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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.49 no.174 São Paulo out./dez 2019  Epub 20-Nov-2019

https://doi.org/10.1590/198053146754 

ARTIGOS

EDUCAÇÃO POPULAR E JUVENTUDE: O MOVIMENTO SOCIAL COMO ESPAÇO EDUCATIVO

Hadassa Monteiro de Albuquerque LucenaI 
http://orcid.org/0000-0001-7705-7951

João Carlos Pereira CarameloII 
http://orcid.org/0000-0002-8345-3915

Severino Bezerra da SilvaIII 
http://orcid.org/0000-0002-3062-6640

I Universidade do Minho, Braga, Portugal; hadassa12albuquerque@gmail.com

II Universidade do Porto, Porto, Portugal; joaocaramelo1972@gmail.com

III Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa (PB), Brasil; severinobsilva@uol.com.br


Resumo

Este estudo teve por objetivo compreender como os sujeitos, no decurso de suas histórias de vida e por meio de processos sobretudo de aprendizagem experiencial, construíram saberes e conhecimentos na participação em um movimento social. Para tal, foi realizada uma pesquisa qualitativa, com recurso a entrevistas semiestruturadas, para obter narrativas de histórias de vida de seis participantes de um movimento brasileiro que reúne jovens em todo o país: o Levante Popular da Juventude. A pesquisa conduzida permite compreender como a experiência educativa vivenciada em movimentos sociais favorece a emancipação dos sujeitos que a vivenciam e leva a uma conscientização a respeito da cidadania participativa diante da realidade local e global.

Palavras-Chave: MOVIMENTOS SOCIAIS; EDUCAÇÃO POPULAR; JUVENTUDE; APRENDIZAGEM

Abstract

This study aims to understand how individuals, in the course of their life histories, and mainly through experiential learning processes, build knowledge through the participation in a social movement. To this end, a qualitative research was conducted, using semi-structured interviews, to obtain life narratives from six participants of a Brazilian movement that brings together young people across the country: the Levante Popular da Juventude [Popular Youth Uprising]. The research allows us to understand how the educational experience lived in social movements favors the emancipation of individuals who experience it and lead to an awareness about participatory citizenship in face of local and global realities.

Key words: SOCIAL MOVEMENTS; POPULAR EDUCATION; YOUTH; LEARNING

Résumé

L’objectif de cette étude était de comprendre comment les sujets, au cours de leurs vie et par le biais de processus, en particulier ceux ayant trait à l’apprentissage expérientiel, ont construit des savoirs et des connaissances grâce à leur participation à un mouvement social. Des entretiens semi-structurés on été réalisés dans le cadre d’une recherche qualitative afin de recueillir des récits de vie de six participants à un mouvement social brésilien, le Levante Popular da Juventude, qui rassemble des jeunes dans tout le pays. Cette recherche a permis de mieux comprendre comment l’expérience éducative vécue au sein de mouvements sociaux favorise l’émancipation des sujets et conduit à une prise de conscience de ce qu’est la citoyenneté participative face à la réalité à la fois locale et globale.

Key words: MOUVEMENTS SOCIAUX; ÉDUCATION POPULAIRE; JEUNESSE; APPRENTISSAGE

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo comprender cómo los sujetos, en el transcurso de sus historias de vida y a través de procesos principalmente de aprendizaje experiencial, construyeron saberes y conocimientos en la participación en un movimiento social. Con este fin, se realizó una investigación cualitativa, utilizando entrevistas semiestructuradas, para obtener narraciones de historias de vida de seis participantes de un movimiento brasileño que reúne a jóvenes de todo el país: el Levante Popular de la Juventud. La investigación realizada nos permite comprender cómo la experiencia educativa vivida en los movimientos sociales favorece la emancipación de los sujetos que la experimentan y conduce a una conciencia sobre la ciudadanía participativa frente a la realidad local y global.

Palabras-clave: MOVIMIENTOS SOCIALES; EDUCACIÓN POPULAR; JUVENTUD; APRENDIZAJE

Os movimentos sociais são espaços marcados por práticas e processos educativos relevantes, pois desempenham um importante papel na constituição de sujeitos sociopolíticos, conscientes de sua história e de seu tempo, que se reconhecem como pertencentes a uma determinada classe social, a uma etnia e a um gênero. Interessa a nós, pesquisadores das ciências humanas e sociais, compreender os processos educativos que resultam na formação desses sujeitos sociopolíticos, devido ao importante papel que estes exercem nas transformações sociais que se fazem necessárias para que alcancemos uma sociedade mais justa e igualitária.

Os processos educativos que ocorrem no interior dos movimentos sociais são caracterizados por trocas de saberes e práticas de educação popular. Essa ação educativa resulta na interiorização de novos valores que geram práticas diferenciadas, ou seja, ocasionam mudança de comportamento diante de questões sociais e políticas que fazem parte do contexto em que os sujeitos que vivenciam tal ação educativa estão inseridos.

Ao falarmos de educação popular, referimo-nos ao que Brandão (2006) conceitua como uma prática educativa da sociedade igualitária, comprometida com a transformação das estruturas sociais caracterizadas pela exploração das classes populares pelas classes dominantes. Este paradigma educativo corresponde a uma prática pedagógica que emerge do contexto das vivências populares e se fortalece como pedagogia popular a serviço dos grupos populares, com a finalidade de organizar politicamente os sujeitos na luta contra as desigualdades sociais. Sendo assim, “a educação popular não é uma variante ou extensão da democratização da escola, e sim uma concepção emancipadora que busca transformar a ordem social e o próprio sistema educacional” (CARRILO, 2013, p. 18).

No presente estudo são apresentados os principais resultados de uma investigação de mestrado1 que teve como objetivo compreender quais saberes são construídos na participação de um movimento social e como ocorre esse processo educativo. A pesquisa, de caráter qualitativo, envolveu a realização de entrevistas semiestruturadas para obter relatos de história de vida de seis participantes de um movimento social de juventude que ocorre em âmbito nacional brasileiro: o Levante Popular da Juventude (LPJ).

Este artigo está organizado em três partes. A primeira traz algumas contribuições sobre a função educativa nos movimentos sociais, situando-os no campo das práticas não formais e informais de educação. Na segunda parte, é descrito o percurso metodológico trilhado para a realização da pesquisa, evidenciando a adequabilidade da metodologia de história de vida para melhor compreensão das questões de investigação. A terceira parte, que apresenta as análises das entrevistas realizadas, encontra-se organizada em dois momentos: no primeiro, aborda-se como se deu para os partícipes o processo educativo no movimento social, orientado por uma pedagogia dialógica que resulta em transformação e emancipação dos sujeitos que a experimentam; e, no segundo, são tratados de forma mais específica os saberes construídos na experiência de participação desse movimento específico. Nesta última seção são incluídos trechos das entrevistas para dar evidência às vozes dos sujeitos que, ao mesmo tempo, são agentes e agidos de uma ação educativa que nesta sua globalidade e circularidade os transformou.

