SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.52DISCURSIVIDAD EDUCATIVA CONTEMPORÁNEA: UN ENFOQUE EXPLORATORIOGRUPOS DE INVESTIGACIÓN Y FORMACIÓN DE DIRECTORES DE TESIS: TESTIMONIOS DE INVESTIGADORES índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.52  São Paulo  2022  Epub 18-Mayo-2022

https://doi.org/10.1590/198053148563 

TEORIAS, MÉTODOS, PESQUISA EDUCACIONAL

GROUNDED THEORY PARA INICIANTES: CONTRIBUTO PARA A INVESTIGAÇÃO EM EDUCAÇÃO

GROUNDED THEORY FOR BEGINNERS: A CONTRIBUTION TO RESEARCH IN EDUCATION

GROUNDED THEORY PARA PRINCIPIANTES: CONTRIBUCIÓN A LA INVESTIGACIÓN EN EDUCACIÓN

GROUNDED THEORY POUR LES DÉBUTANTS: CONTRIBUTION À LA RECHERCHE EN ÉDUCATION

ICentro de Estudos em Educação e Psicologia da Universidade de Évora (UÉ), Évora, Portugal; nunosilva.av@hotmail.com


Resumo

A Grounded Theory é das modalidades mais usadas em pesquisa de abordagem qualitativa. Contudo, em Portugal, ela é pouco mobilizada nas Ciências da Educação, apesar do seu potencial para o estudo de ambientes complexos, como é a educação. Essa dissonância sugere que a modalidade não tem divulgação adequada ou é entendida como de uso difícil. Meu objetivo é oferecer uma visão panorâmica da temática que se constitua como um modelo de iniciação à prática. Descrevo quando é que ela se torna pertinente, os passos e caraterísticas do processo e o produto científico expectável. Concluo que o recurso à modalidade pode contribuir para desenvolvimentos científicos, porque assenta em procedimentos flexíveis e heurísticos e acolhe o caráter incerto da educação e a serendipidade que daí emerge.

Palavras-Chave: GROUNDED THEORY; PESQUISA QUALITATIVA; EDUCAÇÃO; METODOLOGIA DA PESQUISA

Abstract

Grounded Theory is one of the most commonly used types of qualitative research. However, in Portugal, it is little applied in the educational sciences, despite its potential for the study of complex environments, such as education. This dissonance suggests that this type of research is not sufficiently well known, or it is believed to be difficult to use. My objective is to offer a panoramic view of Grounded Theory, which constitutes a model to initiate the practice. I describe when it becomes relevant, the steps and characteristics of the process (data collection to build theory, open coding, immediate data analysis, induction, openness, memos and constant comparison) and the expected scientific product. I conclude that the use of this research type can contribute to scientific developments, as it is based on flexible and heuristic procedures and welcomes the uncertain nature of education and the serendipity that emerges from it.

Key words: GROUNDED THEORY; QUALITATIVE RESEARCH; EDUCATION; RESEARCH METHODOLOGY

Resumen

La Grounded Theory es una de las modalidades más utilizadas en la investigación cualitativa. Sin embargo, en Portugal, es poco movilizado en Ciencias de la Educación, a pesar de su potencial en el estudio de entornos complejos, como la educación. Esta disonancia sugiere que la modalidad no tiene la divulgación adecuada o se entiende que es difícil de usar. En esa medida, mi objetivo es ofrecer una visión panorámica de la Grounded Theory, que constituye un modelo de iniciación a la práctica. Utilizo mi experiencia de principiante en la modalidad para describir cuándo se vuelve relevante, los pasos y características del proceso (recopilación de datos para construir teoría, codificación abierta, análisis inmediato de datos, inducción, apertura, memorandos y comparación constante) y el producto científico esperado. Concluyo que el uso de la modalidad puede contribuir a los desarrollos científicos, porque se basa en procedimientos flexibles y heurísticos y acoge la naturaleza incierta de la educación y la serendipia que emerge de ella.

Palabras-clave: GROUNDED THEORY; INVESTIGACIÓN CUALITATIVA; EDUCACIÓN; METODOLOGÍA DE LA INVESTIGACIÓN

Résumé

La Grounded Theory est l’une des modalités les plus utilisées dans la recherche qualitative. Cependant, au Portugal, elle est peu mobilisée en Sciences de l’éducation, malgré son potentiel dans l’étude d’environnements complexes, comme l’éducation. Cette dissonance suggère que la modalité n’a pas une divulgation adéquate ou est considérée comme difficile à utiliser. Dans cette mesure, mon objectif est d’offrir une vision panoramique de la Grounded Theory, qui constitue un modèle d’initiation à la pratique. J’utilise mon expérience de débutant dans la modalité pour décrire quand cela devient pertinent, les étapes et les caractéristiques du processus (collecte de données pour construire la théorie, codage ouvert, analyse immédiate des données, induction, ouverture, mémos et comparaison constante) et le produit scientifique attendu. Je conclus que l’utilisation de la modalité peut contribuer aux développements scientifiques, car elle repose sur des procédures flexibles et heuristiques et accueille le caractère incertain de l’éducation et la sérendipité qui en découle.

Key words: GROUNDED THEORY; RECHERCHE QUALITATIVE; ÉDUCATION; MÉTHODOLOGIE DE LA RECHERCHE

Metodologia Grounded Theory (GT) parece ser uma das mais usadas em pesquisas com abordagem qualitativa (Bryant & Charmaz, 2007). Porém pode estar diminuída na investigação em educação que decorre em Portugal. Por exemplo, nas teses de doutoramento que se realizaram entre 2018 e 2020, somente 1% (duas teses em 201) recorreu a essa modalidade de investigação (Silva & Dinis, 2021), o que é sugestivo que a GT não está a ter divulgação ou que é entendida como uma metodologia de uso difícil.

Contudo a modalidade é propícia ao ganho de conhecimento sobre ambientes ou eventos novos ou em mutação, em que as teorias existentes não oferecem compreensão e as surpresas são comuns (Corbin & Strauss, 2008; Creswell, 2012). Parece-me que isso significa que se aplica a qualquer ambiente educativo, já que eles têm, precisamente, essas caraterísticas.

A educação é um espaço complexo, habitado por agentes diversificados, livres e predispostos a agir para que as suas necessidades e sonhos sejam resolvidos (Hamido, 2007), o que significa que ainda que possamos conhecer as pessoas, dificilmente podemos antecipar o resultado das suas interações (Fullan, 2001; Silva, 2019). Portanto, se muito é sistematicamente novo, precisamos de metodologias de investigação que lidem com essa novidade e acolham a serendipidade que dela pode resultar. Nesse caso, a GT pode ser um instrumento privilegiado.

