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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.52  São Paulo  2022  Epub 30-Mar-2022

https://doi.org/10.1590/198053148539 

EDUCAÇÃO SUPERIOR, PROFISSÕES, TRABALHO

CONFLITOS E MEDIAÇÕES: ALTERIDADE NO CONTEXTO DO FEMINISMO ESTUDANTIL

CONFLICTOS Y MEDIACIONES: ALTERIDAD EN EL CONTEXTO DEL FEMINISMO ESTUDIANTIL

CONFLITS ET MÉDIATIONS: L’ALTÉRITÉ DANS LE CONTEXTE DU FÉMINISME ÉTUDIANT

Vanessa Soares de CastroI 
http://orcid.org/0000-0001-9320-3605

Adriane RosoII 
http://orcid.org/0000-0001-7471-133X

Camila dos Santos GonçalvesIII 
http://orcid.org/0000-0002-0655-8895

IInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Ibirubá (RS), Brasil; vanessascastro90@gmail.com

IIUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria (RS), Brasil; adriane.roso@ufsm.br

IIIUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria (RS), Brasil; camila.gon.79@gmail.com


Resumo

Neste artigo, refletimos sobre a função da alteridade na construção do ativismo de um coletivo feminista estudantil inserido em uma instituição federal de educação. Trata-se de uma pesquisa participante, cujo corpus de análise é constituído por diário de campo, análise documental e roda de conversa. A pesquisa situa-se no campo da Psicologia Social, sustentando-se na Teoria das Representações Sociais e na Teoria das Minorias Ativas, em conversa com teóricas feministas. Observamos que as relações de alteridade formam um ponto nevrálgico na criação e atuação do coletivo feminista participante no ambiente escolar. Concluímos que a atuação das jovens enquanto uma minoria ativa cumpriu papel central para que o coletivo alcançasse seus objetivos e fortalecesse sua identificação com o feminismo.

Palavras-Chave: ALTERIDADE; CONFLITO SOCIAL; MOVIMENTOS SOCIAIS: EDUCAÇÃO; PSICOLOGIA SOCIAL

Resumen

En este artículo reflexionamos sobre el papel de la alteridad en la construcción del activismo de un colectivo feminista estudiantil insertado en una institución educativa federal. Se trata de una investigación participativa, cuyo corpus de análisis consistió en un diario de campo, análisis documental y conversación con los participantes. La investigación se ubica en el campo de la Psicología Social en conversación con teóricas feministas. Observamos que las relaciones de alteridad forman un punto clave en la creación y desempeño del colectivo feminista participante. Concluimos que el desempeño de las jóvenes como minoría activa jugó un papel central para que el colectivo haya logrado sus objetivos y fortalecido su identificación con el feminismo.

Palabras-clave: ALTERIDAD; CONFLICTO SOCIAL; MOVIMIENTOS SOCIALES: EDUCACIÓN; PSICOLOGÍA SOCIAL

Résumé

Cet article analyse le rôle de l’altérité dans la construction du militantisme d’un collectif féministe universitaire dans une institution fédérale d’enseignement. Il s’agit d’une recherche participative, dont le corpus d’analyse est composé d’un journal de bord, d’analyse documentaire et de cercles de conversation. La recherche se situe dans le champ de la Psychologie Sociale et s’appuie sur la théorie des représentations sociales ainsi que sur celle des minorités actives, en dialogue avec des théoriciennes féministes. Les relations d’altérité constituent un point névralgique de la création du collectif féministe et de ses interventions en milieu scolaire et en conclusion les actions de ces jeunes femmes en tant que minorité active ont joué un rôle central pour que le collectif atteigne ses objectifs et renforce son identification au féminisme.

Key words: ALTÉRITÉ; CONFLIT SOCIAL; MOUVEMENTS SOCIAUX: ÉDUCATION; PSYCHOLOGIE SOCIALE

Abstract

In this article, we reflect on the role of alterity in the construction of the activism of a student feminist collective inserted into a federal education institution. It is a participatory study, whose corpus of analysis consists of a field diary, documentary analysis and a conversation group with the participants. The study is in the field of Social Psychology, on the Theory of Social Representations and the Theory of Active Minorities, in dialogue with feminist theorists. We observed that the relationships of alterity form a key point in the creation and performance of the feminist collective participating in the school environment. We concluded that the performance of young women as an active minority played a central role for the collective to achieve its objectives and strengthen its identification with feminism.

