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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.50 no.176 São Paulo abr./jun 2020  Epub 18-Ago-2020

https://doi.org/10.1590/198053147066 

ARTIGOS

FORMANDO ENGENHEIROS EM UM LABORATÓRIO DE USINAGEM: CONHECIMENTO, GÊNERO E GAMBIARRA

Daniel GuerriniI 
http://orcid.org/0000-0002-9125-2638

Amanda Yuri Nishiyama de AlencarII 
http://orcid.org/0000-0002-8983-8947

Lucas Pinheiro SantosIII 
http://orcid.org/0000-0001-9595-4285

IUniversidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Londrina (PR), Brasil; danielguerrini@utfpr.edu.br

IIUniversidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Londrina (PR), Brasil; amanda_nishiyama@hotmail.com

IIIUniversidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Londrina (PR), Brasil; caskps@hotmail.com


Resumo

Este artigo discute o processo de formação de engenheiros a partir de observações de uma disciplina de usinagem em um curso de Engenharia Mecânica. Subsidiaram a coleta de dados e sua interpretação a história da engenharia no Brasil, assim como a sociologia das profissões. Assim, entendeu-se como o conhecimento sistematizado desse grupo é mobilizado para marcar posições hierárquicas internas à profissão e em relação a grupos externos. Os dados apontam para uma hierarquização fundamentada na oposição entre formação acadêmica e práticas improvisadas do chão de fábrica, a despeito da estreita relação desses profissionais com tais práticas. Essa oposição assume contornos de forte violência simbólica quando deparada com a variável gênero no processo de formação desses engenheiros.

Palavras-Chave: ENGENHARIA; FORMAÇÃO PROFISSIONAL; SOCIOLOGIA; RELAÇÕES DE GÊNERO

Abstract

This paper discusses the process of training engineers, from observations of a machining course in a Mechanical Engineering program. Data collection and interpretation were subsidized by the history of engineering in Brazil, as well as the sociology of professions. Thus, it was understood how the systematized knowledge of this group is used to indicate internal, hierarchical positions within the profession and in relation to external groups. Data points to a hierarchization based on the opposition between academic training and improvised practices from the factory floor, despite the close relationship of these professionals with such practices. This opposition carries strong, symbolic violence when faced with the gender variable in the process of training these engineers.

Key words: ENGINEERING; PROFESSIONAL EDUCATION; SOCIOLOGY; GENDER RELATIONS

Résumé

Cet article traite du processus de formation d’un groupe d’ingénieurs, à partir d’observations réalisées lors d’un laboratoire d’usinage dans un cours de génie mécanique. L’histoire de l’ingénierie au Brésil et la sociologie des professions ont subsidié l´ínterpretation. Grâce à cela, il a été possible de comprendre comment la connaissance systématisée de ce groupe se mobilise pour marquer les positions hiérarchiques internes, mais aussi par rapport à des groupes externes à la profession. Les données montrent qu’il existe une hiérarchisation basée sur l’opposition entre formation académique et pratiques de rafistolage improvisées en atelier, malgré la relation étroite qu’il y a entre les professionnels et de telles pratiques. Cette opposition prend les contours d’une forte violence symbolique face à la variable de genre dans le processus de formation de ces ingénieurs.

Key words: INGÉNIERIE; FORMATION PROFESSIONNELLE; SOCIOLOGIE; RELATIONS DE GENRE

Resumen

Este artículo discute el proceso de formación de ingenieros a partir de observaciones de una asignatura de maquinado en un curso de Ingeniería Mecánica. Se subsidió la recolección de datos y su interpretación de la historia de la ingeniería en Brasil, así como la sociología de las profesiones. De este modo se entendió como el conocimiento sistematizado de dicho grupo se moviliza para marcar posiciones jerárquicas internas a la profesión y en relación a grupos externos. Los datos señalan una jerarquización fundamentada en la oposición entre formación académica y prácticas improvisadas del piso de fábrica, a pesar de la estrecha relación de estos profesionales con tales prácticas. Esta oposición adquiere contornos de fuerte violencia simbólica cuando se encuentra una variable de género en el proceso de formación de tales ingenieros.

Palabras-clave: INGENIERÍA; FORMACIÓN PROFESIONAL; SOCIOLOGÍA; RELACIONES DE GÉNERO

Este artigo versa sobre a profissão da engenharia. Trata-se de uma profissão antiga e de alto prestígio na sociedade brasileira (DINIZ, 2001; COELHO, 1999; MARINHO, 2015; PATACA, 2018). A fim de melhor entender a reprodução desse status na sociedade contemporânea, realizou-se uma análise da formação de futuros engenheiros. A pesquisa foi realizada no período de agosto de 2018 a agosto de 2019, no qual se observou uma disciplina de usinagem do curso de Engenharia Mecânica de uma instituição universitária.

A usinagem faz parte da grande área da fabricação e trata do desbastamento de peças por máquinas ou ferramentas para dar a forma que se deseja a um produto final. Trata-se, portanto, de uma área bastante prática e fundamental nos cursos de engenharia mecânica. A usinagem constitui o cerne de empresas de metalomecânica.

A disciplina de usinagem analisada era dividida em uma parte teórica e uma parte prática, sendo esta realizada em um laboratório da instituição. As observações foram anotadas em um diário de campo após cada encontro. Tais observações foram analisadas e confrontadas com a literatura histórica e sociológica sobre a engenharia como profissão no Brasil.