Face a isso, o meu objetivo é oferecer uma visão geral sobre a metodologia GT, como contributo para que os investigadores em educação a possam considerar quando houver pretensão de produzir conhecimento sobre ambientes complexos.

Trata-se de um texto que se assenta na minha própria experiência, como partilha, na sequência das primeiras investigações em que recorri à modalidade (a partir do meu diário de bordo) e é dirigido a outros iniciantes - por isso opto pela informalidade na escrita. Assume, desde o início, o critério de oferecer a minha interpretação acerca de cada um dos elementos da GT - pareceu-me importante elucidar a minha visão e as explicações que fui induzindo, em vez de me limitar a descrever os passos metodológicos, já que elas podem contribuir para que outros tomem rumos mais seguros.

Evito, aliás, referências bibliográficas1 e prefiro oferecê-las em um dos últimos subitens do texto. Como critério organizador, procuro abordar as estratégias que integram a GT e, para cada uma delas, explicar o que são, como são postas em prática e por que é que são usadas. Estruturalmente, começo por esclarecer quando é que essa modalidade de investigação se torna pertinente e, em seguida, dirijo-me a cada um dos passos do processo de investigação (recolha de dados para construir teoria, análise imediata de dados, abertura, codificação aberta, elaboração de memorandos (Silva, 2022a, 2022b) e comparação constante) e ao produto científico que pode ser conseguido. Deixo para o fim a descrição das várias tipologias da metodologia GT e termino com notas conclusivas (tendencialmente pessoais), orientadas a estimular o uso da modalidade na investigação em educação.

Objetivo da Grounded Theory e quando usar a metodologia

O objetivo do uso da metodologia GT em uma investigação é a construção de uma teoria com base em dados. Em um microrresumo, o investigador recolhe, repetidamente, dados acerca do objeto em estudo, interpreta-os indutivamente, compara-os e constrói uma teoria que aumente o conhecimento e a compreensão sobre o que foi estudado.

Aqui quero clarificar uma linha transversal a este artigo: a educação é um ambiente complexo e surpreendente, em que muito é novo ou renovado, o que significa que os espaços educativos são desafiadores do conhecimento anterior, porque, sendo instáveis, lhe atribuem limitações permanentes - digamos, um prazo de validade desconhecido.

Esta pequena introdução é importante, porque vos direi que a GT é: (a) útil quando o objeto de investigação é pouco conhecido, tem falta de sustentação teórica ou é dinâmico e evolutivo; e (b) quando se pretende investigar os processos e interações sociais. Assim, a educação, que se renova permanentemente (os alunos crescem, os professores desenvolvem-se, as políticas mudam e a sociedade inova), constitui-se um espaço privilegiado para o seu uso.

A modalidade torna-se menos útil quando o objeto de estudo é sobejamente conhecido, tem sustentação teórica consistente e variada e não é dado a incertezas ou alterações.

Abertura do investigador

Uma vez que a GT está dedicada ao estudo dos processos interativos entre os agentes e a compreender os espaços que entre eles existem, os investigadores são estimulados a manter abertura de espírito perante as realidades educativas que podem conter elementos absolutamente novos.

Por outras palavras, se não possuímos compreensão do que está a acontecer, teremos (no início) de estar recetivos que tudo possa estar a acontecer. Nesse caso, as pesquisas por GT iniciam-se com questões abertas, em que os investigadores presumem muito pouco acerca da realidade.

O meu segundo estudo com recurso à modalidade, que tem o objetivo de compreender como é que os investigadores e os processos de investigação acolhem as surpresas dos contextos, tinha o subtítulo “A perspetiva de investigadores experientes”, o que era um erro, já que retirava a abertura necessária para recorrer a outros dados diferentes das perceções de investigadores experientes - outras fontes poderiam contribuir para o entendimento da situação.

Uma vez que a GT não é uma investigação focada em explicações preexistentes, a pergunta de investigação ou - talvez seja a melhor expressão - o ponto de partida científico não é uma questão que delimite contextos, variáveis ou participantes, mas uma que clarifique que o campo de ação do investigador é incerto e largamente desconhecido.

Nessa medida, não há limitação da temática em estudo através de extenso enquadramento bibliográfico, já que não se pretende explicar o que está a ser estudado através do conhecimento existente (se isso for considerado, provavelmente a GT não é a modalidade adequada para a investigação), o que significa que o investigador deve manter-se aberto à teoria que os dados sugerem, em vez de se orientar para os dados de que as teorias existentes carecem. Parte dos procedimentos destinam-se, exatamente, a auxiliar o investigador nesse processo de abertura.

Recolha de dados iterativa para construção de teoria

Como se carateriza o percurso que se inicia nos dados e termina em uma teoria?

A resposta resumida (e incompleta) é que não há uma recolha única de dados. Há tantas recolhas quanto as necessárias, através de um processo espiral que vai procurando por dados mais específicos (Figura 1).

Começa-se por uma recolha estratégica inicial, destinada a oferecer uma visão geral e a definir áreas ou categorias que agrupam os dados. É caraterizada por uma seleção intencional de fontes, na busca daquelas que estão em melhor condição para informar acerca do objeto que está a ser pesquisado.

Na minha pesquisa acerca da investigação em educação, comecei, como vos disse, por entrevistar investigadores muito experientes, pessoas que, para além de um posicionamento profissional estável e facilitador de liberdade crítica, tinham experimentado várias metodologias, passado por diversas tendências epistemológicas e políticas e que ofereciam uma visão histórica e transversal do fenómeno. A partir daí, poderei construir uma visão inicial do meu objeto de estudo e levantar dúvidas que me levarão a novas recolhas de dados.

Portanto a recolha estratégica inicial é destinada ao melhor acesso possível ao fenómeno e dela emergirão, certamente, dúvidas, dissonâncias e a necessidade de aprofundar alguns temas e descartar outros.

Fonte: Elaboração do autor.

Figura 1 Estrutura da recolha de dados na Grounded Theory  

Podemos imaginar, como exemplo, a recolha de informação por meio de entrevistas a atores centrais em um dado processo educativo e a consequente utilização de um guião. O ponto-chave será que, na perspetiva da GT, um guião e um conjunto de entrevistas não serão suficientes para que se compreenda o objeto em estudo.

Escolhi o exemplo das entrevistas com propósito. Esse é um método muito usual de recolha de informação na investigação em educação (Menezes & Ribeiro, 2017) e a minha expectativa é que isso permita a identificação do leitor com a seguinte questão: já alguma vez terminou uma pesquisa por entrevista e disse para si mesmo “se pudesse voltar atrás, colocaria outras questões no guião”?