Key words: ALTERITY; SOCIAL CONFLICT; SOCIAL MOVEMENTS: EDUCATION; SOCIAL PSYCHOLOGY

Os últimos anos mostram um crescimento do interesse em alguns temas sociais, especialmente entre jovens. De 2015 a 2017, a busca pelo termo “feminismo”, no Google, cresceu 200% (Google, 2017). Muitas escolas presenciaram estudantes secundaristas incluindo assuntos como empoderamento feminino, assédio e machismo em seus cotidianos, articulando mobilizações inspiradas no feminismo, como, por exemplo, reivindicações de modos de vestir igualitários entre estudantes homens e mulheres (Fraga, 2016; Torres, 2018) e protestos contra listas que objetificam as estudantes (Melo, 2019). Essa notável inclusão das jovens no feminismo, dentro e fora do espaço escolar, pode ser entendida como parte do fenômeno descrito por Alvarez (2014) como um momento de sidestreaming, isto é, de fluxo horizontal dos discursos e práticas feministas, que se multiplam e ocupam espaços sociais, culturais e políticos os mais diversos.

Procurando observar como se processa essa propagação dos movimentos feministas, especialmente em um contexto escolar, realizamos uma pesquisa junto a um coletivo feminista denominado Movimento Ovelhas Negras, formado majoritariamente por estudantes mulheres da modalidade Ensino Médio Integrado de um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IF), localizado no interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Trata-se de um movimento de jovens que levaram as pautas feministas para dentro de uma escola técnica interiorana. Entre suas motivações, está a mobilização efervescente das discussões on-line, em redes sociais, blogs e fóruns de discussão. E, ainda, o sentimento de coletividade devido à crescente resposta de outros grupos estudantis pelo país em defesa do feminismo. A investigação teve como objetivo compreender as interconexões entre os sentidos do feminismo circulantes no coletivo participante e as formas como suas integrantes buscam promover mudanças no cotidiano escolar.

Neste artigo, refletimos especificamente sobre a função da alteridade na construção do ativismo do coletivo em questão, sendo esse um conceito-chave para entendermos o interjogo de relações de poder e dominação observado na realidade pesquisada. A alteridade, como explica Flickinger (2018, p. 139), é “uma relação que se qualifica pelo envolvimento existencial das pessoas”, cujas origens estão no termo latino que designa “a percepção do outro como alter de mim mesmo”. Essa é uma relação que envolve um “outro”, diferente de um “eu”, que vem ao meu encontro e que, ao fazer isso, me obriga a tomar posição diante dele, a reagir a ele.

A alteridade tem sido uma categoria teórica de análise para diferentes campos de saber, especialmente na antropologia, sendo central, também, na psicologia social (Arruda, 1998). Nesse campo de saber, trabalhamos especificamente com a Teoria das Representações Sociais (TRS), que tem como base as relações de alteridade. No cerne dessa teoria está a concepção de que o Eu (Ego) e o Outro (Alter) são interdependentes, ambos constroem juntos a realidade social, o objeto de conhecimento, formando a tríade Ego-Alter-objeto (Marková, 2017). Esse “outro” ao qual a TRS se refere pode ser um indivíduo, um grupo, uma sociedade, uma cultura; já o “objeto” é entendido como o mundo ou os símbolos/representações do mundo (Marková, 2000). O Ego e o Alter se comunicam, de modo que o Alter intervém na relação entre o Ego e o objeto do conhecimento social, construindo e reconstruindo esse objeto em um processo dialógico, marcado social e historicamente, através da criatividade e das inovações produzidas pelas pessoas (Jodelet, 1998; Marková, 2000). Nessa tríade, todos os elementos agem em conjunto, em constante tensão, construindo-se e modificando-se mutuamente, em inter-relação contínua entre si e com o contexto histórico, cultural e político do qual fazem parte. Ou seja, não apenas o objeto, mas também o Eu e o Outro se modificam na relação.

