SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.49 número174FORMACIÓN DE PROFESORES DE EDUCACIÓN INFANTIL Y EL PIBIDCATEGORÍAS TEÓRICAS DE SHULMAN: REVISIÓN INTEGRATIVA EN EL ÁMBITO DE LA FORMACIÓN DOCENTE índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.49 no.174 São Paulo oct./dic 2019  Epub 20-Nov-2019

https://doi.org/10.1590/198053146109 

TEMA EM DESTAQUE

LEITURA E ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CONTEXTOS E PRÁTICAS EM DIÁLOGO

Maria Fernanda Rezende NunesI 
http://orcid.org/0000-0003-3696-9369

Patrícia CorsinoII 
http://orcid.org/0000-0003-4623-5318

I Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rio de Janeiro (RJ), Brasil; nunes.mariafernandarezende@gmail.com

II Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil; corsinopat@gmail.com


Resumo

O artigo analisa relatórios de entrevista e observação de 27 escolas e turmas da pesquisa “Boas práticas de leitura e escrita na educação infantil”, em sete municípios de regiões brasileiras. Boas práticas são aquelas nas quais infância e experiência, educação e cuidado constituem binômios de criação, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) 2009. Apresenta-se um perfil das escolas e são analisados os registros de observação segundo as categorias espaços e materiais e interações e interlocuções. Revela-se, nas conclusões, a busca de uma identidade para a educação infantil, na forma dialógica como as professoras escutam e respondem às crianças. Na creche, predominam práticas de cunho lúdico-simbólico, enquanto na pré-escola estas ainda convivem com outras mais diretivas, pautadas em conteúdos relacionados à alfabetização.

Palavras-Chave: EDUCAÇÃO INFANTIL; LEITURA; ESCRITA; PRÁTICAS EDUCATIVAS

Abstract

The article reports an analysis of interviews and observations carried out in 27 schools by the research team in charge of project “Boas práticas de leitura e escrita na educação infantil” [Good reading and writing practices in Early Childhood Education], which encompasses 7 counties in different Brazilian regions. Good practices are the ones in which childhood and experience, education and care are creation binomials based on the Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil [National Curriculum Guidelines for Early Childhood Education] (DCNEI - 2009). The article introduces the profile of the assessed schools and analyzes the observation records according to space and materials and interaction and interlocution categories. Based on the results, it is essential to seek an identity for early childhood education based on the dialogic way teachers listen and respond to children. Ludic-symbolic practices prevail in daycare centers, whereas these practices are added with more directive practices in pre-schools, which are substantiated by contents linked to literacy.

Key words: EARLY CHILDHOOD EDUCATION; READING; WRITING; EDUCATIONAL PRACTICES

Résumé

Cet article analyse des rapports d’entretiens et d’observation de 27 classes de differentes écoles dans le cadre de la recherche sur les “Boas práticas de leitura e escrita na educação infantil” [Bonnes pratiques de lecture et d’écriture dans l’éducation de la petite enfance], menée dans sept communes de plusieurs régions brésiliennes. Les bonnes pratiques sont celles où enfance et expérience et éducation et soins constituent des binômes de création, conformément aux Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI - 2009) [Lignes Directrices du Programme National pour l’Éducation de la Petite Enfance]. Un profil des écoles est dressé et les comptes rendus d’observation en fonction des catégories espaces et matériaux et interactions et interlocutions sont analysés. Les conclusions révèlent une quête d’identité pour l’éducation de la petite enfance dans la forme dialogique avec laquelle les enseignants écoutent et répondent aux enfants. Les pratiques ludiques et symboliques prédominent dans les crèches tandis que dans les maternelles elles coexistent avec des pratiques plus directives, basées sur les contenus de l’alphabétisation.

Key words: ÉDUCATION DE LA PETITE ENFANCE; LECTURE; ÉCRITURE; PRATIQUES ÉDUCATIVES

Resumen

El artículo analiza informes de entrevista y observación de 27 escuelas y grupos de la investigación “Boas práticas de leitura e escrita na educação infantil” [Buenas prácticas de lectura y escritura en la educación infantil], en siete municipios de regiones brasileñas. Las buenas prácticas son aquellas en las que la infancia y la experiencia, la educación y el cuidado constituyen binomios de creación, conforme a las Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil [Directrices Curriculares Nacionales para la Educación Infantil] (DCNEI - 2009). Se presenta un perfil de las escuelas y se analizan los registros de observación según las categorías espacios y materiales e interacciones e interlocuciones. Se revela, en las conclusiones, al buscar una identidad para la educación infantil, en la forma dialógica, como las profesoras escuchan y responden a los niños. En la guardería, predominan prácticas de cuño lúdico-simbólico, mientras que en la preescolar éstas todavía conviven con otras más directivas, basadas en contenidos relacionados con la alfabetización.

Palabras-clave: EDUCACIÓN INFANTIL; LECTURA; ESCRITURA; PRÁCTICAS EDUCATIVAS

O que tenho observado, sentido nas crianças (e em mim), como reflexo do nosso trabalho, é um grande entusiasmo, os desafios sendo enfrentados com alegria e prazer. O que nos dá a certeza de que a busca do conhecimento não é, para as crianças, preparação para nada, e sim vida aqui e agora. (FREIRE, 1983, p. 50)

Madalena Freire, no final dos anos 1970, ao desenvolver na pré-escola um trabalho articulado a partir dos interesses das crianças, conclui seu relatório com a certeza de que, para as crianças, a busca de conhecimentos é “vida aqui e agora”. Não é preparação para nada, afirma a autora convicta, respondendo ao que estava posto na época como finalidade da pré-escola. A atualidade do seu relato, registrado no livro A paixão de conhecer o mundo, está nas concepções de infância e de educação infantil, que possibilitaram um trabalho autoral, desafiador e, sobretudo, vivido com entusiasmo num tempo-espaço onde histórias se juntaram e se entrelaçaram coletivamente. O relato é lido hoje com questões que persistem: como o conjunto de práticas educativas de uma turma de educação infantil pode articular experiências e saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico de maneira significativa, lúdica, relacional, participativa e que tudo isso seja vivido com alegria e prazer? O que pode a educação infantil no pulsar do aqui e agora vivido por crianças e professores?

Entendemos que essa dinâmica é espaço e tempo de desvio, do movimento de romper com o preestabelecido e idealizado. Deslocamentos que incluem a acolhida do imprevisível e do inusitado. Movimento próprio das interações, interlocuções de vozes pronunciadas e ouvidas e que, dessa forma, pode acontecer tanto no processo educativo quanto nas trajetórias das pesquisas em ciências humanas.

Este artigo tem como objetivo analisar os relatórios de entrevista e observação de 27 escolas e turmas de educação infantil no âmbito da pesquisa “Boas práticas de leitura e escrita na educação infantil”, desenvolvida nos municípios de Recife (PE), Natal (RN), Campo Grande (MS), Belo Horizonte (MG), Lagoa Santa (MG) e Porto Alegre (RS),1 que faz parte de um projeto interinstitucional. A pesquisa toma como boas práticas aquelas nas quais infância e experiência, educação e cuidado constituem binômios de criação, tal como definem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009), assumindo o risco do julgamento de valor.

No ensaio “Palavra na vida e a palavra na poesia”, Volochínov (2013) dá particular relevância ao julgamento de valor. Para o autor do círculo bakhtiniano, o julgamento de valor, quando aparece no discurso extraverbal e é entendido apenas por um grupo, acaba por se tornar dogmático, pois é, nessa comunidade, tido como coisa certa, não admitindo réplicas, mas, quando é pronunciado, verbalizado e justificado, já se torna duvidoso e pode ser contestado. Nesse sentido, nossa intenção é explicitar o que está sendo entendido como boas práticas e analisar suas condições de produção para discutir questões que interpelam as políticas e as práticas educacionais voltadas para a qualidade da oferta de educação infantil.

Rosemberg (2015), ao discutir política pública e qualidade na educação infantil, analisa o quanto o debate sobre qualidade na educação é antigo - presente na mobilização pela EI antes mesmo de ser nomeada ou se transformar em objeto/problema de pesquisa e de política. A autora evidencia que há um descompasso entre o real e o ideal e que muito já foi conquistado, embora sempre exista um caminho a ser trilhado. Falar sobre qualidade, adverte Rosemberg, significa enfrentar tensões num cenário em que o debate e a conceituação sobre o tema são avançados, mas se situam numa sociedade ainda desigual e antidemocrática, que discrimina por razões econômicas, raciais, regionais, de localização e de idade - discriminação que afeta as crianças, principalmente os bebês, e as unidades escolares. Ela aponta, ainda, a presença do tema qualidade nos documentos oficiais do Ministério da Educação, desde 1993, como, por exemplo, em Política de educação infantil: proposta, que afirmava, dentre outros objetivos, “promover a melhoria da qualidade do atendimento em creches e pré-escolas” (BRASIL, 1993, p. 21). Esse documento provocou muitas réplicas, dentre as quais se destaca Consulta nacional sobre a qualidade da educação infantil (CAMPOS; CRUZ, 2006), além de estudos, pesquisas e seminários sobre avaliação da qualidade de contextos de educação infantil (BRASIL, 2015; SOUZA; MORO; COUTINHO, 2015; CAMPOS, 2013).