Na GT isso acontece. Volta-se (metaforicamente) atrás. Os instrumentos e formas de recolha de informação são reorganizados para se dirigirem ao que ficou em falta, ou ao que os dados recolhidos sugerem que é necessário pesquisar.

Segue-se, portanto, uma recolha teórica focada. Trata-se de uma recolha de dados informada pela recolha de dados anterior e destinada a desenvolver a teoria. Nesse caso, a seleção dos participantes ou dos dados a recolher tem foco naqueles que podem ajudar a esclarecer as dúvidas e os vazios.

No meu primeiro estudo com recurso à GT, acerca das construções sociais dos professores de Educação Física durante a pandemia de SARS-CoV-2, a recolha inicial de dados sugeria que as interações entre os docentes resultavam em conformidade do grupo para com os discursos e propostas dos dirigentes associativos e na ausência de espírito crítico. Uma vez que perguntei sobre o que poderia explicar a natureza daquela interação, optei por recolher os dados dos “bate-papos” dos webinars. As mensagens indicavam que a pandemia provocou insegurança nos docentes em relação às aulas de Educação Física, o que fazia com que eles buscassem por orientações que devolvessem alguma segurança (as lideranças seriam referências). Por outro lado, os vários preletores tinham sido seus professores na formação inicial e os participantes dos webinares assumiam uma relação em que eram alunos (e não colegas) dos preletores, portanto, mais predispostos a aprender do que a contribuir para a aprendizagem, o que explicou a conformidade emergente.

Para voltar aos aspetos metodológicos da GT, qual é o significado desse processo focado de recolha de dados?

Significa que podem ser acrescentadas (ou substituídas) questões ao guião; ou que o perfil dos entrevistados pode ser alterado; ou que se opta por outras formas de recolher informação (talvez a observação e os documentos). A recolha torna-se focada porque se concentra no que ficou por explicar; e torna-se teórica porque se destina a construir conceitos, a partir das relações entre as categorias de dados.

Isso define o caráter iterativo da GT e clarifica que a recolha focada na teoria pode repetir-se quantas vezes forem necessárias.

Na minha primeira investigação, defini uma última recolha de dados e denominei-a de confirmatória, mas a expressão (e o procedimento) não é adequada, porque deixa sugerido, à partida, que eu pretendia confirmar algo, quando, na verdade, a minha intenção era (deve ser) a de perseguir conhecimento. Larry Laudan (1977) circunscreveu esse problema em termos de atitude psicológica do investigador: o resultado é diferente quando o investigador está disponível para aceitar um corpo teórico, em vez de estar disponível para o perseguir. Portanto há que consentir que qualquer recolha de dados pode servir para encerrar a investigação - porque se alcançou o ponto de saturação teórica -, mas que pode, igualmente, sugerir novas recolhas.

Uma última nota para o termo que aqui uso: “recolha” (inicial e teórica), quando a tradição da GT é designar “amostragem”.

Todavia a modalidade é mais dada a pesquisas qualitativas (mas não recusa contributos quantitativos) e há algum tempo que os investigadores que recorrem a essa abordagem têm evitado a expressão “amostra” (ver, por exemplo, Erikson, 1986), para que não se confunda com as expectativas positivistas de previsão do futuro (e generalização do conhecimento) e tendências a considerar que o ser humano funciona por processos de causalidade linear. Enfim, somos surpreendentes.

Tratamento imediato dos dados

Na GT, os dados são tratados de imediato, em paralelo com a recolha. Aliás, optei por colocar este subcapítulo na sequência de “Recolha de dados iterativa para construção de teoria”, uma vez que ali escrevi que a nova recolha de informação deve advir das questões que emergem da recolha anterior. Nesse caso, os dados recolhidos têm de ser tratados de imediato, caso contrário, não saberemos que dados precisamos recolher em seguida.

O que é que isso significa exatamente? Que formas esse tratamento imediato pode adotar?

Essa foi uma questão com que me debati. Perguntei-me o que significa “imediato”. Seria após a primeira entrevista, para depois poder alterar o guião para a segunda entrevista? Ou significaria realizar todas as entrevistas na recolha estratégica inicial, para depois alterar o instrumento de recolha de dados? Ou seria recolher dados por outras técnicas? A resposta é: é tudo isso, em função dos objetivos e condições da investigação.

No meu estudo em que os participantes iniciais são investigadores experientes, optei pela recolha intermitente de dados, em que a entrevista ocorre em dois momentos diferentes, com guiões diferentes, junto das mesmas pessoas. A primeira entrevista seguiu um guião não estruturado, destinado a recolher impressões gerais; a segunda com guião semiestruturado, para que se dirija a conhecimento específico que levará à teoria emergente ou (como antecipo) a novas recolhas de informação (Figura 2, como exemplo de possibilidades).

Fonte: Elaboração do autor.

Figura 2 Tratamento imediato de dados na Grounded Theory 

A GT é iterativa e sugere que o investigador regresse aos contextos que pretende investigar várias vezes - mais, que retorne aos dados que recolheu anteriormente e os compare com os mais recentes. Isso é um contraste com as investigações que colocam uma pergunta de investigação orientada, recolhem dados de uma levada, os tratam e os discutem por comparação com um quadro teórico antecipado.

Na GT, não há antecipação teórica.

Pois bem, nesse caso, como é possível desenhar o projeto de investigação que, habitualmente, teremos de apresentar à ratificação de alguém? Podemos fazê-lo a partir de uma posição de abertura - para que não fiquemos confinados a procedimentos rígidos - e, provavelmente, teremos de ter a paciência necessária para reformular o projeto. Contudo, na minha experiência, as pessoas e órgãos que acompanham a minha pesquisa têm compreensão e sensibilidade para a dinâmica inscrita na GT.

Codificação aberta, categorias e conceitos

Entretanto, outra das caraterísticas envolvidas é que os dados são tratados por codificação aberta. O que isso significa é que, uma vez que não se assumem referenciais teóricos explicativos da situação no início da investigação, os códigos e categorias são extraídos dos dados. Para isso, o investigador começa por atribuir um código a uma parcela de dados. Esse código deve traduzir (e resumir) os dados, para que possam ser comparados com todos os restantes e organizados em categorias coerentes.

A codificação é um processo pelo qual o investigador pergunta “O que é que esses dados significam?”. Em seguida atribui-lhes uma “etiqueta” que, aliás, deve ser próxima dos dados (por exemplo, deve ser parte dos discursos dos entrevistados, ou do texto dos documentos). É a denominada codificação in vivo - o código expressa os dados.