Ademais, a alteridade envolve um processo simultâneo de construção e de exclusão (Jodelet, 1998). Construção, na medida em que o Eu tenta definir aquilo que é; exclusão, na medida em que tenta definir o que não é, bem como o que é o Outro. Jodelet (1998) diz que, ao “designar o caráter do que é outro, a noção de alteridade é sempre colocada em contraponto: ‘não eu’ de um ‘eu’, ‘outro’ de um ‘mesmo’” (p. 48). Assim, a partir das relações de alteridade, os sujeitos sociais e as coletividades constroem suas identidades, representações sobre si mesmos e sobre os inúmeros outros, identificando características, práticas, costumes, que os definem e que os diferenciam dos demais. Porém, como esse Eu “está implicado com o outro, torna-se demasiado complicado tentar cercar e limitar somente o que é do Eu, visto que ele foi construído dinamicamente na relação com um outro” (Roso et al., 2015, p. 137). Esse movimento de construção, por sua natureza fluida e ramificada, provoca mudanças nas próprias relações, na vida das pessoas e nas comunidades, instando mudanças nas relações sociais. É essa relação que possibilita a construção de sentidos sobre nossos modos de viver, bem como sobre o outro e sobre nós mesmos (Roso et al., 2015).

Tradicionalmente, entretanto, a psicologia focava sua atenção no modo como as maiorias sociais criavam normas e colocavam seus pontos de vista e suas opiniões no espaço público e em como as minorias, supostamente, apenas se submetiam. Em outras palavras, as maiorias, ou seja, os grupos que veiculam pontos de vista dominantes, majoritariamente aceitos, eram tomadas como as únicas capazes de criar e transformar a realidade social. Esse modelo funcionalista da influência social, que a vê de forma unilateral, é criticado por Serge Moscovici em sua Teoria das Minorias Ativas (TMA), na qual ele assume “a tarefa de mensurar o efeito inovador de uma minoria dentro de um grupo, por meio de conflito com a maioria, e oferece a análise da atuação de minorias ativas que trazem inovações em grupos sociais” (Rodrigues, 2018, p. 8). A TMA vai chamar a atenção para a independência das minorias, sua não conformidade e seu potencial de transformar as relações sociais, a partir da concepção de que cada indivíduo ou subgrupo da sociedade é, ao mesmo tempo, fonte e receptor de influência, com todos atuando uns sobre os outros (Moscovici, 2011).

Todos os indivíduos e subgrupos, sejam majoritários ou minoritários, vão estar envolvidos no processo de constante coconstrução do mundo, sendo impossível separar e fragmentar a recepção e a emissão de influência (Moscovici, 2011). Assim, uma maioria, ao tentar impor suas visões de mundo a uma minoria, vai, em contrapartida, sofrer uma pressão da minoria para que compreenda e aceite suas concepções de mundo (Hernandez & Freitas, 2017). Esses grupos majoritários e minoritários, então, confrontam-se uns aos outros no espaço público, construindo o mundo e a si mesmos a partir não apenas de seus próprios olhos, mas, também, do olhar uns dos outros (Jovchelovitch, 1995), isto é, transformam-se e transformam o mundo também pela alteridade.

As relações entre minorias e maiorias sociais enquanto parte da tríade Eu-Outro-objeto, entretanto, também estão marcadas pelas relações de poder e de dominação que atuam na arena social na qual os sujeitos estão inseridos. As possibilidades de exercer influência (poder) e a capacidade de dominação (violência) serão delimitadas tanto pelas condições objetivas dos sujeitos, quanto pelas relações entre as representações sociais circulantes - no caso aqui analisado, representações do feminino, do próprio feminismo, de escola, de movimento social, etc. As relações de poder que circulam no espaço público provocam representações hegemônicas e contra-hegemônicas a entrarem em conflito. Nesse processo, de acordo com Jovchelovitch (2008), podem tanto competir entre si como se interpenetrar e formar novas representações, ou mesmo estabelecer relações de dominação, que contribuem para o caráter de permanência das representações sociais hegemônicas. Isso ocorre porque alguém, ou um grupo de pessoas, força sua vontade, desejos e interesses sobre um outro ou vários outros. Nesse tipo de relação, o dominador utiliza o conflito para situar o Outro na posição de inferioridade e de sujeito sem desejos. Todavia, o Outro tem a possibilidade de resistir e de entrar em conflito com a relação de dominação, ainda que sua (re)ação possa não ser reconhecida ou ainda sofrer processos de apagamento, de deslegitimação ou até mesmo de criminalização.

Em vista desses processos sociais e intergrupais expostos até aqui, consideramos que as experiências de estudantes e ativistas feministas - suas relações de conflito, confrontação, mediação e de outras espécies - constituem material frutífero para refletirmos sobre o que as práticas feministas provocam nas pessoas e nas comunidades e como são capazes de engendrar transformações, em especial no espaço escolar. Neste estudo, a pergunta que move nossas reflexões é: de que maneira essas jovens identificadas como um coletivo feminista são capazes de exercer influência num contexto escolar? Nossa pesquisa vem-se somar aos esforços de visibilizar as experiências das minorias e mostrar como elas ativam seus saberes para transformar a si, os outros e o mundo. Queremos, também, por meio deste estudo, articular as teorias feministas com a TRS, necessidade já sinalizada por Angela Arruda (2002), e com a TMA, além de aproximar duas teorias criadas pelo mesmo autor, Serge Moscovici, mas que são distintas tanto temporalmente quanto em seu objeto de análise.

