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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.49 no.174 São Paulo out./dez 2019  Epub 20-Nov-2019

https://doi.org/10.1590/198053146654 

ARTIGOS

CATEGORIAS TEÓRICAS DE SHULMAN: REVISÃO INTEGRATIVA NO CAMPO DA FORMAÇÃO DOCENTE

Patrícia Cristina Albieri de AlmeidaI 
http://orcid.org/0000-0002-4081-4573

Claudia Leme Ferreira DavisII 
http://orcid.org/0000-0002-0003-3510

Ana Maria Gimenes Corrêa CalilIII 
http://orcid.org/0000-0002-4578-0894

Adriana Mallmann VilalvaIV 
http://orcid.org/0000-0002-1089-9238

I Fundação Carlos Chagas (FCC), São Paulo (SP); Unasp, Engenheiro Coelho (SP), Brasil; patricia.aa@uol.com.br

II Fundação Carlos Chagas (FCC), São Paulo (SP); Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo (SP), Brasil; cdavis@fcc.org.br

III Universidade de Taubaté (Unitau), Taubaté (SP), Brasil; ana.calil@unitau.com.br

IV Universidade Católica de Santos (Unisantos), Santos (SP), Brasil; drikamallmann@gmail.com


Resumo

Este estudo apresenta uma revisão integrativa da literatura que buscou identificar as tendências e características das produções acadêmicas brasileiras que fizeram uso do conhecimento pedagógico do conteúdo [pedagogical content knowledge] (PCK) e dos processos de ação e raciocínio pedagógicos, categorias teóricas de conhecimento docente formuladas por Shulman e colaboradores. Foram localizadas 114 produções, a maioria publicada a partir de 2010. O interesse das pesquisas incide principalmente na formação inicial de professores e nos docentes que atuam nos anos finais do ensino fundamental e/ou no ensino médio, de modo a apreender como se dá o desenvolvimento e a mobilização do PCK. A análise aqui apresentada pode estimular o desenvolvimento de novas pesquisas.

Palavras-Chave: FORMAÇÃO DE PROFESSORES; CONHECIMENTO; RACIOCÍNIO; PEDAGOGIA

Abstract

This study presents an integrative literature review. It aim was to identify the trends and characteristics of Brazilian academic researches that used the theoretical categories of teaching knowledge, formulated by Shulman and collaborators: pedagogical content knowledge (PCK), pedagogical action and reasoning processes. We found 114 studies, most of which published since 2010. The studies focus mainly on the initial education of teachers who teach in the final years of fundamental (from 11 to 14 years old) and high school, to understand how PCK is developed and mobilized. The analysis presented here can stimulate the development of further research.

Key words: TEACHER TRAINING; KNOWLEDGE; REASONING; PEDAGOGY

Résumé

Cette étude présente une révision intégrative de la littérature dont le but est d’identifier les tendances et les caractéristiques de la production académique brésilienne qui utilise la connaissance du contenu pédagogique [pedagogical content knowledge] (PCK) et les processus d’action et de raisonnement. Ces catégories théoriques concernant les connaissances pédagogiques ont été formulées par Shulman et ses collaborateurs. 114 textes ont été pris en compte, dont la plupart ont été publiés à partir de 2010. Les recherches concernent surtout la formation initiale des enseignants et les enseignants des dernières années de l’école primaire et/ou du secondaire et visent à mieux comprendre le développement et la mobilisation de la PCK. Cette analyse entend contribuer à la realisation de nouvelles recherches.

Key words: FORMATION DES ENSEIGNANTS; CONNAISSANCES; RAISONNEMENT; PÉDAGOGIE

Resumen

Este estudio presenta una revisión integrativa de la literatura que buscaba identificar las tendencias y características de las producciones académicas brasileñas que utilizaban el conocimiento pedagógico del contenido [pedagogical content knowledge] (PCK) y de los procesos de acción y razonamiento pedagógico, categorías teóricas de conocimiento docente formuladas por Shulman y colaboradores. Se encontraron un total de 114 producciones, la mayoría de ellas publicadas en 2010. El interés de las investigaciones se centra en la formación inicial de maestros y en los docentes que trabajan en los últimos años de la escuela primaria y/o secundaria, para comprender cómo se da el desarrollo y la movilización del PCK. El análisis presentado aquí puede estimular el desarrollo de nuevas investigaciones.

Palabras-clave: FORMACIÓN DE PROFESORES; CONOCIMIENTO; RAZONAMIENTO; PEDAGOGÍA

Estudos sobre as teorizações relativas à natureza do conhecimento profissional docente são abundantes desde os anos 80 em vários países, ocupando papel de destaque na formação de professores. Essa relevância é atribuída, em grande parte, às suas possibilidades de impulsionar o desenvolvimento de ações formativas em cursos de licenciatura e em programas e práticas de formação continuada. Assim, Roldão (2007) esclarece que, nas teorizações sobre o conhecimento profissional, é possível identificar duas linhas dominantes, ambas acolhendo outras versões em seu interior: uma diz respeito aos estudos de Shulman (1986, 1987) e colaboradores, cujo objetivo é desenvolver um modelo explicativo e descritivo dos componentes que se encontram na base da docência, focando, em especial, como o professor transforma suas representações acerca dos conteúdos educacionais em ensino. A outra corrente teórica que trata do “pensamento do professor” foi desenvolvida sob a influência de Donald Schön e da sua epistemologia da prática (1987), que “se centra na construção do conhecimento profissional enquanto processo de elaboração reflexiva a partir da prática do profissional em acção” (ROLDÃO, 2007, p. 98).

Ainda segundo Roldão (2007), apesar de os teóricos privilegiarem enfoques diferentes, há inúmeros pontos de aproximação entre eles. A autora cita dois: a) as aproximações claras da abordagem de Shulman ao modelo do professor investigador (STENHOUSE, 1991) e do prático reflexivo (SCHÖN, 1987), já que o “conhecimento resultante da prática não se reporta à legitimação de qualquer prática, mas ao conhecimento que resulta da reflexão analítica de professores competentes” (ROLDÃO, 2007, p. 99), que mobilizam, de forma unificada, as categorias que compõem os conhecimentos que estão na base da docência; b) o fato de ambas as propostas serem “sustentadas por estudos de caso que fundamentam e iluminam suas respectivas teorizações, ou seja, alimentam-se, de facto, do conhecimento expresso pelos professores em situação real” (ROLDÃO, 2007, p. 99).