O investigador pode optar por codificar frases do texto, ideias constituídas por várias frases, parágrafos, palavras ou linhas. Deixei as linhas para o fim porque foi a técnica que usei no tratamento da primeira recolha de dados (posteriormente, penso que se torna desnecessária) e fi-lo como experiência. Estava inteiramente desconfiado da capacidade de obter algo de útil pela análise de cada linha dos documentos. Como estava enganado.

O processo mostrou-se muito vantajoso para me “inscrever” nos dados e para mobilizar cada uma das ideias importantes que eles continham. Reconheço que é uma opção - relacionada com o tempo do investigador, com a sua experiência e com a sua capacidade de se imbuir nos dados -, mas o que quero salientar é que pode ser útil e que o meu preconceito inicial foi, rapidamente, esmorecido. Deixo-vos um exemplo que pode retratar a vantagem de codificar linha a linha.

No excerto, caso optasse por uma codificação temática, provavelmente teria situado dois códigos: “Declarando os riscos inerentes à aula de Educação Física” e “Apontando modificações da aula para prevenção de contágio” (Figura 3).

Fonte: Elaboração do autor.

Figura 3 Codificação (possível) por temáticas e excertos de texto 

Contudo a codificação linha por linha oferece uma visão mais profunda e fatorial e, na minha experiência, permitiu que identificasse a vocação para comunicação com encarregados de educação, a consideração do risco e dos níveis de risco das atividades de Educação Física, a especificação de caraterísticas das aulas de Educação Física e as adaptações necessárias às práticas habituais de ensino (Figura 4).

Naturalmente, o número de códigos aumenta na técnica linha a linha, mas a categorização (o processo de agregar os códigos que traduzem ideias comuns) destina-se, exatamente, a gerar uma organização que o investigador possa gerir e que seja útil para recolhas de informação focadas.

Depois, procura-se compreender a interação entre as categorias - as propriedades que têm, a forma como se influenciam -, o que envolve a indução do investigador e estará na origem de conceitos (Figura 5).

O papel seguinte do investigador é de agregar códigos para construir categorias e ir verificando se os dados suportam e validam essa organização. Isso implica a seleção dos códigos que são relevantes e o descarte dos que não apresentam, entretanto, potencial para informar a teoria (como, no exemplo, o código 14).

Fonte: Elaboração do autor.

Figura 4 Codificação (possível) linha a linha  

Essa organização é evolutiva: os códigos podem ser renomeados, vir a ser atribuídos a categorias diferentes daquelas a que estavam inicialmente afetos e as próprias categorias podem sofrer alterações.

Fonte: Elaboração do autor.

Figura 5 Da codificação ao conceito 

Por exemplo, da recolha inicial do meu estudo sobre a Educação Física emergiram várias categorias. Havia três códigos que estavam colocados em categorias diferentes. Contudo a nova recolha de dados veio a revelar que eles constituíam uma única categoria (Agência) e a recolha seguinte confirmou essa estrutura (Figura 6).

Note-se que, como exemplo, uma categoria (Categoria A) não apresentou suporte nos dados e foi excluída, outras ganharam corpo com a introdução de propriedades e os códigos e categorias podem mudar de nome. Por fim, são elaborados os conceitos (carateriza-se as propriedades do conceito emergente) e a sua interação com outros conceitos - no fundo, a narrativa teórica.

Fonte: Elaboração do autor.

Figura 6 Dinamismo do processo de análise e tratamento de dados 

Memorandos

A expressão “memorando” é feliz, porque se refere ao que deve ser lembrado e, em simultâneo, aproxima-se do gerúndio, o que sugere uma ação em andamento.

Os memorandos são, exatamente, memoriais dinâmicos em que o investigador ora regista as suas reflexões para mais tarde comparar, ora inscreve explicações e ideias sobre os dados a perseguir.

Surgem após o processo de recolher, codificar, analisar e comparar constantemente os dados, portanto, quando há padrões identificados e o investigador começa a refletir sobre as relações entre as categorias e a construção de conceitos.

Neles, o investigador reflete sobre os dados e questiona o seu significado. O que os dados sugerem? Como os dados estão relacionados? Que categorias emergem dos dados? O que está a acontecer aqui? Há procura ativa por espaços de dúvida que é necessário complementar e o estabelecimento de relações e conceitos - e isso define o caráter indutivo da GT.

Os memorandos não são meramente descritivos; antes, constituem um momento analítico e de criação de conceitos a partir dos dados, em uma narrativa coerente. O ponto de partida são as primeiras ideias que o investigador tem do seu contacto com os dados. Nesse sentido, começam por ser notas especulativas - por vezes observações e pequenas frases - acerca dos dados.

Isso esclarece para que é que os memorandos servem: são um princípio de ação do investigador. Sabemos que, na GT, o investigador, ao escrever memorandos, refletiu sobre os dados e sobre o que eles querem significar, colocou hipóteses explicativas das interações - enfim, obrigou-se a pensar seriamente sobre o seu objeto de estudo - e escreveu sobre esse processo. A escrita e a leitura de reflexões e ideias têm o poder de nos ajudar a estabelecer conexões e a reinterpretar e compreender (ver, por exemplo, Amado & Ferreira, 2013; Labaree, 2012).

Ao longo da construção, os memorandos vão se tornando mais densos à medida que o investigador estabelece as relações entre as categorias e entende os conceitos. Tornam-se textos coerentes, que integram sugestões bibliográficas e as vozes dos participantes dos estudos (comu- mente, excertos de entrevistas) - o que ilustra os conceitos emergentes e mantém a teoria enrai- zada nos dados.

Assim, a escrita de memorandos é o veículo entre os dados em bruto e a teoria emergente e traduz um processo não linear em que o investigador se vê confrontado com o que pensa saber, com o que os dados sugerem e com as ideias que emergiram dos dados, o que permite dirigir a recolha de novos dados ou a elaboração do texto da comunicação científica.

De certa forma, os memorandos são instrumentos estranhos, na medida em que o processo de investigação está conotado com evidências claras e procedimentos objetivos e os memorandos aceitam criatividade e o confronto de ideias de ontem e de hoje - há um certo desmazelo construtivo. Mas esse é o seu objetivo: o de permitir a emergência de ideias para lá daquelas preconcebidas - como David Labaree (2012) tão bem colocou, se os investigadores procurarem estar sistematicamente corretos, poderão dispensar os riscos inevitáveis aos avanços científicos. Se as ideias forem válidas, os dados confirmá-las-ão.

