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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.52  São Paulo  2022  Epub 28-Abr-2022

https://doi.org/10.1590/198053148804 

TEORIAS, MÉTODOS, PESQUISA EDUCACIONAL

A DISCURSIVIDADE EDUCACIONAL CONTEMPORÂNEA: UMA APROXIMAÇÃO EXPLORATÓRIA

DISCURSIVIDAD EDUCATIVA CONTEMPORÁNEA: UN ENFOQUE EXPLORATORIO

LA DISCURSIVITÉ ÉDUCATIONNELLE CONTEMPORAINE: UNE APPROCHE EXPLORATOIRE

IUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil;


Resumo

A presente investigação propõe-se a analisar a discursividade educacional contemporânea mediante uma imersão exploratória em 1.165 entrevistas concedidas por expoentes do campo educacional e de outros afins, constantes de dez revistas brasileiras de divulgação pedagógica, entre 1986 e 2019. Com base na teorização foucaultiana, o estudo mobilizou duas estratégias na análise dos dados referentes aos depoentes e às temáticas abordadas, com destaque para o procedimento de catalogação de alguns enunciados-chave que atravessaram o arquivo investigado. Os resultados da investigação apontam para a circulação de certas racionalidades normativas na esteira de múltiplos chamamentos aos profissionais, gerando efeitos insuspeitos sobre o éthos educativo.

Palavras-Chave: IMPRENSA EDUCACIONAL; REVISTAS DE EDUCAÇÃO; DISCURSO; CONTEXTO DA EDUCAÇÃO

Resumen

Esta investigación tiene como objetivo analizar la discursividad educativa contemporánea a través de una inmersión exploratoria en 1.165 entrevistas concedidas por exponentes del campo educativo y otros relacionados, contenidas en diez revistas brasileñas de difusión pedagógica, entre 1986 y 2019. A partir de la teorización foucaultiana, el estudio movilizó dos estrategias en el análisis de datos relacionados con los encuestados y los temas abordados, con énfasis en el procedimiento de catalogación de algunas declaraciones clave que pasaron por el expediente investigado. Los resultados de la investigación apuntan a la circulación de ciertas racionalidades normativas a raíz de múltiples llamadas a los profesionales, generando efectos insospechados sobre el ethos educativo.

Palabras-clave: PRENSA EDUCATIVA; REVISTAS EDUCATIVAS; DISCURSO; CONTEXTO EDUCATIVO

Résumé

Cette recherche se propose d’analyser la question de la discursivité éducationnelle contemporaine dans 1.165 entretiens accordés par des personnalités du champ educationnel et similaires, contributeurs fréquents à dix revues brésiliennes de divulgation pédagogique entre 1986 et 2019. Basé sur la théorie foucaltienne, l’étude a utilisé deux stratégies pour analyser les données concernant les participants et les thèmes abordés en particulier le processus de catalogage de quelques énoncés clés du corpus. Les résultats indiquent que la circulation de certaines rationalités normatives, observées dans le sillage des nombreuses interventions de ces professionnels, produit des effets insoupçonnés sur l’ethos éducatif.

Key words: PRESSE DE L’ÉDUCATION; REVUES D’ÉDUCATION; DISCOURS; CONTEXTE DE L’ÉDUCATION

Abstract

This study aims to analyze contemporary educational discursiveness by an exploratory immersion in 1,165 interviews given by prominent figures in education and other related fields. These interviews were published in ten Brazilian magazines of educational publicization between 1986 and 2019. Based on Foucauldian theory, the study mobilized two strategies to analyze the data regarding the interviewees and the subjects addressed, with emphasis on cataloging some key statements found during the research procedures. The results of this study show the circulation of certain normative rationalities in the wake of multiple calls to professionals, generating unsuspected effects on the educational ethos.

Key words: EDUCATIONAL PRESS; EDUCATION MAGAZINES; DISCOURSE; CONTEXT OF EDUCATION

Ainvestigação cujos resultados ora se apresentam define-se como uma imersão exploratória na discursividade em circulação no campo educacional brasileiro nas últimas décadas. Para tanto, elegeu-se como matéria de análise um conjunto de dez revistas de divulgação pedagógica - especificamente, as entrevistas ali em destaque, concedidas por uma gama de expoentes do campo educacional e de outros afins.

Trata-se de seis blocos de impressos que contemplam dez diferentes títulos (e respectivas siglas): Carta(s), incluindo Carta na Escola [CE] e Carta Fundamental [CF]; Educação [ED]; Nova Escola [NE]; Pátio(s), subdividida em Pátio [PT], Pátio Educação Infantil [PTei], Pátio Ensino Fundamental [PTef] e Pátio Ensino Médio, Profissional e Tecnológico [PTem]; Presença Pedagógica (na Sala de Aula) [PP];1 e Profissão Mestre [PM].

Juntas, tais publicações trouxeram a público, entre 1986 (data da primeira entrevista, em Nova Escola, veiculada no corpus sob exame) e o final de 2019, 1.165 entrevistas concedidas por 896 depoentes,2 divididos em 304 estrangeiros (ou brasileiros radicados no exterior) e 592 brasileiros (ou estrangeiros radicados no Brasil), correspondendo, respectivamente, a um e dois terços do total de entrevistados.

A conjectura geral da investigação é a de que a imprensa periódica educacional operaria como suporte de um tipo de circulação discursiva cujo escopo não se encerraria na difusão de informações a título de atualização profissional - no caso, dos agentes educacionais -, mas que também visaria à persuasão destes quanto a determinadas pautas do agir e seus deveres correlatos. O êxito de tal empreitada veridictiva dependerá, é certo, dos contínuos torneios argumentativos com vistas à formação de opinião daquele público específico, redundando em uma gramática balizadora das suas respostas a determinados problemas em aberto, os quais constituem o corpus discursivo aqui sob escrutínio.

Um dos estudos inaugurais sobre Nova Escola (Vieira, 1998, p. 78) - o artefato mais emblemático desse nicho de publicações - oferece uma síntese do formato editorial desse segmento:

. . . a revista utiliza uma linguagem que lhe confere características que a tornam semelhante a um jornal, como: presença de editorial, resumo das principais reportagens na primeira página, sessões permanentes, variedade de assuntos e gêneros, uso de fotos e ilustrações, tabelas e gráficos, o formato e o tamanho das letras, etc.

Com distribuição nacional e periodicidades distintas, os seis blocos de revistas portavam, salvo variações pontuais, perfis editoriais análogos, os quais englobavam reportagens, relatos de experiências, sugestões de atividades, indicações de leitura, artigos e colunas de opinião, além de propagandas e, claro, entrevistas. Estas, em geral, compareciam na abertura das edições, como uma espécie de chamariz editorial, sendo que, por vezes, um mesmo número podia trazer mais de uma entrevista. Junto com as reportagens de capa, os entrevistados apresentavam-se, sem dúvida, como o cerne da atratividade editorial.

Do ponto de vista da teorização foucaultiana - aqui tomada como base da análise preten- dida -, perspectivar determinada discursividade pressupõe situá-la no centro do tabuleiro dos processos de veridicção correntes em dado espaço-tempo histórico. Nos termos do próprio Foucault (2006, p. 343): “por produção de verdade, não entendo a produção de enunciados verdadeiros, mas a disposição de domínios em que a prática do verdadeiro e do falso pode ser, ao mesmo tempo, regulamentada e pertinente”.

Das proposições foucaultianas importa reter o fato de que

. . . cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” da verdade, ou seja, os tipos de discurso acolhidos por ela os quais ela faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para obter a verdade; o status dos que têm a tarefa de dizer o que funciona como verdade. (Foucault, 2011, p. 217).

Nessa direção, destacam-se alguns estudos afins ao que aqui é proposto, os quais se dedi- caram a analisar, sob as lentes foucaultianas, as repercussões das revistas pedagógicas no âmbito Docente/escolar.