Neste estudo, o interesse recai sobre as abordagens desenvolvidas por Shulman e colaboradores, no programa de pesquisa denominado “Knowledge Growth in a Profession: Development of Knowledge in Teaching”, ocorrido na década de 1980, na Universidade de Stanford. Esse programa foi proposto e implementado por Shulman a partir da crítica aos programas de formação docente, que consistiam, segundo o autor, basicamente em agrupar conhecimentos disciplinares e pedagógicos, bem como as habilidades necessárias à realização das ações docentes num determinado contexto de ensino. Para Shulman (1987), era necessário centrar a atenção na base do conhecimento necessário ao ensino, suas fontes e, também, na complexidade do processo pedagógico, dado que faltavam estudos que tentassem elucidar o caráter desse conhecimento, o que implicava questionar o que os professores sabiam (ou não) a respeito daquilo que lhes permitia ensinar de certa maneira.

Acreditando que as pesquisas vinham trivializando a prática pedagógica, Shulman e seus colaboradores dedicaram-se a desenvolver um marco teórico que explicasse e descrevesse os conhecimentos que estão na base da docência, o que inclui a possibilidade de o professor transformar o conhecimento do conteúdo em formas que sejam pedagogicamente eficazes e possíveis de serem adaptadas às variações de contexto e das habilidades já alcançadas pelos alunos (ALMEIDA; BIAJONE, 2007). Buscando legitimar os conhecimentos que estão na base do ensino, Shulman e colaboradores têm oferecido contribuições importantes para a formação de professores. No conjunto desses estudos, o “conhecimento pedagógico do conteúdo” (da expressão em inglês, Pedagogical Content Knowledge - PCK)1 e os “processos de ação e raciocínio pedagógicos” são categorias teóricas de conhecimento docente que interessam muito o campo da didática e da formação de professores, nas diversas áreas do saber.

Os estudos desenvolvidos por Shulman e colaboradores, especialmente no que diz respeito ao PCK, passaram a ser, segundo Bolívar (2005), um marco epistemológico privilegiado na investigação das didáticas específicas. Isso pode ser visto, por exemplo, em autores que se voltam para o ensino da área de ciências e de matemática: eles se debruçaram sobre o modelo original de Shulman e ampliaram-no tendo em vista as especificidades dessas áreas. Em decorrência da diversidade de modelos e concepções referentes ao PCK e aos conhecimentos dos professores, foi criado o projeto denominado “Cúpula do PCK”, cujo objetivo foi construir uma definição e um modelo unificado desse constructo. Em 2012, foi realizada uma conferência em Colorado Springs, que reuniu 30 grupos de pesquisadores que estudam o PCK no ensino de ciências, incluindo investigadores do ensino de física, química e biologia, com a intenção de, a partir das concepções adotadas pelos distintos estudiosos, chegar-se a um consenso sobre a definição da base de conhecimentos a serem ensinados nas escolas e o PCK.

Assim, tendo em vista as várias possibilidades de apropriação e uso do PCK e dos processos de ação e raciocínio pedagógicos, esta pesquisa fez um levantamento dos estudos publicados no Brasil que empregavam essas categorias teóricas, no âmbito da formação de professores. Buscou-se, por meio de tal levantamento, identificar as tendências e características das produções acadêmicas brasileiras que investigaram os conhecimentos que estão na base da docência, com especial atenção às formas de acesso ao PCK do professor. Em termos de organização, o estudo foi estruturado em quatro partes: na primeira, faz-se uma breve apresentação do PCK e dos processos de ação e raciocínio pedagógicos como categorias teóricas; na segunda, explicita-se o percurso metodológico utilizado no processo de levantamento e análise das produções; posteriormente, estão a apresentação e discussão dos principais achados; e, por fim, tecem-se as considerações finais.

O CONHECIMENTO PEDAGÓGICO DO CONTEÚDO COMO CATEGORIA TEÓRICA

Fundamentado nos estudos realizados junto a professores iniciantes e experientes, Shulman propôs, em 1986, três categorias teóricas de conhecimento presentes no desenvolvimento cognitivo do professor: conhecimento do conteúdo, conhecimento pedagógico do conteúdo e conhecimento curricular. Posteriormente, em 1987, revisou essas categorias, desdobrando-as em sete, a saber: a) o conhecimento do conteúdo que será objeto de ensino; b) o conhecimento pedagógico geral, com especial referência aos princípios e estratégias mais abrangentes de gestão e organização da sala de aula; c) o conhecimento do currículo, notadamente no que diz respeito aos programas voltados ao ensino de assuntos e tópicos específicos em um determinado nível de estudo, bem como à variedade de materiais instrucionais disponíveis; d) o conhecimento pedagógico do conteúdo relativo ao amálgama específico de conteúdo e pedagogia, que é de domínio exclusivo dos professores; e) o conhecimento dos aprendizes e suas características; f) o conhecimento dos contextos educacionais, que engloba desde o funcionamento do grupo ou da sala de aula, passando pela gestão e financiamento dos sistemas educacionais, até as características das comunidades e suas culturas; e, por fim, g) o conhecimento dos fins, propósitos e valores da educação, bem como de sua base histórica e filosófica.