Deixo-vos, como material complementar a este artigo, uma sequência de memorandos que demonstram o meu processo: primeiro a notas relativamente dispersas; depois textos questionadores e interrogativos; e, em seguida, produtos mais organizados e analíticos que usei no artigo que foi proposto para publicação.

Por fim, tomo aqui uma grande liberdade para vos falar de memorandos visuais - os esquemas e diagramas (é assim que são denominados na bibliografia) que o investigador desenha e que também se destinam a ajudar no processo de compreensão das interações. São, em minha opinião, um auxiliar poderoso. Por um lado, são compostos por palavras ou pequenas frases em caixas de texto, o que significa que permitem um vislumbre sobre a situação; por outro, favorecem a emergência de conexões, porque ligam, por setas e outros tipos de símbolos, as categorias (também se encontram exemplos no material complementar).

Comparação constante

Na GT comparam-se constantemente os códigos, as categorias e os conceitos. Os mais novos, os mais antigos. Em minha opinião, esse é o processo que traduz a confiabilidade da modalidade.

Porque é que comparamos constantemente? Há duas respostas:

  • para confirmar que o pensamento do investigador (que é indutivo e pode advir de saltos surpreendentes) e os conceitos que constrói têm colagem aos dados;

  • para organizar e reorganizar as categorias e os conceitos, em função do que os dados (os novos e os anteriores) sugerem.

É previsível que a imersão do investigador nos dados e as perguntas que se vai colocando levem à indução de conceitos, relações entre categorias e explicações. Essa criatividade é aceitável (na realidade, é essencial) na GT porque os dados, as categorias e os conceitos induzidos serão comparados, para que se responda à questão permanente: os dados confirmam a teoria construída?

Faço o contraste com o tratamento de dados de entrevistas, que, muitas vezes, decorre com suporte a teorias estabelecidas a priori. Nesse procedimento, o investigador compara as falas dos participantes com o que a teoria preexistente defende.

Na GT, pelo contrário, é a teoria emergente que deve ser coerente com os dados, o que traduz a abertura do investigador aos dados e oferece visões frescas da realidade. Também por isso o investigador é estimulado a deixar-se surpreender, em particular a olhar para ideias inovadoras e para aquelas que, aparentemente, se afastam das demais, uma vez que, por mais marginais que sejam, podem traduzir a compreensão da realidade.

Esse ponto é interessante, uma vez que o que surpreende é, tantas vezes, o que o investigador não conhece ou não esperava - o que significa que a expressão (“surpresa”) é, apenas, uma medida do conhecimento e das expectativas de partida do investigador.

É por isso que há que estabelecer uma relação saudável com a bibliografia e com as expectativas iniciais do investigador diante dos resultados. É assim que eu encaro as dúvidas acerca da utilização de conhecimento anterior nas pesquisas por GT e penso que cada um desses pontos merece aprofundamento. Quando usar a bibliografia? O que fazer quanto às expectativas do investigador?

Quanto à bibliografia, o que é importante salvaguardar é que, de início, os dados não são comparados com o conhecimento existente. Portanto a revisão bibliográfica, habitual noutras modalidades, não segue os mesmos termos na GT. Em primeiro lugar, porque não se trata de identificar o “vazio” de uma teoria. Trata-se de aumentar a compreensão sobre um sistema.

Em segundo lugar, também não se trata de resumir o conhecimento existente para, por meio dele, poder compreender o objeto que se pretende estudar. Na GT investigam-se objetos capazes de admirar e que são novos. E a educação renova-se e requer, egocentricamente, um esforço permanente para que a compreendamos; e o seu objetivo encontra-se no futuro (o cidadão pleno que se formará continuamente em um futuro plural), portanto, um período de tempo sobre o qual nada sabemos - mas muito imaginamos.

Então não há uso de bibliografia no início da pesquisa?

Sim e não. É necessário que o investigador esteja contextualizado e compreenda o seu objeto de investigação. Por exemplo, se investigamos sobre as dinâmicas da disciplina de Língua Portuguesa, há que conhecer os currículos. Mas deve-se ficar pelo conhecimento contextualizante.

A bibliografia torna-se verdadeiramente importante quando há dados suficientes para construir categorias. Nem tudo o que emerge é novo e as ciências da educação estão assentes em conhecimento variado, profundo e úbere, o que significa que parte dele poderá estar dirigido ao que vier a emergir dos dados. Assim, o investigador não tem de (não deve) construir todos os conceitos, sobretudo se eles já existem. É, portanto, nesse ponto que é conveniente procurar por apoio para analisar os dados e estruturar os conceitos que eles sugerem - e deve-se estar, também, aberto a encontrar esse apoio na bibliografia de outras áreas.

Por exemplo, em uma das minhas pesquisas, os dados sugeriam que os professores de Educação Física têm um papel ativo e consciente em influenciar as estruturas de poder (atuam diretamente junto de órgãos políticos, direções escolares e encarregados de educação), para fazer valer os seus interesses.

Na análise, recorri ao conceito de assimetria de poder (Hooge et al., 2012), que vem da área das ciências das organizações e que traduz as diferenças de poder que podem desequilibrar as organizações e levar a que os agentes se mobilizem para ganhar influência.

Quanto às expectativas do investigador, elas estão, inevitavelmente, a operar. Guy Berger (2009) lembra-nos disso e salienta que as ciências da educação devem enfrentar essa caraterística: o investigador transporta conhecimento, tem preferências e convicções e adota estruturas de interpretação próprias que influenciam a recolha e o tratamento dos dados. Portanto a comparação constante também serve para prevenir que a teoria emergente não é, apenas, uma síntese do conhecimento e das expectativas anteriores - certamente inconscientes - do investigador. Trata-se, nessa medida, de garantir que o investigador compara os dados com as ideias que vai estruturando, para que as dissonâncias emerjam e as concordâncias fiquem clarificadas.

No meu caso, a motivação para a minha investigação foi uma situação que experimentei pessoalmente.

O que há aqui a notar é que tinha ideias preconcebidas. Como poderia garantir que elas não seriam o elemento central da minha reflexão? Bem, a comparação constante dos dados foi um auxílio precioso. Mas o meu diário de bordo foi outro - apesar de se tratar de mais uma forma de comparação. Nele, comecei por apontar as minhas expectativas e explicações no momento inicial e, portanto, pude compará-las com os dados e categorias que foram emergindo. Mantive-me desconfiado quando a análise dos dados ia ao encontro das minhas expectativas iniciais, mas não as rejeitei apenas por isso - as intuições também são relevantes, desde que sejam comparadas com os dados. E, naturalmente, fiz-me acompanhar por uma investigadora que fez o papel de amiga-crítica e os meus percursos de investigação podem ser auditados (por exemplo, clarifico as fontes de informação e, sempre que for ético, deixo links para que possam ser acedidas) (Merriam & Tisdell, 2016).

