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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.50 no.178 São Paulo oct./dic 2020  Epub 23-Nov-2020

https://doi.org/10.1590/198053147185 

ARTIGOS

PESQUISA NARRATIVA: ENTRE DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA VIVIDA E CONFIGURAÇÃO BIOGRÁFICA

IUniversité de Tours, Tours, França; herve.breton@univ-tours.fr


Resumo

A pesquisa narrativa procura compreender a experiência do sujeito, utilizando histórias de vida “em primeira pessoa” pela apreensão e compreensão do processo de construção de “pontos de vista” em uma atividade narrativa que supõe passagens da experiência à linguagem e do texto à história, pressupondo a realização de atos que o possibilitem. Com base na tese de Ricœur do princípio da reciprocidade entre a temporalização da experiência e a configuração da narrativa, distingue-se dois regimes narrativos: o biográfico e o de descrição fenomenológica. Busca-se caracterizar esses regimes, formalizar seus processos e especificar seus efeitos, produzindo um trabalho de definição de regimes narrativos e examinando seus efeitos na educação de adultos e na pesquisa em ciências humanas.

Palavras-Chave: BIOGRAFIA; PESQUISA; NARRATIVA; FENOMENOLOGIA

Résumé

L’enquête narrative a pour spécificité de chercher à comprendre le vécu du sujet en mobilisant des récits d’expérience « en première personne ». Elle vise l’appréhension et la compréhension des processus d’édification des « points de vue » à partir d’une activité narrative qui suppose deux passages : celui de l’expérience au langage (soit la mise en mots du vécu), celui du texte à l’histoire (soit la configuration biographique du récit). L’activité narrative par laquelle procède cette forme d’enquête suppose d’effectuer des actes qui rendent possible son accomplissement. L’enjeu de cet article est de caractériser ces régimes narratifs, d’en formaliser les procédés, et de spécifier les types d’effets générés sur les processus de compréhension, de formation de soi et de constitution de connaissances.

Key words: BIOGRAPHIQUE; RECHERCHE; NARRATION; PHÉNOMÉOLOGIE

Abstract

Narrative research seeks to understand the subject’s experience using life stories “in the first person” by apprehending and understanding the process of construction of “points of view” in a narrative activity that implies passing from experience into language and from text into story, assuming the performance of acts that render this possible. Based on Ricœur’s thesis of the principle of reciprocity between the temporalization of experience and the configuration of narrative, we distinguish between two narrative regimes: the biographical one and the one pertaining to phenomenological description. We seek to describe both regimes, formalize their processes and specify their effects in order to define the narrative regimes and examine their effects on adult education and on humanities research.

Key words: BIOGRAPHY; RESEARCH; NARRATIVE; PHENOMENOLOGY

Resumen

La investigación narrativa intenta comprender la experiencia del sujeto utilizando historias de vida “en primera persona” por medio de la aprehensión y comprensión del proceso de construcción de “puntos de vista” en una actividad narrativa que presupone pasos de la experiencia al lenguaje y del texto a la historia, suponiendo la realización de actos que lo hagan posible. En base a la tesis de Ricoeur del principio de reciprocidad entre la temporalización de la experiencia y la configuración de la narrativa, se distinguen dos regímenes narrativos: el biográfico y el de descripción fenomenológica. Se trata de caracterizar dichos regímenes, formalizar sus procesos y especificar sus efectos, produciendo un trabajo de definición de regímenes narrativos y examinando sus efectos en la educación de adultos y en la investigación en ciencias humanas.

Palabras-clave: BIOGRAFÍA; INVESTIGACIÓN; NARRATIVA; FENOMENOLOGÍA

Quando decidi, esta manhã, adicionar duas colheres de açúcar, cada uma de duas gramas, à minha xícara de chá, não tive dúvida de que meu chá ficou mais doce. Seria mais correto dizer que o líquido que estou prestes a beber comporta um volume constante de água e uma densidade de açúcar aumentada de quatro gramas. Esse ponto não é contestável, pois ele pode ser medido, calculado e objetivado, o que permitirá produzir um dado confiável e irrefutável. Quando eu bebi meu chá, nesta manhã em particular, durante a qual decidi adicionar quatro gramas de açúcar, senti um sabor doce pronunciado desde o primeiro gole. Essa sensação pode produzir diferentes tipos de efeitos: uma sensação de saturação pode propagar-se, causando uma percepção de “muito doce”; ou a sensação experimentada pode vir a despertar uma memória como, por exemplo, de um momento vivido na Índia, em Calcutá, uma noite de março de 1994, quando eu estava sentado em uma esquina da rua bebendo um chá indiano com leite, muito doce e muito quente, enquanto observava a vida animada ao meu redor. Ainda que, em contato com essa sensação pronunciada de açúcar, outras direções sejam possíveis, as razões que explicam as consequências da adição de quatro gramas de açúcar à minha vida permanecem, no entanto, obscuras para mim. Estou reduzido a notar o que se apresenta em contato com a sensação. Se me pergunto sobre as relações causais entre a experiência sensível e os efeitos sentidos, posso me basear somente em elos fracos que se situam no campo do possível, ou, para usar o termo proposto por Ricœur (1983), no campo do “provável”. Claramente, em vez de explicar, tenho que interpretar para compreender.

É difícil (ou mais precisamente, precário) estabelecer uma lei de causalidade entre uma sensação sentida e um efeito experiencial vivido. Por extensão, não é possível determinar leis entre o acontecimento dos fenômenos no decurso da vida e os efeitos resultantes das repercussões biográficas. A forma como os fenômenos são vividos e compreendidos pelo sujeito não é regida por princípios determinados, mas por processos de interpretação, que este artigo se propõe a estudar. O seu desafio é investigar os processos de inferência que fazem parte da experiência, que fazem emergir a estrutura narrativa e que a organiza em termos de continuidade e pensamento. Ao formalizar os procedimentos desse tipo de investigação, somos levados a definir diferentes noções, tais como regimes narrativos, relações dialéticas entre o tempo vivido e o tempo narrado, os modos de passagem da experiência à linguagem... Definidos esses pontos, serão propostos elementos metodológicos de pesquisa, tornando possível caracterizar os processos narrativos e os resultados que geram nos campos da educação e das ciências sociais. Esses diferentes trabalhos serão situados, em síntese, em uma discussão epistemológica sobre os conhecimentos gerados pela pesquisa narrativa.

UMA EPISTEMOLOGIA DO NARRATIVO: RELAÇÕES DE CAUSALIDADE E LEIS DE COMPOSIÇÃO

Especificar os conhecimentos gerados por abordagens investigativas que mobilizam a narrativa de si implica questionar os critérios de cientificidade que regem uma disciplina ou um campo do saber. No que diz respeito à construção de uma epistemologia narrativa, três aspectos serão examinados: 1) a dinâmica dos processos inferenciais que permitem apreender as ligações lógicas entre um fenômeno e os princípios que regem sua implantação; 2) os processos que regem a passagem do cronológico à lógica durante a atividade de configuração da experiência; 3) a atualização dos processos que participam do trabalho de configuração, a partir do qual a continuidade experiencial passa à linguagem em uma narrativa, restabelecendo sua duração. Um quarto plano merece também uma análise aprofundada, mas o formato deste artigo não o permite; consiste na potência de um paradigma baseado na singularidade nas ciências humanas e sociais (VERMERSCH, 2003).