Já em meados da década de 1990, um texto, a cargo de Marisa F. Eizirick, dedicou-se à Nova Escola. Mediante a insistente difusão dos princípios do construtivismo pela revista, a autora expressava seu espanto: “Por que um discurso se torna de tal forma englobante? Como assume foros de verdade tão abrangentes? Como se desenvolve e se espraia, indo da pré-escola à alfabetização de adultos, do ensino de educação física ao de matemática?” (Eizirick, 1996, p. 146).

Uma série de estudos tomando Nova Escola na mesma chave analítica veio à luz nas décadas posteriores. Entre eles: Anadon e Garcia (2005), sobre o discurso oficial e a identidade docente; Oliveira e Fischer (2012), sobre a docência em Matemática nos anos iniciais do ensino fundamental; Aquino (2013), sobre a expertise como modalidade privilegiada do governamento docente; Henning e Lockmann (2013), sobre os discursos correntes acerca da inclusão escolar; Silva (2014), sobre a figura do professor na escola inclusiva; além de Rosa e Kopp (2018), sobre a imbricação entre os saberes médico e pedagógico com vistas a um governamento biopolítico dos sujeitos escolares.

Somam-se dois artigos sob a mesma afiliação teórica que focalizaram, respectivamente, Carta na Escola (Silva & Fabris, 2013) e Pátio Educação Infantil (Silva & Henning, 2019) - no primeiro caso, a tematização deu-se em torno da constituição da docência no ensino médio; no segundo, da obrigatoriedade, no Brasil, da escolarização das crianças a partir dos 4 anos.

A despeito de portarem preocupações distintas, os referidos estudos lograram demonstrar que, por meio dos diferentes expedientes discursivos da imprensa pedagógica, se perfaria um intenso processo de (auto)governamento dos agentes responsáveis pelas práticas escolares.

Em nosso caso, optamos por nos debruçar sobre uma massa documental densa, com vistas a perscrutar o terreno sob exame em seus detalhes, em sua geografia instituinte, por assim dizer. Dito de outro modo, tocou-nos promover um arquivamento extensivo da matéria bruta que se nos apresentava, segundo o princípio da montagem dos discursos (Didi-Huberman, 2016). Traduzido em termos foucaultianos, tal norte procedimental descreve a ação de reordenação das fontes documentais em torno de determinado problema, as quais, dispostas ao longo de séries, possibilitariam a reconstituição das racionalidades em voga naquele enquadramento histórico, sempre a par da premissa de que

. . . ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala. (Foucault, 1996, p. 37).

Se Foucault estiver certo quanto à economia distributiva imanente aos diferentes lugares enunciativos e suas prerrogativas veridictivas, caber-nos-á admitir que a imprensa pedagógica revela-se um continente fático de monta no que concerne ao balizamento da discursividade educacional contemporânea em sua prodigalidade característica.

Eleger a imprensa periódica como fonte privilegiada para a análise das práticas educacionais não constitui, porém, novidade investigativa. Ao contrário, seu emprego nas pesquisas educacio- nais de matriz historiográfica é abundante, vide alguns estudos que se devotaram a títulos específi- cos: Guimarães (2011), Boto (2012), Rodrigues e Biccas (2015); entre outros.

Segundo Denice B. Catani (1996), uma das pioneiras dos estudos que se valeram dessa modalidade documental, o potencial das revistas especializadas no ensino revela-se de dois modos. Em um primeiro plano, elas serviriam como meio privilegiado para a constituição de repertórios classificatórios dos dados que abrigam, com o fito de embasar pesquisas sobre a história das práticas educacionais, das disciplinas escolares e dos sistemas de ensino como um todo. Uma segunda possibilidade de apropriação da imprensa educacional periódica remeteria ao estudo intrínseco do próprio periódico sob exame, possibilitando a inteligibilidade de momentos específicos da organização e da dinâmica do campo pedagógico. Assim,

. . . é possível partir do estudo de determinados periódicos educacionais e tomá-los como núcleos informativos, enquanto suas características explicitam modos de construir e divulgar o discurso legítimo sobre as questões de ensino e conjunto de prescrições ou recomendações sobre formas ideais de realizar o trabalho docente. (Catani, 1996, p. 118).

A autora aponta, contudo, um senão analítico digno de atenção, uma vez que diz respeito ao tipo de empreitada aqui proposta: o trabalho com periódicos simultâneos. Para Catani (1996, p. 121), tal opção acarretaria um risco

. . . no sentido de que assim se caracteriza de modo amplo a recorrência de temas e ideias no campo educacional, porém deixa-se de lado o aprofundamento que é possível pela consideração das condições específicas de produção nas quais os discursos são gerados.

Embora genericamente congruente aos propósitos de nossa investigação, a argumentação de Catani diferencia-se dos aportes aqui em uso por dois motivos: a natureza das fontes empregadas no estudo e o timbre analítico da visada.

Quanto ao primeiro motivo, aquilo que é conotado como uma possível desvantagem pela pesquisadora converte-se, aqui, no seu exato oposto: as condições generativas do discurso circulante poderiam ser aferidas exatamente pela somatória dos diferentes títulos, e não apenas pela focalização de uma revista específica. Com relação ao segundo motivo, o diferencial em relação ao approach usual da imprensa periódica, tal como configurado por Catani, diz respeito ao endereçamento teórico-metodológico aqui defendido. Não é de nosso interesse promover um estudo de cunho historiográfico, a não ser que ele seja compreendido, em termos foucaultianos, como um esforço em direção a uma ontologia histórica de nós mesmos (Foucault, 2000).

Cabe-nos esclarecer, ainda, que a opção por diferentes títulos compartilha, em linhas gerais, de um argumento formulado por Isabel C. A. S. Frade. Após um levantamento da produção investigativa sobre as revistas pedagógicas, a autora aponta o fato de que a maioria dos estudos recorre a veículos da iniciativa oficial, boa parte deles já extinta. Para ela, “não têm sido objeto de investigação produções contemporâneas, sobretudo as comerciais, não apenas do ponto de vista dos temas educacionais tratados, mas também como propostas de construção de discursos a serem lidos e de leitores a serem construídos” (Frade, 1999, p. 170).

Cynthia P. Sousa e Denice B. Catani (1994, p. 183) dissipam tal discrepância ao apontarem que os periódicos ligados à iniciativa particular, a entidades, a associações e a outros grupos constituem “instâncias privilegiadas para compreensão das orientações legais e também da leitura que os especialistas fazem dessas mensagens, na medida em que as traduzem em recomendações para a atuação cotidiana dos professores”.

O argumento das autoras resulta-nos plausível, mas apenas em parte, já que não se poderia contingenciar a eficácia discursiva da impressa periódica ao plano da captação e da propagação de ideias gestadas alhures. Presume-se, ao contrário, que as revistas pedagógicas operam no timbre mais de uma produção discursiva particular e descontínua do que de um aparato reificador de enun- ciados exógenos.

Mostra disso é outro argumento apresentado pela mesma Isabel C. A. S. Frade em que foram cotejadas as características formais das revistas pedagógicas e de outros tipos de impresso. Segundo ela, a imprensa pedagógica “constitui um universo próprio, com leis de produção condicionadas a diversos elementos presentes no campo educacional” (Frade, 2005, p. 117). De modo semelhante, outro estudo, agora sobre as diferenças e os paralelismos entre duas revistas - Nova Escola e Presença Pedagógica -, propõe a seguinte contextualização:

. . . as revistas, de caráter jornalístico e/ou pedagógico, apresentam-se como meios/modos de veicular informações e/ou incitar o debate, sendo que os textos acabam por configurar o que se pode caracterizar como um gênero híbrido de discurso, na medida em que, transitando nas interseções da educação e do jornalismo, tramam vozes de diferentes lugares, trazendo marcas de discursos acadêmico, pedagógico e jornalístico. (Smolka & Gentil, 2004, p. 210).