A hipótese inicial era de que as dificuldades que essa profissão enfrenta por estar muito atrelada à produção se observariam refletidas na formação de futuros engenheiros. Primeiro, devido às dificuldades em um ambiente econômico de diminuição do peso relativo das indústrias nacionais no Produto Interno Bruto (PIB) e ao aumento da sua dependência financeira, tecnológica e patrimonial em relação a empresas estrangeiras desde a redemocratização, e, segundo, devido às dificuldades dessa profissão em um ambiente econômico de pouca tradição de investimentos empresariais em pesquisa e desenvolvimento (CARLOTTO, 2013; GUTIERREZ, 2011; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA ESTATÍSTICA, 2016; FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2019; BRASIL, 2019). Os dados, entretanto, extrapolaram as expectativas.

A sociologia das profissões sempre enfatizou a estreita relação entre o conhecimento e o exercício profissional, apontando criticamente os aspectos de fechamento e de disputas interprofissionais que definem e delimitam a mobilização desse conhecimento no exercício das atividades de um determinado grupo. O conhecimento e a expertise profissionais são fundamentais tanto para a efetiva solução de problemas como fator de status e poder do grupo.

A presente pesquisa lança luz sobre esse duplo caráter do conhecimento e sobre como ele é tratado no momento da formação e socialização de aspirantes a uma profissão de alto prestígio na sociedade brasileira. Tratando-se de uma profissão inserida e em estreito contato com os diferentes momentos da produção econômica, uma das dificuldades de seus membros é trabalhar, de um lado, com um corpo sistemático de conhecimentos codificados (institucionalizado nos cursos de Engenharia) e, de outro, com um conhecimento experiencial construído, como dizem os nativos, no “chão de fábrica”. A partir desse tensionamento, a maneira como os profissionais mobilizam e se referem ao conhecimento experiencial, ao saber-fazer do “chão de fábrica”, revela esquemas de estratificação e conflitos extra e intraprofissionais. A carga valorativa aí implicada traz à tona o tema da gambiarra, tradicionalmente compreendida de maneira pejorativa na sociedade brasileira.

A investigação empírica deparou-se também com a questão de gênero, nesse que é um ambiente profissional tradicionalmente masculino. Observou-se que essa variável reforça os esquemas de estratificação e os conflitos da profissão, inserindo um elemento de violência simbólica característica.

A investigação, apesar de tratar apenas de um caso específico e muito localizado da disciplina profissionalizante em um curso de Engenharia Mecânica, traz interessantes contribuições para o debate sociológico acerca da dinâmica desse grupo e de seus processos de formação e socialização.

PRÁTICA E CONHECIMENTO NA FORMAÇÃO DE UM GRUPO PROFISSIONAL ELITISTA

A engenharia civil brasileira nasceu no período imperial (COELHO, 1999). Ela é herdeira de um pensamento engenharial essencialmente militar, preocupado com a colonização e a defesa do território brasileiro pela construção e planejamento de cidades-fortalezas estratégicas (PATACA, 2018). A Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, na cidade do Rio de Janeiro, criada em 1792, desdobrou-se em algumas das instituições de formação de engenheiros existentes hoje (BRASIL, 2019).

Com a Independência e o desenvolvimento de uma economia agroexportadora mais dinâmica e aberta ao mercado mundial, o desenvolvimento do complexo econômico do café deu início a um processo de industrialização e diversificação do capital nacional (bancário e comercial). Com isso, os engenheiros se destacaram como agentes chaves desse processo, tanto na sociedade civil como na sociedade política, já que os setores agroexportadores necessitavam de complexa infraestrutura para modernizar suas atividades - malha ferroviária, linhas telegráficas, saneamento, abastecimento de água e gás e obras públicas em geral (MARINHO, 2015).

Entretanto, a formação excessivamente livresca e enciclopédica, combinada à falta de experiência prática dos engenheiros brasileiros, fez com que os primeiros grandes empreendimentos modernizantes no país fossem conduzidos por engenheiros ingleses (muitas vezes não diplomados). Nesses canteiros de obras, engenheiros brasileiros, com seus anéis de grau, eram subordinados aos práticos ingleses e norte-americanos (COELHO, 1999).

A proliferação de empreendimentos e, com isso, o aumento da demanda pelos conhecimentos da engenharia abriram espaço para os profissionais nacionais. Eles, então, criaram associações civis (como o Clube de Engenharia e o Instituto Polytechnico) e tiveram forte atuação política no cenário nacional, ocupando cargos públicos importantes e dirigindo a Estrada de Ferro D. Pedro II (MARINHO, 2015). Majoritariamente, atuaram como funcionários públicos tanto essa elite de altos funcionários (quando não chefes de poderes executivos) quanto a massa assalariada dos engenheiros. Quando não comandavam efetivamente a vida pública, eram responsáveis por examinar contratos, redigir pareceres e fiscalizar obras, passando ao largo de uma atuação que se considerasse por demais “mecânica” (BENCHIMOL, 1992; COELHO, 1999).

Como os principais profissionais a dominar a matemática aplicada, os engenheiros da época colocaram-se como autoridades perante outros agentes sociais nesse intenso processo de modernização do país (MARINHO, 2015). Avançaram inclusive sobre jurisdições que, a princípio, pertenceriam à medicina, como a higiene pública. A associação de preocupações médicas aos projetos de urbanização por parte dos engenheiros existia desde o século XVII (PATACA, 2018). Além disso, dado o estado anárquico das teorias médicas do período imperial e uma taxa de eficácia terapêutica comparável a qualquer das práticas empíricas de curandeiros e boticários da época, a formação dos engenheiros nas ciências exatas e naturais lhes asseguravam maior reconhecimento e legitimidade para atuar nos processos de transformação das cidades brasileiras, higienizando-as e tornando-as mais salubres (COELHO, 1999).