RELAÇÕES DE CAUSALIDADE NAS CIÊNCIAS

O primeiro conjunto de reflexões diz respeito aos tipos de raciocínio considerados necessários para que um resultado científico seja considerado válido. O trabalho pode começar a partir da distinção apontada por Dilthey entre explicar e compreender: a explicação refere-se a leis causais apoiadas por um raciocínio dedutivo, enquanto a compreensão é governada pela dinâmica de interpretação baseada nas inferências abdutoras e transdutoras (CHAUVIRÉ, 2000). Assim, o trabalho de interpretação mobiliza diferentes tipos de inferências, algumas das quais se enquadram no domínio do possível e do provável, enquanto outras são apresentadas, do ponto de vista do sujeito, de modo afirmativo e certo. Embora os raciocínios dedutivos sejam suscetíveis de gerar conhecimentos nomológicos, as lógicas do pensamento baseadas em processos inferenciais transdutivos afastam o critério causal:

A noção de transdução parece pertinente: ela procede do singular para o singular (PIAGET, 1924, p. 246),1 pouco a pouco (SIMONDON, 1989, p. 74),2 e é insensível a contradições (PIAGET, 1924, p. 304). É um pensamento analógico. Procedendo do singular ao singular, ele não está em contato com uma regra geral. (DENOYEL, 1999, p. 37)

QUADRO 1 OS PROCESSOS INFERENCIAIS ENTRELAÇADOS DAS TRÊS RAZÕES  

RAZÃO SENSÍVEL RAZÃO EXPÉRIENCIAL RAZÃO FORMAL
Regras gerais Transdução
• Sem contato com uma regra instituída
Abdução
• Inventar uma regra
• Formalizar uma regra implícita
Indução
• Encontrar uma regra já instituída
Dedução
• Partir de uma regra
Objetos
particulares
Analógico Dialógico Tautológico

Fonte: Denoyel (1999, p. 38).

A distinção feita no Quadro 1 permite diferenciar diversos tipos de raciocínios potencialmente em ação no curso do trabalho narrativo e dos processos de interpretação que ele implica. A classificação dos tipos de inferências permite questionar o grau de firmeza dos laços lógicos e das relações causais que o sujeito considera verdadeiros quando formaliza e socializa a totalidade ou parte da sua história em um texto, em um discurso ou em uma narrativa. Assim, segundo esse quadro, as inferências indutivas e dedutivas referem-se a uma norma de direito estabelecida para determinar as relações de causalidade entre os acontecimentos que ocorreram no curso da história. Inversamente, as inferências transdutoras e abdutoras procedem por analogia e são implantadas no campo do possível e do vago (CHAUVIRÉ, 1995). Essa perspectiva não está isenta de consequências para o estatuto do conhecimento derivado das “ciências da mente”, de acordo com o termo proposto por Dilthey ([1910]/2012). Do ponto de vista das ciências naturais, um raciocínio estabelece-se, de fato, com base em regras firmes que podem ou não ser verificadas empiricamente. O critério nomológico parece assim ser um fator determinante na classificação das abordagens nas ciências: deve-se, então, tentar especificar as formas de causalidade no trabalho durante a atividade de interpretação da experiência nas narrativas, mostrando, como faz Weber (1971, p. 14), a sua base comum: “Chamamos sociologia [...] uma ciência que se propõe compreender a atividade social por interpretação e assim explicar o seu curso e seus efeitos”. Como Colliot-Thélène demonstra, se, para Weber, é possível presumir que as formas de raciocínio das ciências da cultura são, apesar de sua especificidade, da mesma natureza que as das ciências exatas, para Dilthey, ao contrário, elas são distintas no direito:

O objeto das ciências da mente, pelo contrário, cuja matéria-prima consistia naquilo que ele chamou de experiência vivida (das Erleben), não podia, segundo ele, ser apreendido com os meios analíticos da intelectualidade física. A experiência é de fato caracterizada por uma ligação imanente (Zusammenbang) que é indecomponível e, portanto, inexplicável; se explicar significa trazer um fenômeno de volta aos elementos dos quais ele é composto e às leis que regem a sua composição. (COLLIOT-THÉLÈNE, 2004, p. 12-13)

Com vistas a analisar as formas de causalidade induzidas pelo paradigma da hermenêutica, iremos, primeiramente, questionar a epistemologia narrativa, foco deste artigo.

UMA EPISTEMOLOGIA DO NARRATIVO: O PROBLEMA DA EXPERIÊNCIA

O segundo conjunto de reflexões apresenta uma dificuldade, de ordem diferente: “O primeiro obstáculo é a experiência primária, a experiência colocada antes e acima da crítica que é, necessariamente, um elemento integrante do espírito científico” (BACHELARD, 1938, p. 23). De acordo com a perspectiva bachelardiana, o problema colocado para caracterizar os saberes provenientes da atividade narrativa não decorre da natureza vaga das inferências lógicas que permitem a constituição de histórias de vida. O que é problemático é o próprio material a partir do qual o conhecimento é elaborado. Uma vez que as narrativas são construídas a partir da experiência vivida, só podem manifestar concepções pré-reflexivas, subjetivas e ingênuas que permanecem presas a percepções imediatas do sensível (BÉGOUT, 2000) e circunscritas à evidência natural do mundo da vida (SCHÜTZ, 1971).

A reabilitação das narrativas da experiência na epistemologia pressupõe, portanto, que se pense nos processos a partir dos quais a experiência passa à linguagem, a fim de identificar, de acordo com os regimes narrativos, as formas de reflexividade associadas à narrativa:

A epistemologia, Erkenntnistheorie, em alemão, ou “théorie de la connaissance”, em francês, pressupõe uma certa continuidade entre ciência e senso comum; ela parte de um gênero comum, o conhecimento, do qual estuda a especificação científica, por um lado, comum, por outro. Mas quando a “epistemologia” aparece em francês, ela é definida como “filosofia das ciências”, com exclusão do estudo do senso comum. (FRUTEAU DE LACLOS, 2016, p. 177)

A possibilidade de esquecer ou mesmo rejeitar a experiência vivida para pensar sobre o estatuto do conhecimento é em si mesma problemática. Como podemos, então, considerar o conhecimento quotidiano (CERTEAU, 1990), a capacidade de trabalho (JOBERT, 2011), o conjunto de conhecimento que nos permite viver juntos e manter-nos vivos? Estabelecer (ou restaurar) o estatuto de experiência dentro de uma epistemologia pressupõe, contudo, descobrir os processos pelos quais a experiência passa à linguagem, configurando-se em narrativa, para em seguida examinar as leis de composição das narrativas e estudar o que elas revelam sobre os processos de formação e constituição dos “pontos de vista” do sujeito sobre a sua experiência e sua existência:

Bruner (2010) pergunta em um dos seus livros: “Porque é que contamos histórias a nós próprios?”. A resposta é óbvia: contamos histórias uns aos outros porque nós as vivemos [...]. Se existe uma semelhança entre a lista de leis de constituição dos universos e a lista de regras para a composição de histórias de vida, não seria a fundamentação e a variação da primeira em relação à segunda. Muito pelo contrário: não se constrói a si próprio inventando histórias sobre si próprio, mas contamos histórias de como nos construímos, seguindo globalmente as mesmas leis, aplicando as mesmas regras de posição (de um eu), de oposição (a este eu), etc. (FRUTEAU DE LACLOS, 2016, p. 190)

Um segundo aspecto da epistemologia narrativa pode ser, então, destacado, e diz respeito à reciprocidade dos processos de estabelecimento de pontos de vista (SOURIAU, 2009) e dos processos que organizam a composição das narrativas de si (BRUNER, 1986). A intersecção dos dois princípios discutidos nesta seção conduz então à seguinte proposta: a narração de si faz parte de uma hermenêutica baseada na expressão de pontos de vista pelo sujeito, colocando sua experiência em palavras e narrando-a. Deve-se considerar, a partir dessa proposta, que a narrativa traduz, através dos seus modos de composição, os processos de edificação dos pontos de vista a partir dos quais o sujeito vive no mundo. No decurso da investigação, a análise deve, portanto, centrar-se nos modos de composição da narrativa (RICŒUR, 1986) através da sua expressão em primeira pessoa. O objetivo de analisar esses modos de composição (duração das experiências capturadas e inferências causais feitas) é compreender as relações causais produzidas pelo sujeito e que, em um texto ou em um discurso, são os acontecimentos vividos numa história que pode ser contada. É, portanto, objetivo da investigação narrativa examinar a dinâmica dos processos inferenciais durante a atividade narrativa, particularmente durante as passagens da experiência à linguagem, para depois analisar a narração da experiência.