Destaca-se, igualmente, uma manifestação constante do arquivo empírico deste estudo, a cargo de Guiomar N. de Mello, então diretora executiva da Fundação Victor Civita - esta responsável pelas três primeiras décadas de Nova Escola, até o final de 2015, quando passou aos auspícios da Fundação Lemann -, sobre a missão da imprensa educacional: a disseminação do conhecimento sobre educação. Tal intento ambicionaria tanto a comunicação interna do campo quanto o marketing social externo, abarcando públicos-alvo distintos, mas complementares.

Você tem o problema da comunicação interna do setor, que tem massa crítica suficiente para comportar uma política de comunicação própria, seja porque envolve um número muito grande de professores, seja porque indiretamente atinge a totalidade da população de uma determinada faixa etária, e um número muito grande de famílias. O outro lado da questão é o da comunicação social sobre a Educação . . . . A opinião pública não tem clareza do papel da Educação no conjunto das políticas sociais, e há uma grande dificuldade de consenso em torno de prioridades. {Guiomar Namo de Mello, ED, 1998}.3

Em que pesem as expectativas, supomos, superestimadas conferidas à mídia impressa e a seu papel modulador do campo, os efeitos de sua circulação mostram-se controversos e prenhes de debate. É o que se depreende de um conjunto de outros estudos que examinaram revistas pedagógicas e, em particular, Nova Escola - de longe, o objeto privilegiado de interesse dos pesquisadores -, tal como o de Bueno (2007), ao reconhecer nela um produto cultural regressivo marcado por voluntarismo e estereotipia, bem como por uma visão pragmatista do conhecimento. É o caso também do estudo de Bezerra e Araújo (2012, p. 171):

Seu enfoque temático é restrito ao cotidiano da sala de aula e à relação vertical que se estabelece entre as políticas públicas e os professores. Com isso, o periódico atribui à escola e às práticas curriculares visível autonomia em relação aos determinantes sócio-históricos, projetando para o professor grande parte da responsabilidade por seu sucesso ou fracasso.

Desacreditada pela crítica e, ao que tudo indica, aclamada pelo público leitor, Nova Escola constitui, decerto, um capítulo à parte na história da impressa educacional no país. A partir da investigação de Daniel Revah (2013), sabe-se que o periódico foi precedido por outra iniciativa análoga da mesma Editora Abril - a revista intitulada Escola - que se estendeu de 1971 a 1974, tendo publicado 27 números. Embora se dirigissem ao mesmo público, ambas se distinguem pelo êxito editorial estrondoso da segunda em oposição ao fracasso da primeira.

Diferentemente de Nova Escola, suas congêneres atraíram pouca atenção dos pesquisadores. Ainda, apesar de a imprensa educacional figurar como um lócus vigoroso para a investigação educacional, os estudos a ela dedicados não costumam entabular análises cruzadas de diferentes títulos nem intervalos temporais alargados, tal como o que aqui se propõe.

Ponto pacífico, o interesse da presente investigação recai sobre o conjunto das revistas mais atuantes nas últimas décadas - fosse de modo físico (eram publicações comercializadas em diferentes pontos de venda e por meio de assinaturas), fosse de modo eletrônico (todas elas passaram a dispor, a partir de algum momento, de páginas virtuais em que seu conteúdo era oferecido ao público). Somam-se suas expressivas tiragens, o que leva a crer que sua circulação tenha recoberto boa parte do território nacional, atingindo, assim, uma ampla disseminação de certos ditames discursivos entre os agentes educacionais.

Por fim, duas informações relevantes: os locais onde as revistas estavam sediadas e os órgãos editoriais responsáveis por elas. Em São Paulo: Nova Escola, sob os auspícios da Fundação Victor Civita e, depois, da Fundação Lemann; Educação, pela Editora Segmento; e Carta(s), pela Editora Confiança. Em Minas Gerais: Presença Pedagógica, pela Editora Dimensão e, de 2018 em diante, pelo Grupo Linha Direta. No Paraná: Profissão Mestre, pela Humana Editorial. No Rio Grande do Sul: Pátio(s), pelo Grupo A.

A montagem de um arquivo complexo

Entre as exigências da lida investigativa, a triagem do material revelou-se uma etapa especialmente trabalhosa e morosa. Já que boa parte das revistas apresentava-se de modo descontínuo nos acervos e/ou não estava disponível de modo digital, o rastreamento, sobretudo dos números mais antigos, exigiu recorrer a bibliotecas de diferentes partes do País. Saiba-se que, por se tratar de um tipo de publicação volátil, o cuidado com sua preservação como documento não era uma constante nos acervos. Ao contrário.

Uma vez encerrada a captação do material, defrontamo-nos com um quebra-cabeças de enunciações que, à primeira vista, vetavam qualquer chance de antevisão de um corte organizador, tamanhas a profusão e a descontinuidade dos assuntos e opiniões ali contidos.

Em face da intrincada massa de dados ali disposta, tratou-se então de construir uma aproximação gradual no que se refere à caracterização dos depoentes e, então, à dos temas tratados.

Primeira disposição geral: no intervalo temporal recoberto pela investigação, as 1.165 entrevistas distribuíram-se da seguinte maneira:

Fonte: Elaboração do autor com base em dados da pesquisa.

Gráfico 1 Número de entrevistas por revista 

A fim de contextualizar tais montantes, é preciso ter em mente a periodicidade das publi- cações e a constância das entrevistas nos números publicados. Quanto ao primeiro item, Educação e Profissão Mestre contavam com tiragem mensal; Nova Escola e Carta(s), dez números ao ano; Presença Pedagógica, tiragem bimestral; e Pátio(s), trimestral.

Já em relação à frequência das entrevistas, estas figuraram em todos os números de Carta(s), Educação e Pátio(s). Em Profissão Mestre, há números esporádicos sem entrevistas. Já em Presença Pedagógica, há um gap entre meados de 2017 e início de 2018, provavelmente em virtude da mudança de editora que a revista sofreu, voltando a ter entrevistas em todos os números a partir de então. Quanto à Nova Escola, a ocorrência foi fragmentária entre seu lançamento até 2000, quando surgiu uma seção específica intitulada “Fala, Mestre!”; começou a apresentar, a partir de 2013, poucos números sem entrevistas, com gaps maiores a partir de 2016; já no último ano do estudo, houve entrevistas em todos os números.

Três informes adicionais são necessários ainda: 1) quando havia mais de uma entrevista em determinado número, optou-se por apenas uma delas (aquela em destaque na abertura da edição); 2) a maioria das entrevistas foi realizada com apenas um depoente; houve, porém, 27 duplas, dois trios (um em Nova Escola; outro em Profissão Mestre) e apenas um quarteto (em Nova Escola); e 3) a extensão das entrevistas - incluídas a imagem fotográfica do depoente e uma breve introdução apresentando as credenciais profissionais do entrevistado e o assunto principal - podia variar de duas a, algumas vezes, mais de dez páginas (neste último caso, apenas em Presença Pedagógica), sendo que o mais frequente era restringirem-se a três páginas.

Quanto ao escalonamento temporal das entrevistas, tem-se o seguinte traçado:

Fonte: Elaboração do autor com base em dados da pesquisa.