Procedimentos de pesquisa

O estudo aqui apresentado amplia discussões presentes na dissertação de mestrado Movimentos feministas, minorias ativas: percurso de um coletivo de estudantes brasileiras do Ensino Médio Integrado, a qual integra o projeto maior “Vidas precárias no cibermundo - estudos sobre violências, poder e interseccionalidade nos sistemas hierárquicos”. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e segue todos os princípios e diretrizes das normativas éticas para pesquisa com seres humanos.

Participaram da pesquisa estudantes atuais e egressas de um campus de um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IF) em um município localizado no interior do estado do Rio Grande do Sul de cerca de 20 mil habitantes, em uma microrregião marcada fortemente pela atividade agrícola, principalmente pela produção de soja, e pela indústria metalomecânica. O coletivo participante se autodenomina Movimento Ovelhas Negras. Foi formado em 2016 por um grupo de estudantes de uma turma de 3ª ano do Ensino Médio Integrado - modalidade em que o ensino médio regular é realizado de forma conjunta e inseparável de um ensino técnico profissionalizante.

A aproximação com o coletivo foi feita pela primeira autora do artigo, que atua como psicóloga na instituição em que foi criado. O coletivo é formado apenas por estudantes mulheres, contando com homens como apoiadores e participantes externos. Participaram da pesquisa 17 estudantes, sendo 12 alunas da instituição no momento da pesquisa e 5 egressas. A pesquisa de campo ocorreu entre 2017 e 2018. Para demarcar mais claramente o coletivo e suas características, faz-se importante apontar que, nesse período, o grupo era composto majoritariamente por jovens brancas, de classe média, com idades entre 15 e 20 anos, residentes na área urbana e central do município.

A investigação junto ao coletivo Ovelhas Negras foi uma pesquisa participante. Carlos Rodrigues Brandão (2006) aponta a pesquisa participante como um instrumento de aprendizado dialógico, parte de um processo mais amplo de construção de um saber popular e parte da trajetória de empoderamento dos movimentos sociais, juntamente com a educação popular. A pesquisa participante pode se basear em diferentes fundamentos teóricos e estilos de construção do conhecimento, fazendo uso de diferentes técnicas e métodos, desde que possibilitem o diálogo, criando espaços de debate (Brandão, 2006; Silva, 2006). A pesquisa foi desenvolvida por meio de diferentes métodos: observação participante, análise documental e realização de uma roda de conversa com a finalidade de sistematizar as experiências.

A trajetória no campo de pesquisa consistiu na participação da primeira autora nas reuniões e ações promovidas pelo coletivo, dando ênfase à observação dos acontecimentos, diálogos e interações do seu cotidiano. Esse percurso foi registrado em diário de campo, contendo também imagens, fotografias e alguns escritos das participantes, registrados com sua autorização. A análise documental consistiu no exame de materiais escritos (postagens em redes sociais, mensagens de celular, cartazes e outros materiais), tanto produzidos pelas integrantes do coletivo quanto por outros sujeitos, mas que estivessem relacionados ao coletivo.

Foi realizada uma roda de conversa para sistematização de experiências a partir da proposta de Oscar Jara Holliday (2006), que a descreve como um processo que permite a compreensão da experiência para melhorar a prática. Essa sistematização possibilita o compartilhamento das experiências e ensinamentos do coletivo/grupo em questão com outros coletivos/grupos, e enriquece o debate teórico, na medida em que oferece diálogo entre teoria e prática. Para realizar essa sistematização, foi proposto um encontro, em formato de roda de conversa, com integrantes e ex-integrantes do coletivo para recuperar a história das experiências do grupo, ordenando seus elementos, como aconteceram e como foram vividos e percebidos pelo coletivo. Esse encontro foi gravado e transcrito, de modo a facilitar as análises discursivas. Os nomes utilizados nos extratos das falas, que serão apresentados na sequência, são fictícios, de modo a proteger a identidade das interlocutoras.