Ao fim do século XIX e início do XX, a identidade profissional dos engenheiros foi elaborada em torno da ideia de modernização do país, pela qual reclamavam reconhecimento. Tratava-se de uma representação da profissão calcada em ideais de progresso e de que o Brasil devia aos engenheiros a possibilidade de atingir a civilização (MARINHO, 2015). Com hábitos autoritários e valores aristocráticos, entretanto, esses engenheiros, ao promoverem empreendimentos e projetos modernizantes, erigiam monumentos a si, como a Avenida Central, no Rio de Janeiro do início do século XX, antes de solucionar o grave problema do abastecimento de água do Distrito Federal (COELHO, 1999).

A formação desse grupo profissional em meio a um regime escravocrata e agroexportador de modernização conservadora implicou uma relação particular entre o conhecimento profissional e sua prática. A histórica aversão ao trabalho manual, maculado pela escravidão, fez da elaboração e mobilização do conhecimento dessas profissões uma insígnia da sua posição hierárquica na sociedade. Isso exacerbou, na atuação profissional, a valorização de funções de supervisão e comando, em detrimento da execução do trabalho prático e das funções consideradas mais “mecânicas”. A atuação profissional foi marcada por aspectos autoritários e elitistas, sustentada pela formação livresca do ensino superior da época e tipicamente expressa na violência da reforma urbana da cidade do Rio de Janeiro, então capital do país (SEVCENKO, 2018; BENCHIMOL, 1992; CUKIERMAN, 2007; COELHO, 1999).

A formação da engenharia nacional, nesse sentido, é a expressão mais bem-acabada de como o conhecimento técnico-científico, teoricamente fundado em uma racionalidade esclarecedora, pode se aliar e estar associado a práticas arcaicas.

Como argumentam Oliveira (1994) e Coelho (1999), o Golpe de 1930 teve forte apoio de grupos médicos (sanitaristas) e de engenheiros. Estes eram defensores de uma engenharia nacional que colocava em segundo plano questões relativas às liberdades democráticas em favor de interesses nacionais, aos quais seu conhecimento profissional seria capaz de oferecer soluções. Essa atuação autoritária e corporativista seria referendada durante a era varguista com a criação, por força do Estado, dos Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia (Crea).

Durante o regime militar, embora o mercado de atuação dos engenheiros tenha se expandido enormemente com a complexificação do parque industrial brasileiro (GUTIERREZ, 2011), houve a preservação de procedimentos arcaicos no alto escalão da administração pública, que executava grandes e estratégicos projetos de desenvolvimento técnico-científico e industrial. Há farta literatura dando conta das relações personalistas (marcadas pela projeção de personalidades sobre os projetos) e de pessoalidade (critérios de financiamento e seleção de pessoal para execução dos projetos que passavam por relações de amizade e apadrinhamento por autoridades chaves do regime) na execução desses projetos de desenvolvimento, para os quais se recrutavam predominantemente físicos e engenheiros (FERNANDES, 1990; CARLOTTO, 2013; ANDRADE, 1999).

Não obstante as inegáveis transformações pelas quais o país e seus mercados profissionais passaram, destacam-se características fundantes e persistentes da engenharia como profissão no Brasil. Elas se desdobram em uma tensão, ainda operante, entre atividades de comando ou supervisão e de execução ou prática. Os dados coletados nesta pesquisa evidenciam a reprodução dessa tensão fundamental. O tradicional desprestígio de atividades consideradas “mecânicas” (hoje referidas pelos nativos como operacionais) e a valorização de funções de supervisão e comando colocam-se como um conflito fundamental na formação dos engenheiros, já que sua profissão está inextricavelmente ligada a atividades práticas e ao desenvolvimento de um conhecimento aplicado. Mais do que isso, com os dados coletados e analisados nesta pesquisa, pode-se observar que até as desigualdades de gênero na formação de engenheiros e suas históricas violências simbólicas associadas (CASAGRANDE; SOUZA, 2017; LOMBARDI, 2006) se expressam nesse conflito fundamental, reforçando-o. Desse modo, cumpre entender aspectos sociológicos da relação entre o conhecimento e a prática profissional.

SOCIOLOGIA DA ENGENHARIA COMO PROFISSÃO: CONHECIMENTO CODIFICADO, CERTIFICAÇÃO E GAMBIARRA

A diferença fundamental entre profissão e ocupação é que a primeira tem o conhecimento teórico como importante recurso para posterior aplicação em suas atividades. Ocupações, de modo geral, controlam técnicas e procedimentos, e, por isso, mantêm-se reféns de qualquer mudança tecnológica na sociedade (ABBOTT, 1988; FREIDSON, 2009).

A constituição de uma profissão requer uma formação específica, com corpo teórico sistemático que molde uma cultura profissional. Contemporaneamente é comum se falar em expertise, que, como atividade confiável e estável, se institucionaliza. De modo geral, a expertise é indissociável de formas de credenciamento e certificação profissional em instituições de ensino superior que a testam em exames (FREIDSON, 1998; DINIZ, 2001; RODRIGUES, 2002).

A expertise e suas formas de credenciamento, portanto, são fontes de autoridade profissional, conferindo aos membros de um grupo relativa autonomia no trabalho, dada a natureza complexa e de difícil acesso a leigos de seu conhecimento. Com isso, fortalece-se a capacidade de autorregulação, fiscalização e definição de critérios de atuação profissional com pouca interferência externa. Segundo Diniz (2001), o credenciamento é um pré-requisito para o exercício profissional, possibilitando o fechamento social e a monopolização de um serviço. Assim, mantêm-se privilégios e se controla a qualificação necessária de quem pode exercer determinada atividade.

Para Abbott (1988), a elaboração e a sistematização do conhecimento abstrato de cada profissão são recursos fundamentais nas disputas entre profissões, entre profissões e ocupações correlatas ou subordinadas e até internamente entre estratos de um mesmo grupo profissional. O conhecimento profissional, segundo o autor, é importante para assegurar a posição hierárquica do grupo, que pode então delegar atividades operacionais e rotineiras a ocupações de menor prestígio ou técnicos menos qualificados (como é o caso da relação entre engenheiros e operários das fábricas, médicos e enfermeiros, juízes e técnicos de tribunais, etc.). Essa hierarquização é, portanto, um fenômeno geral e se encontra ligada ao que, no interior do grupo profissional, é considerado trabalho criativo e inteligente em oposição ao trabalho de rotina e repetitivo.

Além disso, um corpo abstrato e codificado de conhecimentos garante a sobrevivência da profissão, pois permite que se adapte a contextos históricos e circunstâncias concretas variadas. Através dele, as profissões identificam situações que podem ser objeto de sua atenção e atuação. Nesse sentido, diz Abbott (1988), esses grupos constroem problemas socialmente relevantes, convencendo a sociedade de que um determinado fenômeno natural ou social pode ser abordado com base nas suas categorias de apreensão e instrumentos ou terapêuticas de intervenção, todos devida e coerentemente alinhados ao sistema conceitual profissional.

Entretanto, se uma profissão, no interior da sua jurisdição, se depara com situações para as quais ainda não consiga realizar as devidas inferências com base em seu conhecimento codificado, ela se utiliza de “stopgaps”, ou soluções tampões. São soluções ad hoc, que resolvem um problema sem um entendimento teórico e sistemático da questão. Uma profissão que se paute excessivamente nesse tipo de solução pode ser percebida com suspeita, já que não apresenta uma linha argumentativa coerente que sustente sua prática profissional, deixando, pelo contrário, evidente que as soluções são casuístas e baseadas na tentativa e no erro (ABBOTT, 1988).

No Brasil, é comum falar em gambiarra. Soluções, adaptações, adequações, emendas improvisadas, visando à resolução provisória ou, às vezes, definitiva de um problema, geralmente associada à malandragem e ao “jeitinho brasileiro”. Há, portanto, uma desvalorização do que culturalmente se entende por gambiarra no Brasil (BOUFLEUR, 2006).

Como bem aponta Boufleur (2006), se, por um lado, a gambiarra e o improviso estão associados à falta de um entendimento técnico e científico de determinada questão, por outro lado, eles dizem respeito também ao conhecimento experiencial, a um saber-fazer acumulado e não codificado de determinados agentes sociais. A gambiarra remete, nesse sentido, à solução de problemas por conhecimentos historicamente incorporados. E então pode-se entrever a ambiguidade do fenômeno para os grupos profissionais, pois, se a hierarquização interna principal está associada à oposição entre trabalho criativo e trabalho repetitivo, a gambiarra é evidentemente do primeiro tipo.

Por isso Boufleur (2006) fala em momentos de liberdade nas relações de produção e consumo pelo improviso. No âmbito do consumo, indivíduos e grupos contornam os ditames técnicos impostos pelo processo produtivo e design industrializados pela gambiarra, com o que imprimem nesses produtos estandardizados uma expressividade própria. No âmbito da produção, a imprevisibilidade também sustenta a prática de gambiarras ou improvisos. A busca por soluções adequadas em uma indústria pode exigir soluções pautadas na experiência e no saber-fazer de funcionários engajados e acostumados a enfrentar situações inusitadas, tendo de contornar impasses que não foram previstos no momento de planejamento.

Isso fica muito claro na análise de Pereira, Mendes e Moraes (2017), que mostra como soluções improvisadas (pois lidando com fatores impremeditados pela fase de planejamento) em uma empresa metalomecânica foram tanto mais adequadas e criativas quanto mais havia comunicação e compartilhamento de saberes e experiências entre os trabalhadores da empresa.

A gambiarra ou o improviso podem estar associados a práticas criativas e, portanto, não rotineiras ou repetitivas. Embora sejam práticas relativas a atividades operacionais, estão no âmbito daquilo que requer um trabalho inteligente, ainda que não especificamente baseado em um corpo de conhecimento codificado.

Abbott (1988) argumenta que essa polarização se sustenta em um certo elitismo dos setores acadêmicos de uma profissão em geral. No âmbito da sistematização do conhecimento, não se lida com as imperfeições e imprevisibilidades da prática profissional. Elaborar e sistematizar um corpo de conhecimentos resulta frequentemente em um trabalho mais bem-acabado e fechado em si, algo insustentável na prática empírica profissional. Muitos estratos, então, preferem a dimensão acadêmica à dimensão prática de sua profissão.

A seguir, tais questões são observadas e mobilizadas para a interpretação do material empírico coletado.

OBSERVANDO UMA DISCIPLINA DE USINAGEM

PERFIL DOS DOCENTES

Foram três os docentes responsáveis pela condução da disciplina de usinagem objeto desta investigação, doravante denominados Professora A, Professor B e Professor C. Durante as observações, após três semanas de aula, a Professora A se afastou devido à licença maternidade. Depois de algumas semanas sem aula, os Professores B e C a substituíram na parte teórica e prática da disciplina, respectivamente. Após duas semanas de encontros, os professores decidiram trocar as aulas entre si para melhor se adaptarem às necessidades da matéria e dos alunos. Essa dissociação entre teoria e prática na própria organização da disciplina, dividida entre dois docentes distintos, pareceu, por si só, significativa.

