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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.50 no.175 São Paulo ene./marzo 2020  Epub 29-Abr-2020

https://doi.org/10.1590/198053146414 

Artigos

Missão capuchinha e resistência tentehar: releituras do conflito de Alto Alegre

Maria Aparecida Corrêa CustódioI 
http://orcid.org/0000-0003-2962-2228

IUniversidade Federal do Maranhão (Ufma), Imperatriz (MA), Brasil; mapccustodio@gmail.com


Resumo

O artigo analisa a gênese, as relações de poder e os impactos sociais da missão indígena dos Frades Menores Capuchinhos, no Maranhão republicano, sob a ótica do conflito e do movimento de resistência indígena que pôs fim à Colônia de Alto Alegre e ao seu internato de meninas índias. É adotada uma linha teórico-metodológica que reconstrói analiticamente depoimentos e documentação arquivística à medida que são investigados sob a perspectiva do paradigma indiciário e colocados em diálogo com variados estudos, com ênfase para os trabalhos sociológicos, antropológicos e históricos. Os resultados estão inscritos na compreensão de que as relações conflitivas entre indígenas e missionários, na contramão do projeto de catequese e civilização das nações originárias, geraram consequências sociopolíticas muito positivas para o povo Tentehar.

Palavras-Chave: MOVIMENTOS SOCIAIS; POVOS INDÍGENAS; EDUCAÇÃO; HISTÓRIA

Abstract

The article analyzes the genesis, power relations and social impacts of the indigenous mission of the Capuchin Friars Minor in the Republican Maranhão State, from the perspective of the conflict and the indigenous resistance movement that destroyed the Colônia de Alto Alegre and its boarding school for Indian girls. A theoretical-methodological line was adopted that reconstructs analytically testimonies and archival documentation as they are investigated from the perspective of the indicative paradigm and placed in dialogue with various studies. There is emphasis on sociological, anthropological and historical works. The results show that the conflicting relations between indigenous people and missionaries, contrary to the catechesis and civilization project of the nations of origin, have generated very positive sociopolitical consequences for the Tentehar people.

Key words: SOCIAL MOVEMENTS; INDIGENOUS PEOPLES; EDUCATION; HISTORY

RÉSUMÉ

L’article analyse la genèse de la mission amérindienne des Frères mineurs Capucins dans le Maranhão dans la période républicaine (1889-1930), ainsi que les relations de pouvoir et les impacts sociaux de cette mission sous l’angle du conflit et du mouvement de résistance indigène ayant mis fin à la colonie d’Alto Alegre et à son pensionnat pour filles amérindiennes. La ligne de recherche théorique-méthodologique adoptée vise à reconstituer analytiquement les témoignages et la documentation archivistique dans la perspective du paradigme indiciaire et à les mettre en dialogue avec d’autres travaux, notamment d’ordre sociologique, anthropologique et historique. Les résultats s’inscrivent dans une perspective allant à l’encontre du projet de catéchèse et de civilisation des nations originales selon laquelle les relations conflictuelles entre les autochtones et les missionnaires ont entrainé des conséquences sociopolitiques très positives pour le peuple Tentehar.

Key words: MOUVEMENTS SOCIAUX; PEUPLES INDIGENES; ÉDUCATION; HISTOIRE

Resumen

Este trabajo analiza la génesis, las relaciones de poder y los impactos sociales de la misión indígena de los Frailes Menores Capuchinos en el Maranhão republicano, desde la perspectiva del conflicto y del movimiento de resistencia indígena que puso fin a la colonia de Alto Alegre y su internado de niñas indígenas. Se adopta una línea teórica y metodológica que reconstruye analíticamente testimonios y documentación de archivos a medida que se investigan desde la perspectiva del paradigma indiciario y se ponen en diálogo con diversos estudios, especialmente los sociológicos, antropológicos e históricos. Los resultados se inscriben en la comprensión de que las relaciones conflictivas entre indígenas y misioneros, a contramano del proyecto de catequesis y civilización de las naciones originarias, generaron consecuencias sociopolíticas muy positivas para el pueblo.

Palabras-clave: MOVIMIENTOS SOCIALES; PUEBLOS INDÍGENAS; EDUCACIÓN; HISTORIA

O “Tempo de Alto Alegre”, assim chamado pelos antigos Tentehar1 nas pesquisas etnográficas de Mércio Pereira Gomes (2002), ou “Massacre de Alto Alegre”, assim denominado pela Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, foi uma das maiores rebeliões indígenas da história do Brasil no século XX, com centenas de mortos (indígenas e não indígenas).

Essa rebelião ocorreu em 1901, na Colônia de Alto Alegre, localizada entre os municípios de Barra do Corda e Grajaú, no centro-sul do Maranhão. Fundada pelos capuchinhos, em meados de 1896, a colônia tinha a finalidade de desenvolver um projeto de catequese e civilização dos índios, em comum acordo com o Estado maranhense. Mas tal projeto foi rechaçado pelos indígenas, que iniciaram, em 13 de março de 1901, os ataques à colônia, estendendo a investida às fazendas das imediações e permanecendo na região até serem perseguidos pela força policial.

Em meio a tal contexto, as famílias das lideranças indígenas que participaram da revolta e outros parentes se dispersaram, mas continuaram com sua resistência subterrânea e vida errante pelas terras do Maranhão, sendo que muitos encontraram refúgio em um lugar chamado Bacurizinho, localizado no município de Grajaú. Lá reinventaram sua vida e ampliaram as aldeias Tentehar, trazendo à luz novas gerações que lutaram pela demarcação desse território, o que ocorreu em 1979 (e a homologação em 1983). Hoje, a Terra Indígena Bacurizinho tem uma população estimada de 1.976 indígenas, sendo que a maioria é Tentehar - um dos povos indígenas mais numerosos do Brasil, com cerca de 27.616 pessoas, habitando 11 Terras Indígenas, todas situadas no Maranhão (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2018).

Na verdade, o processo de ocupação do Bacurizinho pelos Tentehar remonta a meados do século XIX, quando muitos de seus antepassados vieram do rio Gurupi para viver nessa região, fundando as primeiras aldeias na beira do rio Mearim e no centro da mata.2 No final do século XIX, eles tiveram que negociar várias vezes com um fazendeiro que se apropriou das terras e constituiu fazendas na região, resultando em diversas descidas do Mearim para realocação das aldeias. Nesse ínterim, foi criada a Aldeia da Gameleira, que se tornou um dos abrigos dos indígenas fugitivos da perseguição militar de Alto Alegre (GOMES, 2002).

Muitas outras aldeias foram formadas naquela época e nos anos posteriores. Até os dias de hoje a população Tentehar constantemente reorganiza suas aldeias e continua a migrar no território do Bacurizinho. De fato, como descreveram Wagley e Galvão (1955, p. 32), que realizaram um trabalho de campo entre os Tentehar em 1941 e 1942 (GALVÃO, 1996), “embora seja frequente residirem por longos períodos ou por toda a vida em uma mesma aldeia, a comunidade de uma aldeia varia consideravelmente no decorrer do tempo. Por vezes, todo um grupo de família extensa muda de residência de uma aldeia para outra”.

Na atualidade, percorrendo a Terra Indígena Bacurizinho, encontramos os descendentes de Caiuré Imana (João Manuel Pereira da Silva, mais conhecido como Caboré), considerado o principal líder do movimento que pôs fim à Colônia de Alto Alegre. À primeira vista, a memória da rebelião já não parecia tão viva nas mentes dessas pessoas, sugerindo ter sido enterrada com os seus antepassados. Entretanto, foi possível compreender que eles são as provas vivas de uma das consequências do conflito: a migração do povo Tentehar e o não esmorecimento na luta pela posse da terra.

Por essa razão, trazemos neste artigo, sempre que possível, depoimentos das lideranças Alderico Lopes Filho e Taurino de Sousa e dos netos de Cauiré - Acelina Mendes Guajajara e Zezinho Mendes Guajajara -, os quais foram traduzidos pelo intérprete Alderico, pois a maioria dos informantes fala a língua Tentehar. Foram coletados no próprio ambiente dos entrevistados durante os trabalhos de campo realizados em 2018 nas aldeias do Bacurizinho, como mostra a Foto 1, os quais privilegiaram os métodos etnográficos, com ênfase para a técnica de história oral temática e as rodas de conversa (CRAPANZANO, 1991; PEIRANO, 1995; CLIFFORD, 2002; MEIHY, 2002).

Fonte: Foto da autora (acervo pessoal).

FIGURA 1 DESCENDENTES E PARENTES DE CAIURÉ IMANA - ALDEIA COCALINHO  

Vale ressaltar que, para os Tentehar compartilharem suas versões do conflito de Alto Alegre e declararem que tinham algum antepassado envolvido na rebelião, necessitou-se, anteriormente, criar vínculos de confiança, construídos no Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Maranhão (campus Grajaú), frequentado por professores indígenas, e nos encontros de convivência nas aldeias. Nessa experiência, observamos algo muito parecido com a conclusão do antropólogo Mércio P. Gomes (2002), que conviveu com os Tentehar do Bacurizinho em 1975: a inibição ou apreensão para falar sobre a rebelião deve ser em função da autoproteção.