No conjunto dessas categorias, ganha destaque o conhecimento pedagógico do conteúdo, que, para Shulman (1987), é a categoria de maior interesse porque: identifica as partes distintas do conhecimento para o ensino; envolve a intersecção do conteúdo e da pedagogia na compreensão, por exemplo, de como tópicos particulares, problemas ou assuntos são organizados, representados e adaptados aos interesses e às diversas habilidades dos aprendizes, nas situações de ensino. O PCK consiste, portanto, nos modos de formular e apresentar o conteúdo de maneira compreensível aos alunos, incluindo o uso de analogias, ilustrações, exemplos, explanações e demonstrações. Além disso, o PCK também diz respeito à compreensão, por parte do docente, daquilo que facilita ou dificulta o aprendizado de um conteúdo em específico, além das concepções errôneas dos alunos e suas implicações para a aprendizagem (SHULMAN, 1987). Argumentando que ensinar é antes de tudo entender, Shulman (1987) considera o PCK um conjunto de formas alternativas de representação, que encontram origem tanto na pesquisa como nos saberes oriundos da prática docente. Desse modo, em razão de o PCK referir-se a algo que é de domínio exclusivo dos professores - sua forma especial de entendimento profissional -, Shulman (1987) considera ser essa a categoria que mais provavelmente diferencia o entendimento de um especialista daquele de um professor.

Em 1990, Pamela Grossman, da equipe de investigação de Shulman, redefiniu as categorias propostas por ele, em 1987, reduzindo-as a quatro: a) conhecimento pedagógico geral, que congrega o conhecimento dos alunos e de sua aprendizagem, bem como as habilidades relacionadas à gestão da sala de aula e ao conhecimento do currículo tanto horizontal quanto verticalmente; b) conhecimento do conteúdo específico, que é constituído por aquele que é objeto de ensino e, portanto, tem influência direta nas decisões curriculares; c) conhecimento do contexto, que abrange a compreensão de onde o docente irá atuar, o que implica conhecer os alunos individualmente e como grupo, a organização administrativa e pedagógica da escola, as particularidades sociais e culturais da comunidade onde está a escola e seus alunos, os quais demandarão ajustes dos conhecimentos do professor a essas especificidades; e d) o conhecimento pedagógico do conteúdo, tido como conhecimento nuclear, uma vez que interage com todos os demais.

O PCK, segundo Grossman (1990), engloba a concepção a respeito dos propósitos para o ensino de um conteúdo específico, ou seja, diz respeito a quanto o professor sabe precisar a necessidade e o objetivo de se trabalhar um determinado tema em sala de aula. Essa compreensão requer, por sua vez, conhecimento da compreensão que os estudantes têm desse conteúdo que será objeto de ensino: suas experiências e concepções, seus modos de raciocínio, suas possibilidades e dificuldades, bem como outras variáveis que podem influenciar o conhecimento dos alunos sobre os conteúdos apresentados pelo docente nas situações de ensino. Essa compreensão é essencial para o professor estruturar as experiências de aprendizagem, pois implica conceber formas de representar e explicar o conteúdo. Compõe também o PCK o conhecimento do currículo, ou seja, dos materiais curriculares disponíveis para o ensino de um assunto particular e as relações que mantém com os demais. Esse conhecimento permite ao professor preparar e organizar o conteúdo a ser ensinado à luz das particularidades do contexto de ensino e da aprendizagem. Por fim, o PCK envolve ainda conhecimento das estratégias instrucionais: as maneiras pelas quais o professor representa o conteúdo para os estudantes (como, por exemplo, os tipos de exemplos, demonstrações, analogias, metáforas, experimentos e atividades, de modo a torná-lo acessível aos alunos).

Assim, o PCK não se constitui simplesmente pelo conhecimento de cada uma dessas categorias e, sim, por sua integração, combinação e transformação, algo que é influenciado e influencia os demais domínios do conhecimento (GROSSMAN, 1990). Trata-se, portanto, de um constructo complexo, que abarca um conjunto de conhecimentos que são implícitos e dinâmicos, envolvendo uma mobilização coesa e articulada. O PCK é algo que pode ser aprendido e seu desenvolvimento, segundo Grossman (1990), tem início nas situações de observação de aulas durante o próprio processo de escolarização; segue, depois, na formação inicial, nos cursos específicos e na prática propriamente dita, como professor atuante. O desenvolvimento do PCK ocorre, assim, em um continuum, em uma perspectiva de transformação. O conhecimento pessoal do PCK é constituído e transformado na prática da sala de aula, nas situações em que o professor reflete sobre sua atuação, tendo em vista o aprendizado dos alunos. Compreender como o PCK é formado nos professores abarca necessariamente a relação intrínseca dessa categoria com os processos de ação e raciocínio pedagógicos propostos por Shulman.

OS PROCESSOS DE AÇÃO E RACIOCÍNIO PEDAGÓGICOS

Shulman, em artigo publicado em 1987, discute as categorias teóricas de conhecimentos presentes no desenvolvimento cognitivo do professor e apresenta o modelo dos processos de ação e raciocínio pedagógicos, argumentando que o ensino requer tanto raciocínio quanto conhecimento. Propõe, assim, um ciclo interativo que inclui a compreensão, a transformação, a instrução, a avaliação, a reflexão e o alcance de uma nova compreensão, como bem ilustra a Figura 1. Os processos de ação e raciocínio pedagógicos elucidam como os conhecimentos são ativados, articulados e construídos pelo professor durante o processo de ensinar e aprender. O modelo proposto resultou de várias pesquisas realizadas junto a professores, e recorreu a entrevistas, observações, tarefas estruturadas e análise de materiais para compreender como se dá a transformação de aprendizes em professores, algo que, na perspectiva de Shulman, significa dominar os conteúdos da disciplina que se leciona e apresentá-la por meio de novas formas e diferentes atividades, recorrendo a metáforas, exercícios, exemplos e demonstrações, na tentativa de levar os alunos a aprenderem o conteúdo lecionado. Nesses estudos, Shulman (1987) enfatiza que o ensino envolve compreensão e raciocínio, transformação e reflexão. O autor explica que as práticas formativas não devem fazer dos professores meros seguidores de manuais e, sim, prepará-los para raciocinar profundamente a respeito de como eles mesmos ensinam. Sendo assim, a formação docente deve operar com concepções e premissas que guiem as ações do futuro docente, o qual precisa se apropriar de e empregar sua base de conhecimento em suas escolhas e ações. Desse modo, a compreensão do professor implica uma vigorosa interação de ideias e de premissas a serem analisadas a partir de diferentes perspectivas (SHULMAN, 1987).