A Professora A formou-se em Engenharia Mecânica e é mestre e doutora pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) na área de fabricação aeronáutica mecânica. Nas aulas demonstrava muita experiência em projetos e fabricação. O Professor B era formado em Engenharia Mecânica, com ênfase em mecânica dos fluidos, especializado em automação e controle dos processos industriais, cursando, enquanto ministrava as aulas, o mestrado em Ciência e Engenharia de Materiais da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). O Professor C também se formou em Engenharia Mecânica, sendo mestre e doutor na área de fabricação com ênfase em usinagem e conformação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

As trocas de professores possibilitaram a observação de perspectivas distintas em um mesmo semestre. Todos tinham formação básica em Engenharia Mecânica, sendo, portanto, especialistas na área, apesar de possuírem áreas de pesquisa e trajetórias relativamente diferentes entre si, o que enriqueceu o material. Os três professores têm um currículo dedicado à pesquisa em detrimento da formação pedagógica, algo comum e frequente na docência em Engenharia (MOLISANI, 2017).

O professor-engenheiro, geralmente, exibe uma falta de interesse pela capacitação didática, devido à ausência de uma formação inicial em licenciatura (RAMMAZZINA FILHO; BATISTA; LORENCINI, 2014). Desse modo, a competência didático-pedagógica é fruto de um processo de naturalização, que se refere à manutenção dos processos de reprodução cultural, ou seja, o docente ensina a partir de sua experiência como aluno, baseando-se em seus antigos professores (CUNHA, 2006; NITSCH; BAZZO; TOZZI, 2004).

PERFIL DOS ESTUDANTES

Os estudantes, graças à facilidade de concorrer à vaga pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), são provenientes de vários estados diferentes. Como o curso é no interior e norte do Paraná, próximo ao estado de São Paulo, muitos vêm deste estado. O caráter populoso do estado de São Paulo e seu desenvolvimento industrial mais acentuado fazem a Engenharia Mecânica consolidar-se como área bastante demandada.

Do total de 44 estudantes, apenas duas eram mulheres, sendo que uma desistiu ao longo do semestre, evadindo inclusive do curso e da instituição. Ao se apresentarem na disciplina de Usinagem, oito dos alunos mencionaram ter feito curso técnico, e cinco mencionaram ter uma empresa familiar na área da mecânica.

OS ENCONTROS DA DISCIPLINA DE USINAGEM

Como mencionado, a disciplina era dividida entre aulas teóricas e aulas práticas. As aulas teóricas eram majoritariamente expositivas, os docentes sendo os protagonistas desses momentos. A sala de aula era de um modelo tradicional, com carteiras, lousa e um projetor, que foi usado algumas vezes pelos docentes para apresentação de slides e vídeos. Como a matéria engloba a maior parte dos métodos de fabricação básicos, e estes exigem uma grande variedade de máquinas de que a instituição não dispunha, o contato dos estudantes com elas foi indireto, através de trabalhos de pesquisa bibliográfica e materiais disponíveis na internet. Dessa forma, foram assimilados os conteúdos relativos a furação, fresamento, retificação, alargamento, brochamento, brunimento, rosqueamento, mandrilhamento e eletroerosão. Os docentes repassaram vídeos que tratavam do estado da arte em processos de desbastamento, produção de peças com alto grau de perfeição, entre outros temas.

No laboratório, os professores protagonizaram apenas as primeiras aulas para apresentar as máquinas e explicar suas regras de segurança e limpeza. Depois desse período inicial, os encontros no laboratório eram para execução de projetos práticos pelos estudantes. No laboratório, estavam dispostos cinco tornos pequenos, dois tornos médios e dois tornos grandes. A fresa, apesar de disponível para uso, não foi utilizada no decorrer da disciplina.

A seguir, serão expostas situações observadas ao longo da disciplina já com base nas categorias construídas, apresentadas nos subtítulos, que serviram para analisar os dados coletados. São situações que expressam as relações identificadas pela literatura e que foram discutidas anteriormente, enriquecendo o entendimento que se tem acerca dessa profissão no país.

GÊNERO E HIERARQUIA NA SALA DE AULA

A Professora A era conhecida na instituição, antes mesmo do início da disciplina, por suas pós-graduações no ITA, instituto reconhecido no meio da Engenharia Mecânica como instituição de alto prestígio.

Foi interessante perceber como ela, a partir desse seu status, “dominava a sala de aula”. Quando chamava a atenção dos estudantes, fazia-o de maneira jocosa, além de dar exemplos de sua experiência na pós-graduação (sempre enfatizada). No primeiro encontro, brincou com a diferença entre enfiar o dedo no nariz para tirar “meleca”, o que um dos alunos fazia no momento, e a atividade de tirar material de uma peça usando máquinas e ferramentas, que constitui a usinagem.

Em outro encontro, com a chegada de um aluno atrasado, a Professora A não poupou as piadas, expondo para todos que o aluno já havia feito a matéria antes e não havia passado. A evidente intenção de constranger era instrumentalizada pela professora para manter a atenção e submissão dos alunos em um ambiente tipicamente masculino.

Os fatos observados durante a disciplina evidenciam as relações de violência discutidas por Casagrande e Souza (2017). A Professora A, tendo alcançado esse posto e status improváveis no mundo da engenharia brasileira, reverte, como estratégia para assegurar sua posição diante dos estudantes, as relações de violência que marcaram, de maneira institucionalizada, sua formação e experiências de trabalho.

GÊNERO E HIERARQUIA PARA O EXERCÍCIO PROFISSIONAL

Com o intuito de expor a realidade das indústrias, a Professora A mostrou vídeos de uma fábrica de peças automotivas com prensas pesadas que geravam muita vibração, máquinas rústicas e sujas, lugares quentes e insalubres. Enquanto o vídeo passava, ela descrevia os ambientes, por sua própria experiência, como um “verdadeiro inferno” de muito calor e barulho.

A falta de salubridade das atividades nesses ambientes, para a professora, justificava que o trabalho nesses locais deveria ser executado por pessoas cumprindo penas de reclusão no sistema carcerário brasileiro. Para os “presos”, segundo a professora, não se deveria dar escolha entre trabalhar ali ou não. Seria “isso, ou nada”.

Nesse momento, a relação hierárquica está bem demarcada e a delegação das atividades operacionais para estratos e grupos de baixo status na sociedade fica evidente. A posição da profissional, formada pelo ITA e docente em um curso de Engenharia Mecânica, a distancia desses ambientes considerados degradantes, indignos e até desumanos - a referência simbólica a um hipotético submundo não humano não deixa dúvidas.

Não há nada nesses ambientes que se aproxime do que é, para essa profissional, a Engenharia, seus procedimentos, técnicas e conhecimentos. O distanciamento social é o maior possível: indivíduos condenados a cumprir penas no sistema carcerário é que deveriam se ocupar desses locais.

Ressalta-se que, embora degradantes e desumanos, esses ambientes são inescapáveis para uma profissão que lide com setores produtivos. Há, nesse relato, entretanto, uma decalagem, na qual a engenharia, de alto prestígio e referenciada como um conhecimento complexo e bem sistematizado, relaciona-se com aqueles ambientes de maneira radicalmente alienada. Nas falas mencionadas, isso aparece como uma relação entre o que é e o que não é considerado socialmente aceito (cumprindo ou não pena no sistema carcerário) e até o que é e o que não é humano (no caso, infernal).

Há duas questões em jogo. Primeiro, a radicalidade dessa decalagem remete aos caracteres arcaicos da sociabilidade brasileira. O prestígio profissional delimita não apenas uma classificação social baseada no desempenho de diferentes habilidades e atividades, mas uma separação entre o que é socialmente aceito (ou aceitável) e o que não o é.

A segunda questão, que reforça a primeira, é a violência relacionada às questões de gênero implicadas e anteriormente discutidas. A Professora A, ao galgar uma posição alta na hierarquia profissional, lugar socialmente interditado às mulheres, reproduz a violência que sofreu e sofre de maneira invertida e simétrica. Se as mulheres são tratadas como não sujeitos para essa posição que ela agora ocupa, os trabalhos mais degradantes das fábricas deveriam ser ocupados, no seu entender, por pessoas socialmente mais desclassificadas, e que, por isso, não deveriam ter suas vontades respeitadas.

HIERARQUIZAÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO E GAMBIARRA

A engenharia é uma profissão que está muito atrelada à produção, o que, como diz Gutierrez (2011), lhe confere características e dificuldades específicas. Apesar de se basear em um conhecimento codificado e sistemático, essa proximidade com a dinâmica das fábricas e com o ambiente produtivo de modo geral frequentemente põe em xeque seu status social. Quando um chão de fábrica é tido como “infernal”, tem-se pistas disso.

As demandas de mercado, por exemplo, tensionam constantemente a profissão. Na aula sobre ferramentas e seus materiais, o Professor C fala sobre a possibilidade real de se fabricar uma ferramenta que nunca se desgaste. Diz, entretanto, que nenhuma empresa poderia produzir tal ferramenta, pois depende das vendas e da renovação das ferramentas vencidas ou quebradas. O interesse utilitário da empresa sobrepõe-se ao compromisso profissional da Engenharia Mecânica, que idealmente decidiria pela ferramenta mais durável. O professor não se manifesta a favor ou contra essa questão, simplesmente informa aos estudantes que essa será a realidade que enfrentarão no mercado quando se formarem engenheiros.

Mas nem sempre há aceitação complacente das condições do mercado de trabalho. A profissão vive, assim, uma ambiguidade de estar constitutivamente atrelada à produção e, ao mesmo tempo, buscando dela se distanciar socialmente.

A Professora A, em um determinado momento da disciplina, fala sobre trabalhar em empresas menores. Essas têm maior dificuldade em manter os padrões de qualidade e se adequar às normas devidas. Ela então discorre sobre a realidade de algumas dessas empresas em que trabalhou. Nelas, não se calibram todos os equipamentos de medida segundo os padrões nacionais e internacionais. Segundo seu relato, nessas empresas mantêm-se as ferramentas calibradas à vista, enquanto que as não calibradas são escondidas durante as inspeções dos fiscais do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro).

No caso, o conhecimento técnico para a resolução de um problema ou para a execução de um processo considerado correto e adequado não é reconhecido ou valorizado. Executa-se o trabalho de forma precária, por ser mais barato e simples. Segundo a professora, é por essa razão que produtos de baixa qualidade proliferam no mercado nacional.