Gráfico 2 Distribuição temporal das entrevistas 

Atestam-se, aqui, o surgimento, o apogeu e o arrefecimento do próprio nicho editorial das revistas pedagógicas. A despeito da pontualidade dos dados em destaque, firma-se uma evidência: o advento da modalidade virtual das publicações do gênero teria acarretado ora a desaparição, ora a substituição paulatina da forma impressa pela on-line. O primeiro cenário é patente no caso das revistas descontinuadas no período da investigação: Carta(s) (encerrada em 2015), Profissão Mestre (em 2016), e Pátio(s) (em 2018). Já o segundo cenário aplica-se às revistas que seguiram sendo produzidas (até 2019): Educação, Nova Escola e Presença Pedagógica na Sala de Aula.

Adentrando o universo das revistas pedagógicas

Mediante a exuberância da matéria investigativa em tela, muitas seriam as possibilidades de montagem do arquivo investigativo. De nossa parte, os esforços deram-se na direção de uma abordagem mais focal do material, capaz porventura de responder a duas grandes questões de superfície: 1) quem fala; e 2) do que se fala.

Tratou-se, pois, de uma visada circunscrita, já que, impedidos de aferir os efeitos propriamente da recepção dos discursos - a empiria do arquivo eleito não o permitia, entenda-se -, abstivemo-nos de subtrair ilações interpretativas peremptórias, tanto menos generalizações inequívocas acerca das figurações discursivas com que deparávamos.

Almejávamos adentrar os meandros daquele universo discursivo espesso que se nos esboçava de maneira cerrada, tratando de identificar alguns marcos delimitadores de um território discursivo não apenas prolífico, mas também bastante acidentado, porque assimétrico e desigual. Para tanto, duas foram as estratégias procedimentais ativadas.

No que se refere à primeira questão (quem fala), valemo-nos de uma série de gráficos e tabelas, entendendo-os como um recurso útil na medida em que possibilitava uma visibilidade panorâmica, porque cumulativa, das informações acerca dos depoentes. Já no que diz respeito à segunda questão (do que se fala), um recurso, digamos, heterodoxo fez-se necessário quando da montagem arquivística por nós pretendida: a composição de listas de enunciados. Tal escolha será justificada adiante. Adentremos a primeira frente.

Quem fala

Um primeiro movimento em direção à caracterização dos depoentes refere-se à sua posição enunciativa; mais especificamente, o setor social de que provinham e sua vinculação com o campo educacional. Ressalve-se que os dados eram aqueles disponíveis por ocasião da realização/publicação das entrevistas. Informações datadas, portanto.

Quanto ao Gráfico 3, temos que, em termos percentuais, 56% dos depoentes eram ligados ao setor público, 34% ao privado e 10% ao terceiro setor. Quanto ao Gráfico 4, 68,5% apresentavam vinculação direta com o campo, ao passo que 31,5% deles tinham vinculação indireta com este.4

Fonte: Elaboração do autor com base em dados da pesquisa.

Gráfico 3 Setor de atuação dos depoentes 

Fonte: Elaboração do autor com base em dados da pesquisa.

Gráfico 4 Vinculação dos depoentes com a educação 

Apresenta-se ainda outro gráfico, agora discriminando as frentes de atuação dos depoentes.

Fonte: Elaboração do autor com base em dados da pesquisa.

Gráfico 5 Âmbitos de atuação dos depoentes 

Observadas as variações internas dos dois grupos de depoentes (brasileiros e estrangeiros), a distribuição manteve-se de modo semelhante em ambos. No que se refere a cada um dos âmbitos, temos o seguinte:

O primeiro deles - acadêmico - responde por 46% do total. Trata-se daqueles ligados diretamente ao setor universitário, podendo se tratar de docentes (a maioria); reitores, diretores e coordenadores universitários; pesquisadores e responsáveis por centros, laboratórios e serviços afins.

O âmbito gestionário - 16% - inclui fundadores, diretores, presidentes e coordenadores de organizações não governamentais (ONGs), associações, institutos, fundações e outras entidades afins; diretores e coordenadores de órgãos e serviços estatais; representantes de órgãos multilaterais.

O item serviços - 12% - compreende os consultores, assessores e palestrantes; empresários e executivos do ramo educacional; funcionários de órgãos públicos; toda a gama, enfim, de profissionais que prestam serviços às escolas e outras instituições educacionais, como capacitadores, psicólogos, psiquiatras, psicopedagogos e fonoaudiólogos.

O âmbito político - 9% - refere-se aos ministros de Estado; secretários nacionais, municipais e estaduais; (vice-)presidentes e secretários de ministérios e de órgãos públicos; senadores, deputados estaduais e federais, vereadores; integrantes de conselhos e comitês estaduais e nacionais; até um presidente da República e a respectiva primeira-dama.

Nove porcento dos entrevistados eram ligados ao âmbito cultural. Trata-se de um rol de vários tipos de ofícios: escritores e autores de livros, incluindo os didáticos; jornalistas e articulistas; cineastas; musicistas, compositores e maestros; críticos de arte e de literatura; diretores de museu e de teatro; coreógrafos; contadores de histórias; quadrinistas, etc.

O âmbito prático engloba os responsáveis por projetos e programas de formação; professores da escola básica; diretores de escolas, de creches e de redes; coordenadores e supervisores pedagógicos; pedagogos em geral. Ao todo, 4% de todos os entrevistados.

Por fim, a categoria outros - 3% - contempla campos de atuação menos próximos ao domínio educacional ou depoentes cujas entrevistas não focalizaram temáticas de interesse imediato a este: empresários e executivos de outros ramos; economistas; profissionais da Justiça; ativistas, etc.

Da pletora de informações dispostas até aqui, vale sublinhar o fato de que a caracterização dos personagens discursivos apresentava-se de modo deveras flutuante e elástico, reunindo diferentes tipos sociais/profissionais - mostra, talvez, de uma porosidade desmedida do campo a uma gama de pontos de vista exógenos acerca de uma prática levada a cabo em um país continental por milhões de profissionais. Ora, mesmo admitindo que se trata de uma prática fronteiriça com interfaces com numerosos campos, caberia indagar: quem estaria, de fato, apto a falar em nome da educação nacional, ou para ela?

Para que se possa esboçar uma resposta razoável a tal questão, é preciso ter em mente três distinções basais: 1) tal como visto, os depoentes podiam apresentar filiação mais, ou menos, próxima do campo educacional stricto sensu; 2) podiam ser estrangeiros (e brasileiros radicados fora do Brasil) ou brasileiros (e estrangeiros radicados no País); e 3) podiam ser mais, ou menos, imediatamente reconhecíveis pelo público leitor.

Quanto ao último quesito, pode-se atestar, especialmente no caso dos brasileiros, um rol surpreendente de personalidades recobrindo um amplo panorama sociocultural, o qual se estendeu, por exemplo, de Paulo Freire a Olavo de Carvalho; do antropólogo Darcy Ribeiro ao deputado Romário; do coreógrafo Ivaldo Bertazzo ao empresário Ricardo Semler; da primeira-dama Ruth Cardoso à psicóloga Rosely Sayão; do geógrafo Milton Santos ao cartunista Ziraldo; da sexóloga Marta Suplicy à diretora de ONG Viviane Senna; do ativista indígena Ailton Krenak ao crítico literário Antonio Candido; e assim por diante.

Também com relação aos estrangeiros - oriundos de trinta países, ao todo -, alguns nomes de destaque marcaram presença, como os escritores José Saramago, Gonçalo M. Tavares e Mia Couto; os pensadores Pierre Lévy, Paul Virilio, Fernando Savater, Domenico de Masi, István Mészáros; o historiador Roger Chartier; o psiquiatra Claudio Naranjo; o crítico de arte Luis Camnitzer; o vencedor do Prêmio Nobel da Paz Kailash Satyarthi, entre tantos outros.

Quanto à recorrência de aparições (até três) nas entrevistas - o que evidenciaria, digamos, um sólido reconhecimento público de suas figuras e, portanto, o grau de interesse editorial por eles despertado -, temos a seguinte configuração:5

  • nove aparições: António Nóvoa.