FIGURA 1 MODELO DOS PROCESSOS DE AÇÃO E RACIOCÍNIO PEDAGÓGICOS  

Fonte: Elaboração das autoras tendo como referência Shulman (1987).

A compreensão, como retratado na Figura 1, é o primeiro momento do ciclo proposto por Shulman (1987) e diz respeito a como o professor entende a disciplina que ensina, ou seja, como entende um grupo de ideias que precisa ser ensinado de modo crítico. Para tanto, o docente precisa ter domínio sobre aquilo que ensina e, se possível, dominá-lo de muitas maneiras, o que pressupõe saber como uma certa ideia se relaciona com outras ideias, pertençam elas ao mesmo tema ou a outros. Entretanto, Shulman (1987) acredita que esse entendimento não distingue um professor novato de um especialista em dada disciplina. Ao contrário, postula que a compreensão das ideias requer sua transformação para que elas se tornem acessíveis aos alunos.

Daí a transformação, que pede a combinação e a ordenação de cinco subprocessos, que representam de fato uma proposta de intervenção. São eles: a) “preparação”, que envolve uma interpretação crítica e especializada de textos e materiais, tendo em vista criar as condições necessárias para que os alunos aprendam; b) “representação”, que envolve a identificação de modos alternativos de se apresentarem os conteúdos aos alunos, empregando analogias, metáforas, exemplos, explicações, dramatizações, músicas, filmes, casos de ensino, demonstrações, diferentes tipos de mídia, etc., construindo, assim, pontes entre as muitas compreensões do professor e aquelas que se deseja que os alunos constituam; c) “seleção”, relativa às escolhas do professor acerca de como conduzirá as atividades de ensino, tendo por base o repertório representacional que já foi anteriormente identificado e escolhido; d) “adaptação”, que diz respeito ao processo de adequar os aspectos básicos de organização e manejo da sala de aula às características dos alunos, de turmas e de contextos específicos (SHULMAN, 1987).

Esses processos de transformação resultam em um plano que pode ser referente a uma aula, a um conjunto de aulas, a todo o semestre ou ao ano letivo. Até aqui, segundo Shulman (1987), tudo é ensaio para o desempenho de um ensino que ainda não aconteceu e que só vai se efetivar na instrução: o desempenho observável do professor, que envolve a organização e gestão da classe e do aprendizado, explicações, questionamentos, humor, discussões, disciplina, assim como todas as características observáveis do ensino em sala de aula.

O próximo momento do ciclo é a avaliação, que ocorre durante e após a instrução de maneira constante: informal, nos momentos de interatividade; formal, por meio de instrumentos sistemáticos de avaliação. Quando o professor olha para o processo que ocorreu e o reconstrói, reatua e/ou recaptura os eventos, as emoções e os resultados obtidos, há reflexão. A revisão e a análise crítica sobre a ação pedagógica exigem também o uso de conhecimentos específicos para examinar o próprio trabalho em face dos fins estabelecidos (SHULMAN, 1987). Esse processo, segundo Shulman (1987), pode ser feito pelo professor sozinho ou com seus pares, recorrendo a registros ou apenas à memória. Por fim, o último momento do ciclo (Figura 1) diz respeito à nova compreensão, quando se chega a um novo início, a uma compreensão enriquecida dos objetivos do ensino, do conteúdo a ser ensinado, das estratégias empregadas e também dos alunos, configurando a consolidação de novas compreensões e de aprendizagens pautadas na experiência. Segundo Shulman (1987), essa nova compreensão não ocorre automaticamente, mesmo após a avaliação e, inclusive, reflexão. Para ele, são necessárias estratégias específicas de documentação, análise e discussão.

Shulman (1987) esclarece que, embora os processos de ação e raciocínio pedagógicos estejam apresentados em sequência, isso não significa que representem um conjunto de estágios, passos ou fases fixas. Alguns deles podem não ocorrer ou se dar de forma truncada; outros são ignorados ou, ao contrário, mais bem elaborados, ocupando, portanto, um tempo maior nesse modelo. De qualquer modo, esse processo pode promover a construção de conhecimentos relativos a como ensinar diferentes assuntos, para diferentes alunos e em contextos distintos. Vale ressaltar que as atividades de compreensão, transformação, avaliação e reflexão continuam a ocorrer durante a atividade do ensino (instrução). Assim, é por meio da ação e do raciocínio pedagógico que os conhecimentos que se encontram na base da docência são transformados durante o desenvolvimento profissional do professor. Há, por conseguinte, estreita relação e - por que não dizer - interdependência entre os processos de ação e raciocínio pedagógicos e o PCK, já que “ambos somam esforços no sentido comum de transformar os conhecimentos dos futuros professores em conhecimentos ensináveis, compreensíveis e úteis para os alunos” (MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011, p. 283).

MÉTODO

Este estudo teve por objetivo identificar as tendências e características das pesquisas que recorrem ao conhecimento pedagógico do conteúdo e/ou aos processos de ação e raciocínio pedagógicos, como constructos teóricos. Foi realizada uma revisão da literatura, na modalidade definida como revisão integrativa, porque sua proposta é responder, de modo planejado, a perguntas específicas. Nesse tipo de revisão, procedimentos metodológicos explícitos são empregados para identificar, selecionar e avaliar criticamente os estudos já realizados e o conhecimento já construído, de modo a alcançar uma síntese dos estudos já publicados e, consequentemente, uma compreensão mais abrangente de um fenômeno particular (BOTELHO; CUNHA; MACEDO, 2011). Para tanto, foram seguidas as sugestões dadas por Botelho, Cunha e Macedo (2001), que envolvem uma sucessão de etapas definidas.

A primeira etapa consistiu na “identificação do tema e seleção do problema de pesquisa”, momento que incluiu o estudo de definições teóricas. Foi nela que se estabeleceu de forma clara e específica a questão de pesquisa, a qual, por sua vez, norteou a especificação dos descritores da estratégia de busca e a escolha dos bancos de dados a serem consultados. Tomaram-se, como corpus de análise, os estudos presentes nas três bases mais utilizados, a saber: banco de dissertações e teses da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes), o website do Scientific Electronic Library Online (SciELO)2 e do Educ@,3 no período que foi de 1986, quando o conceito PCK foi divulgado pela primeira vez, até janeiro de 2019. Os termos utilizados para a busca nos campos título, resumo e palavras-chave foram: conhecimento pedagógico do conteúdo, PCK, ação e raciocínio pedagógico, e processos de ação e raciocínio pedagógicos.