Assim é que a qualidade almejada, ao se deparar com as condições objetivas de uma sociedade desigual, enfrenta contradições e descompassos. Mantivemo-nos atentos a isso e reconhecemos que cada escola encerra a sua própria realidade social, da mesma forma que os atores que dela fazem parte. Como alerta Bourdieu (2009), nenhum conhecimento é transcendente, mas histórico e produzido a partir de determinadas experiências. As réplicas se atualizam em diferentes momentos da história e da política. Entendendo que a qualidade é um conceito polissêmico e atravessado pelo contexto histórico-cultural, foi nosso objetivo dar visibilidade a experiências e sentidos singulares produzidos por professores que trabalham em turmas de creche e de pré-escola, em escolas de educação infantil, de diferentes localidades brasileiras, sobre o que consideram boas práticas no campo da linguagem, em especial da linguagem escrita.

O tema da leitura e da escrita desde há muito habita o universo de professores, famílias, crianças, sistemas de ensino e legislação. Presentes nos embates políticos, sob diferentes enfoques, várias áreas de estudo têm se dedicado à alfabetização, à leitura e à escrita das crianças. Visões distintas em disputa buscam lugar em estudos, políticas e também em práticas, exigindo dos educadores reflexões e retomadas de conquistas e posições. A título de exemplo, podemos citar que, no Brasil, algumas ondas vêm banhando o cotidiano das escolas com intensidades diversas, dependendo do contexto e dos atores envolvidos, tais como: a discussão dos métodos, nos anos 1970; a teoria da Psicogênese da língua escrita, baseada na visão construtivista de Emília Ferreiro, a partir das décadas de 1980 e 1990; as questões relacionadas ao letramento e à escola; e o período que tem sido chamado de “reinvenção da alfabetização”, dos anos 2000, que tem trazido novamente discussões metodológicas sobre o tema.

O mesmo podemos dizer da educação infantil, em que concorrem distintas formas de relação com o ensino fundamental, que vão desde a busca por funções e práticas específicas à subordinação de conteúdos e metodologias adotados no ensino fundamental. Nas sociedades contemporâneas, as práticas de leitura e escrita na educação infantil materializam grande parte dessas disputas, tanto pelo valor dado à alfabetização, devido ao viés grafocêntrico no qual se organizam, quanto pela ideia de produtividade, de abreviação do tempo livre, de exigência de produtos que comprovem resultados de investimentos feitos.

Este artigo analisa os relatórios de entrevista e observação de 27 escolas e turmas de educação infantil da rede pública, que vêm desenvolvendo práticas que, explícita ou implicitamente, expressam consensos produzidos no campo da educação infantil (BRASIL, 2009). O primeiro item apresenta a pesquisa, suas etapas e escolhas feitas para identificar e analisar escolas de educação infantil da rede pública que vêm desenvolvendo boas práticas de leitura e escrita, os sujeitos envolvidos e instrumentos utilizados. O segundo traça um perfil das unidades escolares que desenvolvem práticas de leitura e escrita consideradas mobilizadoras do processo educativo, mostrando características do conjunto das escolas e das equipes pedagógicas. Em seguida, analisam-se os registros dos relatórios de observação a partir de duas categorias: espaços e materiais; e interações e interlocuções. Por fim, são traçadas as considerações acerca do universo encontrado e apontam-se indícios da identidade que vem sendo construída, no campo da leitura e da escrita, na educação infantil no Brasil, no contexto de obrigatoriedade escolar aos quatro anos de idade.

A PESQUISA: ETAPAS E ESCOLHAS

O projeto interinstitucional, ao fazer o levantamento bibliográfico sobre a produção acadêmica relacionada à alfabetização, à leitura e à escrita na educação infantil, nos últimos 40 anos (1973-2013), constatou que foram produzidas na área educacional - que participa com 60% das produções - 139 pesquisas, das quais 80% concentradas na última década. Essa constatação evidencia o quanto houve de lacunas e descontinuidades na produção científica e o quanto é recente a presença mais substantiva do tema nas investigações, o que traz indagações diante da expansão do campo e da meta de universalização da pré-escola. Assim, perguntamos: como tem sido a articulação desses trabalhos com a formação de professores e com as práticas pedagógicas? Pesquisas da área educacional (KRAMER; NUNES; CORSINO, 2011) têm evidenciado uma forte tendência instrucional e preparatória, especialmente na pré-escola. Mas será que esse viés de subordinação e de pressão do ensino fundamental estaria também presente nas práticas consideradas boas por secretarias de educação, diretores e professores?

Tendo em vista que os conceitos analíticos são construídos a partir dos discursos e não constituem um a priori dos mesmos, os procedimentos metodológicos da investigação buscaram conhecer percepções sobre boas práticas de leitura e escrita na educação infantil dos diferentes atores envolvidos (todos mulheres pela própria característica da área), o que inclui as responsáveis pela educação infantil nas secretarias municipais de educação, as diretoras de escolas indicadas, as professoras e, ainda, as próprias pesquisadoras, professoras de universidades públicas. Estas últimas foram escolhidas por desenvolverem pesquisas nas áreas da educação infantil e/ou da alfabetização, leitura e escrita, em diferentes regiões brasileiras. Conhecendo as desigualdades territoriais do país, foi nosso intuito abarcar escolas de diferentes regiões e de diferentes bairros de cada capital investigada.

A pesquisa contou com cinco etapas. Na primeira, foi realizado um encontro para discussão, familiarização e crítica dos instrumentos elaborados pela equipe de coordenação do projeto - roteiros de entrevistas e de observações. Após a validação dos instrumentos pelas pesquisadoras locais, coube a elas a pesquisa de campo nos municípios. Na segunda etapa, foram entrevistados membros da equipe da Secretaria Municipal de Educação dos municípios de Natal (RN), Recife (PE), Campo Grande (MS), Belo Horizonte (MG), Lagoa Santa (MG) e Porto Alegre (RS), sendo solicitada a indicação de unidades de creches e pré-escolas, no município, que desenvolvessem boas práticas de leitura e escrita. Na terceira etapa, cada pesquisadora entrevistou diretoras de cinco instituições de educação infantil selecionadas na primeira etapa (exceto Porto Alegre, onde foram realizadas entrevistas com seis diretoras, e em Minas Gerais, que acrescentou uma escola de Lagoa Santa). Na quarta, foram entrevistadas professoras - indicadas pela direção - que trabalhavam com as diferentes faixas etárias da educação infantil, chegando-se ao total de 27 entrevistas. Na quinta, observaram-se as práticas educativas das professoras entrevistadas.2 Por fim, foi organizado um seminário, com a presença das pesquisadoras e das entrevistadas (membros das secretarias, diretoras e professoras), quando foi possível socializar e debater sobre os resultados. Para conseguir garantir uma unidade entre as cinco equipes regionais, optamos por roteiros estruturados, que foram analisados qualitativa e quantitativamente.

Ressaltamos que a equipe de coordenadoras do projeto se debruçou na construção de um manual para a pesquisa de campo, o qual apresentou princípios do que seriam “boas práticas”. A revisão bibliográfica sobre o tema da leitura e da escrita na educação infantil, os estudos desenvolvidos pelas pesquisadoras deste projeto, bem como os documentos legais e normativos do Ministério da Educação (MEC) (Art. 9o das DCNEI 2009), constituíram a base para tal definição. O objetivo foi criar um espaço de troca sobre concepções e práticas de leitura e escrita na educação infantil junto às pesquisadoras e buscar alguns consensos. Foram consideradas boas práticas aquelas que:

  • pressupõem um sequenciamento de atividades sustentadas em objetivos, que têm continuidade e desdobramentos construídos nas interações que se estabeleceram no grupo/turma;

  • ocorrem de maneira constante e contínua, integrando o cotidiano da turma e das instituições, configurando-se não como atividades isoladas, ainda que interessantes, mas sim como proposta pedagógica consistente;

  • apresentam interação dialógica entre adultos e crianças - o que significa um processo discursivo de fato, no qual o professor acolhe o que a criança traz, numa escuta atenta e interessada, que responde e se altera;

  • têm as interações e as brincadeiras como eixo do trabalho. Interações dialógicas e brincadeiras compreendidas como elemento fundante da cultura infantil e não reduzidas exclusivamente à estratégia de ensino e aprendizagem;

  • incentivam as crianças a falar de si, possibilitando experiências de narrativas de situações vividas ou imaginadas e inventadas;

  • a linguagem escrita acontece de forma integrada e equilibrada em relação à oralidade e às outras formas de expressão;

  • a leitura e a escrita acontecem em situações reais e significativas, isto é, que estejam inseridas em práticas sociais, em situações interativas, portanto, necessárias para a comunicação entre os interlocutores;

  • favorecem a inserção das crianças na cultura letrada pelo convívio com diferentes suportes e gêneros discursivos orais e escritos;

  • concebem a linguagem numa perspectiva discursiva, intimamente relacionada ao pensamento e à consciência, portanto, constituinte do sujeito e não como mera ferramenta ou área de trabalho.