HERMENÊUTICA DO SUJEITO E NARRATIVA DE SI

De um ponto de vista hermenêutico, a narrativa de si supõe trazer à linguagem os processos que contribuem para a construção dos pontos de vista sobre o mundo da vida através dos quais o sujeito se inscreve e se envolve, age e compreende, tornando-se um agente e autor de seu devir. A análise dessa atividade narrativa pode centrar-se em três processos distintos: a captação da experiência, o ajustamento da granulação diacrônica da experiência e a seleção do vocabulário que permite a expressão da experiência. A implementação desses três processos é realizada de acordo com dois princípios: a expressão em primeira pessoa, durante a qual o sujeito transmite à linguagem o que considera verdadeiro - o que Foucault (1983) chama de regimes aleatórios - e o princípio da “completude”, que diz respeito aos fatos e dimensões experienciais cuja expressão em palavras constitui a matéria sensível da narrativa. De um ponto de vista hermenêutico, esses dois princípios caracterizam a expressão “em primeira pessoa”, cuja especificidade é manter a referência do terreno experiencial da experiência vivida durante a narração. Falar em primeira pessoa “é adoptar, segundo a expressão de Pierre Vermersch, um ‘falar encarnado’, ou seja, entrar em um regime de expressão que manifeste plenamente a realidade concreta de um contato com o que está sendo vivido no momento em que o formulo” (DEPRAZ, 2011, p. 62).

Essa manutenção da narrativa com a experiência viva constitui uma condição necessária para que o poder transformador da própria narrativa se manifeste. O poder etopoiético3 da expressão em primeira pessoa é dependente do princípio de preservação da vitalidade da experiência vivida durante a narração:

Na experiência vital aparecem diferentes gêneros de enunciados que surgem de vários tipos de conduta na vida. Pois a vida não é, certamente, apenas a fonte do conhecimento visto da perspectiva da experiência que o contém; os diferentes tipos de conduta humana também condicionam os vários tipos de enunciados possíveis. Basta estabelecer, de antemão, uma relação entre a diversidade das condutas vitais e as enunciações que exprimem a experiência da vida. (DILTHEY, [1910]/2012, p. 88)

A atividade narrativa cujo objetivo é ativar a capacidade do sujeito de dar forma à sua existência inclui, assim, várias passagens: a passagem da experiência à linguagem durante a qual o essencial é traduzido em palavras; a transformação qualitativa do texto resultante da narração levando em conta a composição da narrativa e o enredo que a organiza (RICŒUR, 1983). Entrar na investigação dos processos através dos quais são construídos os pontos de vista do sujeito sobre a sua vida e sobre o mundo social que habita pressupõe examinar essas duas passagens, ambas regidas por um princípio: 1) o da reciprocidade entre a temporalização da experiência e 2) a configuração da experiência vivida.

A COMPOSIÇÃO DAS NARRATIVAS: ENTRE TEMPORALIZAÇÃO E CONFIGURAÇÃO DA EXPERIÊNCIA VIVIDA

Para Ricœur (1983, p. 85), a atividade narrativa desdobra-se segundo um princípio de sequenciamento causal que transforma a dinâmica da sucessão temporal em uma configuração narrativa:

Uma após outra, é assim a sequência episódica e, portanto, a implausível. Uma por causa da outra, é a sequência causal e, portanto, a provável. A dúvida já não mais permitida: o tipo de universalidade que comporta o enredo deriva do seu ordenamento, o qual produz sua plenitude e sua totalidade.

O processo decisivo, durante a narrativa, é a apreensão dos fatos em sua sucessão: a temporalização da experiência consiste em sequenciar o desdobramento do vivido e, assim, determinar as granulações e os ritmos de sucessão. Essa ordenação dos fatos de acordo com o princípio de sucessão prenuncia o trabalho de configuração, que se efetua pela busca de sentidos através da produção de inferências causais. Tal busca é característica de um trabalho de montagem por associação de diferentes momentos ao longo da vida. Em outras palavras, a configuração transforma a experiência episódica em continuidade experiencial e condensa os fatos em uma história a partir da emergência de um ponto de vista lógico sobre a experiência vivida: “Esse ato de configuração consiste em ‘tomar conjuntamente’ pequenas ações ou aquilo que chamamos de incidentes da história; dessa diversidade de acontecimentos extrai-se a unidade de uma totalidade temporal” (RICŒUR, 1983, p. 129). Sem configurar atos, as narrativas da experiência não passariam de relatos de ação, procedendo por inventário e enumeração de fatos. Essa compreensão da experiência pressuporia, contudo, a ausência de um narrador envolvido com e afetado pela experiência em questão. Isso é o que não é possível para as formas de expressão em primeira pessoa, cuja dinâmica é a de transmitir à linguagem os acontecimentos tal como eles ocorreram no decurso da existência. Assim, torna-se possível afirmar que o fato de viver, do ponto de vista humano, é necessariamente acompanhado pela constituição de um tecido narrativo que mantém unidos, por configuração, os acontecimentos ocorridos na história (DELORY-MOMBERGER, 2010).

AS LEIS DE COMPOSIÇÃO DA NARRATIVA DE SI

Uma vez que a experiência imediata é regida pelo princípio da sucessão, que fundamenta a base da sua natureza diacrônica, a atividade narrativa, ao ligar por associação cada uma das sequências da experiência vivida, faz emergir uma lógica quando expressa em palavras, transformando assim a continuidade experiencial vivida em uma experiência configurada e historicizada. Se a vida é acompanhada de um trabalho de prefiguração e de ordenamento tácito dos fatos vividos na vida presente, contar uma história consiste então em construir uma narrativa que contém associações lógicas de acontecimentos, ordenados em diferentes momentos, de modo a configurá-los em uma história. É com base nesses processos que a seguinte proposta pode ser apresentada: a caracterização dos pontos de vista afirmados pelo narrador durante a atividade narrativa é produzida através da análise de duas leis de composição da narrativa de si. As duas leis que agora propomos examinar são as seguintes: a lei de sucessão, que procede por temporalização diacrônica de acontecimentos significativos; a lei de configuração, que procede por associação de eventos biográficos segundo uma dinâmica de historicização. Falta ainda, contudo, construir um método. Propomos começar por uma modelização das relações de tensão entre três polos: a experiência vivida, a experiência narrada e a situação narrativa.

Source :Breton (2020a, p. 37).

FIGURA 1 DIALÉTICAS TEMPORAIS ENTRE EXPERIÊNCIA DE REFERÊNCIA E EXPERIÊNCIA NARRADA 

O primeiro polo diz respeito à experiência vivida. Quando ela é apreendida reflexivamente no curso da atividade narrativa, a experiência vivida torna-se a experiência de referência a partir da qual a atividade narrativa é desenvolvida. Essa experiência de referência pode ser de duração variável. No contexto das histórias de vida, a duração da experiência de referência é potencialmente equivalente à duração de toda a vida do narrador. No caso de uma narrativa sobre a trajetória profissional, a duração da experiência é potencialmente reduzida à duração da vida profissional. No contexto da narração de um momento da vida, ou mesmo de um momento decisivo e significativo, a duração da experiência de referência pode ser de algumas horas ou mesmo de alguns minutos. Seja qual for o prisma escolhido, o princípio não varia: toda experiência utilizada como referência para a expressão em primeira pessoa tem uma duração que se revela determinante para os processos narrativos e os efeitos que eles geram.