É preciso dizer que compreendemos os depoimentos indígenas como memória reconstruída, que retoma as experiências do passado com imagens e ideias do presente, pois pertence a um conjunto de representações que povoam a consciência atual deles, alterando suas percepções e juízos de valor (BOSI, 2012). Em alguns casos, lançamos a hipótese de que o povo Tentehar reteve muitas histórias do conflito que foram interpretadas, transmitidas e recontadas ao longo do tempo, mas sem perder a sua questão básica, ou camada embrionária, a exemplo de outros povos de tradição oral, tais como os antigos hebreus, cujas narrativas foram transmitidas de geração em geração a partir de processos complexos de reconstrução e ressignificação da experiência vivenciada ou contada pelos antepassados (GOTTWALD, 1988).

Outras provas e sinais para tratar essa história e as conturbadas relações de poder entre missionários, indígenas e Estado foram encontrados na documentação do Arquivo Histórico da Província Nossa Senhora do Carmo de São Luís e do Arquivo Público do Estado do Maranhão. Ambos forneceram muitas pistas sobre os contextos, princípios, fundamentos e bastidores da então chamada “Missão do Maranhão” e do próprio movimento indígena que gerou o conflito de Alto Alegre, o qual abalou um projeto político-eclesial bem definido e com certo apoio do Estado.

UM PROJETO HÍBRIDO E AMBÍGUO

Como nos lembra Marta Amoroso (1998), entre 1845 e o final do século XIX, o indigenismo brasileiro se identificava com a missão católica, levando o Estado a recorrer às ordens religiosas, especialmente a Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, para com elas dividir as responsabilidades da administração da questão indígena.

No campo educacional, as escolas dos aldeamentos - subvencionadas pelo Estado e gerenciadas pelos missionários (a maioria composta por capuchinhos italianos) - eram sinônimos de catequese católica, impondo-se a religião oficial de Estado no contexto do sistema do Padroado vigente no Brasil imperial. Com a República, essa prática passou a ser questionada pelos indigenistas, contudo isso não quer dizer que ela deixou de existir nos primórdios republicanos.

No Maranhão, com a promulgação do Decreto n. 7, de 20 de novembro de 1889, que responsabilizava os estados pela catequese e civilização dos índios, essa tarefa acabou sendo assumida inicialmente pelos missionários capuchinhos da província religiosa da Lombardia, do norte da Itália. Na verdade, os capuchinhos lombardos chegaram ao Brasil em 1892, a convite do governo brasileiro para uma missão na Amazônia que deveria atingir a civilização dos índios, colonização dos interiores e proteção das fronteiras amazônicas (MEIRELES, 1977).

A nova frente missionária entusiasmou a província capuchinha da Lombardia, pois naquele momento a perspectiva da Ordem era se expandir geograficamente e formar novos quadros, considerando que no período imperial, quando vigorava a política do Padroado, tal como as demais ordens religiosas, os capuchinhos não podiam recrutar nem formar religiosos nativos ou mesmo importar noviços europeus.

Não seria a primeira vez que capuchinhos italianos desenvolveriam um trabalho missionário com a perspectiva de atingir o Norte do país.

No fim do séc. XIX, durante o II Império, os missionários capuchinhos estiveram presentes no Pará e Amazonas, ao longo dos rios: Andira e Purus (1842); Rio Branco (entre 1850 e 1856); Rio Tapajós (entre 1843 e 1883); no Rio Trombetas e Xingu. (CASTROVALVAS, 2000, p. 11)

Mas os capuchinhos da Lombardia percorreram um atalho um tanto árduo para inaugurar a nova missão. Inicialmente eles ficaram instalados em Recife, na sede da Prefeitura Missionária de Pernambuco, responsável pelas missões populares e indígenas e outros trabalhos pastorais no Nordeste. A proposta era fazer um estágio com os capuchinhos da prefeitura e aprender a língua portuguesa; contudo, na prática, vivenciaram uma série de conflitos de poder com os frades do lugar, até conseguirem conquistar sua autonomia e iniciar os trabalhos missionários começando pelo Maranhão - remetemos a Carvalho (2017) a descrição e análise de toda a complexidade desses processos.

De qualquer forma, a passagem pelo Recife possibilitou aos capuchinhos da Lombardia a ocasião de fazer contatos e conhecer um pouco a língua portuguesa e os trabalhos missionários dos confrades. Nesse contexto, frei Carlo da San Martino Olearo, que se autodeclarava líder do grupo lombardo no ardor da juventude de sua carreira eclesiástica, entrou em contato com Dom Antônio Cândido de Alvarenga, bispo do Maranhão, para articular a missão nos territórios maranhenses, um passo importante porque os capuchinhos poderiam “se estender em tempo oportuno à região da Amazônia” (NEMBRO, 1957, p. 52).

Frei Carlo da San Martino Olearo tornou-se o primeiro superior regular da Missão do Maranhão e foi o principal idealizador do projeto de trabalho com os indígenas, sendo que a mais polêmica de suas propostas era a fundação de um “instituto de índios”, provavelmente inspirado na Colônia Isabel que ele conheceu quando fez estágio na Prefeitura Missionária de Pernambuco. Encantado com tudo que viu nessa colônia, o frei compartilhou suas impressões com os leitores dos Annali Francescani [Anais Franciscanos] de 1893.

As quatro escolas elementares, a escola de música, as escolas de marcenaria, de ferreiro, de mecânico, alfaiate, sapateiro, padeiro, açougueiro tudo aqui você encontra com americana grandeza, pois a Colônia tem que ser auto-suficiente. [...]

Fora da Colônia, mas ainda propriedade da mesma, há duas grandes Fazendas, que proporcionam vida e trabalho a muitas famílias e, ao Instituto, as entradas de mais de uma centena de cabeças de gado.

E quando pensarmos que tudo isto é criatividade e iniciativa do Fr. Fidelis de Fognano, obra da influência que ele exercitava sobre os “grandes” do Império, antes, e depois sobre os “grandes” da República Brasileira [...] (ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 1893, p. 217 apudBELTRAMI, 1996, p. 17)

Por meio do estudo de Arantes (2005), sabemos que a Colônia Orfanalógica Isabel foi construída no local onde outrora funcionava a Colônia Militar de Pimenteiras, no município de Palmares (a 158 km da capital pernambucana). Entregue à administração dos capuchinhos italianos, foi fundada pelo frei Fidelis de Fognano em 1873, tendo como modelo colégios europeus onde o ensino era mais prático do que teórico. Propriedade do estado de Pernambuco, essa instituição foi gerenciada pelos capuchinhos até 1894 (NEMBRO, 1957).

Além da Colônia Isabel, certamente frei Carlo conhecia as novas tendências de educação para os indígenas no Brasil que começaram a circular no final do Império.

No final do período capuchinho veremos os poderes tutelares e missionários investindo nos institutos de educação fora da área dos aldeamentos e nos internatos para crianças nas cidades, buscando contornar as dificuldades que a escola encontrava nos aldeamentos, onde os velhos índios impunham resistência.

Um missionário que atuou entre os Mundurucu [...] [relatou:] “A experiência me tem convencido ser moralmente impossível dar aos meninos e meninas índios uma educação completa, enquanto estiverem em poder dos seus pais, habitualmente viciosos, morando em casas grandes, confundindo homens e mulheres, grandes e pequenos, casados e solteiros.” Indicava como saída para o impasse da catequese os internatos e institutos de educação que colocassem os índios em contato com crianças cristãs. (AMOROSO, 1998, p. 110, grifos nossos)

Em síntese, podemos dizer que, com base em suas observações da Colônia Isabel, conhecimento das experiências capuchinhas junto aos indígenas no período imperial (que eram periodicamente publicadas nos Anais Franciscanos da Ordem) e, sobretudo, a partir de suas próprias apropriações e inferências, frei Carlo traçou um plano para a Missão do Maranhão em concordância com as demandas da Diocese do Maranhão.

Conforme esse plano, os capuchinhos se responsabilizaram por alguns trabalhos pastorais em São Luís, atenderam o interior e algumas localidades do Ceará e do Piauí (que na época estavam sob a jurisdição da Diocese do Maranhão) com missões ambulantes e assumiram a Paróquia de Barra do Corda, que há mais de 20 anos se encontrava sem padre, sendo uma região estratégica para eles, pois fora palco do trabalho missionário da Ordem com os indígenas no Segundo Império. Dessa paróquia eles alcançaram os indígenas, que eram a prioridade de frei Carlo, por meio do contato com as aldeias, catequese integrada aos trabalhos paroquiais e criação de um instituto para meninos índios. Tudo isso com base em um rápido diagnóstico, apresentado no relatório das atividades missionárias realizadas entre maio de 1893 e maio de 1894.