Os roteiros de entrevista e observação constaram de perguntas abertas e fechadas e, ainda, registros fotográficos. As respostas fechadas foram tabuladas e as abertas organizadas em eventos e agrupadas em coleções. Entendemos com Bakhtin (1992) o evento de pesquisa como um fragmento capaz de condensar uma unidade de sentido e assegurar o contexto enunciativo. Trata-se de recortes dos registros que, quando agrupados por afinidade, passam a compor categorias ou coleções, que possibilitam apreender e atribuir novos significados às situações registradas.

No item a seguir, trazemos um panorama das escolas que fizeram parte deste estudo, abordando suas condições de trabalho, o perfil dos entrevistados e as ações coletivas de que participam seus diretores e professores.

ESCOLAS, CONTEXTOS E FORMAÇÃO

A análise dos roteiros permite traçar um perfil das unidades que desenvolvem práticas de leitura e escrita consideradas mobilizadoras do processo educativo, mostrando características e tendências do conjunto das escolas e das equipes pedagógicas, a partir de quesitos quantificáveis, tais como data de inauguração da escola, características e regime de funcionamento, etapas de atendimento, perfil dos profissionais, vínculo empregatício, tempo de magistério e de atuação na educação infantil, formação, relação com a leitura e a escrita no cotidiano, além das condições para o planejamento, o registro e a avaliação do trabalho realizado.

No que diz respeito ao início das atividades, 65% das instituições pesquisadas foram inauguradas antes de 2005, ou seja, têm mais de dez anos de funcionamento, o que evidencia uma trajetória de trabalho construída na educação infantil. Quanto à especificidade, 80% das escolas são consideradas exclusivas de educação infantil, isto é, dedicadas à creche e à pré-escola. Mas o segmento da creche, em alguns casos, é incompleto, pois inicia-se para as crianças de um ou dois anos de idade. O maior percentual de matrículas (55,9% do total das escolas estudadas) incide sobre as crianças com idade igual ou superior a 49 meses (quatro anos ou mais de idade). As crianças na faixa etária de até dois anos representavam 11,5% das matrículas. Quanto à jornada de atendimento, para as crianças de 0 a 3 anos, a maior oferta das escolas é de período integral (70%), predominando o horário parcial para aquelas de 4 a 6 anos (60%). Esses dados corroboram a tendência de concentração do atendimento direto da educação infantil na pré-escola (ABRAMOWICZ; TEBET, 2017) e o horário integral na creche (ARAÚJO, 2015).

Em relação ao vínculo empregatício de diretoras, orientadoras pedagógicas e professoras, percebe-se que a quase totalidade é concursada, situação oposta à dos auxiliares que estão, majoritariamente, presentes nas creches. Campos (1994, 2013), em pesquisas realizadas nas três últimas décadas, vem mostrando como o profissional de creche se constituiu historicamente de forma não integrada: funções indefinidas e/ou voltadas ao que é considerado menor ou não pedagógico; cargos com nomenclaturas diversas, enfraquecendo o que seria uma categoria profissional; e trabalho precarizado.

Todas as diretoras têm ensino superior completo e 77% possuem alguma especialização, mestrado ou doutorado, o mesmo acontecendo com as orientadoras e as professoras, sendo estas últimas, em sua maioria, formadas em Pedagogia e com especialização. Portanto, trata-se de um corpo docente com qualificação acima da média nacional, segundo os dados do Censo Escolar 2017, que indicam ter nível superior completo 66,4% dos professores que atuam na creche e 68% daqueles na pré-escola.

Verifica-se, também, que as diretoras não são jovens, pois 87,5% delas têm idade igual ou superior a 41 anos. Não foram encontradas diretoras com menos de 30 anos. Ressalta-se que todas as professoras entrevistadas são do sexo feminino e que a maioria (90,9%) tem idade entre 31 e 50 anos. Não foi entrevistada qualquer professora com menos de 30 anos ou com mais de 60 anos.

No que diz respeito ao tempo de experiência, observamos que a quase totalidade das professoras investigadas possui mais de dez anos no magistério (81,5%), com exceção das que atuam em Mato Grosso do Sul, onde esse índice é de 50%. Na educação infantil, 77,8% delas têm mais de seis anos de docência.

Quanto à jornada de trabalho, 77,8% das professoras entrevistadas atuam em período integral, das quais mais da metade (62%) na mesma instituição. Merecem destaque as professoras de Pernambuco, pois 83,3% delas trabalham em horário integral numa só escola. Sobre a experiência docente das professoras, a maioria já exerceu a função em outra escola (70,4%), sendo significativa a parcela daquelas que já atuaram como orientadora pedagógica (25,9%). Algumas já foram diretoras (7,4%). Chama a atenção o percentual de professoras do Rio Grande do Norte que já foram coordenadoras pedagógicas (80%).

Com esses dados já se pode obter alguns elementos importantes que subsidiam o desenvolvimento de boas práticas - corpo docente estável, concursado, com formação em Pedagogia e pós-graduação, com tempo de experiência e ainda em processo de investimento, jornada em uma mesma instituição, além de unidades que garantem a especificidade do atendimento para a creche e pré-escola.

Indagadas sobre o gosto pela leitura, todas as professoras disseram que gostam de ler. Além disso, 63% delas estão sempre lendo alguma coisa e constantemente buscam um tempo para ler, o que já não ocorre com os outros 37% que frequentemente não conseguem encontrar tempo para a leitura. Tal como verificado em outras pesquisas (FANFANI, 2007; ANDRADE et al., 2004; CORSINO, 2003), o tipo de leitura mais exigido são os livros de pedagogia e educação (85,2%), embora a literatura alcance significativo percentual (74,1%). Os livros religiosos aparecem em 30% das demandas de leitura e as biografias em 25% delas.

No que se refere à média de alunos por turma, com exceção das escolas de Campo Grande (MS), cuja média foi de 26 alunos, em todas as outras a média de crianças por turma ficou abaixo de 20, sendo que em Natal corresponde a 14 crianças por turma. Ressalta-se que o trabalho das professoras é desenvolvido, quase sempre, com o apoio de uma auxiliar (70,4%) e poucas contam com o apoio de outra professora (7,4%). Isso significa uma proporção adulto/criança bastante favorável às interações, à atenção individual e coletiva e à organização de espaços e materiais.

Todas as escolas da pesquisa têm proposta pedagógica, sendo que, para a maioria delas (85,2%), a proposta já estava pronta e sistematizada e nas demais se encontrava em fase de elaboração (14,8%). A participação das professoras na elaboração da proposta pedagógica ocorreu na maioria das escolas pesquisadas (73,9%).

As reuniões coletivas para planejamento e avaliação, momentos de suma importância para discussão e reflexão a respeito do trabalho, são privilegiadas pela quase totalidade das escolas, com exceção de uma delas. Sua ocorrência é predominantemente semanal (34,6%) e mensal (30,8%) e, em 19,2% das unidades, é quinzenal. As entrevistadas apontaram a existência de reuniões coletivas de estudo na maioria das escolas investigadas (88,5%). Nessas reuniões, a maior participação é de diretoras (70,4%), professoras (70,4%) e orientadoras pedagógicas (55,6%). Técnicos ou outros funcionários da Secretaria de Educação e consultores participam muito pouco e não há presença de crianças e familiares. Chama a atenção, em 40% das escolas da pesquisa em Minas Gerais, a participação de consultores nessas reuniões.

Na quase totalidade das escolas pesquisadas (96,3%), as diretoras ou orientadoras pedagógicas observam e avaliam o trabalho desenvolvido junto às crianças por professoras e auxiliares. E, praticamente em todas as escolas (96,3%), as professoras registram os trabalhos que desenvolvem com suas turmas de creche e pré-escola.

Em síntese, observa-se que as condições de trabalho das professoras, a infraestrutura das escolas, o investimento em formação - seja continuada, seja na própria escola -, a presença de uma aposta coletiva com propostas pedagógicas elaboradas e acompanhamento do trabalho docente indicam um ambiente favorável ao desenvolvimento de práticas de qualidade. Entretanto, muitos são os aspectos que tensionam e tornam complexo o cotidiano, já que concepções de infância, educação infantil e também de linguagem e alfabetização se articulam e disputam lugares diferentes, como analisaremos a seguir.