Na segunda etapa, buscou-se “estabelecer critérios de inclusão e exclusão de dados”. Assim, empregou-se, como principal critério de seleção, o uso do PCK e do processo de ação e raciocínio pedagógicos como categorias teóricas. O processo de “identificação dos estudos pré-selecionados e selecionados” - terceira etapa - exigiu a leitura criteriosa dos títulos, resumos e palavras-chave, para verificar a adequação do critério adotado e também a organização de uma tabela com os estudos pré-selecionados para a revisão integrativa. Na quarta etapa - a de “categorização dos estudos selecionados”, foram estabelecidos os descritores de análise, ou seja, “os aspectos a serem analisados na classificação, descrição e análise do material alvo-de-estudo, de forma a perceber características em comum e tendências entre eles” (MEGID NETO, 19994apudGOES; FERNANDEZ, 2018, p. 101). Para cada descritor, foram definidos dois ou mais indicadores, termo utilizado em referência aos subdescritores.

Na quinta e última etapa, na qual se dá a “análise e interpretação dos resultados”, os seguintes descritores foram discutidos e interpretados: a) a forma de divulgação do estudo; b) o tipo de pesquisa; c) os participantes de interesse dos estudos, em relação à fase do desenvolvimento profissional docente e ao segmento de atuação; d) a área de conhecimento; e) os métodos e estratégias adotados na coleta de dados; f) os principais aspectos observados nos estudos quando da descrição de seus resultados. Foi possível, assim, evidenciar os pontos que permitiam identificar as tendências e características das pesquisas brasileiras consultadas, sobre o PCK e os processos de ação e raciocínio pedagógicos. Cabe esclarecer que a análise resultou da leitura tanto dos resumos como, quando necessário, dos trabalhos na íntegra.

PRINCIPAIS ACHADOS

Foram localizadas 114 produções, das quais 39 eram artigos científicos, 49 eram dissertações e 35 eram teses. Essas formas de divulgação foram publicadas, em maior número, principalmente a partir de 2011 (Gráfico 1), com maior concentração no ano de 2015, com 24 publicações e, ainda, nos anos de 2017 e 2018, com 15 e 14 produções, respectivamente. Esse dado indica que a disseminação das ideias do autor no Brasil é recente.

Fonte: Elaboração das autoras.

GRÁFICO 1 QUANTIDADE DE ARTIGOS, DISSERTAÇÕES E TESES SOBRE O PCK E OS PROCESSOS DE AÇÃO E RACIOCÍNIO PEDAGÓGICOS, ENTRE OS ANOS DE 2003 A 2018 

Para o descritor tipo de pesquisa, foram adotados três indicadores: pesquisa empírica, pesquisa teórica e estudos de revisão da literatura. Foram consideradas pesquisas empíricas aquelas que pressupõem a obtenção de dados a partir de fontes diretas, ou seja, pessoas que conhecem, vivenciaram ou têm conhecimento sobre o tema, fato ou situação, recorrendo a instrumentos de coleta de dados em campo. Considerou-se pesquisa teórica aquela “dedicada a reconstruir teoria, conceitos, ideias, ideologias, polêmicas, tendo em vista, em termos imediatos, aprimorar práticas” (DEMO, 2000, p. 20). As pesquisas de revisão da literatura são aquelas que envolvem a busca, análise e descrição de certo corpo do conhecimento, procurando responder a perguntas específicas. Entende-se como literatura todo material relevante escrito sobre um tema: livros, artigos de periódicos, artigos de jornais, registros históricos, relatórios governamentais, teses e dissertações e outros tipos. Vosgerau e Romanowski (2014, p. 183) destacam que há vários tipos de procedimentos de revisão da literatura, os quais podem ser agrupados segundo suas características: “revisão bibliográfica; estudos bibliométricos; pesquisas do tipo estado da arte; revisão narrativa; revisão sistemática, revisão integrativa; síntese de evidências qualitativas; meta-análise; metassíntese qualitativa ou metassumarização”. Dentre os estudos encontrados, as pesquisas empíricas foram a maioria, com 92 produções, compostas sobretudo por dissertações e teses. Em seguida, vieram 16 pesquisas teóricas, seis estudos de revisão da literatura, três deles na área do ensino de Ciências (GOES, 2014; VERDUGO- -PERONA; SOLAZ-PORTOLÉS; SANJOSÉ LÓPEZ, 2017; GOES; FERNANDEZ, 2018), dois sobre o conhecimento tecnológico e pedagógico do conteúdo (Technological Pedagogical Content Knowledge − TPACK). Essa sigla indica a interseção de três conhecimentos − conteúdo, pedagogia e tecnologia − e diz respeito à capacidade de saber selecionar os recursos tecnológicos mais adequados para ensinar um determinado conteúdo curricular, algo que, por sua vez, implica saber utilizar esses recursos no processo de ensino e aprendizagem (BARBOSA, 2015; CIBOTTO; OLIVEIRA, 2017), um que analisou como estavam sendo abordados os estudos de Shulman nas produções acadêmicas apresentadas na Anped, Endipe e no site da Capes (VIERA; ARAÚJO, 2016).

Observou-se, no conjunto das produções, que o interesse das pesquisas em relação ao segmento de atuação, como ilustrado no Gráfico II, incide principalmente no docente da educação básica que atua nos anos finais do ensino fundamental e/ou no ensino médio (N=37), bem como na formação inicial de professores (N=44). Nota-se que há poucos estudos sobre o professor dos anos iniciais do ensino fundamental e nenhum relativo ao da educação infantil. Sobre o professor do ensino superior, foram localizadas 12 produções. Raros foram os estudos sobre o professor da educação de jovens e adultos, de cursos técnicos e, ainda, sobre aqueles que atuam em espaços não escolares.

Fonte: Elaboração das autoras.