Fez uma visita à aldeia dos Índios Canelas de Ponto, Mateiros de Macura e Jacaré, e Guajajaras de Catité e da atualmente desativada Colônia de Dois Braços, fundada e conduzida com grande desenvolvimento pelo falecido nosso P. Giuseppe da Loro.

Em tal visita ele conseguiu batizar 18 meninos e moribundos ou confiados aos cuidados de bons e ricos cristãos.

Voltamos da viagem de exploração sempre mais convictos

Voltou da viagem de exploração sempre mais convicto que, pela absoluta falta de subsídios estabelecidos e pela grande repugnância que se infiltrou nos índios, não seja mais o caso de pensar na colonização como meio de conversão, mas que o único meio seja tratá-los como paroquianos de Barra do Corda, em cujo [lugar] podemos contar uns 5 mil, com aquela cautela e planos que já foram expostos ao grandíssimo P. Geral em carta de 15 de abril e com todos esses meios que a graça de Deus, experiência e oportunidade podemos sugerir na implementação.

Além do bispo, que aprova plenamente este projeto, o governador do estado, ao qual P. Carlo expôs oralmente a sua visita, julgou mais profícuo do que o antigo sistema de colonização e, sem obrigar-se a nada de determinado, prometeu o seu apoio moral e deu esperança também de ajuda [financeira]3 (RELATÓRIO..., 1894/1995, fl. 2, tradução e grifos nossos)4

Na prática, o relatório pretendia mostrar que a intenção era batizar os indígenas e inseri-los na convivência com os cristãos não indígenas. Contudo, essa ideia não se confirmou, cedendo lugar para outras intenções: conforme registra a ata de fundação da casa de Barra do Corda (ocorrida em maio de 1895), pretendia-se “desmanchar aldeias”, reagrupar os povos originários e tirar seus meninos para educá-los no colégio anexo (Instituto de Índios São Francisco de Assis).

O Instituto, ou melhor, a Casa da Barra do Corda tem dois fins muito importantes:

1º É a cristianização e civilização dos Índios;

2º A cura da vastíssima freguesia da Barra do Corda [evangelização da paróquia].

Se tem de cuidar, portanto, de desmanchar aldeias e reduzi-las em famílias.

Tirar caboclinhos de suas pequenas famílias que moram nas aldeias.

Procurar terra e tudo mais [para] aqueles caboclos que quisessem sair das aldeias. (ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 1894-1900, fl. 18, grifos nossos)

No tocante ao instituto para meninos índios, havia divergência de opinião entre frei Carlo e seus conselheiros locais, os “discretos” (assim identificados pela Ordem capuchinha). Na contramão do conselho, frei Carlo dizia seguir as orientações de Antonino da Reschio, secretário das Missões em Roma, o qual fora missionário da extinta Colônia Dois Braços de Barra do Corda e membro do Cabido de São Luís (colegiado de padres que contribuíam com o governo da diocese). De fato, os fragmentos do parecer emitido por Antonino, em 24 de agosto de 1895, parecem apoiar a proposta de frei Carlo e vislumbram um novo tempo para a missão indígena na República.

Em relação à educação dos caboclos, já sabia que pouco era para ser esperado do sistema imposto pelo Governo Imperial, porque a evangelização não era livre nem estável. Muito pouco foi o lucro dos meninos, permanecendo com seus pais polígamos [...]. Portanto, o meio verdadeiro e eficaz é ter os filhos e mantê-los no colégio.

Em estabelecimentos separados dos adultos, também dos civis, e ocupados (além do catecismo frequente) com funções religiosas e primeiras letras, na agricultura, artes e ofícios, e sem mudar seus hábitos alimentares.5 (COLEÇÃO..., 1895, fl. 47, tradução e grifos nossos)

No relatório de 1896, que contém a descrição da visita canônica de frei Carlo ao Instituto de Índios de Barra do Corda (atividade anual de caráter avaliativo, como é de praxe ocorrer nas ordens e congregações religiosas), já havia vestígios de um conflito que se acirraria no decorrer do tempo: é mencionado que os indígenas das aldeias entre Barra do Corda e Grajaú - a grande maioria Tentehar! - “eram os mais renitentes para dar os filhos para o Instituto, não queriam saber de Governo nem de frades, tanto que tentaram flechar Fr. Celso”, encarregado de visitar as aldeias e recrutar as crianças. Relata-se também que, nessa circunstância, foi realizada uma reunião com a sociedade barra-cordense e solicitada ajuda aos maiorais para desmentir as histórias que circulavam em torno “do nosso desejo de escravizar e desfrutar dos pobres índios” (RELATÓRIO..., 1896/1995, fl. 16, tradução nossa).

No mesmo relatório consta que, apesar de reconhecer todas essas dificuldades, agravadas pelas “insinuações de negociantes, fazendeiros e trabalhadores cristãos”, que estimulavam ainda mais a desconfiança dos indígenas, frei Carlo planejou com seus confrades a implantação da Colônia São José da Providência (e nela um internato para meninas índias) em um sítio na região de Alto Alegre (RELATÓRIO..., 1896/1995, fl. 17). Essa decisão contrariava o diagnóstico inicial de não promover “colonização como meio de conversão” (RELATÓRIO..., 1894/1995, fl. 2) e exigia mais um investimento eclesial: a divisão sexual do serviço religioso.

Dividir as mulheres índias e educar as meninas, [mesmo] se nós quiséssemos lidar com isso apenas de longe, a índia ficaria com ciúmes e nos daria flechadas. A única conclusão que me parecer ser [viável] é do Instituto enviar freiras, da Missão, como nós. Nós pensaremos como mantê-las, dirigindo-as, quanto pudermos, segundo as regras do Instituto delas, mas devem ser como as salesianas ou salesianos6 [admirados pelos capuchinhos por seus trabalhos com os indígenas no Mato Grosso]. (COLEÇÃO..., 1896, fl. 62, tradução nossa)

Seja como for, para os capuchinhos, fundar uma colônia era mais uma iniciativa importante para “incorporar os índios à população civilizada”, formando bons cristãos e trabalhadores agrícolas, com certo apoio do governo estadual, que desde “26 de fevereiro de 1896 reconheceu aos frades competência para cuidar da educação dos meninos índios”, concedendo um parco subsídio anual para manter todas as atividades, motivo de reclamação de frei Carlo (RELATÓRIO..., 1979, p. 2; RELATÓRIO..., 1896/1995).

Enfim, podemos dizer que frei Carlo gerenciou a construção de um projeto híbrido, isto é, de certa forma alinhado com experiências de períodos anteriores, como a criação de uma colônia que lembraria em alguns aspectos os aldeamentos do Império que, diga-se de passagem, não deram certo com os capuchinhos. Porém, ele também não estava alheio às novas tendências de educação formal para os ameríndios, em especial, na modalidade de internato, que despontavam desde o Segundo Império.

No entanto, grande parte do plano carlisiano obteve resultados nefastos na Missão de Alto Alegre, confirmando o fiasco que Carlo temia no relatório de 1895 e a crítica de missionários como frei Mansueto da Peveranza, um dos conselheiros da Missão do Maranhão (discreto ancião), que não apostava na redução dos povos indígenas e muito menos na institucionalização de suas crianças. Segundo relatou o próprio frei Carlo, quando escreveu ao frei Paolino de Verdello, recém-eleito provincial da Lombardia, Mansueto havia lhe escrito uma carta onde dizia: “não estamos no devido caminho” (COLEÇÃO..., 1896, fl. 65).

Para Mansueto, o ideal era adotar o método tradicional de missão ambulante, que consistia na prática de o capuchinho perambular e residir nas aldeias e lá instruir os indígenas na religião e nas letras como foi feito, por exemplo, no Rio Tapajós (NEMBRO, 1957; CASTRONALVAS, 2000). Entretanto, nem mesmo Mansueto podia escapar da representação de missão indígena dos capuchinhos lombardos, que pode ser entendida no quadro de pensamento do século XIX, que juntava as noções de catequese e civilização à prática de mudar os costumes dos indígenas a qualquer preço. “Tal era, sem dúvida, a grande lição que a experiência jesuítica transmitira aos seus sucessores. Assim, para catequizar e civilizar índios eles concluíram que teriam que agir no sentido de desestruturar suas sociedades e suas culturas” (GOMES, 2002, p. 267).

O CALCANHAR DE AQUILES DA MISSÃO

Como vimos anteriormente, naquele ano de 1896, já organizados os trabalhos em Barra do Corda, os capuchinhos articularam imediatamente a expansão de sua missão, escolhendo um lugar chamado Alto Alegre, que era uma área rural conhecida como “São Bernardo das Selvas”, abrigo de viajantes, e “oásis das selvas” (MONZA, 1908/2016, p. 49).