  • oito: Howard Gardner e José Pacheco.

  • sete: Magda Becker Soares.

  • seis: [estrangeiros] Antoni Zabala, César Coll e Emilia Ferreiro; [brasileiros] Cristovam Buarque, Maria Helena G. de Castro, Paulo Renato Souza e Yves de La Taille.

  • cinco: [estrangeiros] Alicia Fernández, Bernardo Toro e Roger Chartier; [brasileiros] Guiomar Namo de Mello e Mario Sergio Cortella.

  • quatro: [estrangeiros] Ana Teberosky e Anne-Marie Chartier; [brasileiros] Bernard Charlot, Carlos Roberto Jamil Cury, Celso Antunes, Claudio de Moura Castro, Dermeval Saviani, Fernando Haddad, Frei Betto, Joel Rufino dos Santos, José Francisco Soares, Maria Alice Setubal, Mozart Neves Ramos, Paulo Freire e Rubem Alves.

  • três: [estrangeiros] Alvaro Marchesi, Bernard Lahire, Boudewijn Van Velzen, Carl Honoré, Carlos Alberto Torres, Charles Hadji, Fernando Hernández-Hernández, Isabel Alarcão, José Morais, Lee Sing Kong, Marcelo Gleiser, Mario Carretero, Pierre Lévy, Sara Paín e Thomas Armstrong; [brasileiros] Ana Mae Barbosa, Ana Maria Machado, Antonio Carlos Gomes da Costa, Cipriano Luckesi, Edmir Perrotti, Elvira Souza Lima, Gilberto Dimenstein, Gustavo Ioschpe, Iván Izquierdo, João Batista de Araújo Oliveira, Kátia Stocco Smole, Laurentino Gomes, Léa Fagundes, Luís Carlos de Menezes, Marcos Bagno, Marcos Garcia Neira, Maria Antonieta Celani, Maria Malta Campos, Nita Freire, Paulo Ghiraldelli Júnior, Roberto Lent, Simon Schwartzman, Sírio Possenti, Tania Zagury, Telma Vinha e Ubiratan D’Ambrosio.

Destaque deve ser concedido, especificamente, às participações de Paulo Freire, o autor mais amplamente referido pelos demais depoentes, fossem brasileiros ou estrangeiros. Quatro foram as vezes em que Freire foi entrevistado: duas por Nova Escola (em 1989 e 1993), uma por Presença Pedagógica (em 1995) e outra por Pátio (em 1997) - neste último caso, trata-se de uma compilação de excertos de entrevistas anteriores realizadas por Carlos Alberto Torres. Tais textos, quer nos parecer, portam um valor documental indubitável em termos da biobibliografia do pensador. Outrossim, o mesmo pode ser dito em relação a Magda Becker Soares, a depoente brasileira mais assídua no arquivo analisado.

Contudo, quando os depoentes são dispostos lado a lado - e lembrando a proporcionalidade da participação estrangeira (1/3 das entrevistas) -, salta aos olhos a recorrência de António Nóvoa, entrevistado por sete das dez revistas, entre 2001 e 2017. Assim, se necessário fosse eleger uma personalidade-símbolo do nicho editorial das revistas pedagógicas, esta seria, sem dúvida, o ex-reitor da Universidade de Lisboa.

Do que se fala

A segunda frente de análise do arquivo atendeu ao propósito de operar um mapeamento extensivo das configurações temáticas que vieram à tona nas entrevistas. Tratou-se da etapa mais engenhosa em termos do arquivamento investigativo, uma vez que requereu a imersão no âmbito propriamente argumentativo do material, resultando em uma protocatalogação dos temas trazidos à baila. Assim, elaborou-se um temário contemplando dez diferentes categorias gerais, subdivididas em 45 subcategorias.

Entenda-se que muitas tematizações constantes das entrevistas mantinham estreita interface com várias subcategorias, podendo apresentar justaposição e, por conseguinte, ensejar outros tipos de enquadramento. Em nosso caso, o critério de alocação pautou-se no tipo de ênfase eleito pelos próprios entrevistados. A saber:

Quadro 1 Temário das entrevistas 

Ensino - 22% tópicos transversais
ensino de Ciências da Natureza e Matemática
ensino de Linguagens
teorizações do ensino
educação infantil
ensino de Ciências Humanas/Sociais
Cotidiano pedagógico/
escolar - 19%
aprendizagem/desenvolvimento
era digital
convívio/conflitos escolares
mundo juvenil
avaliação da aprendizagem
família e escola/educação
Política e organização do
ensino - 13%
gestão educacional/escolar
legislação educacional
financiamento/economia da educação
avaliação educacional
âmbito universitário
currículo
Situação do campo
educacional - 12%
papel/funções da educação/escola
conjuntura socioeducacional
crítica da educação/escola
perspectivas da educação/escola
história (da educação)
Leitura e escrita - 10% literatura/leitura literária
alfabetização/letramento
práticas de leitura
livro (didático)
Profissão docente - 9% formação docente
trabalho docente
identidade docente
Programas e projetos - 5% iniciativas do setor público
iniciativas do terceiro setor
Modalidades de ensino - 5% práticas não escolares
educação especial/inclusiva
educação profissional/tecnológica
educação indígena
educação de jovens e adultos
educação rural/no campo
educação a distância
Experiências internacionais - 5% Europa
Ásia/Oceania
América Latina
América do Norte
África
Outros - 1% outros

Fonte: Elaboração do autor com base em dados da pesquisa.

Decerto, tais montantes não são capazes de elucidar, por si sós, a enormidade temática que ganhou corpo e movimento no material sob exame. A seguir, as 45 subcategorias são pormenorizadas, evidenciando os assuntos predominantes em cada caso. Claro está, no entanto, que os assuntos elencados a seguir não esgotam a espantosa quantidade de questões abordadas nas centenas de entrevistas. Vejamos.

Encampando quase um quarto de todas as entrevistas, a categoria ensino descreve um tipo de preocupação explícita dos depoentes: a visada propriamente didática/metodológica sobre determinados assuntos. Em tópicos transversais: questões relativas à educação alimentar, ambiental, financeira, moral, emocional, sexual, de gênero. Em ensino de Ciências da Natureza e Matemática: aprendizagem e letramento científicos, etnomatemática, história da ciência. Em ensino de Linguagens: teatro, música, dança, artes visuais, cinema, culturas corporal e linguística. Em teorizações do ensino: ideias de Freire, de Montessori e de Ferreiro, currículo baseado em competências e em projetos. Em educação infantil: creches, brincadeiras e jogos, psicologia, sociologia e neurociência da infância. Por fim, em ensino de Ciências Humanas/Sociais: questões referentes à formação em/ensino de filosofia, história e geografia.

A segunda maior categoria corresponde a um contingente de questões prementes no dia a dia dos educadores. A saber: aprendizagem/desenvolvimento: corpo, emoções, desejo, subjetividade, saúde, moralidade, cognição, fracasso e evasão escolares. Em era digital: exclusão e inclusão digitais, uso consciente das tecnologias de informação e comunicação (TICs) e das redes sociais. Em convívio/conflitos escolares: violência e bullying no cotidiano escolar e nas famílias, indisciplina, mediação de conflitos. Em mundo juvenil: cultura e protagonismo juvenis, prevenção à drogadição, à depressão, etc. Em avaliação da aprendizagem: avaliação formativa e externa, Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), crítica à lógica reprovação/aprovação. Em família e escola/educação: responsabilidades e diferenças entre os papeis parental e docente, novos arranjos familiares.