GRÁFICO 2 O SUJEITO DE PESQUISA DE INTERESSE DO ESTUDO EM RELAÇÃO AO SEGMENTO DE ATUAÇÃO 

Buscou-se identificar, nas produções, quais os professores têm sido alvo de investigação de acordo com a fase do seu desenvolvimento profissional, como mostra o Gráfico 3. Observou-se que mais da metade dos estudos (N=64) não menciona qual é esse momento. No conjunto das produções, 37 estudos investigaram professores em formação inicial; dois debruçaram-se sobre professores iniciantes, com menos de cinco anos de experiência; quatro investigaram professores experientes e sete estabeleceram análises comparativas entre professores com diferentes tempos de experiência.

Fonte: Elaboração das autoras.

GRÁFICO 3 O SUJEITO DE PESQUISA DE INTERESSE DO ESTUDO EM RELAÇÃO À FASE DO SEU DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DOCENTE 

Tendo em vista que a formação do professor, no Brasil, é basicamente disciplinar, as produções foram organizadas tomando como referência as áreas de estudo. No conjunto das dissertações, teses e artigos, a incidência de trabalhos foi maior em Matemática (N=30) e Química (N=25), como retrata o Gráfico 4. Houve também estudos centrados nas áreas de Ciências Biológicas (N=15) e Educação Física (N=8). Em menor número, vieram trabalhos na área de Geografia (N=6), Física (N=6) e Música (N=3). Constaram, ainda, três estudos que envolviam duas ou mais áreas de conhecimento. Entre os 12 estudos que incidiram sobre o professor do ensino superior (Gráfico 2), oito vieram da área da Saúde, um do Direito e três investigaram o formador que leciona disciplinas de formação pedagógica, em cursos de licenciatura. Não foram localizados, por exemplo, estudos sobre o professor de História, Português, idiomas, Filosofia e Sociologia. Muito provavelmente, a maior incidência de estudos nas disciplinas de Química, Matemática e Ciências deve-se ao fato de os estudos desenvolvidos por Shulman e colaboradores terem influenciado, como já mencionado, a investigação das didáticas específicas.

Fonte: Elaboração das autoras.

GRÁFICO 4 DISTRIBUIÇÃO DAS PRODUÇÕES POR ÁREA DE CONHECIMENTO 

No conjunto das produções, observou-se o interesse em investigar o desenvolvimento e mobilização do PCK por professores, a partir de diferentes recortes. Os mais recorrentes foram: a) PCK de temas específicos, especialmente das áreas de Matemática, Ciências Biológicas e Física. As investigações incidem sobretudo em como os docentes ensinam tópicos específicos de uma disciplina, como, por exemplo, “problemas combinatórios” em Matemática ou “soluções” em Química, de maneira a ganhar acesso aos conhecimentos e habilidades desenvolvidas para ensinar um tema em particular, de sorte a conduzir o aluno ao entendimento/aprimorado da matéria; b) desenvolvimento e mobilização do PCK tendo em vista diferentes momentos da constituição profissional profissional, especialmente de professores experientes; c) desenvolvimento do PCK de professores que participaram de processos reflexivos no contexto de grupos colaborativos; d) categorias de base de conhecimento, como, por exemplo, a influência do conhecimento do contexto (professor, estudante e instituição de ensino) na forma de ensinar do professor (PCK); e) desenvolvimento e mobilização do conhecimento tecnológico e pedagógico do conteúdo (TPACK); f) papel das práticas formativas e do formador, na construção do PCK de estudantes de cursos de licenciatura.

Foram localizados apenas quatro estudos que investigam as relações entre o PCK e o processo de ação e raciocínio pedagógicos em contextos de formação. Esses estudos discutiam a possibilidade de se construir a base de conhecimentos para o ensino desde sua formação inicial, colocando em evidência os processos de raciocínio pedagógicos envolvidos em situações de estágio supervisionado e em atividades que requeriam processos de reflexão compartilhada. Tendo em vista que investigar os conhecimentos que estão na base da docência é um processo complexo, buscou-se identificar, nas produções analisadas, os procedimentos metodológicos empregados para acessar os conhecimentos profissionais dos professores. Como bem ressalta Fernandez (2015, p. 517), o “estudo do PCK de um professor é bastante complexo, devido, entre outros aspectos, ao fato de se tratar de um conjunto de conhecimentos implícitos, que devem ser de alguma forma explicitados”. Procurou-se, assim, verificar quais eram os procedimentos metodológicos mais utilizados para investigar o PCK dos professores,5 bem como os processos de ação e raciocínio pedagógicos.

Dos 92 trabalhos de natureza empírica, 18 pesquisas utilizaram um único instrumento de coleta de dados; os demais combinaram de dois a quatro instrumentos como forma de acesso ao PCK. Os mais utilizados foram: entrevista (N=39), observação (N=28), registros audiovisuais de aulas e/ou discussões (N=20), questionário (N=22), narrativas (N=15), diários ou registros escritos (N=27) e análise e/ou elaboração de sequências didáticas de aula e/ou planejamento de ensino (N=16). Em menor número, foram empregados relatórios, portfólios e ferramentas digitais como fóruns, chats, moodle e softwares.

Os instrumentos Content Representation (CoRe) e Profissional and Pedagogical Experience Repertoires (PaP-eR) foram empregados em 13 pesquisas, sempre articulados a outros, por pesquisadores da área de Ciências, na tentativa de ter acesso a e documentar o PCK de professores (LOUGHRAN et al., 2001; LOUGHRAN; MU­LHALL; BERRY, 2004). O CoRe tem a pretensão de, ao fazer isso, analisar aspectos particulares do PCK. Trata-se, portanto, de um instrumento de pesquisa e também de uma alternativa para estimular a reflexão do professor e analisar de que maneira ele pode reverter possíveis aspectos negativos de sua aula ao refletir sobre sua própria prática. Esse instrumento é empregado para aceder à compreensão do conteúdo das ideias centrais associadas ao tema, que é objeto de ensino e que pode ser usado tanto individualmente como em grupo (LOUGHRAN; MULHALL; BERRY, 2004; FERNANDEZ, 2015).