Para isso, eles

[...] compraram, com a ajuda do Governo Estadual, uma gleba de 36 km2 situada a igual distância das cidades de Grajaú e Barra do Corda e vizinha às aldeias de Cana Brava, Côco, Jenipapo, Crocagés, Manu e várias outras. Entretanto, segundo Sidney Milhomem [entrevistado pela equipe do Instituto de Pesquisas Econômicas], essa terra fazia parte do território tradicionalmente ocupado pelos índios, seus legítimos donos, que, vivendo em regime de propriedade comunal, haviam permitido a instalação, em suas terras, de Raimundo Ferreira de Melo, conhecido por Raimundo Cearense que, abusando da concessão que os índios lhe haviam feito, vendeu aos frades um direito de posse inexistente, iniciando assim um conflito que se agravou em nossos dias. (INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS E SOCIAIS - IPES, 1981, p. 27)

Nesse lugar, os capuchinhos fundaram a Colônia de São José da Providência (mais conhecida como Colônia de Alto Alegre), que inicialmente agregava entre 70 e 150 pessoas não indígenas e mais algumas famílias Tentehar e Timbira de aldeias próximas. Em termos econômicos, essa colônia alcançou certo sucesso, pois em apenas quatro anos tornou-se um canteiro de obras com o cultivo de algodão, arroz, cana, feijão, mandioca, milho, etc., graças às boas condições da terra, ao investimento tecnológico dos capuchinhos e ao empenho dos indígenas que “aprendiam com desenvoltura e inteligência” (ORDEM..., 1951, p. 23). Logo foram produzidos açúcar, rapadura e farinha que eram vendidos para os mercados vizinhos e usados no consumo interno.

Mas é preciso questionar qual era o custo desse sucesso para a população indígena. Tal como os aldeamentos dos jesuítas do tempo colonial, analisados por Baêta Neves (1978), tratava-se de um local previamente escolhido para agrupar indígenas independentemente de sua etnia, promovendo a racionalização de suas moradias, trabalho, roupas, uso do corpo e do tempo segundo padrões não indígenas. Tudo isso gerava muita insatisfação e fugas constantes, as quais eram alvo de punição e coerção por parte da guarda indígena constituída pelos capuchinhos.

A Colônia de Alto Alegre tinha ainda outro agravante: a exemplo dos antigos aldeamentos da missão capuchinha no Segundo Império, ela era aberta para as famílias cristãs de Barra do Corda, prática que foi evitada pelos jesuítas e muito criticada pelos estudiosos do período imperial no sentido de ter sido muito nociva à convivência entre indígenas e não indígenas, acarretando uma série de prejuízos para os índios, tais como a contaminação por muitas doenças. Mais adiante mostraremos que a epidemia de sarampo que assolou a colônia ocasionou muitas mortes, provavelmente, devido ao fato de eles “estarem vivendo junto com o pessoal civilizado e aí eles se contaminaram também da doença, aí eles julgaram que aquilo talvez fosse uma coisa de propósito, porque eles nunca tinha visto ninguém deles doente”, relatou Reginaldo Gomes de Sousa para os pesquisadores do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes) (1981, p. 80).

Os mesmos padrões civilizatórios da colônia seriam reproduzidos no internato feminino. Para garantir o cumprimento dessa meta, conforme já acenamos, os capuchinhos lombardos chamaram suas patrícias, as capuchinhas de Gênova, promovendo assim a divisão sexual do serviço missionário. O aspecto positivo é que essa ação pode ser considerada uma feminização da missão, colocando as capuchinhas italianas na direção de um importante empreendimento, mas sabendo que na estrutura eclesiástica elas não teriam o poder do padre. Mesmo assim, como as religiosas representavam uma mão de obra de grande utilidade social para a missão, o instituto de meninas índias só foi inaugurado oficialmente quando elas chegaram em Alto Alegre, em 1899.

Sob o comando geral dos capuchinhos lombardos, as capuchinhas de Gênova organizaram o internato das meninas com o mesmo formato sociopedagógico do instituto masculino de Barra do Corda, a começar pelo questionável método de recrutamento que era executado durante as visitas às aldeias, como indicam os textos apresentados a seguir.

Estes [frades e freiras], por intermédio dos índios cristianizados que se mostravam mais leais, retiravam dos braços das mães as criancinhas ainda novas. É o que contam moradores de Barra do Corda e os próprios índios velhos, que foram testemunhas das trágicas ocorrências. Dizem que houve índias que enlouqueceram, entrando pelos matos, chorando a perda dos filhos que os frades enclausuravam no convento e nunca mais apresentavam aos pais.

Muitas racharam os peitos, dizem os índios, porque os frades levaram os culumisinhos que ainda mamavam. Referiu-me um que seu pai mudou-se dali para a mata do Pindaré para que os frades lhe não tomassem os filhos. (ABREU, 1931, p. 220)

Outra versão crítica da metodologia do recrutamento de crianças é de Mundico Carvalho, Tentehar da Aldeia Olho D’Água, que chegou a conviver com parentes afetados pelas sequelas da perseguição policial pós-rebelião (portavam fragmentos de bala no corpo).

Botavam um empregado deles, que era o Atanásio, que era o carpinteiro dos padres, botavam ele assim pra ir nas aldeias. Levavam uma porção de coisa, cigarro, essas coisas assim que eles levavam. [...]. Entonce o índio quando vê caraí [branco] chegar assim, na aldeia, ajunta criança que... Atanásio pegava, apartava os indiozinhos, enganando, até quando terminasse. Os que queriam ir, ele levava pra ele. “Tem tanto indiozinho na aldeia, fulano, fulano, fulano, assim, sim...” Mas ele conseguia, tomando à força, à força. Ele andou acolá numa aldeia na beira do riacho. Enjeitado, lá, os índios quase iam matando logo ele. Ele de lá saiu com uma flecha, com uma ponta de faca engatada na ponta de uma flecha, tá vendo, escapou porque a flecha, quando largou a flecha, pegou foi no esteio da casa. De lá, ele correu, mas já vinha com bocado de indiozinho. [...]

Agora, uma índia descansava, ele apanhava a criança molinha e levava prá lá. Lá, nem pai, nem mãe não via mais aquela criança. (IPES, 1981, p. 111-112)

Temos ainda uma relevante narrativa registrada pelos próprios missionários de Alto Alegre no seu livro de crônicas, que, infelizmente, não foi encontrado no arquivo capuchinho de São Luís.

Na Cronaca da missão de S. José da Providência, lê-se que quando a comitiva [levando a Madre das capuchinhas que estavam em Alto Alegre para a cidade de Barra do Corda a fim de embarcar para São Luís e retornar à Itália] chegou perto de uma aldeia, os índios, vendo toda aquela gente, “imaginaram que fosse um assalto para roubar os meninos e as meninas” para uma educação forçada. “Por isso, as mulheres com os seus filhos fugiram, aos gritos, embrenhando-se na mata”. Algum tempo mais tarde, o chefe da aldeia, cujo filho havia sido perdido durante um dia naquela ocasião, armou uma cilada ao frei Salvatore, um dos missionários... (TOSO, 2002, p. 239)

Nesses contextos, podemos vislumbrar que o internato de Alto Alegre, além de ensinar a ler, escrever e contar (ensino rudimentar), agregava meninas de variadas etnias para modificar seus costumes, uniformizar suas roupas, racionalizar seu tempo e, supostamente, apagar os saberes indígenas transmitidos pelas comunidades tradicionais. Para isso, as freiras ocupavam-se da etiqueta cristã e ensinavam como vestir-se com roupas de mulheres brancas, ler, rezar e comportar-se como elas, além do trabalho doméstico e de agulha que fazia parte da condição de mulher não indígena, um serviço naturalizado nos bastidores do internato, mas muito diferente do cotidiano feminino nas aldeias (ZANNONI, 1998a). As evidências desse tipo de educação podem ser apreendidas nos excertos de cartas das religiosas de Alto Alegre enviadas para suas colegas italianas (ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 1951; TOSO, 2002).

Esse trabalho de homogeneização cultural era facilitado pela socialização entre meninas indígenas e meninas cristãs pobres e da elite local, que eram “enviadas pelos pais para ficarem com as freiras em regime de internato para fins educativos”, uma vez que muitas famílias almejavam educar suas filhas segundo os princípios católicos, mas não tinham nenhuma opção naqueles interiores do Brasil (GOMES, 2002, p. 267). Além disso, havia outra intenção subjacente na constituição desse internato feminino: a de preparar as meninas para preferencialmente casarem-se com os meninos formados pelo Instituto de Índios de Barra do Corda, independentemente de suas etnias, a fim de constituírem famílias cristãs para preservarem os ensinamentos capuchinhos.

Muito distantes da pedagogia nativa, freiras e frades acreditavam que tudo corria bem na Colônia de Alto Alegre, até porque já havia aproximadamente 82 alunas no internato. Contudo, outros acontecimentos imprevistos acabaram dificultando a missão, como uma epidemia de sarampo que levou muitas crianças a óbito nos dois institutos, afetando sobremaneira o desenvolvimento dessas instituições. Nas narrativas, as reações indígenas mais fortes são dos pais das meninas de Alto Alegre.