Essa demarcação entre conhecimento codificado do engenheiro (de valor positivo) e a realidade prática das fábricas (de valor negativo) também apareceu nas aulas do Professor C. A maneira como ele concebia a atividade do engenheiro era de aplicação, na fábrica, de tudo aquilo que se aprende na universidade, sendo a principal responsabilidade desse profissional a de supervisionar as atividades fabris. Logo, o engenheiro necessitaria conhecer a técnica até seu limite, pois isso lhe serviria como uma garantia contra os operários que tentassem enganar os supervisores trabalhando em ritmos mais lentos. O engenheiro deve estar apto a diagnosticar quando um problema de baixa produtividade é humano. Se, por exemplo, isso acontecesse com uma máquina que suporte altas velocidades, ela estaria sendo subutilizada. Há apenas um porém a essa aplicação desencarnada do conhecimento do engenheiro: não se deveria pressionar excessivamente os funcionários, pois isso tão pouco os faria cumprir prazos e trabalhar de forma satisfatória.

No mesmo espírito, o Professor C recomenda que se estude muito a matéria, pois, para ele, “o patamar do engenheiro é alto”, e a usinagem é uma matéria muito abrangente e importante para a indústria. Como é uma matéria profissionalizante, coloca em prática todos os conhecimentos de física, química e materiais que foram vistos no ciclo básico do curso. Isso foi reiterado em diversos momentos pelos três professores ao se referirem às altas expectativas em torno da engenharia mecânica. Um claro processo de inculcação de esquemas de classificação hierárquica entre os estudantes.

Nota-se que a engenharia polariza não apenas com o operário, subordinado na hierarquia das fábricas, mas também com os próprios empresários, que não atentam para a precisão, o rigor e a sistematicidade do conhecimento e da técnica da engenharia. Esta última se afastaria do improviso, da malandragem, do “jeitinho”, em suma, da gambiarra. À engenharia caberia o zelo pela norma, pelo protocolo, pela qualidade, pelo rigor técnico e pelo conhecimento sistemático. Ao chão de fábrica, aos operários e aos donos de pequenas empresas cabem um saber-fazer responsável pela baixa produtividade da indústria e pelos produtos de má qualidade no mercado.

A gambiarra, o improviso, as soluções in situ que requerem o manejo de um saber-fazer não codificado vão na contramão da formação acadêmica, e esta, como dito em sala de aula, deve ser mobilizada contra as tentativas de engodo praticadas pelos operários. É interessante notar que essas tentativas de engodo são também tentativas de ampliar sua margem de liberdade, na medida em que os operários, no caso hipotético descrito pelo Professor C, tentariam impor um ritmo de trabalho próprio à linha de produção.

As falas dos professores, entretanto, explicitam a polarização e os colocam como contrários às práticas não profissionais do chão de fábrica. O conhecimento acadêmico, inclusive, deve ser mobilizado nesse sentido, em proveito dos engenheiros na relação destes contra operários e pequenos empresários. O interesse pela hierarquização e manutenção do alto prestígio da profissão é evidente. Isso codifica distâncias sociais, que são repassadas aos estudantes como padrão de sua futura profissão.

Esses esquemas de hierarquização, entretanto, geram uma ambiguidade ao longo da disciplina. Em vários momentos, os professores enfatizaram a necessidade de uso prático do conhecimento pelos estudantes. Para a Professora A, o engenheiro sempre trabalha nos “gargalos” para otimizar a produção das fábricas - exatamente o que fazem os trabalhadores experientes do estudo de Pereira, Mendes e Moraes (2017). Para tanto, devem atentar para o processo produtivo e identificar tais gargalos no dia a dia da fábrica.

O Professor C, como estratégia didática, frequentemente questionava como se resolveriam problemas em situações hipotéticas. Sempre tentava situar os alunos no chão de fábrica com algum objetivo e um problema para resolver. Em um desses momentos, disse que a prática da usinagem se aprende mais no “chão de fábrica” do que em uma “biblioteca”.

A relação ambígua com o conhecimento experiencial fica evidente. A necessidade de inculcar esquemas de hierarquização entre os estudantes, em que engenheiros devem ocupar posições de comando e supervisão, vai de encontro à realidade da atuação desse profissional. A primeira necessidade reforça a importância e o valor do conhecimento abstrato e codificado, legitimando os anos e o rigor dos estudos. O segundo aspecto, o da realidade da atuação prática, frequentemente coloca os engenheiros em posições niveladas ao de operadores e pequenos empresários, cuja atuação depende muito da experiência adquirida.

CONTROLE E AUTORIDADE EM UMA LINHA DE PRODUÇÃO (ESCOLAR)

Nas aulas do Professor C, era comum a não tolerância a atrasos, mesmo de poucos minutos. Um dia, como chovia muito forte, um estudante chegou dez minutos atrasado à sala de aula, de trajes molhados, enquanto era feita a chamada. Ao fim da chamada, o estudante pediu ao professor que considerasse sua chegada em sala, ao que este respondeu negativamente, dizendo: “Não quero ouvir explicações”.

Segundo esse professor, o engenheiro também deve estar preparado contra situações como essa para chegar ao trabalho, já que “uma produção não pode parar”, e, portanto, atrasos seriam inadmissíveis.

Em outra situação, o Professor C mudou um aluno sonolento de lugar para a frente da sala, depois do que todos passaram a ouvir lições sobre como ser um bom aluno e seus deveres para com o professor e a matéria.

Era repetidamente alertado em sala de aula que, no trabalho do engenheiro mecânico, a precisão e a perícia para as medidas são de grande importância para a boa execução de seu trabalho, ou que o erro em medidas ou atitudes tomadas na fábrica poderia acarretar diretamente a demissão do profissional. O professor estimulava os estudantes a imaginarem estar em uma fábrica cujo chefe ordenasse algo que não se sabia ou que não se conhecesse, já que no momento de sua formação, dizia, “você não prestou atenção na aula”. O engenheiro, nesse caso, teria falhado com a profissão.

As constantes cobranças apontavam sempre para a sobreposição entre o ambiente escolar-universitário e o ambiente fabril, funcionado os encontros da disciplina como uma espécie de simulação. Também, uma referência constante desse ambiente era o “chefe”, que ameaçava seus subordinados com a possibilidade da demissão imediata. Prestar atenção em sala de aula era imperativo, pois a demissão seria certa caso se fizesse “besteira”, como quebrar uma ferramenta ou perder uma peça.

Essa fala ressoa a discussão em Areosa e Dwyer (2010) sobre a culpabilização de trabalhadores subordinados hierarquicamente em uma empresa pelos acidentes de trabalho - o chamado “erro humano”. Essa é uma ideologia de poder que negligencia todas as relações sociais que conduzem aos acidentes e serve como um argumento que vai ao encontro da sociologia das profissões quanto à demarcação de hierarquias que se exercem através do conhecimento profissional.

Outra figura sempre presente nas situações hipotéticas narradas pelo Professor C era a do estagiário, que, segundo ele, era o começo da carreira do engenheiro em uma fábrica. O ambiente de trabalho era sempre imaginado como algo hostil, em que o estagiário não recebe bem e pode ser demitido a qualquer momento, sendo isso sistematicamente inculcado nos estudantes. Passados alguns encontros, os alunos, por conta própria, reproduziam a fala de que qualquer erro na linha de produção acarretaria demissão.

Quando o Professor C citou como exemplo uma quebra ou falha na produção de um bloco de motor e suas consequências técnicas, o que poderia acontecer caso o trabalho fosse executado de maneira “desleixada”, imediatamente um estudante disse que, nesse caso, a consequência, além de outras, seria a demissão do operador, pois o prejuízo seria grande para a empresa. Nesse momento, o professor contemporizou e disse que nem sempre a culpa é do operador, mas poderia ser do engenheiro que planejou o processo.

É interessante como se mescla, na fala do aluno, o esquema de hierarquização e a socialização nesse ambiente que se apresenta como, ao mesmo tempo, fabril e escolar. O professor, ao fim, atentou para um certo senso de responsabilidade que o engenheiro deve ter como supervisor e planejador de uma linha de produção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se, na constituição da profissão do engenheiro mecânico, rígidos esquemas de hierarquização, violências simbólicas em geral e, mais intensamente, nas relações de gênero. Nos estudantes são inculcados esses esquemas classificatórios, sendo eles ensinados a reproduzi-los uma vez formados.

A princípio, a arbitrariedade e a violência com que se inculcam esses esquemas assimétricos têm relação com a própria ambiguidade da profissão, que, apesar de ter alto prestígio na sociedade, se depara com o chão de fábrica e questões operacionais na sua jurisdição. O esforço do grupo em preservar seu status é, nesse sentido, intenso e arbitrário. A distância social que se quer impor a operadores e pequenos empresários, avessos ao conhecimento formal e aos protocolos da profissão, é arbitrária e dissonante com a sua realidade prática, que requer atenção e construção de um saber-fazer fundamentado na experiência cotidiana, como os próprios professores mais tarde reconheceram.

Mas a intensidade das arbitrariedades e das violências impostas mantêm relação com a história da profissão no país. De passado senhorial, a sociedade brasileira parece abrigar diplomas de ensino superior como insígnias de status social muito mais que certificação de uma expertise institucionalizada. Isso reforça o aspecto de fechamento do mercado pelas certificações tratadas na literatura da sociologia das profissões. Algo comum para toda realidade das profissões, mas que aqui adquire até mesmo um caráter de desumanização.

Nesse último aspecto, ficam evidentes os desdobramentos que as históricas relações patriarcais da sociedade brasileira têm para a formação das profissões e seus mercados. Percebe-se como urgente a necessidade de discutir os processos de formação de engenheiros no país, especialmente em relação às questões de gênero envolvidas. Apesar de essa temática constar das novas Diretrizes Curriculares das Engenharias (BRASIL, 2019), percebe-se empiricamente quão distante se está de uma formação igualitária e, nesse sentido, mais atenta às questões que se colocam para a modernização e a transnacionalização do mercado de trabalho.

Mais ainda, as ambiguidades e as arbitrariedades envoltas no processo de formação de engenheiros são um obstáculo às intenções de se qualificarem profissionais para os desafios contemporâneos. Se boa parte dos esforços pela formação se concentra na preservação do status profissional, fica prejudicada a capacidade de se apropriar e gerar um ambiente de rápidas transformações tecnológicas que, inclusive, colocam em xeque muitas das atividades hoje desempenhadas por esses mesmos profissionais.

O mais interessante é que esse esforço de preservação de status se dá sob a ideia de esforço sistemático e dedicação às disciplinas. A crítica a essa realidade, portanto, não é fácil, pois os aspectos mais particularistas e corporativos da formação profissional se escondem por trás de seu elemento mais característico e internamente valorizado, ou seja, o conhecimento profissional codificado e institucionalmente referendado.

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Recebido: 08 de Janeiro de 2020; Aceito: 05 de Março de 2020

NOTA SOBRE AUTORIA

Lucas P. Santos fez as observações na disciplina de usinagem e coletou os dados, durante pesquisa de iniciação científica. Amanda Alencar e Daniel Guerrini trabalharam na análise do material e desenvolvimento do referencial teórico, com a participação de L. P. Santos no tratamento desses dados, sua interpretação e categorização.

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