Já o instrumento PaP-eR emerge de situações reais da prática docente e não se aplica necessariamente a um professor em particular. Trata-se de uma narrativa da prática, elaborada pelo pesquisador, baseada em registros de aulas e na reflexão de professores, a partir de descrições detalhadas sobre o ensino de um conteúdo, extraídas de entrevistas, de ideias manifestadas em discussões e interações durante a prática de ensino, entre outras (LOUGHRAN; MU­LHALL; BERRY, 2004; FERNANDEZ, 2015). Cabe destacar que esses dois procedimentos favorecem o desenvolvimento do PCK dos professores, uma vez que estimulam a reflexão sobre a própria prática docente e contribuem, assim, para o aperfeiçoamento do PCK (GOES, 2014).

O estudo de caso foi opção de 12 pesquisas para compreender o processo de construção e prática do PCK de professores e/ou licenciandos. Considerando a multiplicidade de aspectos que caracteriza um caso, os instrumentos de coleta e registro de dados utilizados pelos pesquisadores são necessariamente variados, a saber: entrevistas, análise de planos de ensino, observação não participante, registros audiovisuais de aulas, notas de campo e outros.

A maioria das pesquisas desenvolvidas no contexto da formação inicial, em cursos de licenciatura, explorou: situações de estágio; as atividades nele desenvolvidas, em escolas da educação básica, inclusive de regência; além de reuniões de supervisão. Nesses casos, os instrumentos de pesquisas mais utilizados foram os diários ou registros escritos, análise e/ou elaboração de sequências didáticas de aula e/ou planejamento de ensino, relatórios e portfólios. Foi observado, em oito pesquisas, o uso de situações de reflexão individual ou em contextos colaborativos, como parte dos procedimentos metodológicos.

O registro e acesso ao PCK exige, de fato, a combinação de múltiplos instrumentos de pesquisa e a triangulação de dados, de modo a gerar resultados confiáveis, evitando, por exemplo, correr o risco de apenas reconhecer as crenças do professor, já que investigar o PCK e/ou os processos de ação e raciocínio pedagógicos exige, como já mencionado, explicitar conhecimentos implícitos, de ordem subjetiva. Loughran, Mulhall e Berry (2004), ao investigarem o PCK de professores de Ciências, ressaltam os esforços para ilustrar o que o PCK pode envolver, considerando que se trata de construção abstrata, idiossincrática, que sofre influências do contexto do ensino, do conteúdo e da experiência. Assim, o conhecimento sobre como ensinar determinado conteúdo, fazendo com que ele seja mais bem compreendido pelos estudantes, pode ser o mesmo (ou bastante similar) para alguns professores e diferente para outros.

Apesar de o presente estudo não ter considerado uma análise detalhada dos resultados das produções analisadas, foi inevitável desenhar um panorama dos principais aspectos observados pelos estudos, na descrição de seus resultados. Verificou-se, assim, que, no conjunto das produções analisadas, mais de um terço explorou, nos resultados de pesquisa, as ações formativas que favorecem o desenvolvimento do PCK, tanto na formação inicial como na continuada. Os aspectos mais recorrentemente encontrados foram: relacionar conhecimentos teóricos e práticos para a construção do PCK; promover atividades que explorem os conhecimentos que estão na base da docência, em diferentes contextos e momentos das práticas formativas; provocar processos reflexivos sistemáticos, nas ações empreendidas pelos professores ou licenciandos; investir no uso pedagógico das tecnologias da informação e comunicação (TIC) em processos formativos. Alguns dos estudos desenvolvidos no contexto da formação inicial chamaram a atenção para o papel dos formadores, das práticas reflexivas e das estratégias formativas que favorecem o desenvolvimento do PCK, por meio de uma maior aproximação da realidade profissional e das experiências práticas.

Cerca de um terço das produções descreveu, nos resultados, os conhecimentos dos professores investigados, especialmente as pesquisas que tinham como objeto de estudo o PCK de um tema específico, o PCK de professores de determinadas áreas do conhecimento e o PCK de professores em processos formativos. Alguns estudos descreveram os conhecimentos mobilizados para que determinado conteúdo fosse ensinado; outros se centraram em como se dá a integração, por exemplo, do conhecimento do conteúdo, do pedagógico geral, do currículo e do contexto. Houve também, em algumas pesquisas, a descrição e análise: a) das situações em que o professor encontra mais dificuldade para ensinar um tema; b) das dificuldades vivenciadas em situações de contexto; c) dos aspectos que interferem positiva ou negativamente na construção e/ou mobilização do PCK e nos processos de ação e raciocínio pedagógicos.

Outro aspecto que se destacou nos resultados das pesquisas que descrevem os conhecimentos do professor diz respeito à precária formação em conteúdos específicos. Inegavelmente, esses são aqueles que o docente deveria saber para ensinar e que afetam, consequentemente, outros domínios de conhecimento. Alguns estudos relataram situações de intervenção em práticas de formação inicial e continuada, que contribuíram para que professores ampliassem sua base de conhecimento para o ensino e mobilizassem o processo de ação e raciocínio pedagógico. Os processos de reflexão em ambientes colaborativos demonstraram grande potencial no desenvolvimento do PCK, tanto na formação inicial como na continuada e/ou em situações de trabalho colaborativo na escola. Os estudos que abordaram essa questão convergiram para o mesmo ponto: a importância da participação do professor em grupos colaborativos, que promovem atividades de discussão, reflexão e trocas de experiência. De fato, eles contribuem para o desenvolvimento e aprimoramento do PCK de modo semelhante ao proposto pelo processo de ação e raciocínio pedagógicos de Shulman.

EM SÍNTESE

A revisão integrativa realizada forneceu importantes elementos para conhecer as tendências e características das produções acadêmicas brasileiras que recorreram ao PCK e ao processo de ação e raciocínio pedagógicos como categorias teóricas. As produções identificadas apresentaram grande diversidade em relação à área de conhecimento, aos objetivos de pesquisa e aos procedimentos metodológicos empregados. A despeito dessa diversidade, a análise permitiu revelar movimentos que ajudam a compor um retrato das produções na área, podendo, inclusive, estimular o desenvolvimento de novos estudos relativos à natureza do conhecimento profissional docente.