Na Colônia estoura uma epidemia dizimando as crianças em poucos dias.

“A nossa casa dentro de poucas horas encheu-se de caboclos - conta Irmã Inez [...] - e todos para ver a própria filha. Para sossegá-los, já que receávamos uma revolta, tivemos que hospedar e manter por dois dias e duas noites as mães das meninas. A nossa residência transformou-se numa verdadeira aldeia; cantavam, bradavam, choravam e nós correndo para junto de uma ou de outra e acariciando-as para que não nos levassem as crianças...”.

Somente após ingentes esforços e orações, as Irmãs readquiriram a confiança dos selvagens. E eis reiniciam-se as viagens nas aldeias e são tão mal recebidas que pedem a suspensão temporária de tais visitas às aldeias, pois havia entre os índios quem chorasse e quem ameaçasse. (ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 1951, p. 36, grifos nossos)

Como visto no fragmento anterior, desse dia em diante o clima de hostilidade e desconfiança se acirrou ainda mais na relação das famílias indígenas com os/as religiosos/as. Seja por causa desse episódio ou de outro qualquer relacionado à morte infantil, o povo Tentehar reteve e recontou muitas histórias a respeito da maneira como frades e freiras procediam em relação às crianças. Podemos conjecturar que, nos processos de interpretação, transmissão e recriação desses acontecimentos, a camada básica da narrativa preservada ao longo dos tempos é a história de que os/as missionários/as não estavam tratando bem as crianças indígenas e elas estavam morrendo. Como isso acontecia fica por conta da criatividade geradora da tradição oral, como apontam os depoimentos apresentados a seguir.

O primeiro relato é do estudo etnográfico de Mércio P. Gomes (2002, p. 269): “Anos depois, os Tenetehara relatavam angustiados, e sem se dar conta de que houvera uma epidemia, como as crianças da missão iam morrendo e as freiras simplesmente iam jogando seus cadaverezinhos num poço seco”. Em outro momento, inquirindo a respeito das causas do conflito de Alto Alegre, o mesmo autor (p. 271) recolheu a seguinte versão: foi um “meio de expulsar os capuchinhos de suas terras, pois estes estavam irresponsavelmente tirando os filhos ainda mamando do colo das mães e levando-os para a missão, só para depois, quando morriam, simplesmente os atirar no fundo de um poço”.

Em nossa pesquisa, a liderança do Bacurizinho narrou uma versão muito próxima das capturadas por Gomes, mas acrescentando a intervenção de Cauiré (Caboré), o que nos faz conjecturar que ele promoveu um boato carregado de emoção que motivou a aproximação entre os indígenas e o entusiasmo para lutar, o que está na base da formação de um movimento de contestação, conforme a análise de Castells (2013) empregada mais adiante para tratar do levante dos indígenas.

Os padres pegavam os meninos e falavam que era pra levar pra estudar no colégio. Falavam para os pais dos meninos que estavam evangelizando as crianças; separavam uma casa só para menino e outro lugar só para menina. Os índios pensavam que eles estavam educando mesmo, mas não era não.

Quando adoecia um, aí pegavam e jogavam prá cima e metiam a espada assim e aí o menino caia em cima da espada. Era assim que eles estavam fazendo. [Ou] Faziam um buraco no quintal e pegava menino e botava lá.

Ai depois quando descobriram que eles não estavam evangelizando, eles estavam era matando os filhos, aí que eles foram sabendo que não era bem assim.

Quem descobriu mesmo que as crianças indígenas estavam morrendo foi esse Caboré que estava há muito tempo com eles em Alto Alegre. Aí ele contou para os parentes. Por isso que os pais das crianças se juntaram e foram lá. Assim que começou esse negócio [conflito]. (Taurino de Sousa, liderança do Bacurizinho)

As hipóteses para suposto comportamento dos frades e freiras também são lançadas por outra liderança, evidenciando o apreço que os Tentehar têm por suas crianças, que devem ser educadas na família extensa e com a ajuda de toda a comunidade indígena.

Essa briga aconteceu assim: quando a equipe chegava pra fazer a captação dos índios pra levar pra evangelizar, aí tinha deles que se escondiam, acho que era por isso que eles ficavam é com raiva. Chegava no lugar onde era pra pegar e não encontrava com ninguém, ia pra outro lugar e não encontrava com ninguém. Tinha vez que eles encontravam com alguns e levavam e aí eles ficavam animados. Mas só que eles estavam levando não era para evangelizar.

[A criança] Não fazia parte de coisa nenhuma deles. Não é filho, nem parente, nem nada. Se levar uma criança pequena que ainda está mamando... mãe que não é mãe não tem aquele zelo como a mãe tem. Era por aí que as coisas aconteciam... (Alderico Lopes Filho, liderança do Bacurizinho)

Conforme analisam os especialistas, os indígenas “não encontravam significado naquele tipo de educação, e estavam insatisfeitos por estarem separados de seus filhos” (ZANNONI, 1998b, p. 102). Em estudo pioneiro, Fróes Abreu (1931, p. 220-221) inferiu que:

Parece que havia pressão sobre os índios, na ânsia de obter grande número de crianças no convento. Fosse pelo desejo de dar luzes a grande número de almas, fosse porque a subvenção oficial seria proporcional ao número de educandos, o fato é que a catequese estava descontentando os índios, mesmo aqueles que voluntariamente levavam seus filhos ao convento, porque, quando dali a dias queriam levá-los novamente à aldeia, os frades opunham-se a isso.

No caso específico do povo Tentehar, a questão do confinamento das meninas parece ter sido um dos pivôs dos desentendimentos com os frades. Nesse sentido, é emblemático o relato de Luís Costa, uma das testemunhas do processo eclesiástico aberto após a rebelião de Alto Alegre, cuja documentação também não foi encontrada no arquivo capuchinho.

Manuel Justino um dos chefes das Aldeias Guajajaras residentes no Alto Alegre, também dirigiu-se ao Frei Renaldo [antigo diretor da Colônia Alto Alegre, foi assassinado durante a rebelião] e pediu a este haver sua filha que estava recolhida no Convento e Frei Renaldo lhe respondeu que não só não consentia em realizar-se o que lhe pedia como estava disposto a proibir que sua mulher fosse continuamente levar comidas, frutas a mesma filha. (DOCUMENTOS..., 1901-1903)

Embora a educação Tentehar seja marcada por uma diferença de gênero, com a afirmação da superioridade masculina sobre a feminina que pode ser observada em diversos rituais (primeiro parto, apresentação da criança à comunidade, iniciação feminina/masculina), é notável a importância da mulher na organização social, econômica e política desse povo.

Nesse sentido, um marco importante é o ritual da primeira menstruação, quando a menina fica reclusa em uma “tocaia” (dentro da própria casa) durante cinco a sete dias. “Esse é um período cercado de tabus, pois acredita-se que a moça está vulnerável a todo tipo de perigo” (ZANNONI, 1999, p. 22). É também um período de muitos cuidados, materializados em variados gestos simbólicos: a menina não pode banhar-se, mas é higienizada pela avó que a aperta com as mãos, a começar pelas nádegas, a fim de que ela crie força para ser uma futura mãe. A avó também aperta sempre as pernas da menina (uma contra a outra) para que o fluxo menstrual seja interrompido e ela nunca tenha problemas de útero.

Ao sair da tocaia, no último dia de reclusão, a menina vai tomar um banho de purificação e a avó recita a fórmula: “minha filha, vou te banhar com a água da ‘mãe d’água’ para que ela possa te proteger” e vai com a outra mão apertando todo o corpo, e prossegue: “vai ser uma menina formosa, forte e sadia” (ZANNONI, 1998a, p. 89).

Terminada a reclusão, a menina-moça passa pelos rituais de iniciação que duram até um ano, sendo instruída por suas avós sobre as mudanças do corpo e a função de uma mulher. A última etapa desses rituais é a apresentação da menina-moça à comunidade, conhecida como Festa do Moqueado.7 Desse momento em diante ela poderá casar-se e procriar (ZANNONI, 1998a, 1999).

Do ponto de vista socioeconômico, depois de passarem pelos rituais de iniciação, as meninas-moças podem constituir uma família extensa, trazendo seus maridos para dentro do grupo familiar de seus pais, uma vez que a residência é uxorilocal (o homem se fixa junto do grupo da mulher). Desse modo, as mulheres contribuem com o sustento da sua família de origem, pois atraem mais trabalhadores masculinos e estes aumentam o poder político e econômico da família à qual passam a pertencer.

A organização social dos Guajajara [Tentehar] tem como alicerce a família extensa. Esta constitui-se de famílias nucleares, cujo chefe tem sob seu domínio suas filhas e sobrinhas. Isto porque a mulher na sociedade Guajajara tem um papel fundamental na manutenção da cultura. É a mulher que atrai para dentro do grupo familiar homens, os quais passam a fazer parte da família do pai pelo casamento, uma vez que o marido passa a residir na casa de sua esposa e a prestar serviços a seu sogro. Dessa maneira, quanto mais genros tiver um chefe de família extensa, mais forte será economicamente e, consequentemente, será uma família politicamente poderosa. (ZANNONI, 1998b, p. 104)

Como podemos inferir, a prática de capturar e manter as meninas reclusas em regime de internato em Alto Alegre “acabaria por desestruturar a organização social dos Guajajara [Tentehar], uma vez que essas meninas acabariam por aprender novos valores e novas técnicas estranhas à sua cultura” (ZANNONI, 1998b, p. 104). Isso também agrediria a cosmovisão desse povo, cujo universo religioso é povoado de seres espirituais, em especial os espíritos da floresta e das águas, que podem beneficiá-lo ou puni-lo caso não sejam seguidas as regras da comunidade, entre as quais a prática do ritual de iniciação feminina. Ou seja, uma menina precisa passar pelo ritual de iniciação à vida de mulher, senão fica doida, adoece ou pode até morrer. Já uma menina que passa pelos rituais de iniciação torna-se uma mulher forte e saudável, livre de qualquer risco de vida (ZANNONI, 1995).

Sendo assim, o tipo de educação que os Tentehar queriam para suas meninas divergia muito da educação capuchinha, constituindo certamente uma das motivações que os levaram a liderar o repúdio não somente à Colônia de Alto Alegre, mas também ao internato feminino que lá funcionava, retirando suas filhas e parentes e destruindo a missão naquele lugar.

REBELIÃO: SINAIS DO CONTRAPODER INDÍGENA

Antes de analisar alguns aspectos da rebelião de Alto Alegre, vejamos uma descrição desse evento à luz da documentação examinada. Como mencionado na introdução, a revolta teve início no amanhecer de 13 de março de 1901 e prosseguiu durante alguns meses. Foi articulada por algumas lideranças Tentehar que conseguiram reunir centenas de guerreiros de várias famílias extensas.

Depois do primeiro ataque, que culminou com a morte de religiosos/as, funcionários e famílias cristãs que viviam na Colônia de Alto Alegre, os indígenas ficaram no comando da referida colônia. Simultaneamente, parte dos rebeldes estendeu o ataque para fazendas das imediações e ocupou esses lugares. Em todas essas ocupações, eles usufruíam dos bens materiais encontrados, especialmente produtos agrícolas, mas o objetivo principal era resgatar as terras que outrora pertenciam a seus ancestrais (ZANNONI, 1998a).

Eles também detiveram algumas meninas cristãs, que residiam no internato da colônia, a saber: Benta Mourão, Sindona, Thereza, Petronilia Ribeiro e sua irmã Úrsula. Essas meninas permaneceram na companhia deles ora na colônia sitiada, ora nas aldeias ou matas quando eles se dispersaram, com exceção de Úrsula, que acabou sendo resgatada pelos militares durante uma operação na Aldeia de Cana Brava, a qual provocou a debandada dos indígenas (O NORTE, 04/05/1901, 11/05/1901, 22/06/1901, 29/06/1901, 13/08/1901). Mais tarde, os capuchinhos registraram o falecimento de Úrsula, ocorrido em 22 de abril de 1907: “com 18 anos de idade mais ou menos, sem assistência religiosa e foi enterrada no cemitério civil desta cidade. Esta é a menina que foi salva do Massacre de Alto Alegre” (ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 1894-1925, n. 18).

Para garantir sua segurança e a posse desses territórios, os indígenas controlavam as saídas e entradas de Alto Alegre, paralisando o serviço público (as comunicações postais foram cortadas) e o comércio (a navegação do Rio Grajaú foi interrompida) e provocando a migração da população que vivia em regiões próximas.

Com o tempo, acabou o estoque de alimentação e munição das armas de fogo (embora utilizassem também as chamadas “armas brancas”), fazendo com que os indígenas ficassem vulneráveis ao ataque militar. Sendo assim, após alguns enfrentamentos com a força policial, as lideranças do movimento deixaram Alto Alegre e se refugiaram nas matas, aldeias ou nas casas de famílias não indígenas da região de Grajaú. E as suas famílias e outros parentes que moravam nas aldeias circunvizinhas de Alto Alegre, com medo da repressão policial, se dispersaram para as regiões dos rios Grajaú, Mearim, Zutiwa e Gurupi.

Os militares montaram então um quartel em Alto Alegre e passaram a patrulhar as matas e aldeias para capturar as lideranças do movimento. Nesse contexto, o movimento indígena se dividiu e restou apenas o grupo mais ligado a João Caboré, considerado o principal líder da revolta. Desse grupo, alguns foram presos, outros se entregaram. Inexplicavelmente, vários deles foram encontrados mortos na cadeia de Barra do Corda.

Para analisar esses episódios, inicialmente vamos recorrer às questões trazidas por Castells (2013), que, em grande medida, servem para se pensar a rebelião de Alto Alegre: como os indígenas se constituíram enquanto grupo revoltoso? Quais eram seus valores e perspectivas de transformação social? Na esteira teórica do autor mencionado, podemos discutir essas questões a partir do conceito de poder e contrapoder, partindo do pressuposto de que “relações de poder são constitutivas da sociedade porque aqueles que detém o poder constroem as instituições segundo seus valores e interesses” (CASTELLS, 2013, p. 3), como vimos no caso do frei Carlo, que traçou um plano bem definido para trabalhar com os indígenas. Esse poder pode ser exercido por meio da coerção e/ou da manipulação simbólica, como fizeram os capuchinhos, tentando “construir significado” na mente dos indígenas, embora sem sucesso entre a maioria dos povos residentes na Colônia de Alto Alegre ou contatados nas aldeias de Barra do Corda.

Além disso, os missionários subestimaram a capacidade de os indígenas se rebelarem massivamente contra eles, optando por não interpretar criticamente os pequenos sinais de resistência manifestados no dia a dia da convivência com esses povos, tais como o fato de eles deixarem de frequentar sua casa/internato; sem contar as tentativas de ataque de alguns indígenas, que foram enfrentadas na colônia e durante as visitas às aldeias (ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 1951; MONZA, 1908/2016).

Em Alto Alegre, o contrapoder foi materializado em uma articulação que conquistou a adesão de uma rede de aldeias, a partir de uma comunicação feita corpo a corpo, aldeia por aldeia, provavelmente contando muitas histórias de dominação e exploração dos indígenas e repetindo ideias de luta e libertação de forma circular, algo típico do estilo desse povo. As evidências sobre as origens desse movimento podem ser lidas nos noticiários da imprensa local, que deu ampla cobertura para a chamada “hecatombe” de Alto Alegre e suas expedições militares.

Comunicando entre si, estabeleceram uma corrente de transações neste sentido entre os diversos aldeamentos que demoram nas margens dos rios Grajaú e Mearim e na extensa região inculta que se estende dos pontos ribeirinhos às vastas matas de Gurupi, Monção e Pindaré. Diversas tribos, divididas em numerosas aldeias, dominam nesta vasta zona, completamente desconhecida de gente civilizada ou cristã.

Entre os índios de maior confiança dos frades contavam no Alto Alegre João Caboré, Manoel Justino e Cadete os quais, se achando de posse de todos os costumes e usos de gente civilizada, prepararam o movimento.

Alguns destes sabem todos os manejos das armas de repetição e estiveram nos entrincheiramentos que se fizeram ultimamente em Grajaú. (O NORTE, 23/03/1901, p. 1, grifos nossos)

Na mesma linha de Castells (2013), podemos inquirir porque uma pessoa ou mais de uma centena delas decidiram aderir a um movimento arriscado, que certamente seria alvo de muita punição. Uma possível resposta é que, na base do movimento, devia haver um conjunto de motivações coletivas e individuais que alimentavam as lutas e reivindicações. As motivações coletivas, ao que indicam as fontes consultadas, almejavam romper com a dominação na colônia e no internato feminino, assim como reconquistar o direito à posse da terra de Alto Alegre e circunvizinhança, fazendo as aldeias combaterem unidas em torno de uma causa comum.

Mas havia também motivos individuais, como a indignação de Cauiré (Caboré), que foi castigado e até retido pela guarda indígena da Colônia de Alto Alegre porque contraiu uma segunda união não permitida pela doutrina cristã (IPES, 1981). Gomes (2002, p. 269) chega a comentar que o cronista da missão escrevera que “Caboré foi acorrentado no porão do prédio principal, ‘ora pelos braços, ora pelos pés, ora pelo pescoço’”. Poderíamos citar muitos outros casos de insatisfação pessoal contra as ordens capuchinhas no dia a dia da colônia, interpretados pela narrativa da Ordem como sinais de ingratidão dos indígenas (MONZA, 1908/2016).