PRÁTICAS EM QUESTÃO

Ao nos debruçarmos sobre os relatórios de observação e as fotografias das turmas, organizamos os eventos em duas grandes coleções que se inter-relacionam, a saber: espaços e materiais; e interações e interlocuções. A separação entre as duas coleções é uma forma de enfatizar características mais específicas de cada uma, bem como as concepções que lhes são subjacentes. Bondioli e Montovani (1998) afirmam que os espaços e materiais assumem significados e provocam interações contínuas, que abarcam os aspectos afetivo, social e simbólico das experiências que aí se realizam. O ambiente é concebido como processo, pois se modifica continuamente pelo efeito das ações, aspirações e relações dos sujeitos que ali operam, e tais transformações influenciam também o agir dos sujeitos. A organização dos espaços das escolas e das turmas, o mobiliário e toda sorte de materiais trazem marcas das ações dos sujeitos e dizem das interações e interlocuções que podem se realizar. Dizem também dos valores e concepções que movem as pessoas que circulam naquele ambiente, porque, como Bakhtin (1992) salienta, a realidade é sígnica e todo corpo físico e toda imagem artístico-simbólica é um produto ideológico, portanto há um intenso diálogo entre contextos e práticas. Nessa perspectiva, analisaremos, a seguir, eventos das duas coleções, com o objetivo de dialogar sobre boas práticas de leitura e escrita na educação infantil.

ESPAÇOS E MATERIAIS

Os registros sobre os espaços das escolas observadas, narradas e fotografadas indicam que, na maioria delas, as crianças circulam em áreas internas e externas. Quase todas as salas das turmas apresentam flexibilidade na organização, comportam diferentes arranjos, consentem que as crianças desenvolvam atividades coletivas e atividades diferenciadas, de forma simultânea - sozinhas ou em pequenos grupos - e têm lugar para brincar. Muitas são organizadas em cantos, com estantes expondo os materiais da turma, que são de fácil acesso das crianças. A maioria tem também espelho e estantes altas e/ou armários fechados para uso das professoras. Em relação aos tipos de materiais pedagógicos, todas as turmas indicaram a existência de brinquedos e jogos, quase a totalidade tem livros e materiais para atividades de artes (81,5% das turmas), mais da metade possui revistas e histórias em quadrinhos (63,0%) e há fantasias em algumas (40,7%). Esta breve descrição mostra que grande parte das escolas indicadas como tendo boas práticas de leitura e escrita na educação infantil se constitui daquelas que também apresentam uma infraestrutura básica capaz de sustentar as propostas.

Os eventos a seguir mostram a materialidade dos espaços e da atuação das professoras na organização e criação de possibilidades e reinvenções de funções para mobiliário e objetos nas interações com as crianças. Trata-se de relatos3 que evidenciam um movimento que predominou nas 27 turmas observadas e dão indicações do que está sendo entendido como boas práticas.

Em relação aos espaços destinados para bebês e crianças pequenas, encontramos relatos que apresentam um olhar sensível para a organização e distribuição dos materiais:

Há, na sala, berços virados com o objetivo de criar obstáculos, caminhos e cantinhos. Os materiais são diversificados e ao alcance dos bebês. (B3)

O espaço da sala como um todo é organizado para promover a ação autônoma dos bebês e a interação entre eles, não há berços e os bebês circulam livremente pela sala. Nas paredes e no chão há brinquedos e materiais produzidos constantemente pelas educadoras, os quais promovem encontros dos bebês a partir do interesse despertado pelos objetos. Nesses momentos, observou-se, também, que as educadoras intervêm, quando oportuno, favorecendo a interação já iniciada pelos bebês. Quando conversam com eles, alimentando brincadeiras e exploração de objetos, acabam promovendo a aproximação de outros bebês, facilitando a interação entre eles. (E1)

Também constatamos que, na maioria das escolas pesquisadas, o espaço da turma é mutável. Conforme a proposta, a professora organiza e reorganiza o espaço para apoiar e fomentar as brincadeiras das crianças, como pode ser observado a seguir:

A professora monta uma tenda na sala para as crianças brincarem de caverna. Além disso, ela ia acompanhando o movimento das crianças, ou seja, observando e apoiando as brincadeiras das crianças como, por exemplo, quando aproximava um colchonete e um tecido para ser a cama de um grupo de crianças que brincava de cuidar o neném, davam comidinha, iam ao mercado, etc. Também foi observado a monitora perceber o movimento de um menino e ajudá-lo a montar com cadeiras o que seria inicialmente seu carro. Ele e ela foram colocando cadeiras uma ao lado da outra. A monitora disse que iria encontrar uma “direção” para o carro. O carro virou um ônibus e outras crianças aderiram à brincadeira. O menino criador da brincadeira dizia que ia para o Centro, que tinham que se apressar. (E3)

O berçário é montado com livros e brinquedos (comprados e produzidos pelas professoras) que estimulam os sentidos das crianças (exploram som, cor, textura, forma). As crianças exploram esses materiais livremente e em parceria uns com os outros. No chão da sala há tapete, almofadas e uma boia grande que estimula o movimento das crianças. (D2)

Essas práticas, além de promoverem interações diversas, apoiam o diálogo da professora com as crianças e mostram que “elas estão habituadas e participam ativamente, estão sempre narrando algo que lembraram, que ocorreu, que estão fazendo” (E3). Embora em menor incidência, também houve relatos apresentando outro caminho, pois a realidade é dinâmica e, muitas vezes, contraditória, como o que se segue: “o tamanho da sala possibilitaria diferentes arranjos, mas não foi observada a diversificação de atividades concomitantes, com exceção do momento da brincadeira livre” (E1).

Há muitas descrições que indicam a importância da rotina como organizadora da experiência das crianças e das professoras. Notamos que, em algumas turmas, a rotina é concebida de forma bem diferente daquela apontada por outras investigações, que salientam um itinerário fixo e previsto, no qual os momentos “vão se cumprindo ordenadamente e a passagem de um período para o seguinte parece marcada pela ausência de uma linguagem capaz de reconstruir e recordar os tempos experienciados” (RICHTER; VAZ, 2010, p. 682). A ideia, ao contrário, é promover diálogos, narrativas e lembranças.

A monitora4pediu que cada criança trouxesse para escola seu brinquedo preferido. Em roda, colocaram os brinquedos no centro, a monitora conversou com as crianças e, aos poucos, foi retomando a história do Lobo Mau Mau, as crianças participaram evocando fatos ou falando sobre o personagem (“ele era bonzinho porque cuidava das crianças”; “não, ele assustava as vezes”; “era muuuito peludo”) e a conversa seguiu até as crianças lembrarem que na história (já lida para a turma) o personagem tinha um brinquedo preferido. Após essa retomada, lançou o convite para que as crianças descobrissem de quem é cada brinquedo. Num clima de brincadeira, conforme as crianças iam conversando e descobrindo a quem pertenciam os brinquedos, a monitora ia fazendo algumas perguntas, tais como: “Por que tu gostas dele?”; “Qual o nome dele?”; “Quem te deu a boneca?”; “Em qual lugar na tua casa ele fica?” (E2)

Em algumas das escolas pesquisadas a rotina parece ser vivenciada como importantes situações de interação entre adultos e crianças. Muitas crianças partem de uma dependência total até construírem, com a ajuda do outro, uma autonomia que, sem dúvida, lhes é muito necessária. As observações a seguir mostram o quanto esse processo pode ser criativo, alegre, engraçado.

Antes da entrada da professora de música na sala, quando as crianças estavam bem apreensivas por sua chegada, a professora inventa uma narrativa com a ideia da personagem bruxa, que é muito apreciada pelas crianças. Ela diz: “já sei, vamos assustar a prof. Joana... a bruxa me deu uma poção mágica e morriiiiii”. Dramatizando cada ação com o corpo e voz, ela cai ao chão. As crianças entram na ideia da brincadeira e pedem também a poção mágica, ela simboliza ter uma taça na mão e dá na boca das crianças, elas deitam-se ao chão. A monitora apaga a luz, eles murmuram e riem baixinho. A professora diz: “acho que a Joana vai chorar muito”. Joana abre a porta, a monitora diz “socorro, Joana, a bruxa esteve aqui e envenenou toda a turma!”. Joana: “acho que vou ter que cantar uma música mágica”. (E3)

Há na rotina um horário no pátio externo que é bastante amplo, com areia, árvores e brinquedos em bom estado. Ao sair do pátio as crianças foram para a sala onde estavam disponíveis brinquedos diversos. Enquanto brincavam na sala, grupos de três iam saindo para o banho. Essa sequência ocorreu nos dois dias de observação. Antes do pátio as crianças brincaram com o Lego, material recém-adquirido pela prefeitura. (B5)

O apoio de materiais diversos mostrou-se fundamental para as ampliações das experiências das crianças. São coautores do contexto: livros, personagens das histórias narradas, desenhos, jogos de montar, panos, entre outros que enriquecem as interações e experiências vividas no cotidiano das escolas.