Saturação teórica

Na pesquisa qualitativa que recorre a entrevistas, análise documental ou observação é comum procurar pelo ponto em que os resultados estão saturados, isto é, o momento a partir do qual o acréscimo de informação (as novas recolhas) não resulta em dados novos e apenas se observa a repetição de ideias, falas, discursos ou ações.

Na GT, contudo, esse tipo de saturação não deve ser esperado, uma vez que não há repetição de recolha da informação, porque o investigador vai alterando o guião da entrevista, ou o proto- colo de observações, ou os documentos que analisa ou ainda os sujeitos da recolha de informação. Logo, se as perguntas são novas, as respostas são novas e, previsivelmente, diferentes do que foi recolhido anteriormente.

Assim, o que fica saturado são os conceitos e a relação entre eles. Por outras palavras, as falas, observações e discursos recolhidos, podendo ser diferenciados dos anteriores, são comparados com as categorias e conceitos construídos pelo investigador para que se compreenda se são abarcados por essa estrutura teórica ou se sugerem construtos que ainda não tinham surgido. A saturação teórica significa que os conceitos e as interações estão consolidados e claramente enraizados nos dados.

Na minha experiência, esse passo foi surpreendentemente simples - é provável que isso tenha acontecido porque havia lido vários artigos em que a metodologia tinha sido usada (o que aconselho) e não tinha dúvidas de que deveria agir em função de uma saturação dos conceitos emergentes.

A teoria emergente

A expressão “Grounded Theory” sugere que o produto final é uma teoria. Mas o que é uma teoria? O que é que se pode esperar conseguir fazer com essa metodologia? Essas questões definem os limites da metodologia GT.

Muitos autores têm se questionado sobre o que diferencia a ciência de outros tipos de conhecimento. Essa não é uma reflexão despiciente; pelo contrário, ela fundamenta a ação dos cientistas da educação, atribui-lhe um significado social e - é isso que aqui quero focar - influencia fortemente os métodos, técnicas e produtos esperados.

O que vos quero lembrar (talvez esteja a ser repetitivo, mas prefiro tornar claro o meu horizonte epistemológico) é que a educação, enquanto objeto de estudo, é complexa e sur- preendente.

Há tantos exemplos disso: implementamos avaliações externas da aprendizagem para garantir a qualidade da educação e logo estreitamos o currículo (Au, 2008; Fernandes, 2019; Madaus et al., 2009); implementamos mecanismos de regulação por avaliação externa das escolas, para que cada aluno possa aprender em parâmetros de expectativa elevada, e as reações dos agentes podem agudizar os problemas das escolas e fomentar a exclusão social (Twist et al., 2013); reagimos a eventos inesperados, como a pandemia de covid-19, para manter o acesso à educação e aprendizagem, e poderemos estar a promover desigualdades e iniquidades (Miranda & Pereira, 2020).

Portanto podemos muito bem considerar que a investigação em educação é permanentemente confrontada com a criatividade do objeto de investigação, o que estimula o alargamento dos motivos, propósitos e métodos de investigação (Feyerabend, 2010, 1991; Star, 1989), apesar de se sustentar também em processos rigorosos e sistemáticos (ver, por exemplo, Lakatos, 1989).

Então, nesse contexto, a expressão “teoria” não deve ser entendida como um construto que explica, por inteiro, a realidade e permite fazer previsões.

Uma teoria, no que à GT diz respeito, aceita a disposicionalidade dos agentes - podemos considerar que, em um dado momento, há uma disposição para algo, desde que tenhamos a consciência de que essa disposição é provisória (poderá ser essa a única previsão possível) -, procura conhecer e compreender o que emerge e o que está a acontecer e propor, ou, pelo menos, ajudar a refletir, sobre estruturas que permitam gerir as condições de interação entre os agentes, para que delas resultem inovações coerentes.

De qualquer forma, é a teoria emergente - um todo que traduza uma narrativa coerente de conceitos e inter-relações entre eles em função do que os dados sugerem - que se constitui como ponto final da pesquisa.

É comum encontrar textos que salientam que o produto da metodologia GT é uma teoria substantiva. Querem com isso significar que está vinculada ao contexto que foi estudado e traduz a compreenssão, ainda que temporalmente limitada, de um conjunto definido de interações; e diferenciar a teoria substantiva do conceito de teoria formal, que se refere ao conjunto de conhe- cimentos agregados (que incluem as teorias substantivas) e que se tornam capazes de constituir um corpo teórico orientador da ação geral dos cientistas.

A família Grounded Theory

A GT não é uma metodologia unívoca e, em 58 anos de existência, tem assistido a desen- volvimentos que permitem identificar cinco tipologias diferenciadas na operacionalização, mas próximas em todos os procedimentos que abordei anteriormente.

Perguntei-me se esse ponto deveria estar no início do artigo. Na minha experiência, o contacto com a história da modalidade e a descrição das suas derivações foi confuso e colocou questões para as quais não estava preparado (por exemplo, ponderar sobre qual tipologia usar quando ainda não tinha consolidado o conhecimento sobre a metodologia). Por isso, optei por começar por aquilo que é transversal e que, indubitavelmente, permite reconhecer a modalidade. Mas agora há que esclarecer, ainda que com brevidade, sobre as opções que a GT oferece.

As variantes existentes são indicativas de que devem ser ponderadas em função dos objetivos da investigação, dos dados que podem ser usados, da intervenção do investigador e das expectativas de produto de investigação. Elas diferenciam-se pela natureza da realidade que aceitam e, depois, pelos processos que usam e produtos científicos que pretendem alcançar (Figura 7).2 Essas diferenças não dispensam leituras específicas (cujas referências vou deixando).

Em uma genealogia breve, o ponto inicial é fácil de identificar. Trata-se do livro seminal de Barney Glaser e Anselm Strauss, de 1967, The Discovery of Grounded Theory. Nele os autores estabelecem as bases científicas e metodológicas da modalidade - em um esforço de objetivar a metodologia. É preciso recordar que a época assistia à vigência de perspetivas quantitativas quanto à realidade, assentes na capacidade de previsão da ciência, e estavam sob forte influência do pensamento de Thomas Khun (2009a; 2009b), que colocava a responsabilidade dos métodos e dos limites da ciência na própria comunidade científica, que apenas perante grandes acumulações de evidências de desconformidades alteraria o paradigma vigente. Além disso, os movimentos sociais e filosóficos, como o feminismo ou os direitos dos povos indígenas, que dariam lugar a formas mais inclusivas, criativas e ecléticas de encarrar a realidade, estavam apenas no início. Portanto a ligação da primeira metodologia GT à estrutura objetivista esteve presente. Ainda assim, constitui-se uma novidade nesse contexto e um avanço na abordagem qualitativa de investigação.