A DIMENSÃO EDUCATIVA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

A educação é um processo amplo que ocorre nos mais variados espaços sociais. Quando criança aprendemos em meio à família, na escola e com a comunidade onde residimos saberes necessários à vida em sociedade. Quando adultos, os saberes e aprendizagens são adquiridos em outras instituições formais de educação, mas também no trabalho, na festa, no supermercado, entre outros lugares.

Canário (2006) utiliza uma metáfora para ilustrar a amplitude dos processos educativos. Ao referir-se à imagem da lua, que em determinados períodos do mês tem parte de sua figura escurecida, não visível pelo céu também escuro, o autor a compara aos processos escolares. São visíveis a nós os processos educativos formais, representados pela parte clara, mas os não formais e informais também estão presentes na vida social, embora não sejam facilmente reconhecidos ou visíveis, assim como a parte escura desse corpo celeste.

Mediante esse reconhecimento da amplitude dos processos educativos, passou-se a perceber a relevância e a necessidade de se caracterizarem as modalidades educativas a partir de um continuum que enseja traduzir a diversidade de níveis de formalização da ação educativa: educação formal, não formal e informal. De acordo com Fávero (2007), essa tipologia teve origem na década de 1960 em um contexto de “crise da educação” escolar, à qual estão associados três fatores: a crescente demanda por educação para adultos após a Segunda Guerra Mundial e a incapacidade dos sistemas escolares de atenderem a essa demanda de forma satisfatória; o questionamento da função do sistema escolar na promoção social dos sujeitos que dele participam; e a importância atribuída à formação de recursos humanos para uma sociedade industrial em mutação acelerada.

Coombs e Ahmed (1974), por considerarem analiticamente útil e fazendo a ressalva de que existe convergência e interação entre esses três níveis de formalização educacional, classificaram-nos de acordo com o lugar, o modo e o período em que esses processos ocorrem. Assim, a educação informal é aquela a partir da qual os indivíduos adquirem conhecimentos e habilidades mediante experiências diárias ao longo da vida, que são adquiridas na relação com amigos e familiares, na leitura de um livro, em uma viagem, sendo, desse modo, não sistemática e, ainda que não correspondendo a processos com intencionalidade educativa, pode ser reconhecida nos efeitos educativos que produz nos sujeitos. A educação formal, por sua vez, tendencialmente ocorre em instituições tais como as escolas e universidades e é estruturada a partir de uma intencionalidade educativa que se concretiza em tempos, lugares e modos de ação pedagógica particulares, estando usualmente associada a processos de certificação.

Ainda de acordo com Coombs e Ahmed (1974), a educação não formal obedece a uma intencionalidade educativa e é sistemática e organizada, mas, diferentemente da educação formal, ocorre fora do sistema formal de ensino, é tendencialmente de acesso voluntário e dirige-se a grupos específicos, tais como crianças ou adultos, podendo ocorrer em programas de capacitação de agricultores, alfabetização de adultos, programas comunitários, em clubes, entre outras situações.

Gohn (2006) destaca ainda outros aspectos da educação não formal. Segundo a autora, esse modo de educação compreende:

[...] a aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; a capacitação dos indivíduos para o trabalho, por meio da aprendizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de potencialidades; a aprendizagem e exercício de práticas que capacitam os indivíduos a se organizarem com objetivos comunitários, voltadas para a solução de problemas coletivos cotidianos; a aprendizagem de conteúdos que possibilitem aos indivíduos fazerem uma leitura do mundo do ponto de vista de compreensão do que se passa ao seu redor; a educação desenvolvida na mídia e pela mídia, em especial a eletrônica etc. (GOHN, 2006, p. 28)

Assim, os movimentos sociais se apresentam, potencialmente, como um importante espaço de educação não formal e informal, em que momentos de debate e reflexão sobre determinadas situações sociais favorecem a construção de conhecimentos teóricos, técnico instrumentais, éticos, além de uma compreensão mais aprofundada de como se estruturam e se organizam politicamente as nossas sociedades. Em síntese, trata-se de contextos em que os que deles participam desenvolvem aprendizagens e constroem saberes a respeito de direitos e se reconhecem enquanto sujeitos de direitos e deveres individuais e coletivos.

Defendemos, portanto, que o educativo é um processo amplo que ocorre ao longo da vida, pois as experiências vivenciadas pelos sujeitos propiciam aprendizagens. Desse modo, de acordo com Cavaco (2008), as experiências podem ser entendidas como processo - quando dizem respeito a um conjunto de acontecimentos que ocorrem ao longo da vida, de acordo com uma linha temporal que vai construindo o indivíduo - e como produto, ao estarem relacionadas aos modos de ser, de pensar e de fazer constituídos ao longo da vida.

Pires (2002) ressalta que, para uma experiência ser promotora de aprendizagem, é necessário que o indivíduo reflita sobre a situação vivida e que essa reflexão o conduza a uma autotransformação, ou seja, a compreensão da experiência que vivenciou deve ser uma integração das experiências anteriores, dos valores e conhecimentos que o indivíduo já possui com a experiência vivenciada recentemente.

PERCURSO METODOLÓGICO

O paradigma epistemológico racionalista elegeu instituições formais de educação - tais como as escolas e universidades - como o meio a partir do qual o conhecimento é difundido e disseminado. Em tais instituições, a elaboração do conhecimento segue um protocolo metodológico específico, baseado em uma lógica racional da ciência pragmática e utilitarista, que atribui comprovação a este conhecimento na percepção das comunidades em que é produzido, sendo, em consequência, legitimado na sociedade mais alargada na qual é disseminado.

Como a pesquisa com movimentos sociais numa dimensão educativa emancipadora necessita de um aporte teórico-metodológico que esteja em comunhão com o processo investigativo, esta investigação rompe com o paradigma racionalista que considera o conhecimento científico o único capaz de explicar a realidade. Acreditamos que é possível haver um diálogo entre o conhecimento científico e o saber popular e, a partir deste diálogo, construir um conhecimento válido, pois em outros espaços, além dos formais, há trocas de saberes e processos de aprendizagem.

Como o objetivo deste estudo foi identificar os saberes que os sujeitos construíram na participação em um movimento social e a maneira como esses saberes foram produzidos, necessitou-se conhecer as histórias de vida. Os relatos das trajetórias de vida também permitem compreender como os sujeitos entrevistados foram se constituindo enquanto pessoas e quais experiências vivenciadas os levaram a se envolverem em um movimento social. O método que adotamos para compreender as aprendizagens experienciadas por esses sujeitos no seio do movimento social, a partir de seus próprios relatos e perspectivas sobre essas aprendizagens, caracteriza o estudo como de caráter qualitativo. De acordo com Godoy (1995, p. 58), a pesquisa qualitativa:

Envolve a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos, ou seja, dos participantes da situação em estudo.

Com o intuito de obter a perspectiva dos sujeitos sobre o objeto estudado, foi utilizado o método da história de vida, pertencente à abordagem narrativo-biográfica. Historicamente, no contexto ibero-americano, as narrativas biográficas têm tido diferentes enfoques e interesses, mas o principal tem sido:

[...] recuperar la memoria histórica de episodios, personajes y situaciones de especial relevancia personal y/o social o bien de la otra historia, la no oficial, la del pueblo llano, la de las minorías, los perdedores, los campesinos, los silenciados o “sin voz”. (BOLÍVAR; DOMINGO, 2006, p. 9)

Desse modo, ao se utilizar o método da história de vida, é estabelecida uma relação entre o pesquisador e o sujeito pesquisado, possibilitando acessar a realidade dos sujeitos à medida que relatam sua vida, ressignificando-a.

Esta investigação contou com entrevistas de questões abertas realizadas com seis participantes do Levante Popular da Juventude, sendo dois homens, três mulheres e uma mulher transexual, residentes na cidade de João Pessoa (PB), com idades entre 19 e 30 anos e escolaridade que varia entre o ensino superior em andamento e o mestrado concluído. Os participantes também possuíam renda familiar variada. As questões norteadoras das entrevistas foram combinadas de forma que seguissem uma linha cronológica da vida dos sujeitos investigados e os temas de interesse da investigação.

Os temas norteadores foram: o lugar onde o sujeito nasceu, a constituição da família e o percurso escolar; as circunstâncias em que tomou conhecimento sobre o movimento; os motivos que o levaram a participar do movimento; os saberes construídos na militância e como essa construção se deu; e as principais diferenças percebidas entre a forma como construiu as aprendizagens no movimento e no percurso formal de ensino.

Os dados coletados foram interpretados a partir da análise de conteúdo, que corresponde a:

[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens.

[...] A intenção da análise de conteúdo é a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção (ou eventualmente, de recepção), inferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não). (BARDIN, 1997, p. 38)

Segundo Campos (2004), a análise de conteúdo deve possibilitar a busca de sentido dos dados recolhidos, uma vez que permite um olhar multifacetado sobre a totalidade do que foi obtido, sendo, portanto, muito utilizada em pesquisas qualitativas.

Para a realização deste estudo, as entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas, com o intuito de identificar ideias-chave, conexões e similaridades nos discursos, a partir dos temas que orientaram a entrevista, sem perder a ótica da completude de cada história de vida, com o objetivo de obter as indicações dos saberes construídos e as suas formas de ocorrência. Mediante a interpretação das similaridades entre os relatos, os dados foram agrupados em categorias e subcategorias. Os participantes das entrevistas, que estão identificados por iniciais dos nomes, autorizaram o registro do áudio e a posterior divulgação dos resultados nessa pesquisa.

Como auxílio no tratamento dos dados qualitativos foi utilizado o software Qualitative Solutions Research Nvivo, por ser

[...] útil na administração e síntese das ideias do pesquisador, permitindo que se realizem mudanças nos documentos com que se está trabalhando, sendo possível acrescentar, modificar, ligar e cruzar dados, ou ainda, registrar ideias na forma de memos. (GUIZZO; KRZIMINSKI; OLIVEIRA, 2003, p. 9)

O LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DE SABERES

Em um contexto de monopolização mundial da produção de alimentos, iniciada em 1980 (VIEIRA, 2011), nasceu, mais tarde, em 1993, uma organização mundial que tem entre seus objetivos a defesa de uma agricultura sustentável em pequena escala e a promoção de justiça social e solidariedade: a Via Campesina. Atualmente, esse movimento é composto por 164 organizações de 73 países, de quatro continentes - África, Ásia, Europa e Américas -, representando assim 200 milhões de agricultores em todo o mundo (VIA CAMPESINA, 2011).

No Brasil, a Via Campesina reúne diversos movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Além destes, a Via Campesina também se articula com outros movimentos sociais brasileiros que não têm base camponesa, mas estão ligados à Via Campesina internacional: Comissão Pastoral da Terra (CPT), Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab) e a Pastoral da Juventude Rural (PJR). Na Via Campesina Brasil, o MST constitui a comissão da reforma agrária e o MPA integra a comissão de soberania alimentar.

É nesse campo político da Via Campesina que, a partir da década de 1990, começou-se a perceber a necessidade de fortalecer a militância de juventude dos movimentos do campo. A Consulta Popular, um movimento de esquerda que defende um projeto popular para o Brasil, na ocasião da realização da Assembleia Nacional em Brasília em 2005, estabeleceu como meta “organizar a juventude da classe trabalhadora e, em especial, os jovens da periferia urbana”.

Foi no estado do Rio Grande do Sul que, em 2006, nasceu o Levante Popular da Juventude, em um acampamento de jovens que reuniu cerca de 700 pessoas de todo o estado do Rio Grande do Sul. Nesse evento definiram-se como bandeiras de luta a educação, a cultura, o trabalho e o lazer e, dentre estas, elegeu-se como luta prioritária a democratização do acesso à universidade, a partir da compreensão da necessidade de se mudar a composição social da universidade pública por meio de cotas raciais e sociais.

Mediante encontros para se discutirem os problemas da juventude local de Porto Alegre, deu-se início aos trabalhos do movimento. Seis anos depois, em 2012, na cidade de Santa Cruz do Sul, também no estado do Rio Grande do Sul, ocorreu a nacionalização do Levante Popular da Juventude, tendo como marco o 1º Acampamento Nacional do Levante Popular da Juventude, sob o lema: “Juventude que ousa lutar, constrói o poder popular!”, que reuniu cerca de 1.300 jovens de 15 estados brasileiros.

Hoje, o movimento está presente em quase todos os estados brasileiros, atuando nas frentes campesina, estudantil e territorial, e tem como tripé organização, formação e luta. Possui três setores, a partir dos quais organiza a luta: negros e negras; diversidade sexual e de gênero; e mulheres. Em atuação nas esferas nacional, estadual e municipal, estrutura-se a partir de células em bairros de periferia e em instituições educativas, como, por exemplo, escolas secundaristas e universidades. Promove ações de formação a partir de acampamentos nacionais e estaduais e diversos cursos e escolas de formação sobre a realidade política e econômica brasileira. Possui sites e blogs na internet, bem como contas no Facebook, sendo que neste último mantém tanto um perfil nacional como perfis de vários estados onde o movimento está presente.

A PRÁTICA EDUCATIVA NO LPJ: APROXIMAÇÕES COM A EDUCAÇÃO POPULAR

A prática educativa experienciada na participação em um movimento social difere daquela vivenciada nas instituições formais de educação, pois é um saber construído no decurso da vida, por meio da “leitura, interpretação e assimilação dos fatos” vividos pelos indivíduos na experiência do movimento (GOHN, 1999, p. 98). Dedicamos este tópico para trazer algumas reflexões feitas a partir dos relatos sobre a maneira como o processo educativo se dá no movimento social estudado, trazendo alguns dos princípios que fundam esse processo e os modos como ocorre.

Os processos reivindicatórios vivenciados em movimentos sociais, sobretudo aqueles que envolvem a busca por transformação social, por direitos e pela manutenção destes, conduzem os partícipes a realizarem uma leitura do cotidiano e da situação social e a compreenderem os discursos de poder e a intencionalidade das ações dos dirigentes dos setores que compõem a sociedade.

Desse modo, a primeira característica que queremos ressaltar é o fato de essa prática educativa ser emancipadora, pois se configura como uma educação política realizada com e para as classes populares, objetivando capacitar os indivíduos a serem atores na transformação social. Sendo assim, aproxima-se da concepção teórico-metodológica da educação popular, que:

[...] faz parte da tradição do pensamento crítico ocidental e latino-americano, com a singularidade de possuir seu próprio campo de ação (múltiplos espaços em resistência, escolares e não escolares) a partir de uma opção política alternativa que dialoga com outros paradigmas críticos e entende a dimensão pedagógica como um campo de dispositivos de saber e poder. (CARRILLO, 2013, p. 18)

Desse modo, outros movimentos e correntes, tais como o feminismo popular, o ambientalismo popular, a Teologia da Libertação, entre outros, mantêm uma relação com a educação popular na medida em que criticam a ordem social vigente e propõem um modelo alternativo ao atual, a partir da formação dos atores sociais por meio de uma pedagogia que é problematizadora, transformadora e dialógica.

Nesse sentido, Carrillo (2013) apresenta três aspectos do paradigma emancipador da educação popular. O primeiro diz respeito à dimensão gnosiológica, ou seja, a uma leitura crítica da realidade. O segundo, apresentado como uma dimensão política, consiste em um posicionamento alternativo a essa realidade e o terceiro refere-se a uma dimensão prática, de transformação social a partir de ações individuais e coletivas. Para formar pensamentos e subjetividades críticas e emancipadoras, é necessário que a prática pedagógica incorpore estratégias e critérios para alcançar tal objetivo e não se dedique meramente à difusão de conteúdos críticos.

Esses processos de ler a realidade social e ter um posicionamento político em relação a ela podem ser percebidos nos seguintes relatos dos partícipes nesta pesquisa:

[...] a luta é necessária, não é só algo que a gente escolha, eu pelo menos pela minha posição posso escolher lutar ou não lutar, outras pessoas estão lutando pela sua vida, pela sua existência aqui. Então esse impacto nenhum livro poderia me dizer. (Y. L., 2017)

Eu sentia muito essa necessidade de mudança, depois que eu comecei a ver que as coisas são colocadas daquela maneira mas existe... de alguma forma a gente pode transformar. (V. P., 2017)

A partir da leitura desses dois relatos podemos perceber que, assim como descrito por Carrillo (2013), o processo individual de luta por transformação social iniciou-se para esses dois participantes com a leitura crítica da realidade, que os levou a perceberem a situação de injustiça e constituição desigual da sociedade para, depois, se posicionarem politicamente e encontrarem no movimento essa possibilidade real de transformação e mudança.

Outro aspecto que queremos chamar a atenção sobre a prática educativa desenvolvida no movimento social estudado refere-se ao fato de que o saber é construído coletivamente por meio do diálogo. A seguir, os relatos dos partícipes demonstram as reflexões que fazem sobre a construção do conhecimento no movimento social e demonstram a importância que os depoentes dão aos saberes que cada um traz para a construção do movimento e a organização da luta.

A gente traz elementos que não seriam colocados se não tiver pessoas desses lugares que a gente quer se inserir, tipo, a periferia, as escolas secundaristas, a universidade, a gente precisa de todo mundo pensando pra poder construir. E eu acho que o processo histórico, o acúmulo de cada pessoa é essencial, não é?! O acúmulo que eu tenho enquanto um cara que veio da periferia, que veio do campo, é um acúmulo fundamental, mas não é um acúmulo que sobrepõe o acúmulo, sei lá, de uma pessoa que tem uma vivência diferente da minha, sei lá, uma galera que é mais da classe média, assim, não sobrepõe o acúmulo que essa pessoa tem. Acho que os dois acúmulos são muito importantes pra a gente conseguir construir essa nova sociedade. (V. P., 2017)

No depoimento é possível perceber que este partícipe compreende a importância das diferentes histórias de vida e experiências dos integrantes do movimento, e como esta variedade é importante para que, dentro do movimento, o conhecimento seja construído coletivamente, a partir do diálogo das diferentes historicidades, diversas no que diz respeito a experiências distintas referentes a gênero, classe social, faixa etária, entre outros fatores.

Todos os seres humanos possuem conhecimentos gerados a partir das práticas que desenvolvem no cotidiano, ou seja, são conhecimentos elaborados mediante as experiências vividas no mundo que habitam. Esses saberes que cada ser humano possui, seja da periferia, da classe média, ou da vida no sertão, ocupam um importante lugar no processo educativo se considerarmos que a relação educativa é uma mediação (MEJÍA, 2013).

Desse modo, o cotidiano no movimento propicia experiências educativas relevantes tanto por ações intencionais, elaboradas e pensadas pelos dirigentes, como pela própria vivência e convivência no movimento:

Eu acho que para além da formação teórica, que no Levante a gente preza muito pela formação dos militantes, eu acho que a luta também é um espaço que forma, sabe. Enquanto muitos espaços te deformam, a luta forma. Então meter a cara mesmo pra descobrir como é que faz articulação política, ter coragem de falar nos espaços, saber como se portar, tudo isso eu aprendi na luta cotidiana. Chegar no sindicato e barganhar uma luta financeira, fazer uma articulação política com uma força diferente, ter a malemolência de perceber qual é o momento de colocar o quê, tudo isso são os desafios da militância que fizeram com que eu crescesse. E para além disso, voltando para a questão mais acadêmica e profissional, eu estudo integração regional na América Latina, Venezuela, a ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América), tudo isso eu não teria descoberto, inclusive pra a minha pesquisa do mestrado se não fosse o meu contato da militância. (M. D., 2017)

A formação teórica a que essa participante se refere é principalmente a que ocorre nos acampamentos e cursos de formação, bem como aquela realizada nos momentos de estudo e debate dentro dos setores, ou seja, são momentos intencionalmente destinados ao estudo, debate e, portanto, aprofundamento de determinados temas e conteúdos, que desse modo correspondem a práticas intencionais de aprendizagem. Mas há também esses processos educativos que se subsumem na expressão “a luta forma”. Ao se referir a esses processos educativos “do cotidiano”, que ocorrem nas resoluções de problemas ou demandas mais práticas, há o reconhecimento de efeitos educativos, de processos de aprendizagem informais. M. D. ainda termina esse relato mencionando como essas aprendizagens construídas no movimento complementaram sua educação formal e contribuíram para a realização de trabalhos acadêmicos e profissionais.

O LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DE SABERES

A partir de análise qualitativa das entrevistas, agrupamos os saberes construídos na participação no movimento social em três grandes grupos: os saberes do tipo reflexivos, os saberes do tipo práticos e aqueles relacionados a valores humanos, como pode ser visto na Figura 1.

Fonte: Elaboração das autoras, com base nos dados da pesquisa (LUCENA, 2017).

FIGURA 1 SABERES ADQUIRIDOS NA PARTICIPAÇÃO NO LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE 

Conceituamos de saberes do tipo reflexivos aqueles que permitem aos sujeitos problematizar os modos de estar em sociedade, estando, portanto, fortemente associados à vida pessoal de cada um dos sujeitos entrevistados, permitindo-lhes inclusive não apenas pensar sobre questões pessoais, mas também equacionar essas questões como problemáticas sociais mais amplas. Estes saberes também possuem uma dimensão prática, pois resultam em mudanças de comportamento quando estas questões foram vistas na perspectiva individual, do próprio partícipe, bem como na perspectiva da coletividade.