Observou-se, nos resultados, um aumento significativo de produções que, especialmente a partir de 2012, se valem dos conceitos teóricos propostos por Shulman para desvelar os conhecimentos mobilizados por professores em situações de ensino. A atenção dada às práticas dos professores e, mais especificamente, ao desenvolvimento e mobilização dos conhecimentos que estão na base da docência, recorrendo a uma abordagem teórica e metodológica que vai além das percepções, opiniões e representações dos docentes, pode ser interpretada como um importante avanço no campo da formação de professores. Não se quer dizer, com isso, que as pesquisas sobre crenças, percepções e representações sejam menos importantes. Ao contrário, a intenção é salientar que há demanda por estudos que se aproximem das práticas dos professores e do cotidiano do seu trabalho, com o intuito de investigar os processos de desenvolvimento e mobilização dos conhecimentos profissionais.

Do ponto de vista das maneiras empregadas para acessar o PCK de professores, notou-se, em parte das produções analisadas, um rico detalhamento do delineamento teórico e metodológico da pesquisa. Provavelmente, a complexidade do objeto de estudo, aliada ao uso de múltiplos instrumentos de coleta de dados, exigiu um maior rigor metodológico. Entretanto, foram também encontrados estudos que deixaram muitas dúvidas em relação aos procedimentos de coleta e análise dos dados, corroborando o que vem sendo apontado por várias pesquisas: a fragilidade metodológica que se faz presente nos estudos na área da educação (ANDRÉ, 2000, 2009).

Foi também interessante verificar como as áreas de Química, Ciências Biológicas e Matemática têm se dedicado a estudar o PCK de professores em formação e em exercício, atuando nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Como já mencionado, essas áreas têm contribuído sobremaneira para o aprimoramento dos constructos teóricos originalmente propostos por Shulman e, ainda, para a construção de instrumentos para acessar o PCK do professor. Em contrapartida, observaram-se: um número reduzido de estudos voltados aos docentes dos anos iniciais; e a ausência de pesquisas sobre o professor da educação infantil.

Outro aspecto que chamou a atenção diz respeito ao baixo número de estudos que recorreram, na análise dos dados, ao modelo teórico do processo de ação e raciocínio pedagógicos, especialmente quando se avalia que o desenvolvimento do PCK de professores envolve esse processo, a despeito do próprio Shulman ter evidenciado quão grande é o desafio inerente à problemática (MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011). Os referidos autores desenvolveram um ensaio em que estabelecem “um paralelo entre as tarefas desempenhadas pelo conhecimento pedagógico do conteúdo e as etapas do processo de raciocínio e ação pedagógica” (MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011, p. 263) para “verificar como elas convivem, interagem ou, eventualmente, se sobrepõem umas às outras”. Os autores, em uma interessante análise desse paralelismo, concluíram que as duas propostas de Shulman (1987) “mantêm estreita, recíproca e quase interdependente relação uma com a outra” (MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011, p. 263). Assim, elas se complementam, no “sentido comum de transformar os conhecimentos do conteúdo dos futuros professores em conhecimentos ensináveis, compreensíveis e úteis para os alunos” (MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO 2011, p. 263). Desse modo, investigações que retratem a interdependência desses constructos são promissoras e podem contribuir para o desenvolvimento de práticas formativas que integrem esses aspectos tanto no âmbito da formação inicial quanto naquele da continuada de professores.

O papel da reflexão diante de situações de ensino reais ou simuladas para o desenvolvimento do PCK, em diferentes momentos do desenvolvimento profissional, também foi discutido/analisado, na maioria das pesquisas, evidenciando a aproximação de Shulman ao modelo do professor pesquisador e do prático reflexivo, como destacado por Roldão (2007). Shulman e Shulman (2016), em estudo sobre os distintos modos pelos quais os professores aprendem, ressaltam que a reflexão é a chave para a aprendizagem e o desenvolvimento do professor. Em alguns casos, os processos reflexivos relativos ao PCK foram investigados em contextos colaborativos, criados para promover o aprendizado coletivo e a troca de experiências, em práticas formativas que demandam colaboração e construção conjunta de ações, em especial na busca de solução para os dilemas e situações-problema detectadas em contextos específicos.

Vislumbra-se, portanto, que o PCK e os processos de ação e raciocínio pedagógicos, quando tratados como categorias teóricas, poderão contribuir significativamente para a produção de conhecimentos no campo da formação de professores e, consequentemente, para a introdução de dispositivos de formação inicial e continuada que possibilitem ao professor ensinar melhor, ao transformar o conhecimento do conteúdo em bom ensino. Em outras palavras, cabe levar os docentes a saber o que fazer para que, por meio da ação docente, o conhecimento seja aprendido e apreendido pelo aluno. Isso exige a consolidação de um “repertório de conhecimentos” coerente e pertinente que corresponda aos saberes profissionais próprios do professor, considerando as especificidades de cada área.

REFERÊNCIAS

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1O uso da sigla em inglês - PCK - tem sido recorrente na literatura como sinônimo do próprio conceito.

2SciELO (Website http://www.scielo.br) é uma biblioteca eletrônica que agrupa um acervo selecionado de periódicos científicos brasileiros.

3Educ@ é uma biblioteca virtual que objetiva proporcionar um vasto acesso a coleções de períodos qualificados na área educacional.

4MEGID NETO, J. Tendências da pesquisa acadêmica sobre o ensino de ciências no nível fundamental. 365p. 1999. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999.

5Cabe destacar que algumas produções não explicitam com clareza os procedimentos metodológicos empregados.

Recebido: 27 de Junho de 2019; Aceito: 12 de Agosto de 2019

NOTA:

Patrícia Cristina Albieri de Almeida: escrita do artigo, desenho teórico-metodológico, análise dos dados. Claudia Leme Ferreira Davis: análise dos dados e revisão do artigo. Ana Maria Gimenes Corrêa Calil: revisão integrativa da literatura e revisão do artigo. Adriana Mallmann Vilalva: revisão integrativa da literatura.

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