A terceira categoria, política e organização do ensino, organizou-se em seis diferentes blocos. A saber, em gestão educacional/escolar: qualidade da escola pública e da particular, reformas educacionais, municipalização, modelo de gestão empresarial, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), diferentes gestões do Ministério da Educação (MEC). Em legislação educacional: análise (crítica) da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), do Plano Nacional de Educação (PNE), dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs), da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e de outros marcos legais. Em financiamento/economia da educação: análise (crítica) do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), políticas do Banco Mundial, boas (e más) práticas de uso de verbas. Em avaliação educacional, sistemas escolares de diferentes países e posição do Brasil, sistemas de avaliação estaduais, avaliação institucional na educação infantil. Em âmbito universitário: cotas raciais/sociais, Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid). Em currículo: análise (crítica) dos PCN, transdisciplinaridade, escola em tempo integral, mudanças curriculares no Brasil e em outros países.

No que se refere à categoria situação do campo educacional, reuniram-se ali as abordagens mais de cunho reflexivo sobre a educação (sobretudo, escolar), subdivididas de acordo com os cinco eixos. Em papel/funções da educação/escola: crise e utopia educacionais, cidadania democrática, ideias freireanas e de outros teóricos. Em conjuntura socioeducacional: problemas estruturais do sistema educacional brasileiro, globalização, reformas, etc. Em crítica da educação/escola: experiências escolares democráticas, má-formação dos docentes e dos gestores escolares, críticas ao MEC. Em perspectivas da educação/escola: agenda para o século XXI, espaços inovadores ao redor do mundo, novas tecnologias e mudanças do paradigma cognitivo. Por fim, em história da educação: século XIX e início do XX, Escola Nova, etc.

Os temas predominantes na quinta categoria, leitura e escrita, foram: em literatura/leitura literária: literatura infantojuvenil, indígena e afro-brasileira, contação de histórias; em alfabetização/letramento: propostas de alfabetização, formação e conservação do hábito da leitura; em práticas de leitura: políticas de fomento à leitura, biblioteca escolar, alfabetização audiovisual; por fim, em livro (didático): Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), mercado editorial, terceirização, etc.

A categoria prática docente foi subdividida em três frentes complementares, incluindo as principais inflexões em torno da formação docente, inicial e/ou continuada, e do trabalho docente, condições de exercício, carreira, salários. A terceira subcategoria engloba as discussões acerca da identidade docente: papel e perfil do (bom) professor, crise, (des)valorização, etc.

Na categoria programas e projetos, os dados foram subdivididos em dois tipos: 1) iniciativas do setor público, como os programas Alfabetização Solidária, Mais Educação, Bolsa Família, Escola Integrada (PEI), etc.; e 2) iniciativas do terceiro setor, como o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), as Fundações Victor Civita e Bradesco, os Institutos Ayrton Senna, Reação, Geledés, etc.

A oitava categoria, modalidades de ensino, abrange tipos de iniciativas educativas voltadas ao grande público ou a segmentos específicos desse. Os temas mobilizados orbitaram em torno dos referenciais e dos desafios atestados nas práticas de educação especial/inclusiva, profissional/tecnológica, indígena, de jovens e adultos, rural/no campo e a distância. No caso das práticas não escolares, sobressaíram discussões acerca do ensino não formal e informal, cidades educadoras, museus de arte e de ciência, bem como canais televisivos.

A penúltima categoria, experiências internacionais, consiste no relato de algumas ações específicas levadas a cabo em diferentes pontos do globo: países nórdicos, Portugal, Espanha, França, China, Japão, Singapura, Austrália, Bolívia, Colômbia, Chile, Cuba, Argentina, Estados Unidos e Moçambique.

Por fim, a categoria outros abrange discussões que, do modo como foram conduzidas, não tangenciaram a educação de modo direto. Três temas, porém, repetiram-se: a escravidão no Brasil, a questão indígena e a vida/biografia de Getúlio Vargas.

* * *

O que se testemunhou até aqui descortina um universo marcado por impressionantes copiosidade, heterogeneidade e multiplicação discursivas, recobrindo desde enfrentamentos intrincados de assuntos igualmente intrincados até, em alguma medida, trivialidades e lugares comuns. Destarte, a tarefa analítica poderia dar-se por encerrada caso não persistisse a determinação menos de formular um retrato especular do arquivo, e mais de compor certa imagem em movimento de alguns acontecimentos operando ali de modo transversal.

Como fazê-lo? Umberto Eco (2010, p. 15) afirma oportunamente que,

. . . quando não se consegue dar uma definição de alguma coisa por essência e, portanto, para falar dela, para torná-la compreensível, perceptível de alguma maneira, elencam-se suas propriedades . . . . As propriedades acidentais de uma coisa, desde os gregos até os nossos dias, são consideradas infinitas.

Mediante essa espécie de infinitude discursiva que designa o arquivo como materialidade, uma nova estratégia foi ativada, então, com vistas à prospecção de certos núcleos enunciativos que pontilharam a massa discursiva do estudo: a listagem. Mais especificamente, tratou-se da composição de algumas listas - aqui, apenas seis, entre muitas outras possibilidades -, cada qual girando em torno de um mesmo tipo de tematização geral: no caso, o que os depoentes afirmaram que o campo educacional tem e não tem, bem como o que os educadores precisam, querem, devem e, por fim, não podem fazer em sua lida. Três pares, de certo modo, antitéticos ou, de outro modo, complementares, em seu conjunto.

No intuito de formular uma espécie de taxonomia dos acontecimentos discursivos sob exame em meio à sua proliferação e dispersão contínuas, o ato de listar foi levado a cabo à moda de um gesto de catalogação, cujos resultados analíticos adviriam da recomposição, em outras bases, da ordem anônima do discurso, na esteira da qual se desdobra uma miríade de efeitos veridictivo- -subjetivadores entre aqueles nela e por ela enredados.

Alheio a qualquer ensejo interpretante, elucidativo, ilustrativo e quetais, o condão analítico das listas, no caso, perfaz-se pelo ordenamento analógico - por mera contingência e não por sinonímia, frise-se - dos enunciados quando dispostos lado a lado; não importando mais o contexto original de sua aparição. O relevo, aqui, passa a residir no saldo combinatório dos enunciados, computada sua infixidez intrínseca. Em suma, trata-se de capturar temporariamente algo que se move sem cessar.

Pode-se dizer que a lista assenta no jogo entre descontinuidade e continuidade. Ela pode ser lida em diferentes direções, e os itens que a compõem podem ser ordenados segundo vários critérios de classificação, como o numérico, o alfabético, o sonoro e o hierárquico. . . . Ademais, sua flexibilidade permite a inserção e subtração de elementos na relação que a constituiu, sem que isso prejudique sua estrutura. Seus limites são móveis. (Maciel, 2009, p. 29).

A seguir, apresentam-se as composições que fomos capazes de efetuar. Os excertos encontram- -se dispostos em ordem cronológica, sem que os depoentes se repitam. Ao todo, sessenta depoentes distintos em sessenta passagens, sempre na primeira pessoa do plural - tal como se materializaram no arquivo -, consubstanciando, assim, um efeito em rede da discursividade educacional contemporânea.

E se plausível tiver sido nossa argumentação até aqui, os arranjos textuais adiante deverão falar por si sós.