Resultados e discussão

O processo educacional, como o coloca Flickinger (2018, p. 148), exige o encontro com o outro, o “entregar-se a presença desafiadora do outro”. Por mais que o autor se refira especificamente ao papel do/a docente, está claro que todo e qualquer sujeito que participe do processo educacional se envolve nesse processo de encontro. O que observamos em campo e que tentaremos discutir aqui é como a colocação do elemento do ativismo feminista por parte de jovens estudantes se posiciona nessa rede de relações de alteridade no espaço escolar. O cenário institucional no período inicial da atuação do coletivo apresentava poucas discussões sobre gênero e diversidade sexual de modo organizado, limitando-se a intervenções pontuais feitas por alguns/mas docentes em sala de aula. Os Núcleos de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade (NEPGS), que abordam essas temáticas, somente foram oficialmente regulamentados em 2017 na instituição. No campus em questão, o núcleo iniciou atividades tímidas de discussões internas em 2016 e, retroalimentadas pelas movimentações das estudantes, pôde realizar eventos e rodas de conversa abertas ao final do ano. A partir disso, é que, nos anos posteriores, passaram a ser realizados anualmente eventos e ações abordando feminismo, gênero, LGBTfobia entre outros temas. É nesse cenário que iremos explorar como se dá a alteridade na relação com os antagonistas do feminismo para, após, abordar o potencial dialógico do feminismo no contexto investigado.

Durante o período em que acompanhamos o coletivo Ovelhas Negras, foi possível observar dois principais objetivos definidores do grupo: promover mudanças na escola por meio do confronto e do desvelamento de discursos e atitudes machistas, sexistas e preconceituosas; e fortalecer e empoderar outras jovens, criando espaços de união e ajuda mútua no contexto escolar. Para perseguir ambos os objetivos, seu ativismo precisa se desenvolver tanto a partir da relação com pessoas que têm objetivos e visões de mundo semelhantes (mesmo que não idênticas) às suas como também na relação com antagonistas, pessoas e grupos dos quais discordam e de quem buscam se diferenciar. Entendemos como antagonistas aqueles e aquelas que, de forma declarada ou implícita, opõem-se ao discurso feminista, tanto com relação ao coletivo de estudantes quanto de forma geral. Não estão inclusos nessa categoria sujeitos que teçam críticas a determinado(s) feminismo(s) - ou melhor, a alguma(s) de suas vertentes -, mas que se entendam e se coloquem enquanto defensores de seus ideais.

Relações de antagonismo ao feminismo: alteridade e conflitos cotidianos

Como já vimos, não há como pensar a sociedade sem a alteridade, pois qualquer coletividade se define a partir de um Outro que se encontra diante de si. Também na discussão sobre relações de gênero, a alteridade é um conceito fundamental. Simone de Beauvoir (1967) propõe que a mulher foi sendo construída, ao longo da história humana, como o Outro do homem. O homem seria o Eu, o sujeito, e a mulher seria definida em relação a ele; o homem seria o parâmetro, a existência humana universal e neutra, enquanto a mulher seria um ser específico, marcado por características que fazem com que ela seja um “desvio” desse padrão universal. É assim que Beauvoir afirma que o homem se coloca como o sujeito, e a mulher, como o objeto, o que só é possível, segundo a filósofa, devido à aceitação da mulher em ser colocada como Outro. Para romper com essa submissão, Beauvoir diz ser preciso que as mulheres digam “nós”, ou seja, se coloquem como sujeito coletivo.

Em sua época, Beauvoir (1967) entendeu que não havia condições materiais para que as mulheres se colocassem como sujeito, pois elas não teriam um passado, uma solidariedade em torno de interesses que as unisse, estando dispersas no mundo e mais ligadas aos homens do que entre si. Sobre essa conclusão da autora, Saffioti (1999) nos lembra que Beauvoir não só não tinha familiaridade com o ofício de historiadora, o que fez com que ela não verificasse a existência de tempos e espaços em que as mulheres não se limitassem a ser o Outro do homem, como também, naquele momento, não havia historiadoras feministas que buscassem visibilizar o papel das mulheres enquanto sujeitos da História. No mundo ocidental contemporâneo, é principalmente por meio dos feminismos que as mulheres passaram a demonstrar sua participação na construção da sociedade e a exigir o reconhecimento de seu protagonismo enquanto categoria, cada vez mais contestando a hegemonia dos homens, buscando se desfazer da condição de objeto e se colocar enquanto sujeitos.