O segundo polo diz respeito à relação dialética entre a experiência narrada e a experiência vivida. A experiência narrada é o resultado de um trabalho que se concretiza na elaboração de uma narrativa escrita (um texto) e/ou oral (um discurso), que pode depois ser lida ou contada a outros. Dois aspectos devem ser diferenciados: o conteúdo experiencial da narrativa, que reside na expressão em palavras dos acontecimentos que foram selecionados pelo narrador, cada um dos quais com uma duração cuja acumulação produz a extensão da história; as inferências causais que mantêm os acontecimentos unidos, transformando a sequência cronológica dos acontecimentos selecionados pelo narrador em uma história configurada logicamente. Deve-se notar também que a narração produz efeitos que podem constituir um acontecimento em si mesmo no curso da vida do sujeito.

O terceiro polo diz respeito à situação narrativa. Este parâmetro questiona a distância temporal que separa o momento em que os fatos vividos são experienciados do momento em que esses mesmos fatos são expressos em palavras e narrados. De uma forma técnica, trata-se de caracterizar os processos pelos quais a memória é despertada durante a atividade narrativa, o que permite o acesso às dimensões vivas da experiência sedimentada na memória. Esses processos variam potencialmente de acordo com a distância temporal previamente definida. O progresso nessa reflexão pressupõe forjar uma ou mais teorias de memória passiva (HUSSERL, [1918-1926]/1998).

DEFINIÇÃO DOS REGIMES NARRATIVOS

Uma vez definidos e estabilizados esses três polos, várias observações e comentários podem ser produzidos para definir a noção de regimes narrativos, que variam de acordo com os efeitos de compressão ou de dilatação do tempo produzido pela narrativa. Essa noção pode ser ilustrada de uma forma simples no âmbito das histórias de vida: se tudo que tivesse que ser dito sobre a minha vida precisasse, potencialmente, de uma segunda vida para se contar o que ocorreu na primeira, não se chegaria a uma fórmula suficientemente capaz de dar conta de transmitir à linguagem a densidade da experiência vivida em cada momento. Por essas razões, narrar a própria vida implica produzir escolhas no curso da narrativa. Em outras palavras, quando o narrador seleciona um ou mais períodos, sequências ou passagens, momentos ou instantes que ocorrem no curso da construção da sua história, ele constitui o terreno da narrativa de si, ou seja, da experiência vivida que é o ponto de referência. Ao fazê-lo, ele define o intervalo temporal da experiência de referência a partir da qual a narrativa é construída (operação 1), para, em seguida, em função dessa duração, sequenciar novamente em subunidades para especificar a dinâmica da sucessão e, assim, caracterizar a granulação da experiência de referência (operação 2). Essas operações são produzidas tendo em conta uma restrição determinante: o tempo para expressar a experiência de referência (seja através de um texto escrito ou de um discurso oral) tem uma duração limitada. Os efeitos de compressão ou dilatação acima mencionados resultam do trabalho dialético entre o tempo da experiência de referência e o tempo disponível para a sua narração. Assim, por exemplo, quando um período de dez anos de vida é narrado em trinta minutos, a taxa de compressão do tempo é dez vezes superior à de um período de um ano que também deve ser narrado em trinta minutos. No entanto, é possível, como será examinado abaixo, pensar na relação oposta: capturar uma experiência de vida de referência cuja duração é mais curta do que a atribuída à sua expressão e descrição. Esse é o caso quando Claire Petitmengin (2010) solicita um momento durante o qual foi vivida uma experiência intuitiva de uma duração de alguns segundos, enquanto que o tempo atribuído para contar é de trinta minutos ou uma hora. Nesse exemplo, o tempo atribuído para a narração excede a duração da experiência vivida, tendo como consequência a intensificação do nível de detalhe do fenômeno analisado. A hipótese levantada é, então, a seguinte: a compressão do tempo influencia os processos de temporalização da experiência de duas formas: o número de eventos selecionados na narrativa aumenta ou diminui (efeito 1); o nível de detalhe na descrição dos eventos torna-se mais refinado ou massivo (efeito 2). Em outras palavras, a duração da experiência de referência gera efeitos sobre o nível de detalhe da narração dos fatos, essa variação da duração da experiência narrada e o nível de detalhe dos conteúdos experienciais expressos em palavras produzem efeitos potenciais sobre os processos de configuração da narrativa (BRETON, 2020b) e sobre as dinâmicas inferenciais que regem a configuração dos acontecimentos entre eles. Essa proposta é examinada nas seções seguintes e depois refletida no contexto da formação, com base em abordagens de histórias de vida em formação e, em seguida, na pesquisa na área das ciências humanas e sociais.

O REGIME DA NARRAÇÃO BIOGRÁFICA: COMPRESSÃO DO TEMPO E LÓGICAS DE CONFIGURAÇÃO

Narrar segundo a escala da história da vida é, de acordo com a perspectiva que já apresentamos anteriormente, recorrer a uma experiência de referência, cujo âmbito temporal cobre potencialmente toda a existência. A narrativa biográfica constrói-se através de uma atividade de expressão da experiência, por meio das palavras, de curso longo: história de vida, período de existência, ciclos e transições... O que é trazido à luz é longitudinal, com duração na sucessão de acontecimentos a longo prazo. Isso traduz-se, durante a atividade narrativa, por um trabalho de seleção dos acontecimentos verdadeiramente salientes da existência, deixando assim implícitos ou na sombra os microprocessos cotidianos que se repetem ao longo dos dias e que contribuem, por acumulação e repetição (ALHADEFF-JONES, 2020), para a transformação da existência vivida.

Assim, de acordo com as leis de composição previamente definidas, o sujeito que se envolve em uma atividade narrativa biográfica é levado a selecionar momentos que compõem acontecimentos do curso da vida para, em seguida, associá-los em função de uma lógica baseada no provável, ou seja, nas palavras de Ricœur (1983), a partir do princípio da concordância e discordância. Essa seleção dos acontecimentos significativos ocorridos no presente vivo revela-se drástica durante a atividade de narração biográfica. De fato, potencialmente, quanto maior for a duração do período de experiência apreendido, maior será a intensificação da seleção dos eventos selecionados para a atividade de composição. O trabalho de Baudouin (2010) sobre os regimes cinéticos dos textos colocam precisamente esse problema. Seu estudo, baseado num corpus de vinte e duas narrativas autobiográficas, apresenta vários exemplos que permitem estudar a velocidade do tempo narrado e assim caracterizar diferentes regimes narrativos.

QUADRO 2 PROCEDIMENTOS NARRATIVOS E VARIAÇÕES CINÉTICAS DA NARRATIVA  

Pausa Ação suspensa Importante fator de desaceleração
Cena Ação narrada Fator de desaceleração
Resumo Ações resumidas Fator de aceleração
Elipse Ação omitida Importante fator de aceleração

Fonte: Baudouin (2010, p. 419).

O Quadro 2 acima, proposto por Baudouin e inspirado na obra de Gérard Genette (1972), formaliza quatro modos de composição narrativa a serem diferenciados de acordo com o regime cinético4 das narrativas autobiográficas: a “pausa”, cuja característica é suspender o desdobramento e acomodar uma sequência de descrição mais ou menos detalhada; a “cena”, que mantém em equilíbrio tanto a temporalidade da narrativa descritiva em equilíbrio, quanto a narração biográfica, permitindo a construção da narrativa da história; o “resumo”, cuja função é provocar a conjunção entre as diferentes sequências do texto; a “elipse”, que constitui um tempo oculto durante a narrativa. Segundo o estudo de Baudouin, essas quatro “figuras de composição” combinam-se durante a atividade “bionarrativa” e evoluem de acordo com uma dinâmica de aceleração ou de desaceleração em função dos acontecimentos narrados e dos processos de associação produzidos pelo narrador. A codependência entre a disposição temporal dos fatos e a configuração por associação lógica durante a narrativa está no centro do trabalho de interpretação (MICHEL, 2017). Os fenômenos de desaceleração ou condensação detectados por Baudouin (2010) podem, assim, ser entendidos como sinais de uma atenção particular, do ponto de vista do narrador, para certos acontecimentos que lhe parecem ser fundadores ou determinantes para compreender o significado da existência e das direções que a orientam. Em outras palavras, esses efeitos de desaceleração ou condensação testemunham, na narrativa, o nível de detalhe considerado necessário, do ponto de vista do narrador, para que a narrativa seja ao mesmo tempo completa, coerente e fiel.

A DESCRIÇÃO MICROFENOMENOLÓGICA: DILATAÇÃO DO TEMPO E DINÂMICAS DE ELUCIDAÇÃO

O regime de descrição microfenomenológica procede, ao contrário da narração biográfica, com uma dinâmica de dilatação do tempo vivido devido ao detalhamento da expressão narrativa. Antes de examinar os efeitos da descoberta acerca dos modos de doação da experiência (ZAHAVI, 2010) e de elucidar os processos inferenciais que ela torna possível, vários pontos teóricos e metodológicos merecem ser esclarecidos. De fato, segundo uma distinção clássica na narratologia (ADAM, 2015), a diferenciação entre regimes descritivos e narrativos é feita com base na natureza temporal ou não temporal da expressão em palavras. A descrição está geralmente associada aos processos de enumeração e inventário, o que pressupõe um “encerramento” das dinâmicas de sucessão que regem a narração. Assim, enquanto a descrição diferenciaria os aspectos de um fenômeno a fim de descrevê-lo em seus pormenores, a narração procederia ao contrário, por configuração, associando esses aspectos para gerar uma síntese que, no contexto da narrativa biográfica, constitui a história de vida. Se for correto definir a narração da experiência vivida como “uma atividade temporalizada que visa à expressão em palavras da experiência vivida”, é também possível considerar que toda descrição será necessariamente temporalizada, levando em conta que sua expressão também será construída a partir de uma experiência vivida específica, respeitando uma certa vitalidade experiencial. O que varia então não é a referência a partir da qual se constrói a expressão narrativa, mas o espaço temporal da experiência de referência que passa para a linguagem e a granularidade a partir da qual ela funciona.

Faz-se necessário, então, caracterizar os efeitos desse regime narrativo, que procede através da redução extrema da amplitude temporal da experiência de referência para, em seguida, fragmentá-la em microssequências, mantendo o princípio da sucessão temporal. O processo de dilatação ocorre então quando a duração do tempo narrado excede a da experiência vivida, tornando possível explorar o que Petitmengin (2010) chama de camadas da experiência vivida. Essa atividade de fragmentação é estabelecida por atos e gestos precisos, descobertos e finamente documentados por Vermersch. Se o seu primeiro trabalho (VERMERSCH, 1994) estava profundamente enraizado nas teorias da consciência piagetiana (PIAGET, 1974), nos anos que se seguiram ele iniciou diálogos frutíferos com as correntes da fenomenologia descritiva (DEPRAZ, 2012) e com os teóricos da autopoiesis na ciência cognitiva (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993). Essa junção interdisciplinar tomará forma no livro coletivo intitulado, em sua versão em inglês, On becoming aware (DEPRAZ; VARELA; VERMERSCH, 2011). Entre 1994 e 2012, quando foi publicado o segundo livro, intitulado Explicitation et phénoménologie (VERMERSCH, 2012), emergiu um paradigma conhecido como a descrição fenomenológica da experiência. A entrevista de explicitação, que está em vias de ser renomeada como “entrevista microfenomenológica” (DEPRAZ, 2020), constituiu-se como um método para o estudo fenomenológico e experiencial do vivido de acordo com procedimentos descritivos regulados, analisáveis e reprodutíveis (PETITMENGIN; BITBOL; OLLAGNIER-BELDAME, 2015).

A característica da descrição microfenomenológica é: 1) descrever experiências singulares 2) procedendo por fragmentação 3) a fim de chegar a uma expressão narrativa detalhada e 4) assim, chegar à dimensão “ante-sintética” da experiência para poder descrever os seus componentes. A elucidação característica da descrição resulta, de fato, da suspensão da intencionalidade. Ao favorecer o regime descritivo, as forças performativas características da narração (LAUGIER, 2000) são deixadas de fora do jogo:

Descrever é deixar de fora do jogo a formulação das causas dos fenômenos em favor do relato do que é notado. Por isso o enfoque dado ao “como” em vez do “por que” ou do “quê”, ou seja, aos modos de ser, às modalidades de presença, às qualidades da experiência vivida e aos processos de emergência dos fenômenos. (DEPRAZ, 2014, p. 136)

Descrever procede, então, por uma suspensão provisória das dinâmicas causais características da interpretação durante a narração biográfica, o que permite descrever as dimensões qualitativas e experienciais da experiência vivida a partir do acesso aos modos de donação (MERLEAU--PONTY, [1945]/1976). O método visa a uma apreensão granular da experiência de referência, cuja duração pode variar de alguns minutos a algumas horas, tendo como desafio a transmissão das dimensões perceptivas, corporais e sensíveis à linguagem: fenômenos ambientais, sensações, percepções difusas, estados afetivos, etc. Assim, o regime de poder de descrição encontra-se na capacidade gerada para transmitir à linguagem os aspectos da experiência vivida antes de serem fundidos em sínteses perceptivas. Pode-se, então, considerar que a descrição microfenomenológica capta a experiência “ante-síntese” e procura trazer à luz a singularidade de cada um de seus aspectos (percepção corporal, processos cognitivos, ambientes percebidos, etc.), bem como os processos que permitem a sua fusão. Essa capacidade concedida à descrição microfenomenológica para captar as dimensões qualitativas e detalhadas da experiência vivida faz parte de numa dinâmica de elucidação, ou seja, de compreensão dos microprocessos que determinam os modos de donação da experiência e que produzem a densidade qualitativa, sintética e experimental dos momentos de vida vividos. Assim, se for possível considerar que a narração biográfica cria as condições para uma releitura e exame dos processos de configuração da experiência vivida, no que diz respeito à descrição fenomenológica, ela gera efeitos elucidativos sobre os modos de donação da experiência vivida. Entre a releitura e a elucidação, a dinâmica recíproca dos regimes narrativos de descrição microfenomenológica e de narração biográfica pode agora ser examinada empiricamente.

FORMAR-SE AOS PROCEDIMENTOS PARA A CONDUÇÃO DA PESQUISA NARRATIVA

Nas seções anteriores, foram especificados dois princípios de reciprocidade para pensar a atividade narrativa: o primeiro diz respeito à reciprocidade entre as leis de constituição da “visão de mundo do sujeito” e as leis da composição da narrativa de si; o segundo trata concretamente dos modos de constituição da narrativa e questiona as relações dialéticas entre o tempo vivido e o tempo narrado. Uma vez caracterizados esses elementos, eles podem ser examinados em suas utilizações e efeitos.

Dois níveis podem ser diferenciados: da ética e da metodologia. Do ponto de vista ético, a questão levantada compreende dois elementos: por um lado, os efeitos experimentados pelas pessoas que se engajam em um trabalho narrativo, seja para fins de investigação ou de formação; e, por outro lado, a apreensão exigida pelo pesquisador ou pelo referente da formação para acompanhar um sujeito ou um grupo durante a atividade narrativa. No que diz respeito ao nível da metodologia, a questão colocada é de natureza prática e técnica: trata-se de caracterizar os processos - atos e gestos - através dos quais a atividade narrativa pode encontrar modulações, variando entre narração biográfica e descrição fenomenológica, a fim de gerar processos de compreensão e caracterizar novas formas de conhecimento.

A ética narrativa pressupõe um princípio de prudência devido aos efeitos experimentados na transição da experiência para a linguagem durante a narração e às transformações nas perspectivas de significado geradas pelo exame das relações causais tidas como verdadeiras nos primeiros relatos narrativos da experiência. Experimentar a narração em primeira pessoa é o objeto privilegiado do trabalho de formação através das histórias de vida (LAINÉ, 2004) a fim de captar e apreender suas dimensões concretas, refletindo sobre os efeitos experimentados dentro de um grupo e observando as suas extensões ao longo do tempo. A corrente das histórias de vida em formação, que apreende as práticas narrativas como uma abordagem, um método e uma prática de formação e autoformação, foi assim estruturada desde o início dos anos 1980 na França (PINEAU; MARIE-MICHÈLE, 1983), em outros países da Europa (SLOWIK; BRETON; PINEAU, 2020; MONTEAGUDO, 2008), no Canadá, no Brasil (SOUZA, 2008) e na Ásia (BRETON, 2019b). O dispositivo de formação oferecido aos adultos pode ser descrito da seguinte forma:

  • a primeira fase consiste na definição do enquadramento e de contratualização com o grupo envolvido no dispositivo de formação através de narração biográfica: regras de funcionamento do grupo (entre quinze e vinte pessoas), definição dos desafios, confidencialidade dos comentários, propriedade do material escrito, etc.;

  • fase 2: implicação no trabalho reflexivo e narrativo em subgrupos, a partir de uma primeira narrativa individual, curta e temática;

  • fase 3: primeira tematização no grupo e feedback reflexivo sobre os efeitos experienciados. Apresentação do trabalho ocorre entre duas sessões: escrita da própria história de vida de acordo com a abordagem autobiográfica com vista à socialização no seio do grupo;

  • fase 4: escrita da história de vida em casa, a partir da temporalização de acontecimentos e fatos que ocorreram durante a vida;

  • fase 5: socialização por cada uma das histórias de vida dentro do grupo e partilha da experiência de ser atravessado pela narrativa do outro;

  • fase 6: feedback reflexivo sobre os efeitos vividos e os processos de compreensão resultantes da escrita da história de vida, sua expressão “em primeira pessoa” dentro de um coletivo e a recepção das histórias de vida de outros. Trabalho de tematização coletiva sobre os processos e fenômenos transversais comuns às diferentes narrativas expressas e socializadas.

Essa abordagem da formação através da narrativa tem o efeito de acompanhar o trabalho de narração biográfica, de pensar os efeitos, métodos, teorias e práticas com base em uma dinâmica de imersão que busca a exploração da experiência vivida no âmbito individual e coletivo. Esse trabalho torna-se possível através da alternância dos tempos de expressão da própria narrativa e pela recepção das narrativas dos outros. Durante a formação, essa dinâmica coletiva inclui tempos de síntese, o que permite examinar os dispositivos de acompanhamento, a formalização de procedimentos e a tematização dos elementos que são transversais às histórias individuais. Essa abordagem permite assim forjar uma ética narrativa, combinando os dois princípios acima expostos: viver a experiência da narrativa a fim de medir os seus efeitos ao longo do acompanhamento da abordagem, seja ela construída em um contexto de formação ou de pesquisa; conhecer experimentalmente a abordagem e assim dispor dos recursos para apreender e compreender os saberes e os conhecimentos que circulam através das histórias de vida.

Quanto ao aspecto metodológico, o dispositivo de formação, cujas etapas já foram descritas, pode incluir vários workshops, sendo o apoio ao desenvolvimento das capacidades narrativas (BRETON, 2019a) um dos desafios postos diante das diferentes escalas de tempo. Por exemplo, um workshop pode ter como objetivo narrar um período de vulnerabilidade vivido por uma pessoa que tenha experimentado o início de uma doença no decurso de sua vida. Esse período pode ser colocado em palavras e narrado desde o seu início até a sua integração (sempre precária) na vida quotidiana. Dedicamos dois artigos recentes à descrição dos procedimentos e das passagens característicos da variação dos regimes narrativos com foco na narração do adoecimento (BRETON, 2018, 2020a). Uma forma de proceder, começando a narrativa com uma narrativa biográfica e avançando gradualmente para uma descrição detalhada da experiência, consiste em fazer uma fragmentação gradual do discurso. Assim, a Figura 2 abaixo, que resulta de um processo de temporalização da experiência vivida,5 prepara a narrativa biográfica, identificando os momentos salientes que ocorreram durante um período de cerca de oito meses.

Fonte:Breton (2020b, p. 5).

FIGURA 2 TEMPORALIZAÇÃO DE UM PERÍODO DE VULNERABILIDADE NO CURSO DA EXISTÊNCIA 

De acordo com a figura, a atividade de temporalização da experiência pode ser o resultado de um processo de fragmentação a partir do qual períodos e momentos são identificados no curso da vida. Assim, a experiência vivida pode comportar diferentes escalas:

  • a escala da vida, o que pressupõe apreendê-la narrativamente através da experiência de produzir uma narrativa que capte a experiência em sua continuidade desde o nascimento;

  • a escala do período de vulnerabilidade vivido, sendo necessário concentrar-se em um período de oito meses durante o qual o evento da doença ocorre;

  • a escala de um momento, como exposto no esquema, no qual a atividade narrativa concentra-se no regime de descrição, como, por exemplo, no momento 2, quando a narração procura descrever os efeitos experimentados durante o diagnóstico recebido;

  • a escala do instante, se o foco for colocado nas percepções da atmosfera e nos micromomentos de ruptura das dinâmicas de antecipação vividas durante um instante preciso, no qual se opera a compreensão das consequências do anúncio do diagnóstico dado pelo médico.

O sujeito que se engaja no trabalho narrativo deve, portanto, escolher as palavras durante a narração a fim de decidir o nível de detalhe relevante para a sua narrativa ou para certos episódios vividos, tendo cada um desses níveis um efeito sobre a natureza do texto resultante e sobre os dados assim gerados. Manter uma capacidade de variação da narrativa pressupõe, no entanto, a disponibilidade de indicadores e critérios e o domínio dos procedimentos, de modo que a granularidade possa ser refinada ou massificada de acordo com a experiência vivida e com as modalidades a partir das quais devem ser ditas e narradas para o sujeito. Esses elementos relativos à modulação da narração durante a transição da experiência para a língua são objeto de um exame preciso em várias obras (BRETON, 2016; VERMERSCH, 2012). Dependendo do tipo de trabalho investigativo sobre a experiência realizado e dos dados produzidos, o exercício de releitura e de análise pode, então, questionar: 1) os procedimentos e lógicas que produzem a ordenação da sucessão dos fatos no tempo; 2) os processos inferenciais que geram as relações de causalidade e as relações lógicas mantidas pelo narrador sobre os fatos entre eles; 3) as estruturas narrativas resultantes que guiam os padrões de interpretação da experiência. Propomo-nos examiná-los na seção seguinte, partindo de um extrato de uma narrativa, questionando o estatuto do conhecimento gerado, de acordo com uma dinâmica cruzada entre as dinâmicas de autoformação e as de constituição do conhecimento. Assim, optamos por responder às questões epistemológicas formuladas nas primeiras seções deste artigo, pensando sobre o estatuto do conhecimento na interface da formação e da pesquisa em ciências humanas e sociais.