Temos:

  • - uma fraqueza: nos sentimos recompensados não só pela gratificação financeira, mas principalmente pelo sorriso e pela evolução das crianças {Antoni Zabala, ED, 1998};

  • - a impressão de que tudo está na mesma e nós mesmos que trabalhamos na área vivemos momentos de grande desânimo, perguntando como é que se forma um professor {Isabel Alarcão, PT, 2002};

  • - a sensação de estar vivendo um momento de mudança acelerada nas formas de gerir socialmente o conhecimento e, simultaneamente, de um estancamento nas formas de ensiná-lo ou de transmiti-lo {Juan Ignacio Pozo, PT, 2005};

  • - poucos professores que poderíamos chamar de leitores plenos e competentes, capazes de discutir um livro que esteja lendo ou para quem a leitura faça parte do dia a dia {Marisa Lajolo, CF, 2008};

  • - uma grande massa de estudantes universitários, por exemplo, de Pedagogia e Letras, mas a maioria deles não vai exercer a profissão docente {Marcos Bagno, PP, 2008};

  • - um grande déficit no atendimento em creches, na educação de jovens e adultos (EJA) e na educação profissional e superior {Flávio Arns, PM, 2009};

  • - a “Escolinha do Professor Raimundo”, mas não o “Hospital do Dr. Raimundo”. Quer dizer, aqui há uma desmoralização sistêmica da profissão {Romualdo Portella de Oliveira, CE, 2010};

  • - casos de bullying, ameaças, agressões e cyberbullying {Antonio Ozório Nunes, CF, 2011};

  • - uma cultura em que o professor precisa ser gostado, como se o sucesso da educação estivesse na boa relação dele com o aluno {Juvenal Savian Filho, CN, 2012};

  • - uma coisa maluca no Brasil, em que há uma espécie de antieducação, uma educação que não funciona para nada, a não ser para humilhar e machucar as pessoas {Marcia Tiburi, PM, 2015}.

Não temos:

  • - a coragem de dizer “vem para a minha aula quem gostar”, porque temos medo de ficar falando sozinhos {Pedro Demo, NE, 2001};

  • - diplomatas negros, raríssimos médicos, o Supremo Tribunal Federal não tem um ministro negro {Cristovam Buarque, PT, 2003};

  • - rotinas para organizar a vida das crianças {Lino de Macedo, NE, 2005};

  • - bons exemplos morais para dar aos nossos filhos {José Ângelo Gaiarsa, PM, 2006};

  • - referências políticas e culturais confiáveis {Luciano Pires, PM, 2006};

  • - como alterar as condições de base que produziram a desigualdade neste país {Selma Garrido Pimenta, CE, 2008};

  • - uma cultura de exigência, de rigor e de qualidade {Domingos Fernandes, ED, 2009};

  • - uma preocupação de construção da identidade nacional através da educação {Ana Clara Bortoleto Nery, ED, 2010};

  • - um currículo que defina, por exemplo, “no fim do primeiro ano, a criança deve ser capaz de...”, ou “ao fim da educação infantil, a criança deve ser capaz de...” {Magda Becker Soares, PP, 2012};

  • - uma política de reconhecimento e valorização desse profissional [professor], em todos os níveis {Mônica Gardelli Franco, ED, 2017}.

Precisamos:

  • - remover os obstáculos que dificultam que a alegria tome conta de nós e não aceitar que ensinar e aprender são práticas necessariamente enfadonhas e tristes {Paulo Freire, NE, 1989};

  • - nos valorizar, isso é muito importante para que a nova escola possa surgir. Uma valorização que começa nas pequenas coisas {Moacir Gadotti, NE, 1991};

  • - saber três coisas importantes: sabermos ensinar; sabermos quem é João; sabermos em que contexto João vive {Hamilton Werneck, PM, 2006};

  • - compreender quem é o professor, sua personalidade, porque o modo de ensinar, as práticas de ensino e a pedagogia estão intimamente ligados à sua história pessoal {Ivor Goodson, PT, 2007};

  • - não esquecer que em cada criança e em cada jovem pode existir, à espera de despertar, um filósofo, uma pensadora, um poeta, um construtor de seu mundo {Carlos Rodrigues Brandão, PTem, 2009};

  • - estabelecer o espaço de diálogo entre o professor e o jovem. Tudo é possível e não precisa de malabarismos {Juarez Dayrell, PP, 2010};

  • - deixar de caracterizar o professor como um sacerdote. Ele é um gestor. E um gestor é aquele que produz efeito {Cipriano Luckesi, ED, 2012};

  • - encorajá-las [as crianças], dar-lhes mais elementos para que entendam o valor da educação. Isso virá da inspiração, que deve ser incutida pela escola e pelo professor {Brian Perkins, ED, 2013};

  • - de pessoas apaixonadas, envolvidas para que a sociedade tenha esperança, mas quem entra tem de saber que vai trabalhar incessantemente {Andrea Caldas, CE, 2015};

  • - de muito menos cuidadores de pátio, menos polícia, menos interventores externos. Os professores têm de pôr menos ordem {José María Avilés Martínez, ED, 2015}.

Queremos:

  • - que todos saiam da escola com as habilidades necessárias para ler, escrever e fazer cálculos. E que essa leitura faça sentido e contribua de fato para o entendimento de mundo {Maria Aparecida Perez, ED, 2003};

  • - despertar neles [alunos] a capacidade de abstrair, de pensar em sistemas, de resolver problemas, de trabalhar em equipe e de lidar com incertezas {Cristián Cox, NE, 2004};

  • - que o aluno aprenda mais do que ele aprende hoje {John Edwin Mein, ED, 2005};

  • - deixar os nossos filhos com pessoas que possam agregar valor de felicidade, entusiasmo, otimismo e realização pessoal {Rogério Mainardes, PM, 2004};

  • - que se estabeleça o que a criança precisa saber ao fim de cada ano. Se deixarmos isso claro para os pais, eles saberão cobrar da escola {Mozart Neves Ramos, PTef, 2011};

  • - que o professor promova a procura desse conhecimento por parte do aluno, que ele pesquise e descubra, que trabalhe em grupo, que aprenda a aprender {José Fernandes de Lima, CN, 2011};

  • - formar cidadãos conscientes, que leem e que podem fazer descobertas incríveis por meio do texto literário, que é capaz de romper com grilhões de formatação de educação {Aparecida Paiva, CF, 2013};

  • - que os alunos saibam como produzir conhecimento com competência para ter um bom desempenho em muitas áreas da vida cotidiana {Colin Lankshear, PP, 2013};

  • - uma escola que ajude o aluno a considerar o mesmo fato por diversas perspectivas, focos e lentes, e que ele assim chegue à sua conclusão, com elementos que sustentem, de forma consistente, a sua opinião {Carla Viana Coscarelli, PP, 2017};

  • - que os alunos sejam capazes de não mais aceitar como naturais as injustiças que eles presenciam e, portanto, que possam agir para superá-las, para impedir essas violações {Oscar Vilhena Vieira, ED, 2017}.

Devemos:

  • - nos colocar em uma posição de igualdade, onde, com respeito, também digamos “Ei, eu não aceito isso que você está fazendo”. Ou seja, é um jogo de autoridade que não podemos negar {Ángel Díaz Barriga, PP, 1998};

  • - estar atentos para a questão de que talvez o Brasil esteja jogando nos ombros da escola e da educação uma responsabilidade grande demais {Geraldinho Vieira, PP, 2000};

  • - aprender a ter confiança em nós mesmos: somos perfeitamente capazes de avançar rumo a uma sociedade de aprendizagem e de criação permanente {Pierre Lévy, PT, 2001};

  • - ter humanidade, capacidade de respeitar e uma alegria cidadã contagiosa. Isso será repassado às crianças {Fernando Savater, NE, 2002};

  • - ser exigentes com os nossos filhos e alunos. Mas não devemos, jamais, colocar a exigência antes da compreensão {Antonio Carlos Gomes da Costa, ED, 2003};

  • - viver a profissão pela esperança e com esperança para poder dar esperança aos nossos alunos. Não pode haver processo educacional sem esperança {Xesús R. Jares, PTei, 2006};

  • - incentivá-las [as crianças] a ter uma solidariedade universal. É evidente que a família desempenha um papel fundamental, mas a escola também exerce um papel importante e diferenciado {Philippe Meirieu, PT, 2008};

  • - aplicar o mesmo tipo de raciocínio às diferenças cerebrais que aplicamos à biodiversidade ou à diversidade cultural {Thomas Armstrong, PTei, 2008};

  • - parar de mentir aos alunos fingindo que ensinamos coisas úteis. Às vezes, isso é verdade e, ao fazê-lo, damos força pedagógica ao que ensinamos {Bernard Charlot, PTem, 2011};

  • - melhorar muito a formação e o nível cultural e de informação de nossos professores {Iván Izquierdo, PTef, 2018}.

