aí abriu a discussão, que durou nove meses em 93. Em 94, se intensificou.

Normalmente, em reformas educacionais, a cotidianidade da escola não é levada em conta, pois é considerada vazia, despojada de atividades criativas. Na representação daquele grupo de gestores, esses são os eixos que não podem se ausentar na construção de políticas educacionais, uma vez que sustentam a construção/afirmação das identidades docentes. Essa continuidade esperada entre comunidade e gestores, mediada pelas práticas emergentes, poderia levar à invenção de novos vínculos de pertencimento e à construção de outro projeto identificatório, um novo contrato narcísico (KAËS, 1997). Assim, olhar apenas os dados estatísticos e as soluções técnicas não seria suficiente:

I: Glaura [Glaura Vasquez de Miranda, Secretária Municipal de Educação] deu certa continuidade, e aí fez o levantamento: "Onde estão os pobres da cidade? Quais são as escolas que atendem os pobres? Quais são os problemas destas escolas? Vamos dar atenção a isso". E o Miguel Arroyo vem somando com essa preocupação: "Não. Já existem práticas, já existem respostas a essas dificuldades. Vamos atrás".

Em 1994 aconteceu um seminário, denominado Criança e Cidadania Plural e Divergente, que muitos consideraram o pontapé inicial da Escola Plural:

NV: Foi um seminário pequeno, que aconteceu no [Teatro] Marília. Quando você pensa "Criança e Cidadania Plural e Divergente", você já pensa em um pouco estruturar, e pensar que movimento era esse que estava na Rede. Então foi um movimento menor, mas eu fico pensando que ali foi o pontapé inicial para a discussão da Escola Plural. Até o nome do seminário na época foi esse.

Implicava, simultaneamente, perceber o grupo de profissionais como sujeito e objeto na implantação, e, dessa forma, a possibilidade de tolerar níveis e ordens diversas da realidade na forma de sustentar a Proposta, isto é, uma capacidade homomórfica (KAËS, 1997). Toda essa dinâmica intensificava os processos de mobilização. A transcrição a seguir, retirada da fala de uma entrevistada, reflete o caráter utópico contido nas promessas a serem levadas aos professores da rede:

NV: A gente acreditava profundamente, a gente acreditava mesmo. E tinha uma coisa muito legal: as pessoas que estavam nas regionais acreditavam. Todo mundo acreditava muito.

A essa militância juntava-se o apoio institucional do prefeito Patrus Ananias, no empenho em submeter ao Conselho Estadual de Educação o documento regulador da Proposta; do texto enviado, constava um tempo de quatro anos para a Proposta, de forma a se garantir legalmente a transitoriedade e o caráter experimental da Escola Plural. Tal fato era necessário, uma vez que a lei ainda em vigor era a n. 5692/71, extremamente normativa e rígida. Uma vez que a Proposta estava garantida no âmbito jurídico, o grupo voltava-se para as definições teórico-conceituais, necessárias às decisões a serem tomadas em pontos considerados críticos. Os principais aspectos estão mostrados a seguir:

I: Então foi muito tensa, porque havia algumas decisões que deveriam ser tomadas: "Série ou ciclo?", "Aprovação ou reprovação?", "Currículo mínimo ou currículo construído na interação com as escolas?". Não vamos esquecer que a condição de trabalho era diferente.

Aparentemente, os processos de avaliação não trouxeram grandes conflitos entre os gestores. Cada um dava provas de abertura à inovação, em relação a modos de refletir sobre suas práticas e desconstruir representações e valores arraigados. Vejamos o excerto do professor E, membro de uma GERED:

E: Revi princípios que eu defendia, por exemplo, a questão da retenção; eu achava que a retenção era um instrumento de aprendizagem, e a gente retinha com muita consciência de que, além de um instrumento de aprendizagem, era também de amadurecimento: "Ah, é bom que você fica mais um tempo porque aí você amadurece". E depois eu comecei a rever isso. Mexia era com a autoestima do menino que perdia a sua turma. Então, eu fui sendo convencido no processo. A gente raciocinava junto com a equipe.

Outra questão polêmica entre os gestores referia-se à metodologia de implantação, isto é, se a Escola Plural inicialmente teria como abrangência toda a RME ou se definiria algumas escolas-piloto:

V: A posição de muitos é que devia ser feito à base de pilotos, para depois ir se estendendo. E não ser piloto isso foi uma discussão refletida, estabelecida e tomada sob pesados prós e contras.

Inferimos que essa foi uma questão conflituosa para aquele grupo, sendo uma decisão tomada sob pesados prós e contras. Em nossa interpretação, tal decisão levou em conta a capacidade daquele grupo de garantir um espaço transicional que possibilitasse as trocas e a comunicação, os confrontos, os mecanismos de defesa e a sustentação do ideal partilhado:

I: Quando o projeto já estava escrito, teve uma noite fatídica que era para tomar essa decisão, se vai para a Rede toda ou se não vai. Claro que depois de discutir com todo mundo. Aqui a discussão era coletiva, e muito, o Miguel nesse ponto foi assim, e Glaura, porque Glaura que o convidou, que sabia que ele ia dar conta de fazer tudo isso, e sustentava politicamente também.