Entretanto, Anselm Strauss propôs, com Juliete Corbin, em 1990 (Strauss & Corbin, 1990; Corbin & Strauss, 2008), um conjunto de adaptações à modalidade, de forma a torná-la mais sistematizada e a oferecer indicações metodológicas claras (o que, em minha opinião, é o caminho mais acessível para um investigador inexperiente e desacompanhado, por ser prescritivo); e, em simultâneo, abria espaço para a discussão acerca do papel do investigador enquanto participante na construção científica. Barney Glasser reagiu, postulando que esse caminho (o dos passos sistematizados) atentava contra a abertura e a criatividade necessárias à GT e propôs um conjunto muito mais livre de procedimentos, ainda que com foco no objetivismo (Glaser, 1998; ver também Glaser, 1978; Glaser & Holton, 2005; Morse et al., 2009).

Em função disso, vários autores (maioritariamente colegas e antigos alunos de Barney Glaser ou Anselm Strauss) vão propondo alterações metodológicas de índole construtivista, assente nas interações e na reflexividade e tendentes a representar a multiplicidade e a lidar com a complexidade social (Morse et al., 2009). O ramo construtivista parte do princípio de que o investigador é construtor ativo e, consciente desse papel, toma decisões que permitem a emergência de uma teoria capaz de auxiliar a compreensão da realidade.

Kathy Charmaz propõe a ligação inegável da modalidade ao construtivismo (Charmaz, 2006, 2005; Bryant & Charmaz, 2007). Recorre a estratégias que mantêm o investigador em um processo de autoquestionamento dinâmico, em que, por exemplo, os códigos são construídos no gerúndio e os memorandos são elaborados com base em questões de significado. Em minha opinião, essa versão deve ser adotada se o investigador assumir um perfil reflexivo, paciente e autónomo (enfim, conhece-te a ti próprio). Requer tempo, intimidade com os dados e alguma “resistência” criativa.

Adele Clarke também assume uma perspetiva construtivista, mas interessa-se mais pela situação social (Clarke, 2005; Clarke et al., 2017). Em minha opinião, essa é a tipologia que melhor responde à complexidade dos ambientes educativos, já que a autora integra elementos não humanos, históricos e sociais que permitem uma visão não linear, mas também é a mais desafiante, porque inclui o manuseamento de vários mapas que representam os elementos da situação (tanto os humanos como os não humanos), o mundo social (os atores coletivos e as suas negociações) e o posicionamento (os argumentos e decisões tomadas e não tomadas).

Fonte: Elaboração do autor.

Figura 7 Visão geral sobre a família metodológica Grounded Theory 

Notas conclusivas

Este artigo oferece uma panorâmica acerca da metodologia Grounded Theory, em que explico os seus elementos identitários e os procedimentos que encerram, com recurso à minha própria experiência de iniciante na modalidade e no critério de clarificar os significados e a compreensão pessoal que fui desenvolvendo.

Penso que a última observação útil que vos posso deixar - tenho a expectativa de que ela tenha ficado clara ao longo do texto - é de que a Grounded Theory assenta em heurística, ou seja, em princípios de ação (em vez de regras determinísticas), procedimentos flexíveis (em vez de estáticos), perguntas que podem mudar e abertura ao que os dados sugerem (em vez de delimitação apriorística de questões e dados). Isto é, talvez, diferente das práticas maioritárias de investigação em educação que têm vindo a ser tomadas. Interessantemente, isso significa que a experiência - e a companhia e as leituras - é importante para que o investigador se torne proficiente; mas também o respeito pelas caraterísticas do próprio investigador - temos que reconhecer que as pessoas têm estruturas diversificadas de pensamento, e a GT, nessa medida, é equitativa.

Assim, o que encontrei nos meus ensaios foi uma modalidade útil no campo da educação e tenho a expectativa de que este texto concorra para que seja mais mobilizada. Primeiro porque a educação é dada a serendipidades e a modalidade é muito adequada nesses casos; segundo porque é acessível - na realidade, mobiliza procedimentos que se encontram, também, em outras modalidades, embora dispersos. E, por fim, porque não é, por natureza, melhor ou pior que outras; é, isso sim, mais ou menos adequada em função das perguntas colocadas, objetos a estudar e recursos de investigação.

Reservei a última palavra para me dirigir à designação dessa modalidade. Não creio que possamos adaptar ou traduzir a expressão “Grounded Theory” - em português é comum usar-se os termos “Teoria Fundamentada” ou “Teoria Enraizada”. Ela é polissémica e quer significar que há um solo de pesquisa em que podemos colher compreensão e conhecimento, mas também a sensibilidade e a disponibilidade necessárias para que os investigadores estejam recetivos às surpresas que os dados fazem emergir. Portanto significa processo, produto e atitude, o que dificilmente é captado quando substituímos por teoria fundamentada ou teoria enraizada (todas as teorias são fundamentadas ou têm raízes). Mantenhamos a polissemia da expressão, já que ela acolhe bem a pluralidade abundante da educação.

Agradecimentos

Quero agradecer à Dra. Ana Rasteiro e à Dra. Sónia Dinis e Silva: pequenas partilhas podem ter impactos grandes.

Referências

Amado, J. (2013). Investigação qualitativa em educação. Imprensa da Universidade de Coimbra. [ Links ]

Amado, J., & Ferreira, S. (2013). Estudos (auto)biográficos - Histórias de vida. In J. Amado (Ed.), Manualde investigação qualitativa em Educação (pp. 169-185). Universidade de Coimbra. [ Links ]

Au, W. W. (2008). Devising inequality: A Bernsteinian analysis of high‐stakes testing and social reproduction in education. British Journal of Sociology of Education, 29(6), 639-651.https://doi.org/10.1080/01425690802423312Links ]

Berger, G. (2009). A investigação em educação: Modelos socioepistemológicos e inserção institucional. Educação, Sociedade & Cultura, (28), 175-192. [ Links ]

Bowers, B., & Schatzman, L. (2009). Dimensional analysis. In J. M. Morse, P. N. Stern, J. Corbin, B. Bowers, K. Charmaz, & A. E. Clarke (Eds.), Developing Grounded Theory: The second generation (pp. 86-125). Left Coast Press. [ Links ]