Não podemos:

  • - deixar fora de nossas considerações à ética profissional: necessitamos fazer as coisas o melhor possível porque de nossas atuações se derivam fortes consequências para nossos alunos {Miguel Zabalza, ED, 2004};

  • - despejar nelas [escolas] todos os problemas da sociedade - isso é uma responsabilidade da sociedade como um todo {Peter Moss, PTei, 2005};

  • - ensinar que o mundo é dos mais fortes, mais espertos ou mais ricos e desenvolver o individualismo, a concorrência, a competição, a omissão e a alienação {Tião Rocha, PP, 2005};

  • - supervalorizar os recursos tecnológicos, porque nada substitui a presença e a interferência do professor em sala de aula {Tania Zagury, NE, 2006};

  • - perder a ideia de que a transformação é possível. Manter vivas as utopias é manter vivo o ser humano {Graça Paulino, PP, 2011};

  • - discutir as causas do mau desempenho medido por uma prova sem discutir a prova. Nenhuma avaliação é neutra {Luiz Márcio Imenes, CF, 2013};

  • - achar normal que a escola esteja com as suas paredes pichadas, com os banheiros sem papel e sem espelho, isso não é razoável {Tereza Perez, CF, 2013};

  • - falar em déficit de alguma coisa ainda não definida. Ou seja, como falar em déficit de atenção sem antes definir o que é atenção? {Alicia Fernández, PM, 2014};

  • - nos submeter a esse tipo de “tsunami informacional” que temos no cotidiano e acaba nos estonteando {Mario Sergio Cortella, PM, 2015};

  • - acabar com a desigualdade na educação se não enfrentarmos a questão da diferença do ensino particular e do ensino público {Abdeljalil Akkari, PM, 2016}.

Considerações finais

O percurso que ora se encerra permite algumas reflexões sumárias acerca do modus operandi da discursividade educacional contemporânea e do horizonte ético-político por ela granjeado.

Deparamo-nos com um coro extensivo de vozes - raramente dissonantes, é bem verdade - irmanadas na evocação de uma educação mais proativa e proveitosa, ou, no mínimo, menos inócua do que aquela que vem se apresentando nas últimas décadas. Fosse pelo viés crítico, fosse pelo propositivo, o diapasão discursivo foi o de um entusiasmo vivaz em relação à renovação dos usos e costumes pedagógicos - sempre em nome, por óbvio, de um inconteste melhoramento do mundo e de seus habitantes, a despeito de tantas e tamanhas adversidades, relutâncias, iniquidades; elas também recorrentemente aludidas no arquivo.

Para que se possa admitir a razoabilidade de tal raciocínio, há de se retroagir à conjectura inicial do estudo, segundo a qual caberia à imprensa pedagógica não apenas a tarefa confessa de atualização dos responsáveis pela educação nacional, mas, em igual medida, o desígnio de fixar certas racionalidades normativas, espargindo-as e, quiçá, entranhando-as no cotidiano das práticas; o que se efetivaria apenas por meio da adesão voluntária dos educadores a uma série de axiomas comuns e, por extensão, às obrigações a eles conexas.

É assim que, sob o mantra de um incontornável progresso - dos alunos, da sociedade, do país, do mundo, de si próprios, do que for -, uma voragem espiritual parece ter se instalado no seio da discursividade educacional, arregimentando um autogovernamento continuado, multicêntrico e, afinal, indeterminado dos profissionais, a reboque do qual marcas de excesso e de insuficiência coabitam em estranha sintonia. Daí um paradoxo fundante: se, por um lado, quanto mais atribuições os educadores têm, mais se precisa, se quer e se deve tê-las, por outro, conforme tais responsabilidades se avolumam, mais os resultados revelam-se parcos e, ao fim e ao cabo, menos efetividade se tem. Ascensão e queda no mesmo passo, por assim dizer.

Instala-se, assim, um movimento discursivo circular e saturante, já que seus pontos de partida e de chegada resultam coincidentes. Dito de outro modo, avanços e retrocessos parecem anular-se recíproca e continuamente. Daí talvez a tragicidade sisífica que emana amiúde das imagens partilhadas sobre o ofício docente, segundo a qual tudo se resumiria a sonhar alto demais e, em igual medida, atingir pouco demais.

Uma elucidação possível desse fenômeno é oferecida por Noguera-Ramírez e Marín-Díaz (2019, p. 31):

. . . o crescente processo de “educacionalização” ou “pedagogização social”, acelerado desde a última década do século passado, ao mesmo tempo que colocou a educação no centro das mais diversas problemáticas sociais, implicou certo enfraquecimento da Pedagogia (como disciplina e como campo profissional), devido à dispersão e à desarticulação de conceitos, noções, técnicas e práticas promovidas a partir de diferentes instâncias institucionais.

De fato, a imersão na materialidade empírica do estudo não deixa dúvidas quanto a um viés abertamente discricionário perfilando-se por entre os insistentes chamamentos aos educadores, resultando em um cardápio de expectativas tão extravagantes quanto inexequíveis, em seu conjunto. Tal tônica inflacionária é diagnosticada sem retoques por aquele que foi a voz mais recorrente entre todas as demais.

Há uma espécie de valorização retórica dos professores. Pede-se de tudo a eles. Quem vai salvar o mundo? Quem vai assegurar o desenvolvimento de todos? Quem vai garantir o progresso? Para todas essas questões, a resposta é sempre a mesma, a Educação. Algumas instituições parecem caminhões enormes carregando toneladas, mas eles têm rodinhas de bicicleta no lugar de pneus grandes. A Educação assumiu muitas tarefas. É o fenômeno da escola transbordante. {António Nóvoa, NE, 2012}.

Em face de tais circunstâncias, salvo melhor juízo, irreversíveis, resta-nos admitir que à proliferação desmesurada das fronteiras do campo educacional contemporâneo - processo que, como se observou, vem contando com o braço forte da imprensa pedagógica - corresponderia não apenas o risco de descaracterização dos afazeres típicos do ofício, mas, sobretudo, um conjunto de efeitos colaterais insondáveis sobre o próprio éthos educativo. Não se sabe.

1A partir de 2018, com a mudança da editora responsável, o periódico passou a ter como título Presença Pedagógica na Sala de Aula, antes apenas Presença Pedagógica.

2A diferença entre os dois montantes deve-se às múltiplas aparições de alguns depoentes em duas ou mais revistas ou, em alguns casos, na mesma revista.

3Doravante, todas as vezes em que as fontes do estudo forem citadas, o serão de modo recuado e em formato itálico, para diferenciá-las das demais citações. Da mesma maneira, os dados bibliográficos - nome do depoente, sigla da revista e ano da publicação - serão referidos entre chaves.

4Em tempo: no que tange ao gênero dos depoentes, houve 59% de participação masculina e 41%, feminina.

5No caso do brasileiro Marcelo Gleiser e do argentino Carlos Alberto Torres, ligados a universidades estadunidenses, ambos foram computados como radicados nos Estados Unidos. O contrário ocorreu com Iván Izquierdo e Bernard Charlot, radicados no Brasil.

Agradecimentos

Ao CNPq, pelo apoio na forma de bolsa de produtividade em pesquisa.

Disponibilidade de dados

Os dados subjacentes ao texto da pesquisa estão informados no artigo.

Referências

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Recebido: 28 de Junho de 2021; Aceito: 24 de Fevereiro de 2022

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