Na sala, há atividades de desenho das crianças sobre vulcões e um vulcão esculpido com argila em uma das estantes - como uma produção das crianças. (A5)

A professora colocou papel 40 kg5no chão e as crianças receberam lápis de cor e hidrocor para desenhar. Enquanto desenhavam, ela interagia com as crianças sobre os rabiscos que faziam. Também vimos nas paredes da sala papéis com essa mesma atividade, fixados na parede da sala, o que mostra que essa é uma proposta que a professora costuma fazer. (B4)

A turma organiza com frequência o mural informativo, no qual as crianças socializam trabalhos e atividades dos projetos desenvolvidos ao longo do ano. Em períodos diferentes, foi possível observar o uso de diferentes recursos e linguagens como forma de expressão. (D3)

Foi observado que as crianças têm liberdade de buscar no armário papel e material para desenhar e/ou escrever sempre que sentem vontade. Além disso, as crianças foram convidadas a manipular cola colorida na reprodução de uma cena e personagem do livro lido a elas A Polegarzinha (Hans Christian Andersen). (E6)

Na estante encontramos uma caixa com alfabeto móvel e jogos de encaixe. Há também livros de literatura, revistas e livros didáticos do Lego [...] Há ainda materiais diversos como cola, tesoura, papel, hidrocor, potes com números, potes com letras soltas, entre outros. (B1)

Espaços mutáveis, cantos para promover brincadeiras e interações, livre acesso das crianças à exploração de brinquedos e materiais, possibilidades de diferentes agrupamentos, materiais e brinquedos diversos, inclusive feitos pelas professoras, espaço para promover a ação autônoma das crianças, intervenções criativas para ampliar o jogo simbólico das crianças são possibilidades de ação, interação e interlocução entre crianças e adultos.

Como os relatos, as fotografias também retratam os espaços habitados por crianças e adultos nas escolas, mostrando muito da diversidade de cada turma, mas também evidenciando aproximações entre escolas de diferentes regiões do Brasil. São recorrentes imagens de bebês e crianças brincando com blocos de construção, lendo livros em diferentes lugares, ouvindo leituras de histórias em salas e bibliotecas, pintando, desenhando com giz no pátio, sentados no chão, na rodinha ou em grupos. Mostram que as crianças do berçário têm seus objetos pessoais identificados com os nomes e agendas para comunicação com as famílias. São muitas as descrições sobre elas, conforme mostra o relato a seguir: “há vários quadros de avisos sobre as crianças a partir dos quais é feita a comunicação com a equipe (cardápios, tabela de necessidades fisiológicas, tabela de alimentação, etc.). Há, também, um quadro de aviso aos pais” (B3).

Na maioria das fotografias, os bebês aparecem no chão sobre almofadas, engatinhando, explorando, mas também há fotos em que estão sentados nos carrinhos, aguardando o leite. Murais e portfólios apresentam fotografias de bebês e crianças pequenas fazendo atividades na creche e as legendas informam sobre o que está sendo retratado.

Nas turmas de pré-escola, as pesquisadoras tiraram muitas fotos de murais com desenhos, quadro de chamada e fichas com os nomes, calendário, aniversariantes do mês, registros de histórias coletivas, poemas, listas e receitas. Algumas salas apresentam muitas informações nas paredes, além de imagens de personagens midiáticos e desenhos estereotipados que se juntam às produções infantis. Também existem muitos registros de crianças brincando com bingo de nomes, lendo, escrevendo seus nomes e, embora apareçam em poucas escolas, há também crianças usando caderno, sentadas em cadeiras e mesas individuais. O abecedário está presente em quase todas as turmas, inclusive de creche. Crianças de todas as idades foram retratadas lendo, mas a escrita sobressai na pré-escola como uma marca de diferenciação. O contraste entre creche e pré-escola é visível, principalmente, no que diz respeito à presença de mesas e cadeiras e ao que está fixado nos murais que exibem práticas de escrita. Vejamos a descrição de uma sala de pré-escola:

Em todas as paredes há produção dos dois grupos que fazem uso da sala. Há cartazes informativos (calendário, ajudante do dia, coletânea de formatos diferentes de registro dos calendários, avisos, bilhetes, notícias), registro do trabalho que é feito com o sistema de escrita alfabética (pesquisa de letras, pesquisa de palavras parlendas, alfabeto) registro do trabalho que é desenvolvido no projeto coletivo da escola (relatos das atividades, fotos, imagens). Todos materiais expostos nas paredes são colocados na altura das crianças. (D5)

Esse corte entre creche e pré-escola chama a atenção, uma vez que a maioria das turmas pesquisadas está em escolas exclusivas de educação infantil. Algumas imagens nos fazem pensar se o ensino fundamental estaria mesmo em outro prédio.

As fotografias mostram o que chamou a atenção das pesquisadoras no campo. São escolhas que fizeram e as imagens capturadas criam possibilidades discursivas que anunciam a realidade e também a refratam, reportando a concepções tanto das professoras investigadas quanto das próprias pesquisadoras. Nos instantâneos dos espaços e materiais, intuímos que as práticas possibilitaram momentos mais descontraídos e outros mais diretivos, inovadores e criativos, bem como rotineiros e clichês. Entre luzes e sombras, as frestas percebidas parecem indicar um movimento que busca positividades e acertos. Crianças brancas, negras, mestiças, meninos e meninas, sorrindo, lendo, desenhando, brincando, concentradas, envolvidas. Seriam o centro das propostas, como postulam as DCNEI? Espaços e materiais presentes na maioria das turmas investigadas mostram ter potencial de se tornarem ambientes-processos em constante e mútua afetação e consequente alteração. Entretanto, indagamos: que tempos se abrem às interações e brincadeiras? Como a ação dos adultos potencializa e suporta as interlocuções? Como as crianças vivenciam as práticas que ali se realizam?

INTERAÇÕES E INTERLOCUÇÕES

O princípio de que a materialidade é sígnica leva ao entendimento de que ela enuncia um discurso que se dirige a um outro que responde. A resposta, como Bakhtin (1992) assevera, é uma réplica, resultado da compreensão. Portanto o autor nos instiga a entender as interações como interlocuções de um sujeito ativo e criativo que constitui e é constituído nesse processo de mútua afetação. Há uma complexidade nessa relação sujeito e mundo e vice-versa. Assim é que as apropriações e produções dos sujeitos se dão num intenso processo dialógico e a riqueza do contexto não se reduz à quantidade, mas sim à qualidade das relações, isto é, às possibilidades de produção de sentido. “Qualidade que se efetiva pela presença dialógica, ativa e responsiva do outro. Pensar o contexto educativo - que está nas crianças e as crianças nele - exige considerar esta complexidade relacional” (CORSINO; GUIMARÃES, 2017, p. 72).

Para Vigotski (2001), essa produção de sentido se refere a todos os elementos psicológicos que operam na consciência com a palavra, ou seja, o sentido é produzido não apenas pela compreensão cognitiva, mas também de forma integrada com o afetivo e o emocional. Portanto, essa complexidade relacional inclui tanto os repertórios quanto os vínculos, afetos, clima de cooperação mútua. Nessa perspectiva, entendemos o adulto na relação com a criança como um importante agente dialógico, que atua de forma indireta ao organizar os espaços, os materiais e as propostas, e de forma direta nos processos interlocutórios ao observar, perguntar, ouvir, responder, replicar.

Na educação infantil o papel da professora na relação com as crianças é fundamental, pois é ela que planeja e organiza os espaços e materiais, oportuniza os tempos, articula as diferentes vozes, põe os pontos de vista em interação, favorece as atividades lúdico-simbólicas das crianças, propõe diferentes formas de expressão, entre outras. Seu papel não consiste apenas em apresentar o mundo aos recém-chegados (ARENDT, 1997), mas em possibilitar, favorecer, sustentar o diálogo entre as crianças, delas entre si e delas na relação com os conhecimentos e saberes do mundo. Foi em função desses pressupostos que elaboramos um roteiro para observação das práticas com várias perguntas que adentram e refinam o olhar para as interações-interlocuções. Também houve questões sobre a presença de outras linguagens - da música, do corpo, das artes visuais - para traçarmos um panorama amplo do trabalho desenvolvido no campo da linguagem, já que na educação infantil é fundamental que as crianças tenham a oportunidade de desenvolver diferentes formas de expressão e, portanto, há que se buscar um equilíbrio entre elas. Também foram elaboradas perguntas sobre a existência, na rotina, de um tempo destinado para brincadeiras geridas pelas crianças e aquelas propostas pela professora.