Bryant, A., & Charmaz, K. (2007). Grounded theory research: Methods and practices. In A. Bryant, &K. Charmaz (Eds.), The SAGE handbook of Grounded Theory (pp. 1-28). Sage Publications. [ Links ]

Charmaz, K. (2005). Grounded Theory in the 21st century: Applications for advancing social justice studies. In N. K. Denzin, & Y. S. Lincoln (Eds.), The SAGE handbook of qualitative research (pp. 507-535). Sage Publications. [ Links ]

Charmaz, K. (2006). Constructing Grounded Theory. Sage Publications. [ Links ]

Clarke, A. E. (2005). Situational analysis: Grounded Theory after postmodern turn. Sage Publications. [ Links ]

Clarke, A. E., Friese, C., & Washburn, R. S. (2017). Situational Analysis: Grounded Theory after the interpretive turn. Sage Publications. [ Links ]

Corbin, J., & Strauss, A. (2008). Basics of qualitative research. Sage Publications. [ Links ]

Coutinho, C. (2011). Metodologia da investigação em Ciências Sociais e Humanas: Teoria e prática. Almedina. [ Links ]

Creswell, J. W. (2012). Educational research: Planning, conducting, and evaluating quantitative and qualitative research (4th ed.). Pearson Education Inc. [ Links ]

Erikson, F. (1986). Qualitative methods in research on teaching. In M. C. Wittrock (Ed.), Handbook of research on teaching (pp. 191-161). MacMillan. [ Links ]

Fernandes, D. (2019). Avaliações externas e aprendizagens dos alunos: uma reflexão crítica. Linhas Críticas, 25, 644-660. [ Links ]

Feyerabend, P. K. (1991). Adeus à razão. Edições 70. [ Links ]

Feyerabend , P. K. (2010). Against method. Verso Books. [ Links ]

Fullan, M. (2001). Leading in a culture of change. Jossey-Bass. [ Links ]

Glaser, B. G. (1978). Theoretical sensitivity. Sociology Press. [ Links ]

Glaser, B. G. (1998). Doing Grounded Theory: Issues and discussions. Sociology Press. [ Links ]

Glaser, B. G., & Holton, J. A. (2005). Staying open: The use of theoretical codes in Grounded Theory. The Grounded Theory Review: An International Journal, 5(1), 20. [ Links ]

Glaser, B. G., & Strauss, A. L. (1967). The discovery of Grounded Theory: Strategies for qualitative research. Aldeline Transaction. [ Links ]

Hamido, G. (2007). Escola, ecologia viva e reflexiva: O poder de mudar. Interacções, 3(7), 141-178. [ Links ]

Hooge, E., Burns, B., & Wilkoszewski, H. (2012). Looking beyond the numbers: Stakeholders and multiple school accountability. OECD Education [Working Papers, n. 85]. OECD Publishing.http://dx.doi.org/10.1787/5k91dl7ct6q6-enLinks ]

Khun, T. S. (2009a). A estrutura das revoluções científicas. Guerra & Paz. [ Links ]

Khun, T. S. (2009b). A tensão essencial. Edições 70. [ Links ]

Labaree, D. F. (2012). A sermon on educational research. International Journal for the Historiographyof Education, 74-83. [ Links ]

Lakatos, I. (1989). La metedología de los programas de investigación científica. Alianza Universidad. [ Links ]

Laudan, L. (1977). Progress and its problems. Routledge. [ Links ]

Madaus, G. F., Russell, M. K., & Higgins, J. (2009). The paradoxes of high stakes testing: How they affect students, their parents, teachers, principals, schools, and society. IAP. [ Links ]

Menezes, I., & Ribeiro, N. (2017). A investigação em Ciências da Educação em Portugal nos últimos 30 anos: Evoluções, tendências e tensões vistas a partir das teses de doutoramento. In Conselho Nacional de Educação, Estado da educação 2016 (pp. 234-252). Conselho Nacional de Educação. [ Links ]

Merriam, S. B., & Tisdell, E. J. (2016). Qualitative research: A guide to design and implementation. Jossey-Bass. [ Links ]

Miranda, N., & Pereira, S. (2020). O que a pandemia nos pode ensinar acerca da avaliação externa das aprendizagens? Revista Internacional de Educación para la Justicia Social, 9(3e), 259-280.https://doi.org/10.15366/riejs2020.9.3.014Links ]

Morse, J. M., Stern, P. N., Corbin, J., Bowers, B., Charmaz, K., & Clarke, A. (Eds.). (2009). Developing Grounded Theory: The Second generation. Left Coast Press. [ Links ]

Schatzman, L. (1991). Dimensional analysis: Notes on alternative approach to grounded theory of qualitative research. In D. R. Maines (Ed.), Social organisation of social processes: Essays in honour of Anselm Strauss (pp. 303-314). Aldine Press. [ Links ]

Silva, N. M. (2019). Liderar organizações complexas: O caso das escolas. Chiado Books. [ Links ]

Silva, N. M. (2022a). Memorandos visuais: Exemplo. https://doi.org/10.13140/RG.2.2.35637.76009Links ]

Silva, N. M. (2022b). Memorandos: Exemplo de evolução de um tema. https://doi.org/10.13140/RG.2.2.18860.54400Links ]

Silva, N. M., & Dinis, S. P. (2021). Três anos de teses de doutoramento em educação: O que investigamose como investigamos? Revista Portuguesa de Pedagogia, 55, Artigo e055010. https://impactum-journals.uc.pt/rppedagogia/article/view/9645Links ]

Star, S. L. (1989). Regions of the mind: Brain research and the quest for scientific certainty. Stanford University Press. [ Links ]

Strauss, A., & Corbin, J. (1990). Basics of qualitative research: Grounded Theory procedures and techniques.Sage Publications. [ Links ]

Twist, M., Steen, M., Kleiboer, J., Sscherpennise, J., & Theisens, H. (2013). Coping with very weak primary schools: Towards smart interventions in Dutch education policy, a governing complex education systems case study. OECD Education [Working Papers, n. 98]. OECD Publishing.https://doi.org/10.1787/19939019Links ]

1Mas, para conforto científico do leitor, o que escrevo está enquadrado em um conjunto de manuais usualmente mobilizados em investigação em educação (por exemplo, Amado, 2013; Charmaz, 2005; Coutinho, 2011; Creswell, 2012).

2Deixei de fora a análise dimensional de Leonard Schatzman (e depois com Bárbara Bowers) (Bowers & Schatzman, 2009; Schatzman, 1991), já que os estudos que recorrem a essa tipologia são escassos e existe pouca bibliografia de base.

Disponibilidade de dados Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Recebido: 11 de Abril de 2021; Aceito: 11 de Janeiro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons