Neste artigo, discutimos a adaptação do conceito de afiliação, proposto pelo sociólogo francês Alain Coulon para investigar a passagem do ensino médio para a educação superior, aos estudos sobre a transição do quinto para o sexto ano do ensino fundamental. Para demonstrá-la, apresentamos um diagnóstico multidisciplinar realizado com alunos de sexto ano em uma escola pública de grande porte.
A expansão da educação fundamental no Brasil é um fenômeno relativamente recente. Somente na década de 1990 o país se viu diante de taxas de atendimento de 7 a 14 anos superiores a 90% nas suas escolas, e, em 2020, elas se aproximavam de 100%.1 Por outro lado, há entraves que desafiam os gestores e professores para a democratização da educação, com ainda altas taxas de retenção e de evasão.
O sexto ano (antiga quinta série) é um gargalo conhecido do fluxo do ensino fundamental. O nível de reprovação no sexto ano no Brasil em 2018 foi alto - 11,7%, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep, 2018) -, ainda que o de abandono tenha sido de 2,5%. Quando observada a rede pública, as taxas subiram para 13,2% e 3,0%, respectivamente, no mesmo ano, o que não é uma surpresa. São vários os motivos do choque2 do aluno ao migrar para um ano no qual não há mais “tias”, no qual os professores - em número muito maior - nem sempre sabem seu nome, no qual os garotos maiores no recreio podem ser ameaçadores etc. Isso acontece em grau mais intenso se houver mudança de escola. Muitas vezes, inclusive, a mudança de escola significa mudar também de zona rural para zona urbana, o que traz mais desafios.
Um outro fator diz respeito à (falta de) preparação da escola para a transição. Em muitos casos, as escolas não se preparam para institucionalmente reconhecer seus alunos em suas particularidades, por muitas razões, e não se organizam para que a mudança de anos e escolas se dê de maneira orgânica. Nesses casos, na transição do quinto para o sexto ano, os alunos precisam, sozinhos, construir uma competência que lhes permita adaptar-se ao novo espaço formal de aprendizagem, a suas normas explícitas e implícitas, tanto em relação às questões mais acadêmicas quanto institucionais.
Importante considerar tanto a transição educacional dos anos iniciais do ensino fundamental para os anos finais quanto a adolescência, potencialmente deflagrada pela puberdade que, em termos de faixa etária, se inicia em torno dos 8 ou 9 anos para as meninas e 9 ou 10 anos para os meninos, idades aproximadas que podem variar de acordo com questões nutricionais, sociais e culturais. A adolescência não é um processo natural vivido do mesmo modo por todos os jovens. De acordo com Le Breton (2011), a cultura é uma condição para sua existência, sendo a adolescência fruto de uma sociedade de indivíduos na qual os rituais coletivos de transição não mais existem.
Ademais, as desigualdades sociais colaboram para a produção de adolescências diversas. Desse modo, como afirma Guareschi (2012), é preciso romper com ideias essencializadas da adolescência. Advertidas desse cuidado e observando os jovens com os quais trabalhamos na pesquisa, consideramos válido pensar a transição educacional articulada à entrada na adolescência, vivida em condições e temporalidades subjetivas muito diversas. Os sujeitos, cujo processo de afiliação discutimos no artigo, afirmaram-se adolescentes nos nossos encontros, o que certamente é um efeito de subjetivação, como afirma Guareschi (2012), apoiada em Foucault, posto que se pensam a partir das referências socioculturais das comunidades às quais pertencem. Interessou-nos, por outro ângulo, como eles subjetivam essa experiência referida como adolescência enquanto vivenciam a transição educacional.
Acrescem-se a esse panorama fatores estruturais e funcionais das redes de educação e das escolas, como a falta de políticas específicas para os anos finais do ensino fundamental (Davis et al., 2013), falta de políticas de articulação entre os anos escolares - agravada pela eventual ausência de coordenação pedagógica (Leite, 1993) -, falta de professores, professores que assumem disciplinas para os quais não estão preparados e infraestrutura escolar insuficiente. Ainda que não sejam o foco específico deste trabalho, tais questões também dificultam a transição do quinto para o sexto ano do ensino fundamental.
Apesar de não trabalhar especificamente com a transição educacional em questão, o sociólogo Alain Coulon apresenta reflexões instigantes acerca da passagem do ensino médio para a educação superior. O autor propôs que o ingressante, na busca de novo status, aprende o ofício de estudante universitário. Diz Coulon (2008) que, na passagem para o ensino superior, o secundarista precisa desenvolver outros esquemas culturais para se tornar membro de uma nova cultura, “mais complexa, mais sofisticada, tão mais difícil de decodificar” (p. 42). O processo de aquisição do novo status é denominado pelo sociólogo como afiliação, caracterizando-a como afiliação institucional e afiliação intelectual. As questões acadêmicas dizem respeito aos conteúdos e ao como fazer/pensar que é adotado na educação superior. A afiliação institucional envolve aprender os locais e as regras da instituição, como matrícula, frequência etc. Para a afiliação, Coulon propõe estágios: estranhamento, aprendizagem e afiliação propriamente dita. Permanece na educação superior aquele aluno que se afilia, torna-se membro. Há um esforço nesse processo que não se realiza espontaneamente, podendo ser facilitado ou dificultado a depender dos processos institucionais.
Para investigar o processo de transição do quinto para o sexto ano do ensino fundamental na escola pública no Brasil, propusemos uma adaptação do conceito de afiliação. Assim, afiliação seria a aquisição de status de aluno dos anos finais. Nessa proposta de adaptação do conceito, buscamos conhecer o que o aluno estranha e como se dá sua afiliação.
Ao investigar a transição do aluno do quinto para o sexto ano, buscamos refletir sobre o próprio uso do conceito de afiliação. Suas dimensões “institucional” e “intelectual” são suficientes? As fases de “estranhamento, aprendizagem e afiliação” permitiram a análise da transição quando o sujeito observado é um adolescente, e não um jovem ou jovem adulto? É possível adotar para o ensino fundamental uma proposta criada para pensar a transição do ensino médio para a educação superior?