Assim, nesse grupo de saberes encontram-se aqueles que estão relacionados com a percepção de que vivemos numa sociedade com grandes desigualdades e injustiças. Tais saberes, de modo usual, são construídos anteriormente à entrada no movimento e aprofundados posteriormente por meio dos processos educativos que ocorrem em seu interior. Essa percepção, mesmo que nesse primeiro momento não estivesse acompanhada da problematização das origens de tais injustiças e desigualdades sociais, veio juntamente com a convicção de que é possível e necessário construir outra realidade a partir da luta coletiva. Essa crença levou os participantes a desejarem ingressar no movimento, como pode ser percebido no relato:

Eu sentia muito essa necessidade de mudança, depois que eu comecei a ver que as coisas são colocadas daquela maneira mas existe... de alguma forma a gente pode transformar. A partir do momento que você vê outras experiências históricas de processo de mudança na estrutura mesmo do Estado e tal, processos de revoluções mesmo, você acredita que é possível, não é?! E você sente a necessidade de alguma forma contribuir com essa mudança. Então quando é apresentado pra você que de alguma forma você organizado vai poder contribuir muito mais do que você fazendo sozinho, sente a necessidade de participar de um movimento, de um coletivo, que você pensa coletivamente uma nova sociedade. (V. P., 2017)

Essa narrativa ilustra a tomada de consciência a partir de uma leitura crítica da realidade, a respeito da situação de injustiça social na sociedade brasileira, e como este sujeito se posicionou diante desta realidade e percebeu no movimento social uma possibilidade de transformação a partir da luta coletiva.

Outros importantes saberes que os relatos salientam como aprendizagens durante a participação no movimento dizem respeito a dois dos temas a partir dos quais o movimento organiza a luta: diversidade sexual e igualdade de gênero. No relato a seguir, a partícipe descreve como a luta por igualdade de gênero é percebida dentro do movimento:

[...] o feminismo, ele não é só uma luta dentro do Levante, ele é um princípio. [...] ele está presente em tudo no Levante, ele não é só uma luta, assim, é uma luta interna e pra fora. A gente tenta por exemplo ter paridade, se a gente vai fazer uma atividade, foram chamadas pessoas do Levante para representar o Levante em tal lugar pra fazer uma fala, a gente então toma todo o cuidado do mundo pra que exista paridade no processo interno nosso. Se vai ter fala ou coordenador pra um trabalho então vai ter um homem e uma mulher. Se vai ter uma célula pra tocar, vai se fazer o possível pra que seja um homem e uma mulher, então assim, porque a luta contra o machismo é dentro do movimento. Porque os homens e nós mulheres precisamos nos educar sempre contra o machismo, porque a sociedade é machista. E a gente carrega essas coisas com a gente ainda. A gente não está totalmente livre, nem os meninos nem as meninas. (R.F., 2017)

Como podemos perceber a partir do relato, a mudança social que se pretende promover, nomeadamente no que diz respeito à desigualdade entre os gêneros, envolve ações no interior do próprio movimento, ao se buscar paridade na participação que os representantes terão na representação do movimento, nas discussões, entre outras ações.

No processo de participação do movimento emerge outro saber: a autogestão, este adquirido por meio da aprendizagem experiencial. C.B. relata a ida a um acampamento nacional, que teve como meio de deslocamento um ônibus que saiu do estado da Paraíba até o Rio Grande do Sul. De acordo com a depoente:

Iria ser um acampamento que seria autogestionado, que a gente iria construir. Então as equipes também aconteceriam lá no acampamento, pra poder as coisas caminharem, porque eram estudantes, eram jovens, organizando. [...] E lá o acampamento era desse jeito, dois estados vão cuidar da alimentação, eles iriam tal dia cozinhar o almoço, tinham os chefes, as pessoas que eram as referências, mas os estados eram responsáveis por ajudar na alimentação, cortar, lavar louça, fazer tudo isso, outros pela segurança... (C.B., 2017)

A palavra autogestão (auto: estar voltado para dentro de si e gestão: administração, governança, direção) transmite o sentido de busca por mudança dentro de si. Nesse sentido, a autogestão, quando concebida no contexto empresarial ou educacional, intenciona conduzir o outro a trilhar o caminho da dependência até a autonomia. Moreira (2012) acrescenta um outro sentido para o que define como autogestionária, que, segundo o autor, pressupõe um trabalho de corresponsabilidade com o outro, mesmo que este seja autônomo, dando assim uma ideia de responsabilidade coletiva, como pode ser observado no relato, sobre o ato de cuidado e responsabilidade que os participantes tinham em atividades ou tarefas que beneficiariam toda a coletividade.

O terceiro saber associado ao que denominamos de saberes reflexivos diz respeito ao direito à cidade, que tem sido uma das importantes lutas travadas pelo movimento desde o seu início. Esta luta pode ser vista de forma mais evidente nas reivindicações contra o aumento das passagens de ônibus, o único meio de transporte público na maioria das cidades brasileiras. No relato de V.P. é possível perceber como este depoente desenvolveu o conhecimento sobre o tema a partir da participação no movimento:

[...] uma questão que eu sou muito a fim de me aprofundar é sobre a questão do direito à cidade. E sobre a questão também do exílio da periferia. O direito das pessoas que estão na periferia... que a periferia é muito distante desses centros onde rola a cultura, onde rola o lazer e tal, é distante. E o acesso até aquele lugar é muito precarizado, sabe. A gente faz aquele debate dos ônibus e tal, está relacionado a essa coisa do direito a cidade, que a passagem todo ano aumenta, e os ônibus cada vez piores. E agora tem fiscal na parada de ônibus que não deixam as pessoas pularem a roleta nem entrar por trás. (V. P., 2017)

As reivindicações contra o aumento das passagens de ônibus fizeram com que esse partícipe refletisse sobre o direito de as pessoas que residem nas periferias terem acesso ao centro da cidade, lugar onde acontecem as principais programações culturais, shows, festas populares, espetáculos de rua, cinemas e teatros. De acordo com o relato, o partícipe desenvolveu a compreensão de que a luta por acesso a transportes públicos é também uma luta por acesso à cultura.

O processo de urbanização que o Brasil e demais países da América Latina sofreram desde a segunda década do século XX fez com que a população urbana brasileira crescesse de 26,3% em 1940 para 81,2% nos anos 2000, o que corresponde a sensivelmente 138 milhões de habitantes. Porém a maneira como essa urbanização aconteceu culminou no “exílio” das populações da periferia (MARICATO, 2000). Além dos problemas de acesso ao centro das cidades, a periferia também é limitada por:

Concentração territorial homogeneamente pobre (ou segregação espacial), ociosidade e ausência de atividades culturais e esportivas, falta de regulação social e ambiental, precariedade urbanística, mobilidade restrita ao bairro, e, além dessas características todas, o desemprego crescente [...] (MARICATO, 2000, p. 29)

Desse modo, as questões em torno do exílio da periferia extrapolam a privação do direito à cidade, pois implica não só a negação do acesso à cultura, mas, sobretudo, a negação de direitos sociais e econômicos.

O quarto saber resultante de aprendizagem experiencial mencionado nos relatos dos partícipes está relacionado ao tema do meio ambiente. Em seu relato, C.B. conta como o envolvimento nas atividades e reivindicações do movimento a fez problematizar de forma geral e contextualizada a relação da humanidade com a natureza a partir da produção:

Cabedelo é uma cidade muito pequena, uma península, é rodeada... de um lado é o mar e do outro lado é o rio, tem um mangue, e é uma cidade portuária também aqui da Paraíba. Nessa cidade chegam produtos de vários gêneros e um desses produtos era o petcoque, que é um pó preto, o lixo ou a borra, um subproduto que fica do petróleo. Ele é usado muito como combustível pra indústria, é um produto muito barato, vem da Venezuela, não sei se de outros países também, vem aqui para o Brasil para ser usado na indústria, pra queimar, e é um produto altamente poluente, tanto no sentido de transporte, de poluir o ar, como também poluir a água, e o que é que acontece? Por onde chega esse produto, o transporte dele não é adequado, o produto é transportado em carretas só coberto por lona, se dissipa muito no ar... também é armazenado em local inadequado, não lembro o nome agora, se é estuário, mas praticamente em cima do mangue, a céu aberto. Com a ação do vento ele polui o mangue e prejudica a todas as espécies que estão lá, não é? Consequentemente até as águas, os lençóis. (C.B., 2017)

Essa participante, juntamente com algumas associações, como a Associação Cabedelense para a Cidadania (Acica), alunos, professores e movimentos sociais, começou a se mobilizar como uma frente e a exigir do poder público soluções para esse problema ambiental, o que proporcionou o desenvolvimento de aprendizagens referentes ao tema do meio ambiente.

O tema do meio ambiente faz parte de uma leitura crítica da realidade, pois envolve a exploração do trabalho e o consumo destrutivo dos recursos naturais, estando, portanto, relacionado a uma lógica perversa de produção e relação com a natureza, pois, nas palavras de Gadotti (2000, p. 81), “passamos do modo de produção para o modo de destruição”.

Assim, há pertinência em se fazer uma articulação entre educação popular e educação ambiental, pois a modernidade trouxe um distanciamento nas relações dos homens e mulheres entre si e destes com a natureza, o que também afetou as relações cotidianas, a formação e a educação, hierarquizando os saberes (FIGUEIREDO, 2013).

O sexto saber adquirido na participação no movimento social, que está relacionado à prática profissional docente, foi mencionado por participantes que são profissionais da educação, sobretudo professores da educação básica. A formação do professor é um processo contínuo, isto é, não se esgota quando se conclui a formação acadêmica, estendendo-se por toda a vida e nos diferentes contextos de vida, e é assim que a experiência de participação no movimento trouxe contribuições para a prática docente desses partícipes. De acordo com o relato de R.F. (2017):

Eu acho que a contribuição maior mesmo é na minha formação. Hoje eu sou professora, o que eu trabalho em sala de aula, além do projeto de extensão que foi uma outra grande contribuição profissional, que foi ter participado de um projeto de Educação Popular em extensão popular, que me deu um jeito também em relação ao método, a forma de fazer as coisas, o Levante me deu conteúdo [...]

Eu vou pra a sala de aula hoje e vou trabalhar, por exemplo, música com as crianças, aí eu vou trabalhar uma música que a gente cantava muito, “Negro Nagô”. Através dela eu vou trabalhar português, e vou trabalhar racismo, vou trabalhar história que é escravidão, o período escravocrata e vou trabalhar resistência. Se eu não estivesse no Levante eu iria ter sensibilidade porque estava num campo que estava me dando essa sensibilidade de entender muita coisa, mas eu me tornei mais sensível ainda a perceber as coisas. (R.F., 2017)

R.F. atribui a “sensibilidade” para abordar alguns temas em sala de aula, sobretudo aqueles que tratam da identidade, à experiência que vivenciou na extensão universitária, mas também acredita que tal sensibilidade foi potencializada em consequência da sua participação no movimento social, pois, como um dos setores a partir dos quais o movimento organiza a luta é o Negros e Negras, os temas mencionados por ela no relato, referentes à história do povo de etnia negra no Brasil, são muito debatidos dentro do movimento, o que lhe proporcionou uma gama de aprendizagens que possibilitaram o desenvolvimento de tais conteúdos em sala de aula de forma mais crítica e aprofundada.

Tal posicionamento, ao abordar temas relacionados à história do povo negro no Brasil em associação com a situação atual, pode contribuir para a emancipação dos alunos, uma vez que 56,4% da população brasileira se autodeclara negra (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, 2016) e as turmas, sobretudo na escola pública, são compostas em sua maioria por pessoas negras. Desse modo é indispensável trabalhar os temas que fortaleçam a identidade, história e cultura dessa etnia.

Além dos mencionados anteriormente, os partícipes também se referiram a processos educativos que resultaram em aprendizagens denominadas por nós de saberes práticos, que consistem na obtenção ou desenvolvimento de habilidades decorrentes das atividades desempenhadas no cotidiano da organização do movimento. Com base no que é descrito por Gohn (2011), 12 tipos de aprendizagens podem ser adquiridos nas lutas dos movimentos sociais: práticas, teóricas, técnico-instrumentais, políticas, culturais, linguística, econômica, simbólica, social, cognitiva, reflexiva e ética.

Algumas das funções que os participantes desempenham no movimento fornecem as bases para afirmarmos o desenvolvimento de tais saberes:

A minha tarefa aqui no estado é de tocar a frente territorial e umas tarefas mais operacionais mesmo, precisa de um ônibus pra fazer uma viagem... Já é umas secretarias operativas, secretarias executivas que a gente tem. (V.P., 2017)

Faço parte da coordenação estadual do Levante e dentro da coordenação estadual faço parte do coletivo de finanças. Então a gente pensa o movimento como um todo e eu especificamente penso a parte das finanças e ajudo a organizar, tal... (Y.L., 2017)

Sistematização também, tipo, tentar fazer relatoria, essas coisas eu também fazia. Bastante isso, eu fazia bastante relatoria. (R.F., 2017)

Essas atividades desenvolvidas levaram à construção de saberes técnico- -instrumentais e econômicos. Os primeiros estão relacionados à compreensão de como funcionam as organizações e instituições, os trâmites, a burocracia, papéis, enquanto os saberes econômicos, como o próprio nome propõe, referem-se aos conhecimentos sobre finanças.

Assim, de acordo com o primeiro relato, a atividade de providenciar um ônibus faz com que o partícipe mobilize um conjunto de saberes de acordo com uma lógica organizacional. Por exemplo, se a solicitação para o transporte for feita dentro do próprio movimento, deve dirigir-se ao setor de finanças para que a verba seja direcionada para tal pedido, mas, se a solicitação for feita a algum órgão público como uma prefeitura ou secretaria de Estado, há, igualmente, que se percorrer um percurso burocrático.