A PESQUISA NARRATIVA EM CIÊNCIAS SOCIAIS: UMA ANÁLISE DE UMA HISTÓRIA DE VIDA EM QUATRO ETAPAS

A abordagem da pesquisa narrativa, quando mobilizada em um contexto de formação, visa a gerar efeitos de compreensão para o narrador que produz a sua narrativa e para os membros envolvidos no dispositivo de histórias de vida em formação, que experimentam a expressão e a recepção da história de si próprios. Contudo, a pesquisa é também um método de produção de conhecimentos sobre a atividade narrativa, seus procedimentos e, inclusive, sobre os fenômenos sociais que se tornam visíveis através das histórias de vida, como é o caso do uso feito, em particular, pela sociologia. A pesquisa narrativa pode ser situada na interface entre formação e investigação pelas seguintes razões:

  • a abordagem, seja iniciada num contexto de formação ou de investigação, realiza-se através de uma primeira passagem, a da experiência à linguagem (ou seja, a narração da experiência vivida), para se completar em uma segunda, a da configuração da narrativa, que pode tomar forma por um discurso oral ou um texto. Assim, em ambos os casos, a atividade narrativa realiza-se a partir de uma dinâmica de expressão em primeira pessoa que se completa pela socialização da narrativa, cujo destino, em seguida, é ser cointerpretado de uma forma dialógica.

  • o trabalho narrativo, quer seja realizado como parte de um trabalho de formação, quer seja de investigação, faz parte de uma dinâmica de releitura da experiência a partir da qual o narrador transforma a relação com sua experiência. Essa dinâmica de releitura pressupõe a atenção à experiência vivida, aos modos de donação da experiência e às dinâmicas inferenciais que configuram a experiência vivida, que está no direito e na prática da mesma natureza em contextos de formação ou investigação.

  • assim, formar-se pelas histórias de vida é compreender a si próprio, compreender os outros biograficamente e, no mesmo movimento, desenvolver as capacidades de investigação nas ciências humanas e sociais.

  • os resultados da atividade narrativa, sejam eles provenientes de uma dinâmica de formação, sejam de investigação, estão contidos em uma ou mais narrativas que nascem da análise dos mesmos processos: (1) de ordenação temporal da narrativa; (2) das ligações lógicas produzidas pelo narrador que configuram a narrativa; (3) do trabalho de tematização ao nível da história. É essa abordagem em três etapas que iremos ilustrar, utilizando um exemplo concreto. O desafio do trabalho proposto utilizando extratos de narrativas é formalizar uma abordagem semelhante a um trabalho de análise de conteúdo, que é explícita na forma como é realizado e documentado acerca dos critérios que utiliza. Para tal, apresenta-se a seguir um pequeno texto autobiográfico:

    Quando regressei da Índia em 1994, após uma longa estadia de seis meses, voltei para a casa de meus pais, onde me esperava uma carta que havia sido escrita pelo diretor de um centro social em Tours (França). Ele propunha-me um encontro para discutir sobre um projeto associativo no âmbito da economia social e solidária, e queria encontrar-se comigo no enquadramento de meu recrutamento para um “serviço na cidade”. Eu era, então, ansiosamente aguardado pelas autoridades militares que queriam que eu retornasse à corporação para poder completar meu serviço militar de um ano. Meu recrutamento para esse projeto associativo permitia-me escapar de uma integração no exército que se mostrava difícil. Consegui então um horário, quinze dias depois, apesar da carta ter sido endereçada a mim três meses antes. Durante o encontro, em um primeiro momento, tive o cuidado de apresentar minhas competências no campo da educação popular. Após trinta minutos, o entrevistador disse-me que tudo o que eu havia dito era interessante, mas que ele desejava conhecer-me porque pensava que eu tivesse capacidades de gestão e liderança. Eu tinha intencionalmente omitido essa parte de meu perfil profissional, porque pensava que, nesse contexto, isso não me serviria. Por isso, tive que parar e mudar meu discurso. Fui então recrutado, o que me permitiu investir num projeto de criação de uma estrutura de ajuda à integração social através da mobilidade: aluguel de bicicletas, depois motocicletas a preços muito baixos para pessoas sem recursos, através da recuperação e autorreparação. Após três anos de prática, o que me fez passar do estatuto de chefe de projeto para o de gestor de uma estrutura associativa (e que também me permitiu obter um DESS e um DEA6 em ciências da educação), a estrutura associativa estava criada, e a realização de dois recrutamentos permitiu-me pedir demissão do cargo para voltar ao Japão, depois à Índia, para uma segunda longa viagem, de quase um ano. Eu tinha acabado de completar a primeira fase de minha vida profissional.

Com base nessa narração (361 palavras), que cobre um período de três anos de experiência, o processo de análise pode ser organizado em três fases.

  • Primeira etapa: a análise pode começar examinando a dinâmica da reciprocidade entre os processos de temporalização dos fatos e os que estão envolvidos na configuração da narrativa. Isso implica o estabelecimento de uma identificação inicial da sucessão de acontecimentos que constituem a base da narrativa. Assim, a análise da estrutura temporal da narrativa proposta é a seguinte:

  • Segunda etapa: examinar as relações dialéticas em ação e que se situam entre o princípio da sucessão temporal da experiência e a dinâmica de associação regida pelo trabalho inferencial que contém os fatos de uma história contida na narrativa. Assim, o primeiro passo da análise de conteúdo é identificar os momentos marcantes da narrativa, aquilo que o narrador chama “a primeira etapa da vida profissional”. A brevidade do texto proposto pode dar a impressão distorcida da simplicidade dessa primeira operação. É de fato muito mais complexo quando a narrativa é sobre toda a vida e se estende por dezenas de páginas, como é o caso dos relatos biográficos ou autobiográficos. Três critérios podem, contudo, ser considerados, com base na narrativa proposta, para a realização dessa primeira operação: 1) a identificação e o exame de eventos significativos; 2) a identificação de eventos que permaneceram menores ou mesmo ausentes da narrativa; e 3) o ritmo durante a sucessão da ocorrência de eventos. A análise cruzada desses fatores permite, assim, documentar o que, do ponto de vista do narrador, 1) é um acontecimento no fluxo da experiência; 2) faz parte de uma dinâmica de continuidade; e 3) prefigura e sinaliza a atribuição ao narrador de inferências causais.

    Critérios de análise de conteúdo relativos ao princípio da sucessão temporal: a recensão de acontecimentos que ocorreram no curso da experiência (critério 1): cinco acontecimentos são identificados no extrato apresentado. Quais são os momentos que permaneceram na “sombra narrativa” (critério 2)? Qual é o nível de detalhe requerido e pertinente pela narrativa de cada um desses momentos (critério 3)? O segundo critério permite constatar o que é tido como necessário, do ponto de vista do narrador, para que a narrativa esteja completa.7 O terceiro critério permite constatar, por comparação, a importância dada pelo narrador a cada um dos momentos salientes da narrativa. Ele fornece informações sobre a estrutura do enredo que constitui a narrativa e caracteriza o modo de constituição sobre o ponto de vista.