Aplicamos o conceito de afiliação adaptado na concepção de uma pesquisa diagnóstica realizada em uma escola pública integrante da rede municipal de educação de uma cidade localizada na região metropolitana de Salvador, Bahia. Neste trabalho, apresentamos brevemente a pesquisa e alguns de seus resultados para ilustrar o uso do conceito na passagem dos anos iniciais para os anos finais do ensino fundamental.
A pesquisa diagnóstica foi a fase inicial de uma pesquisa de intervenção, cujo intento é investigar a transição do quinto para o sexto ano do ensino fundamental, com objetivo geral de desenvolver uma tecnologia de apoio a essa transição, considerando-se a rede municipal de educação, a gestão escolar e a sala de aula. A pesquisa de intervenção é vinculada à proposta das fundações Carlos Chagas e Itaú Social de investir na busca de qualidade da educação nos anos finais do ensino fundamental.
Para a coleta de dados dessa fase inicial, realizamos uma atividade de desenho com todos os 280 estudantes de sexto ano da unidade escolar, na qual buscamos levantar seu sentimento em relação à escola. Em seguida, foram feitas três rodas de conversa (Sampaio et al., 2014; Henares de Melo & Cruz, 2014) com um total de 38 adolescentes cujas idades variavam entre 11 e 14 anos, a maior parte meninas. Para concluir a etapa diagnóstica, conduzimos quatro oficinas de fotografia e desenho, as quais contemplaram 45 alunos, alguns dos quais haviam participado das rodas de conversa. Esses encontros foram fotografados, gravados e posteriormente transcritos. Sobre o texto transcrito, nessa fase do diagnóstico, foi feita análise de conteúdo, com categorias propostas após as primeiras leituras do material.
A escola foco da pesquisa é a maior unidade de ensino da rede municipal, com aproximadamente 1.600 matrículas em 2019 (ano da coleta de dados), que atende os anos finais do ensino fundamental (sexto ao nono ano), oferecendo vagas para as turmas de ensino regular, Tempo Formativo Juvenil e Segundo Tempo Formativo da Educação de Jovens e Adultos (EJA), que funciona nos três turnos (matutino, vespertino e noturno), acolhendo alunos de 9 a 17 anos, no período diurno (ensino regular e Tempo Formativo Juvenil), e entre 15 a 60 anos, no turno noturno, com turmas de Tempo Formativo Juvenil e de EJA. No quadro docente, a escola conta com 46 professores efetivos e 28 professores com vínculo contratual com a Secretaria de Educação, com um Indicador de Formação Docente de 61,6%.
Ainda sobre a escola foco, vale o registro de que concentrava 80% das matrículas nos anos finais do ensino fundamental do município no momento da coleta de dados, o que implicava alunos dos mais variados bairros e escolas de origem (inclusas as de zona rural) se encontrarem em um espaço muito maior e mais diverso que a escola anterior em que estudaram. A identidade da escola e dos alunos é mantida em sigilo. Desse modo, adotamos “Escola” para designar a instituição em foco na pesquisa e as letras AL para indicar a fala dos alunos.
Neste artigo, iniciamos apresentando o conceito de afiliação, adaptando seu uso aos anos finais do ensino fundamental. Em seguida, sistematizamos alguns dos resultados produzidos com base na adaptação do uso do conceito no estudo sobre a transição para o sexto ano de estudantes da Escola. Foi dada ênfase às fases de estranhamento e de aprendizagem. Nas considerações finais, fazemos uma reflexão sobre a adaptação do conceito de afiliação ao ensino fundamental.
Dialogando com Coulon: do ofício de universitário para o ofício de estudante dos anos finais do ensino fundamental
No cenário da democratização da educação superior francesa e das pesquisas sobre sucesso na educação superior, Alain Coulon publicou, em 1995, a primeira edição do livro Le metier d’etudiant: l´entrée dans la vie universitaire.3 Em 2005, quando da segunda edição do livro, o autor argumentava que a democratização do ensino não havia sido acompanhada pela democratização do acesso ao saber e defendia o objetivo de favorecer a “aprendizagem intelectual dos estudantes”, a “entrada no ofício de estudante”.
A etnometodologia (Garfinkel, 2007; Coulon, 1995a, 1995b, 1995c; Santos, 2007) compreende os indivíduos como autores que vivenciam e modificam a realidade ao seu redor através de suas interações diárias e seu contexto. Desse modo, são privilegiadas as interpretações que os atores fazem dos fatos sociais e as descrições do ambiente em que atuam, em vez de buscar explicações para os seus comportamentos. No entanto, ao adotar uma abordagem microssocial dos fenômenos, a etnometodologia não os desvincula de seus contextos ampliados, entendendo que o problema estudado é um fenômeno complexo no qual entra em jogo um grande número de parâmetros habitualmente situados no nível macro (Coulon, 1995b).
A etnometodologia toma igualmente posição contra a compreensão durkheimiana de que a realidade objetiva dos fatos sociais seria o fundamento da sociologia. Assim, a etnometodologia se inscreve nas proposições da sociologia da vida cotidiana.
Criticando Durkheim, Coulon (1995b, pp. 25-26) escreve: “a abordagem etnometodológica considera os fatos como ‘realizações práticas’ e não como ‘coisas’. A etnometodologia interessa-se prioritariamente pelo ‘social se fazendo’ e não pelo ‘social consolidado’”. Ao tentar esclarecer as dificuldades e mal-entendidos em relação à etnometodologia, Santos (2007) afirma não restar qualquer dúvida quanto à finalidade da pesquisa de Garfinkel, que se volta para a descrição das maneiras como os indivíduos constroem e compreendem sua vida, seus métodos de realização da vida de todos os dias. É a compreensão da sociedade se constituindo enquanto tal.
É ainda Coulon (1995a, 1995b, 1995c) quem vai estabelecer a importância da etnometodologia para a educação na medida em que tal abordagem permite apreender fenômenos que escapam às abordagens clássicas: o fato de tratar da questão da aprendizagem e da interiorização das regras pelos sujeitos sociais aumenta a chance de essa abordagem trazer para o campo da sociologia da educação análises promissoras. Podem-se incluir, como temas que se beneficiariam de um tratamento etnometodológico, o fracasso e a exclusão escolar, na medida em que é no cotidiano da escola, no interior da malha de interações entre alunos e professores, que ocorrem. Do mesmo modo, a compreensão do tema da transição entre o quinto e o sexto anos pode ser beneficiada, e aqui apresentamos a adaptação da proposta de Coulon.
Em 2008, Sampaio e Santos traduziram Le metier d’etudiant: l´entrée dans la vie universitaire para a língua portuguesa, adotando-a nos estudos sobre vida estudantil, com foco inicial na Universidade Federal da Bahia. A partir de então, o conceito de afiliação passa a ser utilizado em vários estudos, sempre com foco no estudante da educação superior, a exemplo de investigações das autoras deste artigo. Será que não poderíamos também abordar a questão da transição, investigando como o aluno que passa do quinto para o sexto ano - na transição também para a adolescência - aprende esse novo métier?
Coulon (2008, p. 32) defende que o “sucesso acadêmico depende, em grande parte, da capacidade de inserção ativa dos estudantes em seu novo ambiente” e que o fracasso e o abandono estão relacionados ao não domínio das “exigências intelectuais, métodos de exposição do saber e dos conhecimentos e os habitus dos estudantes que ainda são alunos”. Ou seja, sucesso ou fracasso estão ligados a tornar-se ou não membro daquele novo lugar/grupo/tempo, a aprender as novas regras, a dominar as ferramentas.
Considerando que esse processo também ocorra na transição dos anos iniciais aos anos finais do ensino médio, vale questionar, então: que etnométodos os alunos de sexto ano adotaram para se inserir em uma escola nova em um ano novo com professores novos? Que etnométodos têm sido válidos para a permanência na escola pública? Que rotinas são facilmente absorvidas, e quais são mais desafiadoras? Por etnométodos entendem-se “práticas empregadas no senso comum e os sentidos que os indivíduos atribuem a suas ações, sejam elas triviais ou eruditas” (Sposito et al., 2017, p. 1256).
Para o antropólogo Van Gennep4 (2011, citado por Sampaio & Santos, 2015, p. 206), a passagem compreende as transições ritualísticas em que um indivíduo muda de status em seu grupo, sugerindo um processo em três etapas consecutivas: separação, transição e incorporação. Já Coulon (2008) descreveu a transição em tempos: estranhamento, aprendizagem e afiliação propriamente dita.
Assim, longe de constituir-se como fato natural, evidente ou espontâneo, o estatuto de estudante requer esforço, assemelhando-se à aprendizagem de um novo ofício e, de certo modo, de um jogo sofisticado em meio às regras e aos conhecimentos característicos da vida universitária. (Sampaio & Santos, 2015, p. 206).
Ademais, há que se considerar a significativa diferença entre as transições vividas grupalmente e operadas por meio dos rituais coletivos e o trabalho de afiliação no contexto de uma sociedade de indivíduos que recaia sobre o aluno, o qual, como já mencionado, não necessariamente contará com dispositivos institucionais que facilitem sua transição.
Ao adaptarmos o conceito de afiliação para analisarmos a transição do quinto ao sexto ano do ensino fundamental, ficou evidente o papel da gestão escolar e da gestão da rede pública de ensino nesse processo, visto que um aluno de quinto ou sexto ano tem menor repertório e autonomia do que aquele que transite entre ensino médio e educação superior e, portanto, merece que a instituição ofereça condições para que esse novo ofício seja aprendido sem tanto sofrimento.
Que paralelos estabelecemos entre a transição do ensino médio à educação superior e dos anos iniciais aos anos finais do ensino fundamental? O quadro a seguir apresenta uma síntese dos argumentos de Coulon na construção e adoção do conceito de afiliação e os paralelos para sua adoção no sexto ano do ensino fundamental.
Dimensão | Argumento adotado por Coulon | Argumento que adotamos |
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Ano-chave | O primeiro ano do ensino superior é aquele no qual o aluno deve aprender o seu ofício ou acaba fracassando (ano catastrófico). | O sexto ano é aquele, dos anos finais, com mais alto percentual de reprovação. É quando o aluno recebe maior autonomia e não está tão tutorado. |
Conquista da autonomia | Coulon se refere à mudança do lugar do saber, à oposição aos discursos parentais com novos discursos construídos entre pares. | Com as mudanças da adolescência e de instituição de ensino, trata-se da conquista da autonomia, através da ampliação de sua rede social e dos primeiros movimentos de apartar-se das referências parentais. A relação entre os pares e a apropriação da nova realidade, com múltiplas disciplinas e professores, podem facilitar ou não a conquista da autonomia. |
Rupturas simultâneas ocorridas na vida e na escola | Passagem para a educação superior acompanhada por mudanças nas condições de existência, vida afetiva (saída do seio da família) e ruptura pedagógica (mudança na relação com os professores, “tempo do anonimato”). | Passagem para os anos finais do ensino fundamental marcada pelo início da adolescência, mudanças corporais, primeiras experiências sexuais, indagações acerca da identidade de gênero e orientação sexual, mudança no lugar ocupado pela família como referência central, exploração de novos territórios em sua cidade, contato com a pluridocência, relação menos “familiar” com os professores. |
Responsabilidade institucional com o sucesso do estudante | Adoção ou ausência de dispositivos institucionais afetam o desenvolvimento da afiliação do estudante. | Nosso argumento se iguala ao de Coulon, sem necessidades de adaptações. Ações isoladas de professores, por exemplo, não dão conta do processo de afiliação. É preciso pensar nos dispositivos institucionais na análise dos processos de afiliação e da permanência. |
Modificação na relação com o tempo | Há modificação nas exigências na universidade (maiores e mais frouxas) para o estudante que implicam a necessidade de reorganização do tempo e do ritmo de trabalho. | Há modificação do número de disciplinas, diferentes aulas por dia, que implicam reorganização do tempo de estudo e vida. Vale atentar para as “redes sociais” como um elemento importante no redimensionamento da relação tempo e espaço. |
Modificação na relação com o espaço | Para o autor, os estudantes apontam que o espaço de uma universidade é maior que aquele de um colégio, o que faz com que se percam inicialmente e seja necessário aprender a se movimentar. | A mudança de uma escola de anos iniciais, menor, para outra de anos finais, maior, pode trazer o desafio da localização de salas, cantina, áreas comuns, banheiros, dentre outros. Ademais, o modo como se apropriam desses espaços - por exemplo, a cantina - traduz as relações de poder entre os alunos. |
Modificação na relação com o saber | Maior amplitude dos conhecimentos, necessidade maior de síntese e de relação com atividade profissional futura. | Organização dos anos finais mais próxima do ensino médio que da “lógica” dos anos iniciais, passagem de um pensamento concreto para um raciocínio lógico-formal. |
Dimensão | Argumento adotado por Coulon | Argumento que adotamos |
Modificação na relação com as regras | O estudante precisa dominar o sistema complexo de regras institucionais e não institucionais, buscando o “sentido do jogo”, para conseguir sua afiliação. | Do mesmo modo, o sextanista precisa aprender as novas regras explícitas e as derivadas da cultura informal dos anos finais, referentes à rotina da escola e apropriação dos espaços. Por outro lado, há uma demanda grande do professorado pela participação da família na escola, o que, boa parte das vezes, não acontece. |
Fonte: Elaboração das autoras.
Coulon, ao comentar sobre o sistema francês, afirma que os processos de afiliação no ensino médio passam desapercebidos, pois seu país dispõe de dispositivos institucionais - por exemplo, orientação, conselho de classe, entre outros - “que lhes faz acreditar que estão no lugar que merecem”, mas afloram fortemente na entrada da universidade, quando os estudantes se veem “experimentando muita ansiedade” (Coulon, 2008, p. 36). Em nossos contatos com os sextanistas, o medo e a ansiedade estão presentes com muita intensidade, especialmente nos primeiros meses da transição. Nossa hipótese, ao adaptarmos o conceito de afiliação para uso com esses alunos, é que é possível observar os tempos de estranhamento, aprendizagem e afiliação também nos anos finais do ensino fundamental.
“E quando eu entrei aqui, eu já entrei com o meu coração na mão”: notícias sobre o estranhamento
Aos alunos do sexto ano perguntamos o que sentiram no seu primeiro dia de aula. As palavras “medo”, “ansiedade” e a expressão “frio na barriga” foram empregadas por vários dos estudantes em resposta à nossa questão. Em alguns casos, essas sensações tinham origem em posicionamentos de pais e mesmo de professores que descreviam um cenário mais violento e sombrio para o sexto ano, em uma escola maior que aquela de origem. Durante as atividades de coleta de dados, fomos identificando outros elementos que provocaram estranhamento.
As categorias propostas por Coulon (2008) não deram conta dos elementos mais mencionados nas nossas coletas de dados: aqueles voltados para a relação com o outro, muito mais evocados que os que diziam respeito às relações com tempo, espaço e mesmo as regras, ainda que estivessem também presentes. Tal diferença pode ser compreendida, em parte, pela importância das mudanças vivenciadas na adolescência, especialmente no que diz respeito à imagem corporal e à relação com a alteridade (Alberti, 2010). A desconstrução do corpo infantil provocada pela puberdade pode lançar o sujeito em um duplo movimento: luto e reconstrução da sua imagem corporal. A busca por um estilo, através do qual possa marcar presença no campo social, faz parte da reconstrução dessa imagem. Durante a reconfiguração de si, há uma grande sensibilidade no que diz respeito ao olhar do outro. Por esse motivo, o bullying alimenta situações de sofrimento psíquico.
Sobre a alteridade, os conflitos com os pais apareceram como questão para alguns, sobretudo os que saíam para as praças, as festas e iniciavam-se nos namoros. Alguns professores e coordenadores apareceram como pessoas de referência, além dos ídolos da música. Ainda no tocante à dimensão intersubjetiva, a experiência de se perceber adolescente, entre os jovens com quem conversamos, é atravessada por preocupações relativas a diversas formas de violência dentro e fora da escola. As questões referentes aos seus territórios de origem e aos conflitos que migram dos territórios para a escola merecem destaque. A convivência com a violência decorrente do tráfico e as cenas cotidianas de violação de direitos são elementos que produzem diferença nos processos de subjetivação atrelados à adolescência.
A síntese do panorama de estranhamento está apresentada na Figura 1 e já inclui a dimensão “relação com o outro”. Nessa dimensão, a menção a namoros e “amor” apareceu um maior número de vezes, seguida por questões que diziam respeito à bullying, “situações” que envolvem deixar o outro em situação desconfortável, brigas, discriminações e preconceitos, amizades e solidão (às vezes, decorrente de uma percepção de “traição” ou “falsidades”).
Relação com o outro
O aluno do sexto ano está entrando na adolescência, como destacado anteriormente. Esse aspecto é crucial para que se possa compreender as questões que envolvem a transição do quinto para o sexto ano e se reflete na fala dos participantes das oficinas e rodas de conversa. Em adição, é importante perceber que os alunos estão curiosos, mas que não detêm, ainda, um repertório que os “proteja” das “ameaças” que percebam nos outros e, eventualmente, adotam uma resposta mais agressiva. Vale lembrar que, na Escola, há alunos oriundos dos bairros centrais, mas também dos periféricos e mais violentos. Nesse panorama, segundo os alunos, conversar ou negociar com aquele que incomoda é mais difícil que fazer uma intervenção física, como pode ser visto no depoimento a seguir.
Tem muita gente invejosa, que não aguenta ver o outro fazer uma coisa e quer fazer também. Deixa eu ver, não tem como diferenciar amizade falsa da verdadeira. A gente fica com raiva, dá vontade de bater e matar. (AL48).
Nos processos de transição, portanto, cabe à escola buscar estratégias de diálogos sobre os temas: amizade, namoros, solidão, bullying (em muitos casos entendido como “brincadeiras”) e mesmo as brigas. Além disso, os processos pedagógicos devem observar que, entre os alunos, há reforço de atitudes preconceituosas e discriminatórias que, sem uma intervenção escolar, podem se consolidar. Durante as coletas de dados, foram observados racismo, misoginia, gordofobia, homofobia, transfobia e questões discriminatórias ligadas à religiosidade e ao bairro de origem, especialmente se localizado em área rural.
Quando aquela menina ali chega, o pessoal fica falando: “Parece que veio da África”. Ó paí. Só porque a menina é preta. (AL95).
Quando ele tomar vergonha na cara. Homem gosta de mulher e mulher gosta de homem, né? (AL102).
Em várias oportunidades de contato com os professores e diretores de escolas, observamos que também eles não têm repertório para lidar com essas questões. Por exemplo, um aluno que beije uma aluna no fundo da sala ou duas alunas que declarem estar namorando são fatos recebidos com apreensão por alguns professores, e, por vezes, implicam encaminhamento dos “transgressores” para a coordenação. Alguns comportamentos desviantes do padrão considerado “normal” são rapidamente considerados indicativos de necessidade de envolvimento da rede de proteção aos alunos, que inclui psicólogos, médicos ou até mesmo a polícia.
Entre os garotos, o medo “de apanhar”, de ser forçado a consumir drogas ou de se envolver no tráfico e, entre as meninas, o medo de serem forçadas a se iniciar sexualmente ou de não conseguirem fazer amizades fazem parte da apreensão. Tais temores apontam para a questão da violência como sendo uma questão central a ser enfrentada intersetorialmente.
Fechando essa dimensão e independente do estranhamento, está a menção ao luto, comum a alunos nas três diferentes rodas de conversa. Além do luto do corpo, da condição infantil e da escola anterior, existem ainda situações muito concretas de perdas, atreladas à violência, e as formas de lidar com elas. Os alunos referiram terem perdido pai, mãe, irmã e primos (e não pessoas mais idosas, o que seria de esperar) e um aluno mencionou a perda do avô.
Sei lá, quando ouço essa música dá até vontade de chorar. . . . lembro de alguém que já morreu. (ALl2).
Eu tinha um primo, ele morreu. Ele era do nono ano aqui. (AL32).
De vários modos, ao trabalharmos com a categoria “relação com o outro”, o fenômeno da violência se fez presente. Consideramos importante resgatar que a violência, compreendida enquanto um ato humano, diferencia-se da agressividade. A agressividade diz respeito a um movimento necessário à nossa sobrevivência física e psíquica. Está presente, por exemplo, nos movimentos de separação que o adolescente precisa vivenciar no que diz respeito às suas referências familiares primeiras. A violência, por sua vez, aponta para um excesso na relação de alteridade e envolve um movimento de não reconhecimento ou, nos casos mais extremos, de aniquilamento da alteridade. De acordo com Costa (1986), a violência não se confunde com a agressividade e tampouco é instintiva; portanto, não é natural. É sempre moldada, legitimada e regulada pela sociedade e pela cultura.
Ao entendermos, a partir da psicanálise, que o adolescente ainda é um sujeito em constituição e que a adolescência envolve um árduo trabalho psíquico (Lesourd, 2004), a marca deixada pela exposição cotidiana a diversas formas de violência no processo de subjetivação dos adolescentes é um elemento importante nos resultados produzidos e requer uma atenção mais detalhada. De qualquer sorte, vale sublinhar que se trata de uma adolescência vivida entre muitos desafios, marcada pelo medo e pelo sentimento de desamparo que pode ser intensificado na ausência do suporte necessário para trabalhar as várias transições envolvidas nesse processo.
Relação com o tempo
Na dimensão relação com o tempo, o primeiro aspecto a considerar é que, no sexto ano, as aulas são mais curtas. Mesmo quando se juntam duas aulas seguidas de disciplinas como Matemática ou Português, às vezes, o aluno sente que não há tempo suficiente para copiar as tarefas, por exemplo. Há estranhamento da quantidade de “matérias”, que resulta em maior quantidade de tarefas sobrepostas para casa quando observada a semana, o que acaba demandando uma organização de tempo para que sejam feitos os “deveres”, mas também os games no celular, o jogo de bola e outras formas de ocupação do tempo no contraturno. Mais adiante no semestre, inclusive, alunos convidados a participarem do reforço escolar5, no contraturno, declaram não querer fazê-lo já que ficar na escola o dia todo tira deles o “tempo de brincar”.
Em termos de tempo, no entanto, o maior número de evocações disse respeito ao tempo (e às regras) das filas: do ônibus e da cantina, para o lanche. Este segundo estranhamento resulta em alunos que relataram terem ficado 15 dias sem conseguir lanchar, visto que, “quando chegava a sua hora na fila, já era hora de voltar para a sala”. Ou ao tempo na fila do ônibus e todas as “ameaças” que isso significava, inclusive de perder o lugar de sentar ou mesmo de perder o ônibus. As filas, portanto, desvelam importantes jogos de poder entre os adolescentes, envolvendo desde a disputa física ao lugar ocupado por um jovem, por exemplo, por seu envolvimento com o tráfico.
Relação com o espaço
A dimensão relação com o espaço emergiu com mais força quando das oficinas de desenho e de fotografia, além dos desenhos da atividade inicial. Os espaços mais evocados foram a quadra de esportes, a cantina (refeitório) e os espaços fora da área da escola, mas dentro do complexo escolar (que inclui mais duas outras escolas e é arborizado e amplo). Esses são lugares do coletivo, locais nos quais não se tem, necessariamente, a mediação do professor.
Houve menção também aos corredores e aos “cantinhos”, bancos específicos nos quais o tráfico foi referido, e uma cantina externa que contribui para a complementação da merenda de alguns alunos. Outro espaço de interação é uma praça próxima à escola, propícia aos namoros e rapidamente conhecida por sua fama.
Ah, minha filha, ali é a praça onde você... você mais vê alguém se pegando. (AL07).
A localização da sala de aula é uma dúvida de primeiro dia de aula, não só para os alunos, como também para seus pais, que os levam à escola, mas depois deixa de ser um problema. Não houve menção à localização de banheiros nas falas e nos desenhos dos alunos, embora tenham reagido às pichações e aos desenhos encontrados. Políticas de acolhimento e apoio à transição precisam considerar passeios na escola, eventualmente liderados pelos alunos mais velhos, para o reconhecimento e aproximação ao espaço.
Na dimensão espaço, um aspecto a considerar foi um número de associações da escola a uma prisão, com grades, muros altos - fortalezas - observados nos desenhos. A sensação de confinamento foi verbalizada mais de uma vez nas rodas de conversa. A Escola é cercada por dois muros altos, há grades na entrada e nas alas (as turmas de cada ano são instaladas em uma ala, isoladas das turmas dos outros anos). Há pessoas que controlam os corredores e um porteiro que controla a entrada da Escola, além de policiais à paisana que atuam como seguranças na área externa e no entorno. Há grades em algumas portas, como no Laboratório de Informática e na Biblioteca.
Outro aspecto interessante a perceber na relação com o espaço é que ela começa no ônibus escolar. Esse é o primeiro espaço da escola, segundo alunos (e professores). Não deveria ser um espaço de estranhamento, visto que o aluno já utilizava esse transporte para ir à escola desde os anos iniciais do ensino fundamental, mas o é. Políticas de acolhimento e apoio à transição devem considerar o ônibus como um espaço que merece atenção, e não somente a escola.
Relação com o saber
A dimensão relação com o saber, para os alunos investigados, se traduz em gostar ou não gostar de estudar e em gostar ou não gostar da escola, sentimentos diferentes do primeiro. É comum o aluno declarar que não goste de estudar, mas que goste da escola, por inúmeras razões dentre as quais sua socialização. Gostar de estudar (mais comum nas falas que não gostar) pode ser expresso em gostar de disciplinas específicas (como Educação Física) e não ter atração por outras. Para os alunos, o conhecimento mais estruturado dos anos finais deve ser tratado com mais circunspecção, e há associação entre esse conhecimento e “uma vida melhor”, ao mercado de trabalho e a uma profissão. Várias foram as evocações sobre o medo de estar entrando em uma escola com a qualidade de ensino inferior àquela da escola de origem (mesmo sem comprovação e com mudanças posteriores de posicionamento, segundo relatos) e com a repetência.
Em relação à repetência, é interessante perceber que ela é usada para que um aluno faça troça de outro ou como elemento segregador das turmas, o que aumenta a apreensão do novato:
[Sobre uma música com ritmo acelerado] Aí todo mundo sabe, agora aprender ler e escrever para passar de ano ninguém sabe. [Risos] . . . É o quê, [nome do colega]? (AL74).
Eu tenho um sobrinho aqui que está perto de se aposentar na escola, de tanto perder o ano. (AL81).
Na minha sala tudo é repetente. (AL111).
Briga! Uma sala péssima. Já queriam brigar comigo. Eu caí numa sala horrível. Briga toda hora. (AL8, sobre “a sala dos repetentes”).
Quando pensadas a transição do quinto para o sexto ano e a afiliação dos alunos nesse novo ambiente, é fundamental considerar as políticas de enturmação. Embora colocar alunos muito díspares em termos de maturidade em uma sala possa ser prejudicial, não é adequado agrupar todos os repetentes e multirrepetentes em uma turma, para evitar estigmatização dos alunos.
Em termos da adaptação à pluridocência, característica dos anos finais, não houve tanto estranhamento. É política da rede municipal de ensino em foco a pluralidade de professores no quarto e quinto anos, ainda que em menor número. Na mudança, o estranhamento declarado foi maior na escola que na sala de aula. Ou seja, para políticas que favoreçam a transição dos anos iniciais aos finais, o quinto ano (e talvez o quarto) deve ser também envolvido na preparação dos alunos.
O prazer de aprender foi manifestado em uma discussão sobre o BTS e o K-pop6 e a vontade de aprender coreano/conhecer a Coreia, mencionada por duas alunas:
[Sobre escolher o K-pop] O ritmo e também a língua, porque eu quero aprender coreano. (AL101).
[Nome do colega] disse que quer ir para a Coreia fazer tatuagem. Ela vai aprender a fazer tatuagem. (AL182).
Há prazer em aprender, nem sempre os conteúdos previstos pela escola. Isso também ficou evidenciado durante a preparação para uma exposição temática na Escola: um aluno multirrepetente, com desempenho muito baixo, ficou completamente envolvido com um dos vice-diretores da Escola para aprender como fazer um painel de madeira. Diferente do que acontecia, segundo relato dos professores em sala de aula, o aluno ficou um grande tempo concentrado e em silêncio, acompanhando e eventualmente testando os novos conteúdos práticos.
Para Charlot (1996, p. 49), é preciso privilegiar o sentido nos processos de aprendizagem. Não se trata de investigar as competências ou capital cultural de uma criança, mas sim “que sentido tem para as crianças o fato de ir à escola e de aprender coisas, o que a mobiliza no campo escolar, o que a incita a estudar”. Assim, a relação do estudante com a escola acontece através das relações que se estabelecem com os colegas, professores, dirigentes, coordenadores e com a própria escola. Qual o sentido e qual o valor que a escola e os aprendizados escolares têm para aquele adolescente? Isso é o que educadores e outros profissionais que objetivam a transmissão de saberes devem se perguntar.
Relação com as regras
A última dimensão analisada, relação com as regras, é importante na medida em que, ao percebermos e aprendermos as regras, estamos em franco processo de afiliação. As regras não são apenas as normas explícitas, mas também - e talvez mais essenciais -os códigos implícitos que guiam as relações entre alunos e alunos, alunos e professores, alunos e autoridades e mesmo alunos e pais no ambiente escolar.
Um código do silêncio e a autocensura estiveram presentes tanto nas oficinas quanto nas rodas de conversa e talvez sejam regras das mais importantes no contexto investigado. Mesmo com o sigilo assegurado, alguns alunos impediram que outros detalhassem, por exemplo, aspectos da violência de seus bairros, códigos que trazem de casa. Outros alunos evitaram mencionar músicas mais picantes ou hip-hop e Rap, devido à crença de que pudessem estar transgredindo as regras das rodas de conversa. São exemplos dessas regras implícitas já adquiridas:
Eu não vou citar nomes, se eu citar nome, eu morro. (AL49).
Os ônibus de lá já são marcados. Os três de [Escola] já são marcados. A polícia já parou não sei quantas vezes. (AL118).
Se alguém ouvir brega, finge que não escutou, viu? (AL180).
Aprender a se relacionar com a diversidade de autoridades também foi mencionado, quando pensados o crime, a violência (autoridades não formais), a Polícia Militar, os professores, a coordenação e a direção da Escola.
A polícia incomoda. É, tipo assim, quando uma pessoa tiver fazendo alguma coisa de errado, eles botam todo mundo para sair do lugar. (AL104).
A gente tem que ver essas pessoas, porque tem uns policiais que também têm muito abuso de autoridade. (AL33).
Não, mas, tipo, aqui na [Escola], rola muita coisa disso, da pessoa chamar… Tem... Tem vez que não aceita, entendeu? Ficam falando que vai fazer isso e aquilo. (AL14).
Eu tenho que andar com minha mochila colada, porque, se eu deixar minha mochila na carteira, quando eu voltar, não está mais. (AL21).
No meu primeiro dia de aula foi um dia comum. Fui toda besta, conheci professores, conheci o diretor, conheci o povo, entendeu? (AL09).
O medo de serem levados a consumir drogas e, de acordo com as meninas, da “pressão para fazer sexo” fazem com que aprendam as regras e também a burlá-las. Em muitos casos, havia uma expectativa sobre as pressões para uso de drogas e sexo e de contato negativo com os policiais, sem que qualquer evento concreto tivesse acontecido. As regras foram sendo aprendidas a partir das expectativas.
Ainda em termos de regras de convivência, havia aquelas que diziam respeito ao ônibus, à cantina e ao uso de espaços coletivos, de forma que aprendê-las impediria que o aluno fosse prejudicado.
Aí tem os menino do [nome de outro colégio] que não deixa ninguém da [Escola] lá para o fundo do buzu. Quem for para lá, aí eles mandam voltar e tem algumas pessoas do sétimo ano da Escola que vão. E eles mandam voltar. (AL102).
Em termos da aprendizagem, interessantemente, foram regras básicas que os alunos precisaram manejar desde o início do ano letivo, por exemplo, saber distribuir as disciplinas pelas partes do caderno (“no início, eles misturam os conteúdos, o que dificulta bastante os estudos posteriores”, nos disse uma professora) ou dominar o horário semanal, de modo a poder trazer os materiais adequados para essa ou aquela disciplina. Na Escola, alguns professores dedicam tempo de suas aulas para ensinar como usar o caderno e apresentar o horário, sendo que há disciplinas com duas horas semanais, e outras disciplinas mais frequentes, como Língua Portuguesa e Matemática, e uma disciplina com apenas uma hora por semana.
Outro conjunto de regras, estranho a princípio, mas depois manejado pelos alunos, foi aquele relacionado ao convívio com a direção, a coordenação e os responsáveis (muitas avós, por exemplo, além das mães), quando presentes na escola. Na próxima seção, são descritos dois etnométodos adotados por aluno quanto a esse convívio.
Uma maior autonomia é dada ao aluno do sexto ano, quando comparada àquela de anos anteriores. A tutoria é relativamente menor. Por exemplo, os professores, no sexto ano, raramente têm tempo de corrigir individualmente as tarefas de casa dos seus alunos durante as aulas. Aqueles estudantes cuja relação com o saber passa por cumprir as regras relatam terem aprendido a fazer os deveres de casa nos dias determinados; aqueles, no entanto, com uma relação com o saber mais frouxa, tendem a postergar a elaboração de suas tarefas, a fazê-las descuidadamente ou simplesmente não as fazer, sem que tenham tanto prejuízo social, ainda que possam vir a tê-los em termos de aprendizagem e rendimento.
Durante as rodas de conversas, as provas e avaliações foram pouco mencionadas, com uma aluna associando a prova à possibilidade de “se sair bem”, em uma relação de recompensa positiva na execução da atividade.
Por fim, um aspecto que parece ser mais problemático para os alunos investigados é o trabalho em equipe. Nas oficinas e em sala, os “grupos de amizade” são mais facilmente identificados que os grupos de trabalho. Durante as oficinas, era claro que as normas de atuação no grupo não eram dominadas: havia dificuldade na separação das tarefas e na divisão do material, por exemplo. Nesse caso, novamente, quanto mais atividades em grupo em que sejam discutidas as participações, talvez as turmas consigam trabalhar coletivamente.
Nos estranhamentos e aprendizagem, as rodas de conversa foram ricas para que pudéssemos entender as questões da afiliação no sexto ano. Além disso, foram apresentados vários etnométodos adotados por esses alunos para afiliarem-se e permanecerem no novo ambiente.
“O medo passou”: notícias sobre a aprendizagem e a afiliação
O aluno de sexto ano não tem direito a abandonar a escola. Por lei (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996), todo indivíduo tem obrigação de frequentar a educação básica, dos 4 aos 17 anos. E é dever da família assegurar que o aluno frequente as aulas, em parceria com as escolas, sob pena de denúncia aos conselhos tutelares e outras instituições pertinentes.
Também não é o aluno quem escolhe a escola que vai frequentar. Em boa parte dos casos, a matrícula acontece com base na localização da escola e das residências, não sendo uma escolha parental. No caso em tela, a Escola concentra 80% das matrículas do município. Assim é que o aluno, desde o seu primeiro dia na Escola, precisa lançar mão de métodos que favoreçam ou permitam sua permanência, em primeiro lugar, e, talvez resultante dela, sua aprendizagem. Um aluno evadido não aprende. As políticas que considerem a transição do quinto para o sexto ano precisam levar isso em conta.
Uma frase foi muito ouvida no desenvolver das rodas de conversa: “o medo passou”. E, então, foi perguntado o que os alunos tinham feito para se adaptar à Escola. Na voz dos alunos, os etnométodos mais empregados nos primeiros dias (e meses) na instituição diziam respeito à formação de uma rede de proteção. Para eles, o primeiro passo é investigar, no conjunto tão maior de alunos na nova escola, aqueles que vieram das suas escolas de origem e identificar os “amigos”. O segundo passo é estabelecer amizades com os novos colegas. Essa rede se torna protetora contra os casos - concretos ou imaginários - de bullying e discriminação e nas brigas, diluindo o “medo”. Também é acionada nos horários de lanche (especialmente nas filas da cantina), na relação com os professores e no reforço escolar, e nas pequenas transgressões.
Eu pedi a minha mãe para me trazer porque eu fiquei com medo. Diziam que aconteciam muitas coisas ruins, aí eu fiquei com medo. Mas depois eu fui fazendo amizades, e hoje eu não tenho muito medo não. (AL12).
Eu fiquei com medo, com frio na barriga, medo de ficar na sala sozinha, assim, sem conhecer nenhum dos amigos passados. (AL35).
Eu fiquei muito ansiosa para conhecer todo mundo. Fiquei com medo por causa que as minhas amigas do ano passado, eu não achei nenhuma delas. Aí quando [nome de um colega] chegou na sala, eu fiquei feliz. Por causa que encontrei elas duas para ficar comigo. (AL43).
Eu gosto de brincar com minhas amigas, também gosto de abusar os meninos e gosto de brigar com minhas amigas também. (AL75).
À medida que o ano letivo avançava, o aluno referiu uma menor solicitação à mãe ou responsável que o trouxesse para a escola. Essa estratégia, para o aluno, reduziria seu medo do estranho e o protegeria. Quando formou as amizades, a necessidade dos pais na escola diminuiu bastante.
Esse aspecto aponta para a necessidade de a gestão da unidade escolar favorecer tempos em espaços coletivos, nos quais essas amizades possam ultrapassar as paredes da sala de aula. Isso contribui para reduzir os preconceitos acerca das outras salas e da diversidade de alunos, de modo mais geral. Atividades como os Jogos Escolares, o teatro e as gincanas são muito propícias para isso, desde que os alunos não fiquem separados por turma/ano.
Quando observadas as regras da instituição, testar os limites de tolerância do diretor, dos vice-diretores (o da manhã, turno das aulas, e o da tarde, turno do reforço) e da coordenadora pedagógica permite que os alunos saibam os limites possíveis da transgressão (sair do espaço escolar, brigar na sala de aula), por exemplo. Durante uma oficina, um dos alunos chegou utilizando um boné, o que é proibido na Escola. Sabendo da proibição, o aluno acionou a coordenadora pedagógica e conseguiu permissão para participar da oficina, com apoio das pesquisadoras responsáveis. No entanto, o vice-diretor o flagrou de boné e o retirou da Escola, já que o aluno se recusou a tirá-lo. Um segundo exemplo do domínio da regra a ponto de transgredi-la pode ser visto no relato da aluna que, querendo participar da oficina de fotografia, forjou a assinatura da mãe na documentação que havia sido enviada pela Escola para sua casa. Essa transgressão foi comunicada às pesquisadoras responsáveis pela oficina ao final do evento, quando já não era possível retirá-la. Nos dois casos, os etnométodos estavam claros e levam a uma reflexão sobre o quanto as regras eram válidas, originalmente.
Alunos oriundos de escolas particulares relataram seu medo de queda na qualidade de ensino da nova escola; mas, por trás dessa camada, estava o medo da perda de status, ao passar da educação privada para a pública. Para lidar com essa perda, alguns faziam questão de, em público, dizer do seu poder de compra, das férias passadas em outros municípios e outros comportamentos que, a toda hora, lembravam uma condição social dita melhor. Os colegas, no entanto, aparentemente ignoravam esse comportamento, não oferecendo qualquer reação a ele.
O estar na escola implicou, para muitos alunos, aprender a cuidar de seus materiais. O cuidado com os lápis (que somem), mochilas (alvo de brincadeiras, em alguns casos) e cadernos foi mencionado e implica não os deixar sozinhos em sala.
Aprender a ficar na fila da cantina e do ônibus também resulta em etnométodos, nem sempre desejáveis, mas que garantem merenda e lugar no ônibus, como, por exemplo:
De manhã, quando o buzu chega, aí todo mundo fica em pé empurrando, uns aos outros. Aí eu começo a empurrar. (AL50).
Na fila, na fila mesmo, a gente já está na fila um tempão, aí vem um e passa na frente. (AL108).
Pessoas agressivas. Ó, a pessoa está lá de boa e, de repente, a pessoa vem, mete um tapa, empurra. (A33).
Ou alguém bota o pé para a gente cair. (AL34).
Eu desconto. (AL35).
Nossas considerações finais
Ao adaptarmos o conceito de afiliação para adoção na transição do quinto para o sexto ano dos anos finais do ensino fundamental, perguntamo-nos: suas dimensões “institucional” e “intelectual” foram suficientes? As fases “estranhamento, aprendizagem e afiliação” permitiram a análise da transição quando o sujeito observado é um adolescente, e não um jovem ou jovem adulto? Nossa hipótese, ao adaptarmos o conceito de afiliação para uso com esses alunos, é que seria possível observar os tempos de estranhamento, aprendizagem e afiliação também nos anos finais do ensino fundamental.
Na aplicação desse conceito em uma pesquisa desenvolvida em uma escola de grande porte, observamos que, sim, é possível a adaptação e utilização do conceito na transição já mencionada. Entretanto, as dimensões propostas - relação com as regras, com o tempo, com o espaço e com o saber - foram insuficientes. Foi necessária a criação de uma outra dimensão, a relação com o outro.
A boa transição entre os anos não é um processo espontâneo e demanda esforço, tanto individual, quanto institucional. Os alunos na faixa etária analisada - entre 11 e 14 anos - estão na adolescência, com todas as instabilidades que essa outra transição - de criança para adolescente - causa. E se apoiam no círculo de amizades (e, por vezes, de inimizades) para conseguir fazer a passagem.
Por outro lado, a instituição precisa reconhecer os tempos de estranhamento e de aprendizagem e atuar sobre eles, reduzindo elementos de grande estranhamento e favorecendo aqueles que facilitem a aprendizagem. É fundamental que essa não seja apenas a decisão de uma unidade escolar, mas da rede municipal de ensino. O processo de transição não se restringe à chegada do aluno ao sexto ano, mas começa no quinto ano, muitas vezes oferecido em outra unidade escolar.
A rede municipal de educação deve se envolver na transição. A unidade escolar precisa, para além dos tempos em sala de aula, favorecer o convívio dos alunos fora da sala, em espaços adequados, para que as redes de amizade, importante elemento de afiliação, se formem e se firmem. A afiliação dos alunos de sexto ano da educação básica deve ser, portanto, o foco de políticas públicas municipais, e não apenas ficar restrita a iniciativas bem-vindas de professores e mesmo de escolas.
O compartilhamento da adaptação da afiliação para a transição do quinto para o sexto ano é um convite para que outros pesquisadores testem a aplicação do conceito e estabeleçam um diálogo.