O depoente do segundo relato, formado em Direito, desempenha também uma função na área de finanças. Para tal, Y.L. igualmente precisou desenvolver uma série de saberes relacionados a essa função. Do mesmo modo, R.F. também teve que desenvolver os saberes necessários para realizar a relatoria das ações do movimento. Vemos exemplos de outros saberes práticos no relato de C.B., que conta como utiliza os saberes adquiridos no movimento na prática sindical:

Hoje, eu estou enquanto professora e como sindicalista. Estou no meio sindical, e aí eu consigo usar muitas das coisas que eu aprendi durante essa minha passagem no Levante Popular da Juventude na minha área. Claro que continuo estudando, minha ênfase maior hoje é a educação, as coisas que envolvem minha profissão, mas levo muitos dos princípios do Levante pra lá, não é? Essa história de estudar, da formação, da gente se organizar, o fato de eu estar no sindicato, é uma forma de eu estar me organizando, e as lutas que a gente pautou e vai pautar daqui pra a frente, cada vez mais nesse governo [...]

Eu sempre fui uma pessoa que tinha dificuldades de falar em público, eu não sou das pessoas mais falantes, que tem a oralidade muito boa, mas hoje eu falo em público, com mais facilidade. [...] Então eu participei de muitas formações durante esses tempos tanto do Levante como de outras organizações que são do mesmo campo popular e aí hoje eu tenho um pouco mais de liberdade, eu consigo debater sobre pautas que antes eu não saberia, pautas políticas, pautas da educação, minimamente da saúde, então alguns debates, alguns acúmulos que foi fruto disso aí. (C.B., 2017)

A partir deste relato é possível observarmos quatro tipos de aprendizagens resultantes da atuação no movimento estudado: aprendizagens políticas, sociais, cognitivas e práticas. De acordo com Gohn (2011), as aprendizagens políticas estão relacionadas ao conhecimento a respeito dos direitos e da categoria profissional da qual cada trabalhador faz parte, as aprendizagens sociais, por sua vez, são conhecimentos associados ao falar em público e sobre comportamentos de diferentes grupos em distintos contextos, entre outros conhecimentos, e as aprendizagens cognitivas estão relacionadas a conteúdos, problemas ou temas que nos dizem respeito, adquiridos nos diferentes espaços de participação. Esses saberes dizem respeito à construção dos conhecimentos sobre a atuação em um movimento social e a organização deste. Esta depoente, na sua atuação enquanto sindicalista, aplica os saberes práticos que afirma ter adquirido na participação no movimento.

O terceiro conjunto de saberes adquiridos na participação no movimento social foi identificado por nós como relacionado a valores humanos, por levar os indivíduos a refletirem sobre si mesmos e a respeito do estar em sociedade. De acordo com Schwartz (2001), os valores humanos referem-se a metas desejáveis, que transcendem situações, variam em importância e norteiam a vida de uma pessoa ou de outra entidade social. No entendimento de Gouveia et al. (2003), as investigações sobre o tema costumeiramente entendem os valores como orientadores da ação humana, relacionando-os com vários comportamentos e/ou atitudes individuais.

Diante disso e de acordo com as narrativas, compreendemos que, como o movimento estudado é um espaço de reflexão e ação em busca de transformação social, aspectos relacionados a valores humanos são abordados na participação dos sujeitos nessa organização. Isso ocorre mediante a abordagem vivenciada, reflexiva e prática de princípios que atingem as motivações e os julgamentos valorativos sobre si e sobre os outros, sobre as coletividades, direcionando ações tanto individuais como coletivas que terão reflexos sociais. O primeiro destes valores, identificado a partir dos relatos, diz respeito à identidade negra:

E até pra eu me reconhecer enquanto pessoa negra, sabe, foi todo um processo que foi muito lento. Hoje em dia meu cabelo está grande assim, mas velho, antes eu cortava meu cabelo assim [pega no cabelo para mostrar como era antes e como está agora], sabe, há um ano que eu estou deixando ele crescer, sabe. Está sendo difícil, você está se reconhecendo mesmo enquanto negro. (V.P., 2017)

A partir da problematização de questões ligadas ao racismo, foi possível a este depoente rever a representação social do negro a partir de uma visão historicamente construída sobre o “ser negro/ser negra” e reconstruir essa visão tomando agora aspectos positivos.

Tal reconstrução foi expressada por ele, sobretudo pela recaracterização do uso de seus cabelos, elemento tão importante na representação do corpo social e da linguagem, pois o cabelo não representa apenas características individuais e biológicas, mas também a identificação com um determinado grupo étnico e uma cultura (GOMES, 2006).

O segundo conjunto de saberes referentes a valores humanos foi denominado por nós de conviver com quem é diferente, pois os relatos possibilitaram perceber que a experiência de participação no movimento proporcionou aos jovens reverem valores relacionados a racismo, classe, gênero e sexualidade e, desse modo, a discussão sobre esses temas está relacionada a “identidade e diferença”.

A identidade é afirmada a partir da afirmação do que se é e da negação ao diferente, ou seja, ao que não se é. Desse modo, quando se diz “sou homem”, “sou branco”, “sou hétero”, “sou cristão”, está a se afirmar a partir da diferença do outro que é “mulher”, “negro”, “homossexual”, “mulçumano”, por exemplo. A essas posições binárias, tais como homem/mulher, branco/negro, heterossexual/homossexual, cristão/mulçumano, é sempre atribuído um valor positivo a uma delas em função da negatividade da outra parte. Problematizar as conveniências em cada um desses binarismos implica perceber a identidade e a diferença a partir das relações de poder (SILVA, 2000).

O relato a seguir descreve como as experiências vivenciadas no movimento permitiram ao participante realizar autorreflexões em relação à sua forma de estar com “o diferente”, principalmente aquelas diferenças relativas a orientação sexual, origem socioeconômica e cor da pele:

[...] o que mais me marcou no Levante foi o contato com pessoas totalmente diferentes da minha realidade. Então isso, inclusive no começo, foi muito difícil pra mim, tanto para eu assimilar outras classes sociais, outras formas... as pessoas são muito diversificadas dentro do Levante. Então assim, eu aquele menino branco de classe média, tal, com aquela vidinha... e aí passei a conviver... não que antes não convivesse, mas eu digo assim, não sei. Essa convivência me despertou pra coisas, pra defeitos meus, pra vícios meus, pra preconceitos meus, que foram se quebrando. Coisas inclusive que eu achava que já tinha quebrado. Essa coisa do preconceito, a gente tem no Levante os recortes de gênero, da diversidade sexual, de raça, não é. Na minha cabeça, isso pra mim já estava solucionado, na teoria, porque eu já conseguia compreender a coisa do machismo, da LGBTfobia, sendo que na prática, quando eu comecei a conviver com essas pessoas, foi que realmente descobri que existiam coisas que estavam muito mais profundas na minha consciência, não é. E aí isso se transformou por causa da minha ação no Levante. E a partir dessa ação pedagógica mesmo das outras pessoas. Não só de outras pessoas virem me dizer, “Olha, você está fazendo isso ou aquilo”, não só isso, isso também, mas também de enxergar aquilo, eu mesmo enxergar e dizer “Poxa, não acredito que eu ainda pensava isso ou fazia isso, nunca tinha notado”, enfim, isso se transformou muito na minha vida. (Y.L., 2017)

De acordo com o relato, é possível perceber que o depoente acreditava que, antes de engajar-se no movimento social, suas questões pessoais em relação às identidades que não a sua “estavam resolvidas”, mas, mediante situações de confronto com outros participantes e da autorreflexão, ele chegou à conclusão de que sua forma de pensar e conviver com o outro não estava de acordo com o que ele considerava ser o ideal, ou desejável, e então houve mudança de comportamento.