Em suma, os principais interesses e objetivos do movimento eram resgatar as meninas para educá-las segundo a tradição e reaver a posse de suas terras em Alto Alegre e redondeza. Os assassinatos de frades, freiras, agregados e vizinhos da missão, assim como a destruição de equipamentos e ferramentas agrícolas da colônia e o ataque aos fazendeiros e seus familiares, ficaram por conta da grande indignação que acometeu esse povo no momento da revolta. É como diz Zezinho Mendes Guajajara em seu depoimento: “não era para ser desse jeito, mas como não tinha outro jeito... aí aconteceu...”.

Podemos novamente recorrer a Castells (2013) para entender melhor a motivação e a atitude de cada indivíduo envolvido na rebelião, bem como o sentido da ação coletiva do movimento indígena. Para o autor, que trabalha com os pressupostos da teoria da inteligência afetiva, os movimentos sociais são emocionais (no plano individual) e seu big bang acontece quando a emoção dos indivíduos se transforma em ação. Nessa perspectiva, as emoções mais relevantes para a mobilização social e o comportamento político são o medo (afeto negativo) e o entusiasmo (afeto positivo). Esses afetos, por sua vez, ligam-se aos sistemas motivacionais de aproximação ou evitação.

Quando os indivíduos estão mobilizados para atingir um determinado objetivo, aproximam-se e entusiasmam-se pela causa perseguida, sendo afetados também pela perspectiva de esperança e futuro. Mas, para que surjam essas emoções positivas, eles precisam superar a ansiedade (resultante da evitação), que é uma emoção que gera o medo e tem um efeito paralisante. “A superação da ansiedade no comportamento sociopolítico frequentemente resulta de outra emoção negativa, a raiva” (CASTELLS, 2013, p. 10).

Todas essas premissas podem ajudar a compreender o conflito de Alto Alegre, pois os Tentehar e outros que se juntaram a eles podem ter superado a ansiedade e o medo com a raiva, algo típico do comportamento sociopolítico segundo a análise do autor citado. Então, movidos pela raiva, que aumentava à medida que eles tinham a percepção de que uma ação injusta ocorria na colônia, no internato e na circunvizinhança, identificaram nos/as capuchinhos/as, cristãos e outros não indígenas os agentes responsáveis.

Evidentemente, o preço da rebeldia custou bem caro aos indígenas. Prova disso é a perseguição policial que realizou várias expedições de desocupação de Alto Alegre e caça aos líderes do movimento, que foram bem divulgadas pelo jornal O Norte e reproduzidas no Diário do Maranhão. Essas notícias, que carregaram a tinta na descrição dos estragos causados pelo ataque dos indígenas, trazem nas suas entrelinhas vestígios de violência militar. Lidas nessa ótica, as fontes jornalísticas podem revelar muitos indícios sobre a truculência policial empregada contra os povos indígenas, que pode ser entendida como exercício do poder por meio de coerção e intimidação, mecanismo essencial de imposição da vontade do Estado para recuperar o controle e a ordem no interior do Maranhão.

Um tanto ambígua e contraditória foi a posição de João Gualberto Torreão da Costa, governador do Maranhão, que recomendou às expedições não atacarem os indígenas, pois estava convencido de que em pouco tempo eles voltariam naturalmente para os seus aldeamentos e à sua vida normal, portanto, não havia necessidade de enfrentá-los. Todavia, se Torreão da Costa, de um lado, demonstrava certo protecionismo para com os indígenas, de outro lado, financiou o armamento policial desde a primeira hora do conflito, chegando a ordenar, em telegrama publicado pela imprensa, que comandantes militares de outras cidades se dirigissem até Barra do Corda, apoiando também o recrutamento de voluntários para engrossar as tropas militares (DIÁRIO DO MARANHÃO, 23/03/1901).

Na contramão, uma voz que se pronunciou a favor dos indígenas e por esse motivo recebeu muita crítica foi a de um pastor citado na historiografia capuchinha, que se fez ouvir durante a despedida da segunda expedição militar, celebrada ao som da banda de meninos do Instituto de Índios de Barra do Corda.

[...] ouviu-se uma voz discordante, uma voz de desencorajamento, uma voz de dissuasão, uma voz de desaprovação, uma voz que dizia ser uma crueldade marchar contra inocentes e inofensivos selvagens [...] outra coisa não haviam feito senão livrar-se de uma escravidão indevida, proclamar a própria liberdade e o próprio pensamento. Era a voz de um pastor protestante. (MONZA, 1908/2016, p. 114)

É difícil dizer ao certo quem era esse pastor, pois seu nome não é mencionado no texto de Monza (1908/2016). Sabemos apenas que na época havia um “evangelista aleijado” - assim denominado pela missionária Eva Mills [19--] - que residia em Barra do Corda e fazia o trabalho de um pastor-leigo (não ordenado), sendo descrito como um grande pregador. Trata-se do cearense João Batista Pinheiro, cujo exemplo de vida e pregação acabaram fazendo surgir uma pequena igreja evangélica em Barra do Corda, agregando muitas famílias que passaram a residir em uma colônia conhecida como “Centro dos Protestantes”, alvo de crítica na documentação capuchinha.

De qualquer maneira, essa “voz discordante” não deteve as perseguições que duraram meses, fundamentadas na justificativa de que era uma força armada defensiva e não ofensiva. Mas os indígenas só foram derrotados quando o comando policial conseguiu reunir um grande efetivo, contando, inclusive, com o auxílio dos Canela-Apanyekra, que viviam pacificamente mas tinham uma organização guerreira bem estruturada e mantinham um forte espírito de rivalidade com os Tentehar (GOMES, 2002). Vale mencionar que uniram-se a eles alguns Tentehar que não aderiram ao movimento indígena.

Todos esses episódios, especialmente a fuga para escapar da perseguição policial e o medo do povo Canela-Apanyekra, foram contados e recontados durante muito tempo, afetando a mobilidade de Acelina, Zezinho, Alderico e, certamente, de muitos outros parentes.

Eu não conheci meu avô Cauiré, nem minha mãe chegou a conhecer bem o pai dela porque logo depois do conflito eles pegaram ele e levaram para Barra do Corda. Naquele tempo, meu avô avisava o pessoal das aldeias que vinha perseguição, alguns não acreditavam e eram pegos. Meus parentes passaram a vida escondidos, e nós também, com medo do pessoal. Iam sempre para mais longe. Tinha um cacique que vigiava e sempre avisava para nós irmos mais para as matas. (Acelina Mendes Guajajara)

A família do meu avô Cauiré veio prá cá e se instalou aqui, mas o resto da família ficou em Alto Alegre. Eu tenho vontade de conhecer o resto do pessoal que ficou em Alto Alegre. Desde que aconteceu o conflito nós nunca mais fomos para lá. Porque a mãe falava que lá era perigoso. “Lá o pessoal era tudo... Por isso eu vim embora de lá.” [dizia ela] Teve uma das primas dela que foi a Alto Alegre e quebrou a perna e lá foi morta... Os outros correram, um veio para cá e outro seguiu para o rumo da Língua Comprida. (Zezinho Mendes Guajajara)

Eu não sei por qual milagre que os irmãos do Zezinho seguiram no rumo do Arame [atual Terra Indígena Urucu/Juruá]. Eles não andavam assim não. Ficavam na aldeia deles. Tinham muito medo dos Canela, que andavam com um feixe de flechas nas costas... (Alderico Lopes Filho)

Nossos antepassados contam que, depois do massacre, uma vez iam falar com o patrão na cidade, que era dono de embarcação, para combinar o serviço de rotina. Mas, na estrada, viram um magote de padres e policiais misturados com outros índios. Daí fugiram pela mata... A sobrevivência de nossos antepassados e das coisas que eles tinham, como os territórios indígenas, foi uma luta. (Alderico Lopes Filho)

Ao todo, foram presos mais de 30 indígenas em 1901. Mas, em 1905, só 15 foram a julgamento, pois os demais não resistiram e faleceram na prisão. A imprensa lamentou o resultado do julgamento, que absolveu os indígenas implicados na rebelião por serem considerados “menores” (incapazes de imputação) conforme previa o Código Penal da época (MONZA, 1908/2016). Mas a imprensa não explicou a causa das mortes dos presos, relatando apenas que a de Cauiré (Caboré) foi alvo de suspeitas infundadas, pois ele morreu devido à febre palustre (malária). Enfim, aquele que fora “mais cruel que uma onça!”, escrevem os capuchinhos no livro de registro dos “finados conhecidos em Barra do Corda”, terminou os seus dias de luta (ORDEM DOS FRADES MENORES CAPUCHINHOS, 1894-1925, n. 21).

Até hoje as lideranças do Bacurizinho recontam essa história e lamentam a morte de seus antepassados na condição de prisioneiros, tecendo suas próprias interpretações, como fez Alderico: “quando chegaram em Barra do Corda foram morrendo um por um, um atrás do outro... eles morreram porque os parentes dos não indígenas que eles tinham matado tinham raiva deles”.