  • Terceira etapa: examinar os processos inferenciais e a natureza das relações lógicas que eles estabelecem na narrativa. A exposição dos fatos, tal como são relatados na narrativa, tem o efeito de apresentar uma história que, do ponto de vista lógico, manifesta uma forma de prova. Para Ricœur, as relações causais que associam os eventos que ocorreram sucessivamente no curso da vida provêm de um princípio de concordância produzido a partir do provável. Assim, é possível questionar, no contexto do trabalho de análise dos modos de composição da narrativa de si, as dinâmicas inferenciais a partir das quais as relações causais entre os fatos são produzidas. A produção de relações causais no curso da atividade narrativa pode ser imposta ao narrador sobre a forma de evidência e de naturalidade, de acordo com uma dinâmica inferencial, a qual prima pela dedução baseada em um significado já existente e em critérios que fundamentam a interpretação. No entanto, a atividade de releitura pode ser a oportunidade para uma análise crítica das relações causais que sustentam o caráter orgânico e lógico da narrativa: por exemplo, seria necessário completar o inventário de fatos e acontecimentos contidos na narrativa? Seria necessário explicitar os critérios que, do ponto de vista do sujeito, contribuem para a construção do princípio da concordância e produzem percepções da evidência ou do provável no texto?

    Critérios de análise de conteúdo a partir de dinâmicas inferenciais: na narrativa apresentada, são produzidos diferentes tipos de inferências, mesmo que o texto pareça, à primeira vista, muito descritivo. Seguem três exemplos: do ponto de vista do narrador, o texto permite expressar em palavras um período de vida que se apresenta como um todo, intitulado: “primeira fase da vida profissional” (exemplo 1). Do ponto de vista do narrador, uma sequência lógica é expressa na sucessão dos seguintes fatos: recepção da carta, entrevista de seleção, compreensão do que está em jogo na conversa, ajuste dos procedimentos de argumentação, acesso ao cargo (exemplo 2). Do ponto de vista do narrador, essa sequência de fatos cria as condições necessárias para que um sentimento de realização surja, abrindo o caminho para um período de mudança (exemplo 3). Assim, é possível apresentar a seguinte proposta: a definição dos limites temporais do período resulta de uma forma de abdução que se realiza no momento da expressão em palavras e da configuração da narrativa. No segundo exemplo, a inferência é dedutiva, sendo o procedimento de recrutamento formalizado de acordo com etapas genéricas, cujo respeito serve de critério para compor a narrativa e indicar uma dinâmica. No terceiro exemplo, a inferência é transdutiva, por analogia do significado percebido durante o período narrado e a subsequente dinâmica de vida.

  • Quarta etapa: tematizar a experiência, entre conteúdos, processos e matrizes. A atividade narrativa, devido à dinâmica de desestruturação/reestruturação (FERRAROTI, 1983, p. 50) produzida pelos procedimentos de captação da experiência vivida, de escrita e de releitura, coloca em suspenso o significado presente e já existente, trazendo para a pesquisa dois planos: do conteúdo da experiência; das inferências que são produzidas para que a continuidade experiencial vivida seja expressa em palavras e inscreva-se em esquemas narrativos que permitam a constituição da narrativa de si.

Fonte: Elaboração do autor.

FIGURA 3 TEMPORALISAÇÃO SEGUNDO A SUCESSÃO DE EVENTOS APRESENTADOS DA NARRATIVA 

QUADRO 3 MÉTODO DE RELEITURA DAS NARRATIVAS NO CURSO DA PESQUISA BIOGRÁFICA 

CONTEÚDOS DA EXPERIÊNCIA
Recensão dos eventos ocorridos no curso das experiências vividas
PROCESSOS INFERENCIAIS E CONFIGURAÇÃO DA EXPERIÊNCIA VIVIDA
Análise das inferências que produzem as relações de causalidade
MATRIZES NARRATIVAS ESTRUTURANTES DA NARRATIVA
Tematização dos conteúdos e dos processos narrativos
• Contexto: data, lugar, desenvolvimento
• Critério 1: grau de completude do inventário de fatos
• Critério 2: granularidade da expressão narrativa
• Dedução/indução
• Transdução/abdução
• Temas organizadores da narrativa
• Primado interpretativo: do vago ao determinado

Fonte: Elaboração do autor.

De acordo com a abordagem proposta, uma maneira de apreensão dos dados produzidos pela pesquisa narrativa a partir de uma perspectiva abrangente (FINGER, 1984) e qualitativa (BERTAUX, 2016) pode envolver quatro fases: 1) análise dos processos de estabelecimento da sucessão de fatos; 2) análise das inferências que produzem uma continuidade experiencial; 3) estudo das dinâmicas inferenciais gerando relações causais; e 4) análise dinâmica das estruturas narrativas que configuram a narrativa de si. Essas quatro etapas parecem-nos pertinentes para caracterizar, em contextos de formação de adultos, os processos que geram efeitos transformadores. São também relevantes para o fundamento do conhecimento no campo das ciências da mente, ou seja, das ciências humanas e sociais.

EM SÍNTESE

A pesquisa narrativa foi definida neste artigo em relação a uma epistemologia. Ao examinar os efeitos gerados nos domínios da educação de adultos e das ciências sociais pela variação dos regimes narrativos sobre os processos de compreensão e formalização do conhecimento, foram especificados os efeitos da narração da experiência. A continuação dos trabalhos sobre a função e a potência da pesquisa narrativa faz parte de um espaço de discussão na interface entre as ciências da educação, a formação, as ciências linguísticas e as abordagens qualitativas em sociologia. Assim, embora a noção de pesquisa narrativa tenha sido objeto de trabalhos importantes destinados a situar essa abordagem no campo da pesquisa qualitativa (DENZIN, 1989; CLANDINI; CONNELLY, 2000), ela deve também ser objeto de um trabalho específico que deve situar-se no cruzamento entre as dinâmicas de formação, a compreensão e a construção do conhecimento, com base em trabalhos oriundos da hermenêutica, da fenomenologia descritiva e da formação experiencial. Este texto pretende contribuir para a emergência de um espaço de pesquisa sobre os regimes da narrativa e suas potências voltados para os processos de autoformação e de constituição do conhecimento no campo das ciências humanas e sociais.

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3Segue a nota de Cremonesi et al.: “Na lição de 10 de fevereiro de 1982, usando uma expressão de Plutarco, Foucault especifica que, no contexto do antigo ascetismo filosófico, o que é decisivo é o carácter ‘etopoiético’ ou não do conhecimento: quando o conhecimento funciona de tal forma que ele é capaz de modificar, de transformar o éthos - ou seja, o modo de ser, o modo de existência do indivíduo - então e somente então ele é considerado útil” (2013, p. 18).

4Baudouin (2010, p. 413) define os “regimes de economia cinética de um texto” da seguinte forma: “A ‘relação’ entre uma quantidade crônica e um número de caracteres permite estabelecer empiricamente ‘regimes de economia cinética’”.

5A Figura 2 é baseada em uma revisão da experiência de peregrinação terapêutica do autor. Foi produzido e apresentado como parte de um estudo do trabalho narrativo e dos aspectos particulares da narração da experiência da vulnerabilidade (BRETON, 2020a).

6Diploma de Estudos Superiores Especializados (DESS) e Diploma de Estudos Avançados (DEA). Esses são diplomas de nível 1, antes dos diplomas do ensino superior terem sido transformados em mestrados.

7Ver Ricœur (1983, p. 85): “Uma após outra, é a sequência episódica e, portanto, a improvável; uma por causa da outra é a sequência causal e, portanto, a provável. Já não permitido ter dúvida: o tipo de universalidade que a trama tem é a que a torna completa e total”.

Recebido: 08 de Março de 2020; Aceito: 12 de Julho de 2020

TRADUÇÃO DE Camila Aloisio AlvesII http://orcid.org/0000-0002-3477-0367

II

Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP), Petrópolis (RJ), Brasil; camila.aloisioalves@gmail.com

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