Este relato também permite perceber que a experiência educativa vivenciada no movimento é capaz de modificar a forma de se relacionar com o outro, mediante uma educação reflexiva e problematizadora, que vai além dos princípios de respeito e tolerância, alcançando, sobretudo, uma análise do lugar do poder nas relações.

O terceiro conjunto de saberes relacionados a valores humanos diz respeito à sobreposição do coletivo ao individual e está associado ao conceito de solidariedade, característica intrínseca a um movimento social. Etimologicamente, a palavra solidariedade é originária da palavra latina solidus, o que nos remete ao campo da geometria e a corpos em três dimensões. Costa (2009) acrescenta a essa característica etimológica outras, tais como ética, compromisso com outro ser social independente, colaboração desobrigada baseada em sensibilidade social e generosidade.

No interior dos movimentos sociais, a solidariedade é a articulação entre os envolvidos, mediante uma base referencial comum de experiências, valores e ideologias construídas pelo grupo. A trajetória do grupo é desenvolvida por meio das trajetórias individuais, o que não quer dizer que internamente o movimento seja um espaço harmonioso e homogêneo, que não haja diferenças no seu interior (GOHN, 2002), como é possível perceber a partir do seguinte relato:

[...] dessa coisa de entender que quando você está construindo algo coletivamente, as decisões coletivas são superiores a nossa própria consciência, então certos momentos aconteceu, “Ah, eu não acho que essa atitude, essa ação, essa resposta que a gente vai dar é a mais correta pra o momento”, mas entender que isso foi construído coletivamente e que eu não vou estar boicotando. Ah, eu não vou admitir só o que é a minha posição porque a gente está num espaço de construir isso coletivamente e a gente precisa entender que as construções coletivas superam as individuais. Acho que é mais ou menos isso. (Y.L., 2017)

A solidariedade é expressa pelo movimento na forma como se apresenta em público, no discurso, nas práticas articuladas nos eventos externos, criando no imaginário social uma figura de unicidade, uma visão de totalidade. Desse modo, a solidariedade “significa igualmente assumir a defesa de interesses e direitos de outros, mesmo que os seus, individualmente considerados, possam não estar, pelo menos de imediato, a ser postos em causa” (MEDINA, 2008, p. 346).

A partir dos relatos, como o que se segue, é possível perceber que há uma preocupação com a perpetuação dos valores revistos na participação do movimento, bem como de outros resultados produzidos e vivenciados nesta participação:

Acho que eu aprendi muitos valores, que hoje regem a minha vida, da humildade, do espírito de sacrifício, de amar o outro mesmo com as diferenças, e de perceber que o que eu estou fazendo agora vai para além disso que está colocado, para outras gerações, pra pessoas que não me conhecem mas são povos como eu, é um aprendizado de vida mesmo. (M. D., 2017)

Desse modo, a solidariedade vai além da ação compassiva e do altruísmo em relação ao outro, ou à sociedade, marcando o coletivo a partir do indivíduo, como uma forma de constância na qual o todo e as partes se preservam mutuamente, o que aparenta ser um valor essencial, na perspectiva dos participantes do LPJ, para a construção de relações humanas individual e socialmente mais justas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Oriundo da Via Campesina, que tem se dedicado a enfrentar o monopólio da produção de alimentos no mundo, o movimento social estudado, assim como a Via, traz entre seus objetivos a promoção da justiça social e solidariedade. Mas, para além de problematizar a relação dos trabalhadores e trabalhadoras com o trabalho em um contexto de produção neoliberal, o Levante Popular da Juventude também tem incluído em suas lutas outros conflitos sociais de origem identitária.

Desse modo, é possível identificar um duplo caráter do campo onde se desenvolvem as lutas desse movimento. O primeiro é o caráter sociopolítico, manifesto nas ações dos setores a partir dos quais o movimento organiza a luta - negros e negras; diversidade sexual e de gênero; mulheres -, que está relacionado à formação de identidade do movimento e resistência cultural, o que nos permite estudá-lo a partir da teoria dos novos movimentos sociais, por meio dos trabalhos de Alain Touraine (1965), Alberto Melucci (1999) e Claus Offe (1983), por exemplo.

O segundo caráter é o político-econômico, que tem por base os conflitos de interesses originários das lutas de classes, o que nos permite compreendê-lo recorrendo à teoria marxista de análise dos novos movimentos sociais, expressa nos estudos de Jordi Borja (1975), Manuel Castells (1974), Eric Hobsbawm (1970) e George Rudé (1982), por exemplo. É importante porém ressaltar que as lutas daqueles grupos − negros e negras, mulheres e comunidade LGBT - não é indissociável da luta de classes, pois a sociedade brasileira é regida por um sistema capitalista-patriarcal-racista.

O percurso trilhado na luta por transformação da realidade é rico em construção de saberes. Na organização do movimento social estudado é possível perceber que há um imenso trabalho intencional de formação dos sujeitos, por meio de estudo, reflexão e problematização dos temas que emergem de uma investigação analítica da realidade brasileira. Mas existe também a construção de saberes não intencionais, resultantes da própria experiência de participação, fruto das rodas de discussões, do ouvir o relato ou a história de vida do outro, da preparação para a participação de um ato, entre outras atividades.

Mas os possíveis caminhos para a investigação a respeito dos movimentos sociais não se esgotam no que foi abordado neste estudo. A partir dele identificaram-se outras possíveis vias para demais pesquisas. Uma delas é o aprofundamento de estudos a respeito de como a participação nestas coletividades atinge os valores humanos que os sujeitos trazem e como estes se modificam no decurso de luta por transformação social. No movimento estudado foi possível observar que a práxis que envolve a valorização das experiências de vida, da admissão e reconhecimento da importância da identidade negra, igualdade entre os gêneros, solidariedade e relevância do agir e pensar coletivamente modificou posturas individuais e coletivas dos sujeitos que vivenciaram tal prática educativa. O aprofundamento a respeito desta temática é significativo para compreendermos como experiências educativas vivenciadas em movimentos sociais e em outros espaços informais e não formais de educação relacionam-se a valores humanos.

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1Investigação realizada no mestrado em Educação e Formação de Adultos da Universidade do Porto, concluída em novembro de 2017.

Recebido: 11 de Agosto de 2019; Aceito: 09 de Setembro de 2019

NOTA:

O texto decorre de uma pesquisa de mestrado realizada por Hadassa Monteiro de Albuquerque Lucena, sob a orientação e coorientação dos professores João Carlos Pereira Caramelo e Severino Bezerra da Silva, respectivamente.

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