OBSERVAÇÕES FINAIS

Finalmente, as ações empreendidas na rebelião de Alto Alegre podem ser mais bem entendidas se discutirmos as questões de ordem étnico-cultural. Para isso, vamos recorrer à interpretação de Zannoni (1998a), pois seus estudos relacionam conflito e cultura Tentehar, situando os eventos de Alto Alegre no âmbito dos conflitos interétnicos.

Para Zannoni (1998a, p. 254), o conflito é o “motor cultural e regulador das relações sociais” da sociedade Tentehar, o qual “gera o dinamismo e restabelece a coesão sociopolítico-econômica” desse povo. Nessa direção, ele observa que o conflito está presente nas várias dimensões do cotidiano Tentehar, a começar pela vida religiosa.

Nessa, os Tentehar mantêm sempre uma relação de conflito com seus heróis culturais e espíritos, tendo como referência a narrativa do emblemático itinerário dos gêmeos Mayra-ywa e Mukuwra-ywa, os quais tecem relações conflitivas nas suas histórias sobrenaturais e parecem representar a jornada de vida de um Tentehar, marcada por muitas provações e sacrifícios. No tocante a espíritos como os da floresta e das águas, o conflito também está presente porque estes podem ser úteis ou prejudiciais para um Tentehar, caso o indígena não respeite as regras culturais de sua comunidade (já acenamos a relevância do ritual de iniciação feminina, cuja não observância pode acarretar muitos males para a menina-moça). Sem contar os espíritos errantes dos mortos, que podem atacar à noite ou na floresta, e os espíritos dos animais, que são dominados somente pelo pajé, cuja função xamânica também é conflitiva, pois a ele são atribuídos tanto competências de cura como poderes de feitiçaria que podem causar doença ou morte (WAGLEY; GALVÃO, 1955; ZANNONI, 1995).

Por sua vez, a vida econômica e a vida política também são permeadas por conflitos e parecem estar imbricadas entre si e articuladas à organização social dos Tentehar. Desde as observações de campo de Froés Abreu (1931), corroboradas por Wagley e Galvão (1955), sabe-se que a unidade mais importante na estrutura social Tentehar é a família extensa, muitas vezes alvo de situações de conflito conforme menciona Zannoni (1995). Para esse autor, o conflito está sempre latente quando uma família extensa acumula bens e sobressai mais do que as outras famílias. Mas, de alguma forma, a questão será resolvida e o nivelamento socioeconômico voltará a reinar na comunidade.8

Na questão política, conflitos semelhantes foram observados quando alguém se projetava como líder principal da comunidade, conseguindo se manter nessa posição apenas durante um certo tempo e, mesmo assim, gerando uma série de problemas com as lideranças das famílias extensas. Isso ocorre porque na cultura Tentehar a liderança mais importante é do chefe de família extensa, legítimo representante político das famílias nucleares a ele ligadas pelo parentesco (os estudos de todos os autores supramencionados chegaram a essa conclusão).

Entre todos esses tipos de conflito, Zannoni (1998a) identifica os eventos de Alto Alegre no âmbito de um dos maiores conflitos nas relações interétnicas vivenciadas pelos Tentehar na região de Barra do Corda. As causas mais profundas desse acontecimento são óbvias: de um lado, os Tentehar nunca aceitaram o confisco de suas meninas no internato capuchinho, impossibilitando a vivência de rituais importantes, como a iniciação da menina-moça, e por conseguinte a ampliação da família extensa; de outro lado, os Tentehar queriam suas terras de volta, seja o território da colônia, sejam os territórios das fazendas ao redor da colônia. No fundo, os Tentehar lutavam contra a colonização e a opressão, enfrentadas desde os tempos mais remotos.

Na primeira invasão que chegou no Brasil veio essa turma que fazia parte da religião. Veio gente da parte da religião e da parte do Estado. Quando chegaram encontraram as pessoas das nações indígenas. Eles viram essas pessoas e falaram que esse povo que foi encontrado nesse lugar era gente igual ao branco, mas só que eles consideravam como um animal qualquer, um bicho, um selvagem do mato.

Daí pensaram: será que não podia ser feito um projeto de captar índio? De evangelização? Eles pegavam os indígenas não era para educar, era interesse capitalista porque era assim, uma cabeça de índio valia mais que uma pedra de diamante. Andavam correndo por aí atrás de índio...

Esse negócio de massacre não iniciou no Alto Alegre, começou lá na primeira invasão do Brasil. De lá para cá que vem esse conflito. (Alderico Lopes Filho)

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1Optamos pela designação Tentehar pois é a mais usada atualmente pelas lideranças indígenas dessa etnia, sendo também adotada pela literatura mais recente, embora muitos estudiosos ainda usem Tenetehara. Trata-se de uma autodesignação que quer dizer “o ser íntegro, gente verdadeira”. No Brasil, o povo Tentehar é mais conhecido como Guajajara, que significa “dono do cocar”, termo provavelmente que lhes foi dado pelos Tupinambá da Ilha de São Luís (GOMES, 2002, p. 47, 49).

2Em meados do século XIX, outro grupo Tentehar iniciou processo de migração do Maranhão para o Pará, instalando-se, principalmente, na porção nordeste do estado paraense. São identificados por Lopes (2015, p. 219) como os “Tembé/Tenetehara”, “ramo ocidental dos Tenetehara”. Esses indígenas foram alvo da política de colonização do governo paraense e, a partir de 1898, uma parte deles foi agregada à Colônia Santo Antônio do Prata, administrada pela mesma equipe de frades capuchinhos que atuaram simultaneamente no Maranhão.

3No original: “Fece una visita alle Aldee degli Indigeni Canelas di Ponto, Mateiros di Mucura e Jacaré e Guajajaras di Catité e della ora dispersa Colonia di Dous Braços, giá fondata e condotta a grande sviluppo dal fu nostro P. Giuseppe da Loro. In tal visita poté Battezzare 18 bambini e moribondi o affidati alle cure di buoni e ricchi cristiani. Ritornó dal suo viaggio di esplorazione sempre piú convinto che, per l’assolutamancanza di sussidi stabili e per la grande ripugnanza che s’infiltró negli Indii non sia piú caso di pensare a colonizzazione come mezzo di conversione, ma che l’único mezzo sia quello di trattarli come parrochiani di Barra do Corda nel cui termine se ne possiamo contare un 5.000, con quelle cautele e disegni che giá furono esposti al Rev. Gnerale in lettera 15 Aprile e con tutti quei mezzi che la grazia di Dio, l’esperienza e l’opportunitá solo possono suggerire nel l’attuazione. Oltre a Mons. Vescovo, che pienamente aprova questo progetto, il Governatore dello Stato, cui P. Carlo diede orale relazione della sua visita lo giudicó piú profícuo dell’antico sistema di colonizzazione e, senza obbligarsi a nulla di determinato, promise il suo appoggio morale e fece sperare anche materiali soccorsi.”

4A princípio, frei Carlo queria autonomia em relação ao governo, ou seja, almejava realizar a catequese dos índios mas sem recorrer ao Estado, acatando a sugestão do bispo do Pará, de aceitar o encargo de uma paróquia próxima das aldeias e, a partir desse lugar socioeclesiástico, trabalhar com os indígenas. Barra do Corda foi idealizada nessa perspectiva (CARVALHO, 2017).

5No original: “Riguardo alla educazione del “caboclos”, giá notei che poco vi era da sperare dal sistema imposto dal Governo Imperiali, piché la evangelizzazione non era libera, né stabile. Pochissimo altresí era il profitto dei fanciulli, rimanendo coi loro genitori poligami e peggio. Quindi il mezzo vero ed efficace é quello di avere i fanciulli e tenerli colllegialmente. In stabilimenti separati dagli adulti; anche civili; ed occupati (oltre che al catechismo assiduo) funzioni religiose e prime lettere, nell agricoltura, arti e mestieri, e senza cambiare le loro abitudini nel mangiare.”

6No original: “Divideró le donne indie e ad educare le fanciulle, mentre se volessimo trattare di questo solo di lontano la gelosia india ci regalerebbe delle frecce. L’única conclusione che mi pare dover essere dell Istituto, che le manda e che monache sieno nostre, della Missione, e una sola cosa com noi. Noi penseremo a mantenerle, a dirigerle, quantum possumus, secondo le regole del loro Istituto, ma devono essere come le Salesiane coi Salesiani.”

7A Festa do Moqueado demandava tempo para a comunidade fazer reuniões de organização da caça e para a avó preparar os enfeites para a moça. No passado, a festa era feita de forma personalizada; na atualidade, é realizada com a participação de todas as moças que menstruam no mesmo ano por conta de vários motivos, entre os quais a escassez da caça e a dificuldade de os indígenas se afastarem do trabalho.

8Zannoni (1995) traz exemplos interessantes de seu trabalho de campo, como histórias de famílias mais abastadas que perderam gado, porcos e galinhas de uma hora para outra sem saber exatamente o que de fato ocorrera, passando a viver nas mesmas condições das famílias da aldeia à qual pertenciam.

Recebido: 07 de Março de 2019; Aceito: 07 de Outubro de 2019

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