Dois pontos nos chamam a atenção: o primeiro refere-se a uma noite fatídica, indicadora de discordâncias no seio daquele grupo; o segundo ponto refere-se à participação de Miguel Arroyo e de Glaura para sustentarem essa decisão, tendo como pano de fundo uma discussão coletiva. Inferimos a capacidade dos secretários de promover e sustentar essa conflitualidade na mudança, isto é, eles selavam tanto o contrato narcísico como o pacto denegativo entre os gestores. No excerto a seguir, percebemos que, sem a sustentação do secretário adjunto, a decisão poderia ameaçar a manutenção do grupo:

I: É claro que não foi uma votação assim [gesto de "a ferro e fogo"], [...] e quem perdeu falou: "Tudo bem. Se é isso que vocês querem". Nós achamos que devia fazer por adesão, não piloto, mas por adesão. E Miguel achava que nós devíamos fazer um processo geral e dialogado. Aí ele vem com aquela elaboração de um processo da construção coletiva, que eu acho que é como foi feito.

Interpretamos a decisão tomada pelos gestores como a escolha de um caminho mais difícil, pois se colocariam em confronto, em uma zona fronteiriça mais ampliada, posições político-ideológicas, teórico- -conceituais e socioculturais. Segundo a gestora I, diante da autonomia que constava do texto público, a escola deveria ter respostas:

I: Nós tivemos vários procedimentos, entre eles um curso para diretores e coordenações pedagógicas, a realização de muitos encontros com as coordenações, direções, coletivos de professores, sempre com essa posição: "Olha, nós estamos trazendo uma resposta, que nos foi colocada pelo governo, pela sociedade, por vocês mesmos. Se não concordam, propõem o quê?"

Tal transcrição remete-nos à complexidade da escolha realizada pelos gestores: ao se propor que a implantação não seria apenas em escolas-piloto, tanto os gestores quanto a comunidade escolar da RME tinham um papel na implantação, porém com autonomia suficiente para escolher determinado caminho pedagógico em suas escolas. A negação surge diante da impossibilidade de se fazer qualquer interpretação do texto, ou seja, as escolas não poderiam se manter numa postura considerada tradicional. Se, por um lado, tal caminho é mais árduo, por outro, cria brechas para o desdobramento do espaço psíquico do sujeito, enriquecendo as modalidades que unem e separam obrigação e autonomia (GREEN, 1994).

De forma análoga, a discussão curricular apostava no protagonismo de professores e alunos em sua construção; fornecer um currículo mínimo, no sentido de uma simples relação de conteúdos programáticos, não estava na pauta daquele grupo de gestores:

V: A gente queria ampliar essa perspectiva do currículo enquanto um rol de conteúdos, para dar conta de ver o currículo como essa coisa que constitui o sujeito, mas que também é constituída por ele.

Outra polêmica referiu-se à criação de outro órgão gestor, em 1996: a Coordenação de Política Pedagógica - CPP. Inicialmente, tinha como objetivo dar um tom mais político para a Proposta e assessorar a secretária na formulação da política educacional:

D: A CPP passa a existir naquele ano com essa função de dar uma direção política para a própria Rede, enquanto o CAPE viria com a formação.

Diante das incertezas e da necessidade de tomada de decisões, vimos surgir a figura do secretário adjunto, com uma qualidade: a capacidade de projetar um futuro utópico, e de simultaneamente participar na construção e na manutenção das alianças inconscientes. Segundo Kaës (2005), compreender o porta-voz é essencial para compreender as articulações entre o sujeito do/no grupo e o grupo. O lugar que ocupa é necessário para dispor a identificação narcísica, no ponto em que se atam os lugares subjetivos dos vários gestores. Em nossa leitura, Arroyo, como intermediário, cumpriu a sua função sob o modelo metafórico. Encontramos esses lugares e funções do secretário adjunto, como porta- -voz, em diversas narrativas dos entrevistados. Primeiro, no fato de conhecer algumas práticas desenvolvidas na Rede:

R: O Miguel fazia uma consultoria antes da Escola Plural. Porque ele era consultor da escola à noite, dos nossos projetos com jovens e adultos.

Em segundo lugar, na teorização das práticas emergentes, ao fazer emergir significantes até então indisponíveis para os outros, simultaneamente à proposição de uma estrutura administrativa coletiva na formulação e execução dos caminhos a serem trilhados, para os diferentes órgãos da SMED-BH:

I: Nos momentos de início da discussão do que seria um projeto político-pedagógico chamado Escola Plural, quando Miguel se propôs a unificar o CAPE e chamar as pessoas que estavam em qualquer âmbito da Secretaria de Educação que trabalhavam com o pedagógico, constituir um grupo, então, nesse momento, o ponto de partida foi a discussão dessas experiências emergentes.

Também girava em torno do secretário adjunto a possibilidade de conter as incertezas dos vários membros gestores. Segundo E, configuravam- se, assim, uma voz e um discurso de acompanhamento e de atribuição de sentido para os sujeitos do grupo:

E: A gente sentia necessidade de estar aprofundando. E muitas vezes: "Eu vou para a escola". E a gente se preparava antes, às vezes até no final, para ler livros, textos, consultava e perguntava para o Miguel: "Este texto está bom para a gente discutir?" Porque a gente se sentia muito inseguro na época.

Além disso, pesava o fato de ele não ser um secretário de gabinete, mas que compartilhava as dificuldades e conflitos que surgiam nos debates com as escolas. Foi nesse cenário que surgiu a Primeira Conferência Municipal, ato de apresentação da Escola Plural, que reuniu aproximadamente 2.000 professores no Centro de Convenções do Minascentro:

NV: É colocar todos os professores da rede dentro do Minascentro. Sabe o que é isso? E aquele encontro inaugura o processo da Escola Plural.

Começava o romance institucional da Escola Plural em toda a RME-BH.

A Escola Plural como fronteira: os papéis ofertados, desejados e impedidos

Em 1994, aconteceram as plenárias sobre as novas proposições, e já se podiam entrever as dificuldades diante do anúncio de novas formas de trabalho:

MM: Nós tivemos aquelas plenárias regionais, para decidir se implantava ou não a Escola Plural. E nós tivemos duas plenárias. Com professores. Aí era mais pesada. Os professores batiam muito, mas a grande maioria não negava o projeto. As questões eram muito mais de interesse e de saber como do que de rejeição.

Teve um grupo de pessoas que apontou que a Escola Plural era na linha neoliberal. Era muito difícil de dialogar com essas pessoas. Porque era para acabar com a retenção apenas. Vislumbramos, nesse diálogo, duas tendências no debate com a categoria de professores: de um lado, professores que apontavam mais preocupações no como fazer para concretizar do que rejeitavam a proposta. De outro, aqueles que discutiam o projeto sob um viés político e ideológico: consideravam-no como uma ofensiva neoliberal por parte daquela administração. Não se podia perder de vista que a rede estadual de Minas Gerais propunha, nesse mesmo período, e sob a égide do Paradigma da Qualidade Total, mudanças significativas na educação, e, dentre elas, a formatação da organização do trabalho em ciclos. Os gestores da SMED-BH necessitavam de uma nova fronteira, isto é, que os ciclos de formação da Escola Plural fossem diferenciados dos "ciclos do Estado".

Tal demarcação tornou-se necessária para compreender: de um lado, a ruptura entre o sistema seriado e a Escola Plural; e, de outro, a construção de uma fronteira entre uma proposta sustentada por princípios não excludentes e outra, formatada pelo discurso da inclusão raptado por uma ideologia de mercado. A questão central referia-se aos conflitos e mesclas entre concepções diversas sobre a função social da escola, se seletiva ou não. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2001), o convencimento é uma busca de adesão baseada na motivação para a ação, gerando um campo caótico, onde tal adesão pode ou não ocorrer; implica, inclusive, a possibilidade de recusa, desde que o sujeito continue no debate, pois em permanente formação. Estamos aqui próximos do conceito de viver na fronteira, tal como trabalhado pelo autor. Invenção de novas formas de sociabilidade, hierarquias fracas e relações sociais fluidas: misturas de estranhos e íntimos, de herança e invenção, sentimentos de amor e de rivalidade. Buscava-se repensar a educação a partir dos eixos da Escola Plural, sem a pretensão de uniformizar as novas práticas, de forma tal que cada profissional e/ou escola encontrasse mecanismos para lidar com os novos alunos.

Ganhar o professor, e não vencê-lo. Lidava-se, dessa forma, tanto com o desconhecido (para alguns era novidade) quanto com a transicionalidade (outros já estavam tentando fazer), mas sustentando um campo do possível. Nessa zona de contato, a intencionalidade inferida na proposta de formação sugeria um respeito pela pluralidade de tempos e durações necessárias à elaboração dessas práticas pelos atores; o trabalho de articulação e tradução entre as diversas práticas, bem como as incertezas que envolviam os códigos, impossibilitavam os gestores de afirmar qual seria a melhor prática e qual a melhor metodologia envolvida, condizentes com os eixos da Escola Plural.

A partir do congresso, a tarefa dos gestores se direcionou para a concretização do modelo fundacional. Um dos caminhos foi a proposição de um trabalho de formação:

D: Na época da implantação, teve muitas oficinas que foram a todas as escolas, e também houve, a partir daquele ano mesmo, um curso mais intensivo que abrangia o curso de 360 horas. Esse curso se manteve durante oito anos. Sempre que a escola pedia e decidia, ela teve disponibilidade da Secretaria, tanto junto ao CAPE para um acompanhamento, quanto para fazer uma proposta de formação com professores contratados pela própria escola. Cursos de Alfabetização, cursos de Projetos de Trabalho. Por exemplo, a oficina de Globalização do Conhecimento, e depois a Oficina de Organização dos tempos Escolares, ela atingiu, pensando só num universo de cento e setenta escolas, ela deve ter atingido, em turnos diferentes que multiplicam um pouco, ela deve ter atingido por aí umas cento e quarenta escolas.

Ao fazer uma retrospectiva daquele tempo, MD menciona que a inserção dos alunos deixou os professores "sem chão". Alguns colegas, porém, avançavam, apesar das dificuldades:

MD: No interior da escola, já rolava discussões do grupo do ensino médio, que procuravam compreender a proposta e o impacto dela na escola. Passei a ter contato com algumas pessoas do primeiro e do segundo turno; aí eu percebi que o movimento foi muito tenso, de apropriação, de rejeição. Para muitos professores, caía como uma prescrição mesmo. Era uma escola que estava inserida num contexto social muito precário, tinha muita dificuldade em reconhecer aqueles alunos. Esse movimento de repensar o espaço escolar, tendo como principal eixo a questão do direito, de possuir e construir saberes e conhecimentos, eu acho que isso impactou muito a prática dos professores. Para muitos, foi tirar o chão mesmo. O que ficou difícil foi esse movimento de reconhecer quem são esses alunos, que processos a gente deve estar construindo para que atenda às suas reais necessidades

De forma semelhante a outras escolas, percebemos que, embora uma parte do grupo procurasse compreender os eixos da proposta e colocá-la em prática, alguns professores a viam como uma prescrição. Todos os entrevistados, no entanto, reconheceram os avanços que a Escola Plural proporcionou ao cotidiano escolar, principalmente no que tange à ampliação dos componentes curriculares, ao fato de os alunos terem um tempo maior para a aprendizagem, na construção de novos espaços e formas de acolhimento aos alunos, e nos processos de socialização vividos. Uma excelente síntese foi proporcionada pelo professor MD:

MD: Eu acho que foram os professores, acho que está faltando sensibilidade para a gente perceber que muitos professores, nessa perspectiva de se reconhecerem como sujeitos, muitos também se reconheceram como portadores da utopia: "É possível construir algo para além disso, é possível reconhecer nesses alunos aqui sujeitos de direitos e de conhecimento. Você tem projetos de construção coletiva que são extremamente significativos". E você tem escolas que ainda hoje são refratárias.

E essa representação é complementada por outro entrevistado:

R: Eu vejo hoje que a escola tem uma resistência menos intensa, e acho que, de certa forma, essa concepção da inclusão, da Escola Plural, apesar de não ser implementada da forma como a gente queria, ela já se disseminou nas escolas. Eu acho que o que sustenta isso é o trabalho dos professores, é a discussão deles na escola. Ela está indo devagar, mas que você tem que fazer realmente a ruptura.

Encontramos o fio condutor para a continuidade desse trabalho: De que falta de sensibilidade nos fala MD? Que efeitos são introduzidos no texto público, na medida em que a Proposta Escola Plural não foi implementada como a gente queria? Arroyo nos escreve sobre as inovações na educação:

As opções teóricas e pedagógicas, a abertura ou resistência à inovação não é tanto uma questão de ignorância dos mestres e familiares, de esclarecimento ou de conhecimento teórico, nem ideológico e político, mas é basicamente uma questão de autoimagem e identidade pessoal e profissional reforçada por interesses e valores sociais. Não é fácil redefinir valores ou pensamentos, práticas ou condutas socialmente incorporadas a nossa personalidade profissional. É uma violência íntima. Exige muito cuidado e respeito. (ARROYO, 2000, p. 70)

Segundo a avaliação realizada pelo Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais - Game/UFMG -, enquanto a maioria dos professores de 1º e 2º ciclos aparentava lidar com os novos processos de formação, os professores do 3º ciclo apresentavam maiores resistências (DALBEN, 2000a). Ribeiro (2002, p. 484) escreve sobre o potencial metafórico do viver na fronteira:

Se, para uns, a fronteira proporciona uma reconfiguração de identidade enriquecedora, para outros pode ter um significado puramente distópico, funcionando como espaço intransponível ou inabitável de exclusão e de violência coercitiva.

Deparamos, assim, com uma recusa de grupos de professores à implantação da Proposta; junto a essa recusa, perguntavam sobre qual a real autonomia contida na proposta, uma vez que, na visão desse grupo, não era permitido à escola definir seus próprios critérios de seleção, enturmação e avaliação dos alunos. Em nossa interpretação, a questão que se colocava era: Como instituir um espaço de pensamento sobre essas hostilidades? Se, por um lado, as questões pertinentes à inclusão dos alunos permeavam os debates - um dos eixos da Escola Plural -, por outro, pontos críticos sobre a implantação decorriam desses encontros e se expressavam no caráter prescritivo da Escola Plural, na impossibilidade de reprovação ao longo dos ciclos, na desordem provocada pelos alunos e na falta de um currículo mínimo para as escolas (DALBEN, 2000a).

Encontramos, também, professores que se expressavam favoráveis e já seduzidos para um novo olhar para as necessidades e interesses dos alunos, em consonância com os eixos da Proposta. Entretanto, manifestavam suas dúvidas sobre a organização do trabalho escolar que melhor lidasse com os alunos. Seus questionamentos exprimiam a possibilidade de experimentação: Que currículo a escola deve construir para esses alunos? Como avaliá-los diante dessa nova realidade? É nessa tensão que veremos surgir uma dimensão negativa nas entrevistas de alguns gestores, em conjunto com uma demarcação defensiva na zona fronteiriça.

A dimensão do negativo

Em nossa interpretação, os gestores procuravam, nesse período, compreender a implantação da Proposta não como uma mera adesão ou recusa aos eixos da Escola Plural. A ilusão de atalhos esteve recalcada. As dificuldades vividas pelos professores não eram vistas como uma simples insuficiência teórica e/ou de conteúdos, a ser preenchida em curto prazo pelos cursos de formação. A sustentação dessa capacidade homomórfica (KAËS, 1997) era garantida pelos gestores.

Porém a experiência de não saber fazer, por um lado, e a agressividade de parte do professorado, por outro, trouxeram aos gestores a ideia de fragilidade na metodologia de implantação da Proposta.2 Despontava uma dimensão idealizada nas entrevistas de vários gestores:

I: A gente entrou de coração aberto e de muita boa vontade, mas com uma certa i-realidade teórica.

Em nossa interpretação, mesmo prevendo as resistências, a i-realidade mencionada é indicativa da possibilidade esperada de os professores se movimentarem conjuntamente rumo à discussão da proposta. O excerto a seguir, pronunciado por NV, mostra a mudança de concepção que se instalava entre os gestores:

NV: Você pega hoje o primeiro caderno. Eu pegava e tinha alguns momentos que eu ria da pureza da gente, dessa certa inocência. Dessa coisa da paixão mesmo, que estava lá colocada. A gente jura que acreditava que aquilo ia chegar na mão do professor, ele ia ler e ele ia dar conta de entender. A gente estava mudando o mundo de ponta cabeça. E não entendia porque eles resistiam tanto [risos], e esse primeiro impacto foi um impacto forte na rede.

E este excerto encontra ressonância na fala de I:

I: E a implantação generalizada justamente não favoreceu isso, porque você tinha que dialogar com quem estava reelaborando e concordando. E com quem estava totalmente contra e boicotando, e um bolo aí no meio que era de tudo. Então, eu deposito isso na conta da metodologia de implantação. Eu hoje acho que a metodologia de implantação tinha que ser por adesão, porque você teria tempo da construção coletiva, e o tempo da articulação dos problemas da implantação, mais espaçados.

Os dois excertos anteriores são extremamente significativos. O surgimento de problemas trazia desconforto a alguns membros; à mistura de estranhos e íntimos presentes naquele bolo, acrescentavam-se alguns elementos de uma inquietante estranheza, uma vez que não se tinha respostas para todas as indagações. Na visão de parte dos gestores, a resistência encontrada ao mudar o mundo de ponta cabeça nos sugere o risco de perder o outro. Em nossa leitura, o excerto, ao mencionar as alianças construídas na cena inaugural - a decisão de implantar na rede toda -, questionava a unidade do grupo. A negatividade, expressa pelos professores, adentrava o grupo de gestores. A estranheza mencionada referia-se à dificuldade que uma parcela dos gestores começava a sentir em reconhecer o seu próprio papel na sustentação da proposta. Negatividade que se relacionava com o pedido de currículo mínimo:

I: Aí é que nós fomos percebendo que, quando você quer um currículo mínimo, uma vez que o PCN estava aí, uma vez que os cadernos da Escola Plural estavam aí, você está com dificuldade de focar no aluno. Você está com dificuldade de assumir esse foco, você ainda está com um foco no programa.

A dimensão do negativo infiltrava os gestores por vários caminhos. Um deles sustentado pelo pressuposto de que o professor precisava de um roteiro:

NV: A Pedagogia de Projetos virou a coqueluche da rede, mas as pessoas não sabiam como é que lidavam com isso, como que isso dialogava com seu conhecimento, com a construção do conhecimento. Era tudo muito novo, então, o professor precisava de um roteiro. Sempre precisou.

Retornava o que estava recalcado: o desejo de prescrição, afirmando um lugar de objeto para o professor. Perdia-se a crença no professor como capaz do "pensar certo":

R: Eu acho que, a princípio, e eu também fui uma defensora, acho que hoje nós erramos porque nós não quisemos discutir currículo. A gente achava que realmente cada um ia lá e construía seu currículo, seu conteúdo, não era uma utopia? A gente acreditava que cada um iria dar conta.

Nessa visão, não se podia mais contar com o professor para encontrar uma unidade que fosse satisfatória, mesmo que imaginária. As palavras de Paulo Freire (1982, p. 57) trazem um auxílio na compreensão dessa virada: "se esta crença nos falha, abandonamos a ideia ou não a temos, do diálogo, da reflexão, da comunicação e caiamos nos slogans, nos comunicados, nos depósitos, no dirigismo". O gestor S, membro da GERED, revela bem essa tensão. O excerto a seguir, retirado de sua entrevista, permite-nos visualizar a presença dessas representações ambíguas; faltava algo aos professores:

S: Em alguma medida, há descompromisso, na medida em que o professor, com o fim da retenção, de alguma forma, ele se sentiu desresponsabilizado pelo processo de aprendizagem. Então, quando a Escola Plural e outras propostas colocam na mão desse sujeito, "Olha, agora está bom, você vai elaborar um currículo com seus colegas e tendo o aluno como foco de seu currículo", aí, na prática, esse sujeito se sentiu mal, porque ele não conseguia. Ele não tem uma formação, e aí talvez uma outra utopia da Escola Plural tenha sido superestimar a formação que os profissionais da rede tinham e a capacidade de, com essa formação, fazer uma reflexão sobre a escola que se tinha.

A negatividade também apareceu naquilo que não foi realizado em função do cerceamento construído pelo próprio projeto: não ferir a autonomia da escola. Se, por um lado, a proposição dos eixos da Escola Plural partia das imagens e identidades construídas pelos docentes nos movimentos sociais, de outro, constituía também empecilho. Devido a esse mesmo espírito democrático de afirmação dos direitos, essa parcela dos gestores sentiu-se coibida durante algum tempo de tomar algumas medidas na rede que fossem normativas:

NV: Para você dar conta dessas outras dimensões formadoras você tinha que ampliar a concepção de currículo porque esses sujeitos, em sua grande maioria, professores, não ampliaram. Ele não teve formação inicial para isso. Ele não viu o currículo nessa perspectiva. O cara da Matemática ainda acha que alfabetizar não tem nada a ver com ele. Eu acho que isso faltou sim, da gente ajudar o professor a ter um eixo. Essa discussão aconteceu muito, em algumas escolas tem esse referencial colocado. Você não tem isso para a rede como um todo e em função até de não querer ferir a autonomia das escolas. Só que, quando se pensa em não ferir a autonomia da escola, você deixa de pensar numa coisa que é maior do que a escola, que é maior do que a rede inclusive, porque você tem uma diretriz nacional. Porque a gente também tinha uma concepção que era a nossa concepção de currículo e a gente contava que esses professores tivessem a mesma concepção.

Existiam, entretanto, gestores que ainda garantiam a sustentação das tensões e as mediações necessárias, e que se mostraram capazes de tolerar as dicotomias presentes, transformando o paradoxo em conflito. Sobretudo, aptos a sustentarem as fronteiras permeáveis e garantirem que essas regressões no grupo de gestores ocorressem sem perder de vista sua unidade. Entre esses membros, novamente encontramos as figuras da Secretária e do Secretário Adjunto de Educação. Você tinha gente que sustentava a Escola Plural como uma proposta aberta, isto é, que selava o acordo sobre um dizer que dividia. E, essas mesmas pessoas faziam a diferença junto aos profissionais da rede. Percebemos essa sustentação tanto internamente no grupo de gestores, como externamente, na hostilidade recalcada da comunidade escolar com a figura do Secretário Adjunto. Mais do que promover consensos, o espaço criado pela implantação da Proposta Escola Plural permitiu a troca e o confronto entre profissionais com pertencimentos diferentes, de modo a perceber a imagem que possuem de si mesmos e de suas representações recíprocas. Deixamos o problema em aberto: como a nova gestão irá lidar com essa dimensão do negativo?

Conclusões

Deparamos com uma complexidade inesperada nos dois primeiros anos de existência da Escola Plural. Na mudança do lugar assinalado ao professor, encontramos uma dupla ruptura: com o espaço curricular - a experiência do não saber fazer -, e com o espaço institucional - não ser reconhecido. Por outro lado, havia avanços significativos nas escolas. A visão que trazemos é a dos administradores responsáveis pela implantação da proposta ao longo desses dois anos: de que forma o texto público e a tarefa daquele grupo foram alteradas diante dos impasses vividos?

A Escola Plural começou, sobremaneira, com um ideal muito forte. A Proposta nasceu fundamentalmente apoiada em experiências de aprendizagem que procuravam suprir e dar respostas ao déficit de uma escola de qualidade para aquelas crianças que tinham histórias de vida marcadas pelos processos de exclusão. Dessa forma, notamos explicitamente as dimensões política, ética e ideológica contidas na Escola Plural. Esse é o ponto e a concepção inicial da Proposta: um novo olhar sobre as práticas existentes nas escolas, mas que estavam marginalizadas na rede.

A expectativa contida entre os formuladores da Escola Plural implicava tanto promover essas práticas, de forma a alavancar a sua inserção institucional, como reconhecer os sujeitos envolvidos nelas; por outro lado, constituiu um convite explícito para os outros docentes, resistentes à mudança, desenvolverem metodologias de trabalho que contemplassem os eixos norteadores da Proposta. Constituía, sob esse ângulo, uma zona fronteiriça, na qual o importante era manter as representações díspares em contato, de forma que nenhuma delas pudesse se definir exaustivamente. Por isso, o reconhecimento da ruptura pelos gestores e a necessidade de se construírem os intermediários (KAËS, 2005) que articulassem os professores com a Proposta, e garantissem a inserção e a permanência dos alunos nas escolas. Nesse sentido, os ciclos de formação são compreendidos como mecanismos de passagem e não soluções meramente técnicas e paliativas.

Parece ser fundamental a ilusão inicial contida na Proposta. Para Kaës (1991), a refundação de uma instituição não pode dispensar a ilusão de ser inovadora e, ao mesmo tempo, conquistadora. A ilusão, amparada no reconhecimento e no diálogo com as práticas emergentes, sustentou o risco e os sacrifícios para participar da nova Proposta. Para um amplo grupo de profissionais da RME-BH, a utopia inicial que a Proposta trazia em seu bojo - é possível construir uma escola de direitos - foi capaz de sustentar a realização do projeto institucional, dispor a identificação narcísica e o sentimento de pertencimento a um conjunto amplo e suficientemente idealizado para enfrentar as dificuldades.

Esse contrato inicial implicou o estabelecimento de um pacto denegativo em sua contracapa (KAËS, 1991, 2005). Entre os membros do grupo de gestores, pareceu-nos fundamental o recalcamento de representações que poderiam comprometer as ações coletivas e as formas de atuação daqueles gestores. Devido à forte ressonância entre as diversas lógicas envolvidas, acreditamos que as representações recalcadas relacionavam- se a uma possível ilusão de atalhos. Ao reconhecerem a ruptura provocada, pretendiam, em concordância com os textos, proceder a uma ampliação simbólica dos saberes e práticas, por meio da constituição de uma zona fronteiriça ampla, na qual os sujeitos pudessem explicitar seus conflitos e exprimir as rivalidades. Sabiam das dificuldades que surgiriam em todos os níveis (teórico-conceituais, políticos, ideológicos) e que as transformações das representações e valores dos professores não se dariam em curto espaço de tempo. Porém, para vários gestores, era esperada também uma adesão dos profissionais da rede. Diante de questões que cada um se fazia - O que essa Proposta realmente significa? Qual a nossa capacidade de dar conta dela? -, ficava o indício de que havia ali uma excelente ideia, um projeto capaz de seduzir a cidade. Em concordância com Kaës (2005, p. 185), são essas formações e pactos que impedem a compreensão de que os ideais comuns gerem uma inquietante estranheza em nós mesmos: "o que se torna estrangeiro a nós mesmos é o papel que temos na sustentação desses ideais e que nós não sabemos". Tanto na manutenção dos antigos vínculos quanto na invenção de novas vinculações, somos confrontados com esse inacabamento (FREIRE, 1982), pois ele se relaciona com a possibilidade de questionamentos dos valores interiorizados pelos sujeitos, grupos, e instituições:

[...] a complexidade do sistema de organização, do enquadre institucional, e de sua eventual evolução está ligada ao fato de que eles não são objetos exteriores às pessoas, e que as pessoas não são externas às estruturas. (ROUCHY; DESROCHE, 2005, p. 28)

E, nesse caso específico, a presença do Secretário Municipal Adjunto de Educação - sujeito do/no grupo - auxiliou na manutenção tanto do novo contrato como do pacto sob um modelo metafórico (KAËS, 2005). Em diversos momentos, a sustentação e a tolerância às posições conflitivas no grupo foram sempre pensadas como possibilidade de superação. Como intermediário, estabelecia-se como elemento de ligação entre cada um dos gestores entre si e desses com os eixos da Escola Plural. Ressaltamos uma qualidade gerada nesse grupo: a sua capacidade de sustentar o vazio que a proposta carregava com ela, e as incertezas que vinham juntas. É em relação à forma de se trabalharem as diferenças, no grupo e na vida social, que se restauram e se transmitem os processos de construção de sentidos em todos os níveis da instituição. Não formamos educadores inovadores, no trato com os alunos, se os "manietamos" do alto dos gabinetes, escreve Paulo Freire (2005).

Além disso, a proposição de se manter uma relação dialógica (FREIRE, 1982), explicitada no momento da implantação, foi outro ponto positivo contido na Proposta: se o trabalho fosse apenas a aplicação de pensamentos e formas de ação pensados em gabinetes, ele não traria problemas. Assim, a possibilidade de convencer os profissionais da rede implicava também a possibilidade de recusa, porém com os interditos necessários (FREIRE, 1982). A metodologia de implantação da Proposta, sem gradualismos, trazia junto uma retórica argumentativa, a qual sugere que o profissional podia recusar, porém com a busca de outros caminhos. Esses, certamente, traziam obstáculos à satisfação dos profissionais, mas permitiam que percebessem a mobilidade do novo lugar assinalado, acedendo a um novo conhecimento. Dessa forma, estava explícito, pelo menos em nossa compreensão, que não havia um único caminho para ser plural, mas possibilidades de construções conjuntas sobre seu significado. Os mecanismos de passagem, proporcionados pelos gestores na fase da implantação, apontavam nesse sentido: criar formas e possibilidades múltiplas de experimentação na concretização da Proposta. A resistência e recusa, nesse caso, eram compreendidas como diferentes formas de intimidade e de experimentação da Proposta, e que deviam ser consideradas em um enquadramento firme, mas flexível. Tarefa nada fácil.

Ressaltamos, também, o impacto da mudança, manifestada tanto pela resistência feroz dos professores do 3º ciclo como pela experiência do não saber fazer, de não dar conta de lidar com os alunos. Nesse sentido, a questão encontrava uma complexidade maior do que parecia à primeira vista: como quebrar os pactos presentes na rotina escolar, de forma a permitir que os alunos permanecessem em um ambiente escolar menos hostil à alteridade? Segundo os gestores, tolerando as multiplicidades de experiências e saberes docentes, uma vez que todos somos objetos de uma estrutura e sujeitos de nossas ações. Isso significa apostar o tempo todo no professor, conservar a confiança no outro, em si próprios e nos dispositivos colocados como possíveis intermediários, conter as angústias e considerar as inquietações dos profissionais com toda seriedade (ARROYO, 2000).

As justificativas criadas pelos gestores diante das resistências sugeriam a dificuldade em se lidar com o desconhecido. Inferimos que, implícita a essas debilidades, encontramos uma visão de temporalidade para a mudança; compreender a necessidade de um tempo maior para construir coletivamente a proposta quebrava a utopia de uma ilusão de atalhos. O que antes era incerteza como parte de um ideal agora se transformava em complexidade diante da realidade: a necessidade de controlar e monitorar o processo. Dessa forma, tinha-se clareza de que um currículo mínimo não resolveria, pois seria retornar à possibilidade de uma resposta única para problemas mais complexos. Empreender tal ação seria encerrar o processo de emancipação em um formato prescritivo, o que seria contrário à própria inovação (ARROYO, 2000), ou seria a troca de uma regulação por outra, sobrepondo-se à emancipação (SANTOS, 2001).

Pensar em um "tempo curto" seria pensar na proposta como uma obra fechada. Percebê-la como uma obra inacabada significa a necessidade de um tempo intermediário; não um tempo de preparação a priori para lidar com o desconhecido, mas um tempo para a Proposta resistir às vicissitudes que surgiam, elaborando os imprevistos a partir de seus próprios sujeitos. Podemos fazer uma analogia com as ideias de Kaës (2005), quando escreve sobre o fato de que o conhecimento se produz e transmite com aquilo que Winnicott descreveu como a colocação à prova do objeto pelo movimento agressivo em relação a ele. Isso supõe que os gestores estejam suficientemente confortados para não se identificarem com o objeto que os professores agridem, não para destruí-lo, mas para dele se apropriarem. É preciso poder transformá-lo, criticá-lo e, na relação de rivalidade com os outros, fazer a experiência do que podemos criar com esse objeto. Sem essa transformação, o que se transmitiria seriam apenas incorporações, levadas à perfeição ideal, garantias frágeis contra a falta de saber, contra a experiência da dúvida.

Nesse sentido, a simplificação do problema conduz-nos a um desconhecimento, isto é, não se consegue saber como modificar uma rotina para lidar com essa alteridade, que dá lugar a pactos que se expressam nas diversas formas de violências instituídas. Nesse sentido, as diversas práticas construídas nas escolas da RME-BH após a implantação da Escola Plural têm muito a nos ensinar sobre essa complexidade.

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1Todos os entrevistados foram caracterizados por letras, de forma a não serem identificados; nomes de escolas, colegas de trabalho e de gestão também foram alterados e/ou suprimidos, porém buscando não perder a compreensão e significados dos excertos. Os termos em negrito, presentes nos recortes das falas, são para reforçar alguma ideia, marcada pelo próprio entrevistado, ao alterar o tom de sua voz.

2Conforme vimos em nosso referencial teórico, as regressões não são isomorfas a todos os membros, e sim enquadradas pelos efeitos do conjunto.

Recebido: Dezembro de 2015; Aceito: Março de 2016

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