Foi possível apreender a presença de várias práticas interativas, pois na maioria dos itens observados os percentuais de respostas afirmativas superaram 70%, chegando a 100%, nos casos em que se indagava se a professora olha para a criança enquanto fala com ela e a chama pelo nome. As menores percentagens referem-se aos itens: a professora incentiva as crianças a explorarem instrumentos musicais e outros objetos sonoros (apenas 33,3%); a professora conta histórias usando diferentes recursos (37%); e além de livros de literatura a professora lê textos informativos para sustentar a curiosidade das crianças (25,9%), que são itens mais específicos. Sabemos dos limites da observação durante um tempo predeterminado e nem tudo foi possível acontecer no período. Entretanto, as respostas indicam que a maioria das professoras parece estabelecer relações dialógicas com as crianças e esse pode ter sido um dos pontos que justificou a indicação dessas docentes pelos diretores entrevistados. Como, então, ocorrem essas interações-interlocuções? Que práticas se destacam nos relatos das pesquisadoras?

Os registros mostram que a hora de conversa, geralmente organizada em forma de roda, é o momento em que as professoras fazem intervenções mais sistemáticas na produção oral das crianças. A roda é onde a professora informa, faz circular narrativas diversas, conta histórias, explica, corrige, fala sobre inúmeras situações vividas, organiza os turnos de fala das crianças e as estimula a se expressar com mais clareza.

Na discussão sobre o relato escrito que a professora apresentou à turma sobre a visita à pracinha, a professora pergunta: “O que vamos desenhar hoje?” Uma criança responde: “está falando que tem... que tem... que o Noa tropeçou no buraco do passeio”. A professora retoma a fala da criança, se dirigindo também para o grupo: “Nós vamos desenhar o que está escrito nessa parte do texto. E nessa parte do texto está escrito que o Noa tropeçou no buraco do passeio. É isso mesmo. Muito bom” - a discussão aconteceu numa roda de conversa. Como já foi mencionado, a roda de conversa é uma estratégia pedagógica muito comum nas práticas observadas. Nelas se organizam relatos de experiências, discussões diversas, combinados e planejamentos de trabalho no desenvolvimento dos projetos. (D5)

Vários relatos apresentam interlocuções das professoras com as crianças relacionadas à temporalidade dos acontecimentos. Presente, passado e futuro são evocados de diferentes formas. Com os bebês, foram recorrentes narrativas acompanhando as ações, ou seja, narrativas que buscam dar significado ao que está acontecendo no momento da relação. O passado é abordado para retomar situações que viveram, é uma forma de chamar a memória, retomar percursos e dar continuidade às propostas. O tempo futuro explica e apresenta às crianças o que será feito, sendo uma forma de inseri-las no processo educativo. Essas narrativas do cotidiano se mostraram um recurso importante na produção de significados partilhados:

A professora, assim como a monitora, conversa bastante com os bebês, utilizando a linguagem para ir narrando o que está acontecendo, além de interagir com os bebês por meio dela. Durante a troca, vai conversando, antecipando o que vai fazer (ex. colocar calça), trocando sorrisos e, às vezes, cantando. (E4)

Durante a retomada do que foi feito no dia anterior na produção do bolo, enquanto as crianças diziam o que havia sido feito, a professora complementava as informações. Uma criança chamou logo a atenção para o cartaz onde haviam escrito a receita do bolo e ela foi lendo o cartaz, sempre estimulando a participação das crianças, clareando o que diziam e formulando perguntas e incentivando a expressão oral de todo o grupo. (B5)

Na visita à biblioteca, quando as crianças chegam no espaço, a monitora conversa antecipando o que irá acontecer: “Hoje nós vamos ouvir uma história e, depois, vamos ver quem vai levar livro para casa. Cada um vai escolher um livro”. (E2)

Também foram observados momentos em que as interações entre professoras e crianças aconteciam em situações imaginárias, numa sintonia entre gesto, palavra e jogo lúdico-simbólico:

Um bebê pega para brincar a cesta com panelinhas e outros objetos de cozinha, e retira um copo, senta-se próximo ao boneco de meia do lobo. A professora, em determinado momento, interfere dizendo “Vamos colocar suco?” (faz de conta que coloca e que bebe). Em seguida, faz que oferece suco ao lobo e diz: “Você quer lobo?” O bebê faz também, aproxima o copo da boca do lobo. Um pouco depois, a professora convida: “Vamos cantar música do lobo?”, enquanto canta, mexe com o boneco do lobo e o bebê a acompanha com olhar, movimenta o corpo e balbucia. (E1)

Quando a forma linguística das crianças é ainda pouco articulada, foram observados momentos em que as professoras restituem à criança a sensação de ser compreendida e, com isso, enriquecem sua capacidade comunicativa.

Alguns bebês estão explorando o cesto dos tesouros, a professora levanta-se e dirige-se ao trocador. No caminho encontra Giovana e, ao perceber que ela a olha e balbucia, a professora abaixa-se e pergunta “O que, Gi?”, enquanto vai sentando e estendendo a mão na direção da bebê, que se aproxima e senta no colo da educadora. A professora se inclina (costas e pescoço colocando ouvido mais perto dela) para ouvir o que a bebê sussurra. Depois, a professora, ao conversar com a monitora, fala: “É que ela estava falando alguma coisa e eu não estava entendendo, aí eu chamei ela para falar perto de mim. Era xixi.

Em outro momento observado, a professora fala: “Vamos chamar o lobo para ouvir uma história”, Leonardo balbucia e sorri, a professora retoma “Ah sim, vamos Leonardo!” (E1).

A professora perguntou: “quem quer ser bailarina?” Um menino disse que não queria e ela perguntou: “você quer ser o quê?” Ele falou “super-herói”. Ninguém conseguiu entender, mas ela insistiu até entender o que o menino queria dizer e repetiu a palavra para o grupo. (B2)

A música é uma linguagem que se mostrou presente de diversas formas nas turmas investigadas. No berçário, as crianças se movimentam ao ritmo das músicas, as professoras cantam para as crianças em diferentes momentos e com diferentes funções: narrar, fazer com que as crianças observem algo, acalmar o choro, embalar, brincar, chamar os personagens das histórias, entre outras. A música se apresenta como fundo, como ampliação de repertório, como marcação do tempo e das atividades da rotina, para propor tarefas e ações:

Nos dias de observação, em um período da tarde, estava tocando um CD com música instrumental com volume bem baixo. As educadoras também relataram que procuram diversificar os CDS (música clássica, Mozart, acalantos, sons da natureza, coleção de cantigas, conversa de bicho, Palavra Cantada, canções indígenas, etc.). Há também a Caixa de música, em que com os bebês sorteiam os bichos de feltro e, então, as educadoras cantam as músicas relacionadas a eles. (E1)

A professora também cantava músicas para marcar a rotina como na saída para o lanche ou no momento da história (“Toc, toc. Quem é? Pode entrar. É a história que acaba de chegar”). Na chamada com cartões com os nomes das crianças, a professora apresentava o cartão, perguntava de quem era o nome, dizia o nome e entregava o cartão para criança ou guardava na caixa que tinha trazido junto com livros de literatura. No momento de entregar o cartão ela cantava: “O seu nome é ... pra vocês eu vou dizer. O seu nome é ... e o seu quero saber” e apresentava outro cartão. (B4)

Outra forma recorrente foi a relação da música com a literatura. Histórias puxam músicas, gestos, movimentos corporais e se entremeiam às leituras:

As educadoras cantam bastante e, aos poucos, vão complexificando gestos, segundo elas: “Trabalhamos a literatura com as músicas, e com as músicas trabalhamos poesias”. Cabe destacar que isso não ocorre como momento de reprodução de gestos, e sim de maneira tranquila como um convite a cantar, em espaços e momentos individuais na relação com os bebês. Sobre esses momentos, observou-se que os bebês gostavam e sentiam-se contentes, sorrindo, alguns acompanhavam balançando o corpo, e em partes específicas de canções (que pareciam já conhecer) ficavam atentos participando com reações e alguns gestos e expressão de alegria. (E1)

A música parece provocar momentos de interação, que ora faz ponte com as palavras, ora dispensa a palavra e estabelece elos interpessoais pela fruição, entrando também no espaço estético, ético e político da arte.

A pesquisa mostrou que a literatura está muito presente nas turmas observadas. Em todas elas, as professoras leram ou contaram histórias para as crianças nos dias de observação. Livros acessíveis nas salas, organizados em bibliotecas, que as turmas frequentam, dispostos em estantes baixas, cestos e caixas circulam nas mãos de crianças e adultos, são lidos na sala, no hall, na biblioteca, na roda, em mesas, em almofadas no chão, no grupão e também em pequenos grupos e individualmente. São levados para casa em sacolas customizadas para serem lidos com as famílias. Algumas fotografias mostram bibliotecas bem organizadas e com um vasto acervo de livros, além de fantoches e outros bonecos, palcos, televisão, aparelho de som, materiais que podem expandir as leituras. Uma ciranda de histórias tradicionais como Três Porquinhos, Dona Baratinha, Chapeuzinho Vermelho, de histórias de autores brasileiros consagrados, como Sylvia Orthof, Ziraldo, Ana Maria Machado, e também de estrangeiros foi citada ao longo dos registros das observações das professoras. Podemos afirmar que nas turmas pesquisadas há livros - grande parte deles parece ser de qualidade e estar em bom estado - e eles são lidos. Observa-se, entretanto, um contraste entre a leitura para e com os bebês e crianças pequenas da creche e a leitura para as crianças da pré-escola:

Creche: Destaca-se neste grupo a atividade de leitura e contação de histórias. Foi observado que esta faz parte da rotina: as crianças sentam quando a profa. mostra o livro que vai ler/contar. Em outra situação foi observado que uma criança pega um livro e insistentemente mostra a profa. como se pedindo para que ela lesse. A profa. entende o gesto da criança e lê o livro em seguida. Também destaca-se o planejamento da leitura feito pela professora ao compor a caixa surpresa com objetos que dão suporte a sua contação. Durante a leitura de histórias também estimula as crianças a interagir com o texto. Por exemplo, no livro Cadê Pedrinho?, o personagem fica atrás de uma árvore e vai mostrando apenas partes do seu corpo até, finalmente, aparecer de corpo inteiro. A professora vai, então, perguntando: “cadê o pé de Isabela? E o de Ana Clara?” e, assim por diante, seguindo a sequência do livro. (B3)

Pré-escola: Ao concluir a história, a professora começa a fazer perguntas sobre seu enredo e personagens. As crianças vão falando o que lembram, como compreenderam, suas impressões. Ela vai questionando-os sobre as características dos personagens; “corrige” algumas falas que distorcem a história, ao mesmo tempo que contém as crianças mais inquietas. Ela elogia a roda. Pergunta: como se escreve a palavra baratinha? E vai colando letras metálicas em um quadro magnético que está no seu colo. Ela vai pegando as letras em uma bolsinha que tem junto ao quadro e vai mostrando a palavra, perguntando qual a letra que vem depois, qual vem no final. Monta bem rápido a palavra BARATINHA, com hidrocor. Então, fala que vão agora desenhar a Baratinha; as crianças correm rápido para as mesas.

A professora mostra o papel com a tarefa e explica o que irão fazer: escrever o nome da história e, depois, desenhar. As crianças vão se organizando para fazer a tarefa; umas andam pela sala. Ela vai ajudando-os. As crianças vão desenhando (a professora vai retomando, falando o que é para desenhar e escrever o nome da baratinha). (A3)

Esse último evento apresenta uma sequência presente em relatos de várias turmas: leitura da história no coletivo, seguida de perguntas de compreensão, solicitação da sequência temporal dos acontecimentos da narrativa e de informações explícitas no texto verbal e/ou no visual, depois há o destaque de alguma palavra da história para uma microanálise da escrita e, por fim, uma tarefa gráfica relacionada à história, geralmente desenho, escrita e/ou cópia da palavra. A proposta de leitura tem claramente como objetivos a checagem de uma compreensão linear - portanto, qualquer desvio é corrigido - e a alfabetização. Há uma nítida ruptura com o jogo ficcional, com o espaço simbólico da imaginação e criação.

Observamos nos relatos uma recorrência de observações de atividades relacionadas à chamada. Com as crianças da creche, a chamada é feita com fotografias e, com as da pré-escola, com a escrita dos nomes em fichas que servem para muitas atividades de leitura, identificação de letras, comparações das sequências das letras, contagem de número de letras e de sílabas.

Creche: Na chamadinha, professora pega fantoches confeccionados com palitos de picolé e a imagem do rosto das crianças, convida as crianças para ver quem está na escola. Professora: “Quem veio hoje?”. Então, pega um dos fantoches na mão e sem mostrar a foto pergunta: “quem chegou à escola foi?”, nesse momento mostra a foto, as crianças dizem o nome do colega. As crianças gostam de serem reconhecidas na foto, elas sorriem tanto ao apontar para quem veio quanto a criança que está na foto. Quando a criança não está na escola, ela questiona onde será que ele(a) está? Por saber do motivo da ausência de uma das crianças, a professora diz: “ela foi passear com a Mamãe dela”. Uma criança diz: “de binu”. Prof.: “sim, ela foi passear de ônibus para ver a Vovó dela lá em Osório”. (E5)

Pré-escola: A roda inicial foi um longo momento de diálogo/conversa onde as crianças falam com cada um - ouve, retoma suas falas. No nome de Rafael, a professora pergunta se termina igual a Natanael. Explora outras palavras com som semelhante. As crianças falam: pastel, Gabriel. Aparece, enfim, o nome de Natália. Ela pergunta qual nome será ao aparecer a sequência NATÁ. Pergunta qual nome tem esse “acento”: elas dizem Natália e Nataly, ela pergunta à Natália se o nome dela tem esse acento, ela diz que sim e a professora retoma com todos: “esse é o nome Natália, tem esse acento para ficar forte o Tá”. A professora mostra outro nome começando com a letra A, ela diz Ana Júlia e segue mostrando e ela descobre o D. Pergunta que letra é essa. (A5)

Vários relatos de observação apresentam diálogos e procedimentos das professoras de pré-escola em práticas relacionadas à análise das palavras, tais como jogos para percepção/identificação de sons iniciais e finais de palavras, para correspondência entre letra e/ou sílabas a sons de palavras. Foi uma preocupação das pesquisadoras detalharem tais procedimentos mais do que diálogos depois de uma leitura de histórias, uma conversa na rodinha sobre algum tema trabalhado, conversas de crianças, entre outros.

A professora propõe atividades de análise da palavra oral, relacionando-a à sua forma escrita (ex. caixa de surpresa). Através delas as crianças têm oportunidade de observar e apreender aspectos do sistema de escrita alfabética (quantidade de sílabas da palavra oral, quantidade de letras, identificação das letras que compõem a forma escrita das palavras, letra inicial e final, etc.). A produção de escrita de palavra e os procedimentos de análise das palavras (identificação de letras, comparação do número de letras e de sílabas, identificação e segmentação de sílabas, dentre outros) que constituem o cotidiano das crianças concretizam o caminho metodológico da prática da professora. (D5)

A professora pergunta: “qual desses é arte?” A criança pega ATIVIDADE - ARTE. As professoras perguntam como começa e as crianças dizem: A; “e como termina?” As crianças dizem: E. “E agora? Como vamos saber qual será ARTE?” A professora lembra: “uma criança falou que era a palavra menor”; a criança com as duas fichas olhando-as fala as palavras. (“Dou uma dica: pensar qual a letra que vem depois”). Até que elas descobrem e falam: R, depois do A de ARTE. (A5)

Observamos que práticas relacionadas ao processo de alfabetização, em turmas de pré-escola, foram compreendidas como bons exemplos de leitura e escrita também por algumas pesquisadoras, conforme o evento a seguir:

São muitos os bons exemplos de práticas de leitura e escrita nessa sala. Além das atividades diárias de escrita coletiva da Agenda do dia e do Ajudante do dia, já citadas aqui, foram observados dois jogos bastante interessantes. Um deles foi o “bingo de nomes” em que as cartelas eram nomes de comidas típicas do São João (MILHO, MUNGUZÁ, CANJICA, etc.). A professora chamava o nome de uma letra retirando de um saquinho e as crianças riscavam a letra correspondente em sua cartela. O outro jogo está na caixa de Jogos de Alfabetização, distribuída pelo MEC para escolas do ensino fundamental. O jogo é o Bingo de sons e o objetivo é levar as crianças a prestarem atenção para os sons das palavras. Nesse caso, elas devem observar o som inicial da palavra chamada pela professora (por exemplo, “MELECA”) e ver se combina com o som inicial das figuras que estão em sua cartela. Trata-se, portanto, de um jogo que estimula a consciência fonológica, uma habilidade essencial para a alfabetização. (B1)

Uma questão que o evento nos coloca não diz respeito às propostas em si, mas ao sentido dado pelas crianças a elas, ao tempo que ocupam na jornada escolar, às escolhas que podem mais estreitar do que dilatar os horizontes simbólicos, linguísticos e culturais das crianças. O contraste entre creche e pré-escola e a estreita relação entre pré-escola e alfabetização presentes na pesquisa nos remetem às relações entre creche e o ensino obrigatório e entre educação infantil e ensino fundamental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM DIÁLOGO EM ABERTO

Os achados mostram a importância de se deter e aprofundar na reflexão sobre essa complexa relação produzida dentro de um sistema de ensino. Em artigo que aborda o tema, Moss (2011) mapeia, analisa e classifica a maneira pela qual os diferentes países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) concebem essa relação. O pesquisador faz conjecturas a respeito dos fatores que a influenciam, como, por exemplo: o crescimento do número de crianças em serviços educacionais anteriores ao ensino obrigatório, a correlação da aprendizagem desde o nascimento com o desempenho escolar e o argumento de que o investimento educacional mais produtivo é aquele feito nas crianças com idade inferior à do ensino obrigatório (MOSS, 2011). O autor considera que se destacam, nesses países, quatro tipos de relação: preparação das crianças para a escola, distanciamento dessas etapas, preparação da escola para as crianças e, por fim, a busca de convergências, a partir do diálogo e da construção conjunta. Esta última visa a uma parceria forte e igualitária criada pelo trabalho conjunto em um projeto comum. Moss (2011, p. 146) conclui que, a despeito das positividades que podem surgir quando essa relação é mais estreita e cooperativa, há o risco de que a educação infantil seja considerada uma etapa preparatória, sem levar em conta as especificidades das crianças e desse período, pois “essa relação não é apenas uma questão de proximidade, mas também de poder”.

A noção de crianças como sujeitos históricos, produtores de cultura ativos e competentes foi ganhando espaço nos estudos do campo, nos documentos elaborados no âmbito do Ministério da Educação, sendo que as DCNEI 2009 reafirmam essa concepção, colocando as crianças como centro da proposta educativa. Isso significa que as propostas na educação infantil devem ser fruto das observações dos professores das brincadeiras, conversas e indagações das crianças. A lógica em questão não é do conteúdo preestabelecido, que vem de fora para ser ensinado, mas sim de ampliações das experiências, repertórios e conhecimentos das crianças a partir dos seus interesses, de forma contextualizada e articulada. Aí está o cerne da nossa questão: em que medida, especialmente na pré-escola, tem se conseguido manter as crianças no centro das propostas? Como o poder exercido pelo ensino fundamental tem sido enfrentado pela educação infantil?

As coleções apresentadas mostram a riqueza do campo e conquistas em busca de uma prática mais próxima ao discurso que foi sendo formulado ao longo dos últimos anos. Os resultados evidenciam que são imprescindíveis algumas condições para o desenvolvimento de boas práticas de leitura e escrita - tempo de experiência, formação, jornada de trabalho em um único estabelecimento, reuniões sistemáticas para planejamento e organização coletiva do trabalho, número de crianças por turma mais reduzido em relação ao ensino fundamental. Observou-se muita leitura literária de professoras e crianças: leitura diária, livros acessíveis nas salas, circulando nas mãos das crianças, lidos de diversas maneiras na escola e em casa, organizados também em bibliotecas frequentadas pelas turmas. Verificou-se, também, que as práticas de leitura e escrita nas turmas de creche assumem um lugar lúdico-simbólico, se integram à música e às outras linguagens. Já nas turmas de pré-escola há muitos registros nas salas que evidenciam a professora como escriba de narrativas diversas das crianças. Entretanto nas observações predominaram práticas mais diretivas, mais pautadas em conteúdos relacionados à alfabetização stricto sensu, preocupadas com a identificação de letras, sons iniciais e finais de palavras, etc., práticas mais próximas das que ocorrem no ensino fundamental.

Por fim, embora reconheçamos que o tempo de observação é sempre limitado e que as atividades desenvolvidas não encerram, em si, uma positividade, mas dependem de um projeto que as sustentem junto às crianças, ao espaço e ao período de realização, podemos afirmar que nas 27 turmas pesquisadas há um movimento de busca de uma identidade para a educação infantil na organização dos espaços e materiais, nas interações e interlocuções, na forma dialógica como as professoras escutam e respondem às crianças e no trabalho com projetos, que pareceu predominar nas turmas. Entretanto há um contraste entre creche e pré-escola que nos faz pensar se seria o advento da escolaridade obrigatória aos quatro anos, e com isso a ideia de que essa escola obrigatória deveria se constituir como guardiã da razão, pautada pelo pensamento científico, lógico e seriado. Assim, enquanto a creche parece caminhar em direção a uma reinvenção criativa, nos indagamos sobre por onde irá caminhar a pré-escola: seguirá pelos caminhos da magia, do mito, da criação e da fruição ou será incorporada aos caminhos da razão? O diálogo continua aberto.

REFERÊNCIAS

ABRAMOWICZ, A.; TEBET, G. G. de C. Educação infantil: um balanço a partir do campo das diferenças. Pro-posições, v. 28, Supl. 1, p. 182-203, dez. 2017. [ Links ]

ARAÚJO, V. C. de. O tempo integral na educação infantil: uma virtude pública? Cadernos de Pesquisa em Educação, Vitória, v. 19, n. 42, p. 13-28, jul./dez. 2015. [ Links ]

ANDRADE, E. R.; NUNES, M. F. R.; FARAH NETO, M.; ABRAMOVAY, M. (org.). Perfil dos professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que almejam... Pesquisa Nacional Unesco. São Paulo: Moderna, 2004. [ Links ]

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997. [ Links ]

ARTES, A.; UNBEHAUM, S. Escritos de Fúlvia Rosemberg. São Paulo: Cortez, 2015. [ Links ]

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. [ Links ]

BONDIOLI, A.; MANTOVANI, S. Manual de educação infantil: de 0 a 3 anos. Porto Alegre: Artmed, 1998. [ Links ]

BOURDIEU, P. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Política de Educação Infantil: proposta. Brasília: MEC/SEF/Coedi, 1993. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução no 5, de 17 de dezembro de /2009. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC, 2009. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Contribuições para a política nacional: a avaliação em educação infantil a partir da avaliação de contexto. Curitiba: Imprensa/UFPR; Brasília: MEC/SEB/Coedi, 2015. [ Links ]

CAMPOS, M. M. Educar e cuidar: questões sobre o perfil do profissional da educação infantil. In: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Por uma política de formação do profissional da educação infantil. Brasília, 1994. [ Links ]

CAMPOS, M. M. Entre as políticas de qualidade e a qualidade das práticas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148 p. 22-43 jan./abr. 2013. [ Links ]

CAMPOS, M. M.; CRUZ, S. H. V. Consulta sobre a qualidade na educação infantil: o que pensam e querem os sujeitos deste direito. São Paulo: Cortez, 2006. [ Links ]

CORSINO, P. Infância, linguagem e letramento: educação infantil na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. 2003. 300 f. Tese (Doutorado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003. [ Links ]

CORSINO, P.; GUIMARÃES, D. O. Contrastes e deslocamentos na experiência com instrumentos italianos de avaliação de contexto numa instituição da rede municipal de ensino da cidade do Rio de Janeiro. RELAdEI - Revista Latino Americana de Educación Infantil, v. 6, n. 1-2 Evaluación de Contextos en Educación Infantil, p.71- 81, enero/jun. 2017. [ Links ]

FANFANI, E. T. Consideraciones sociologicas sobre profesionalización docente. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 99, p. 335-353, maio/ago. 2007. [ Links ]

FREIRE, M. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. [ Links ]

KRAMER, S.; NUNES, M. F.; CORSINO, P. Infância e crianças de 6 anos: desafios das transições na educação infantil e no ensino fundamental. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 1, p. 69-85, jan./abr. 2011. [ Links ]

MOSS, P. Qual o futuro da relação entre educação infantil e ensino obrigatório? Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 142, p.142-159, jan./abr. 2011. [ Links ]

RICHTER, A. C.; VAZ, A. F. Momentos do parque em uma rotina de educação infantil: corpo, consumo, barbárie. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. 3, p. 673-684, dez. 2010. [ Links ]

ROSEMBERG, F. Políticas públicas e qualidade da educação infantil. In: ARTES, A.; UNBEHAUM, S. Escritos de Fúlvia Rosemberg. São Paulo: Cortez, 2015. [ Links ]

SOUZA, G. de; MORO, C.; COUTINHO, A. S. (org.). Formação da rede em educação infantil: avaliação de contexto. Curitiba: Appris, 2015. v. 1. [ Links ]

VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [ Links ]

VOLOCHÍNOV, V. N. Palavra na vida e palavra na poesia: introdução ao problema de poética sociológica. In: VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. São CarlosP: Pedro & João, 2013. p. 71-100. [ Links ]

1Esta pesquisa é um subprojeto da pesquisa interinstitucional “Leitura e escrita na educação infantil”, desenvolvida de 2014 a 2018, por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), UFRJ e Unirio.

2Para a realização das observações foi elaborado um roteiro guia contendo indagações sobre espaços, materiais, rotina, práticas e interações das crianças entre elas, com as professoras, e com a proposta em curso. A fotografia foi também um importante instrumento, mas não foi tomada como evento por questões éticas de pesquisa com crianças.

3No âmbito desta pesquisa, os relatórios de observação das turmas foram organizados por estado e por escola, utilizando letras e números, respectivamente, para sua identificação.

4Nesta escola, a auxiliar é denominada monitora e exerce função docente.

5Papel resistente para pintura, com dimensão de 66 cm por 96 cm.

Recebido: 18 de Outubro de 2018; Aceito: 29 de Abril de 2019

NOTA:

Ambas as docentes são igualmente autoras e a ordem que se seguiu para citá-las foi meramente alfabética.

Creative Commons License This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License