Entretanto, esse não é um rompimento feito tranquilamente. De modo geral, os movimentos feministas encontram resistências no processo de questionar a dominação masculina - e outras dominações, no caso de movimentos feministas que vão além do debate de gênero - e subverter as hierarquias vigentes, e assim também o foi para as estudantes do coletivo Ovelhas Negras em seu contexto de atuação. Em diversos momentos, as relações de antagonismo em seu meio sobressaem como resultado de forte oposição às pautas feministas. Como exemplo, podemos citar as reações que o coletivo obteve após elaborar um abaixo-assinado contra os assédios e o bullying no campus. No texto do documento, escrito com ajuda de alguns professores homens, apoiadores de sua causa, as estudantes se posicionaram sobre a forma como seus corpos e, mais amplamente, os corpos de todas/os as/os adolescentes, são tratados no ambiente do campus, estando vulneráveis à intimidação de estudantes mais velhos.

As Ovelhas Negras, em nome do coletivo e das alunas, vêm por meio deste informar e reclamar sobre as atitudes de alguns alunos homens do curso superior de Agronomia, os quais vêm assediando e praticando bullying com os alunos do Ensino Médio Integrado. A reclamação se deve ao fato de que algumas meninas relataram terem que mudar de rota ou até mesmo deixar de fazer algo, como, por exemplo, pegar o lanche na cozinha, adquirir produtos no bar, para evitar passar pelo saguão, local onde acontecem os assédios e o bullying. Tal situação as faz se sentirem inseguras, constrangidas, humilhadas e rebaixadas. . . . Cabe registrar também que esse grupo [estudantes da Agronomia] tem atitudes contra movimentos e eventos em prol de, por exemplo, discussão de gênero e sexualidade, feminismo e outras questões de direitos humanos, depredando e tirando a voz dos alunos dos Cursos Técnicos Integrados. (Trecho do abaixo-assinado, reproduzido no diário de campo, registro de 06/04/2017, pp. 6-7).

No trecho do documento reproduzido, as integrantes do coletivo apontam claramente quem são as pessoas às quais estão se contrapondo - homens específicos, estudantes do ensino superior. No documento, elas descrevem como o tratamento dispensado a elas as afeta objetivamente, bem como subjetivamente, fazendo-as sentirem-se limitadas e tolhidas dentro do espaço escolar. Essa repressão dirige-se tanto a seus corpos, no momento em que precisam repensar a forma como se deslocam no espaço da escola para evitar o assédio e o bullying, quanto às suas ideias e convicções, na medida em que têm seus cartazes e intervenções depredados. Uma das jovens resume qual era a intenção com o documento e que tipo de situações buscavam enfrentar:

Resumindo, a gente estava falando para um bando de macho maior de idade que eles simplesmente não podiam chamar a gente de gostosa, que eles não podiam e não era, tipo, “ah, linda”, eu ouvi coisas muito pesadas lá tipo “senta aqui”, “cobra quanto?”. Tipo, cara! (Roda de sistematização de experiências de 28/04/2018).

Em sua fala, a estudante justifica tratar-se não de situações de flertes e conquistas entre pares, mas sim de insinuações unilaterais, realizadas de forma invasiva. Para divulgar o documento e solicitar assinaturas de apoio, as estudantes passaram por todas as salas de aula do Ensino Médio Integrado da escola, obtendo reações tanto de apoio quanto de desdém e desaprovação. Após a entrega do abaixo-assinado à direção da instituição, os estudantes do curso superior citado foram repreendidos pela diretora em uma fala em sala de aula, dirigida a eles como um todo, sem maiores repercussões ou sansões individuais. Após alguns dias, um grupo de meninos e meninas, estudantes do ensino médio, solicitou a retirada de seus nomes do abaixo-assinado. O grupo alegava que, mesmo reconhecendo e concordando em parte com a denúncia feita, “não queriam que nada de grave fosse feito com os estudantes da Agronomia”, e que haviam se sentido “coagidos/as a colocar suas assinaturas, pois as meninas estavam olhando de forma intimidadora para eles/as, quase que os/as forçando a assinar” (Diário de campo, registro de 06/04/2017, p. 7).

Os/as estudantes que solicitaram a retirada de seus nomes do abaixo-assinado, mesmo sendo parte do grupo de estudantes do ensino médio, ou seja, aquele que estava sofrendo assédios e bullying, parecem ter se identificado e se solidarizado mais com os agentes dos assédios do que com as estudantes que realizavam a denúncia. Essa reação nos remete ao que diz Jodelet (2014) sobre como, em uma estrutura de dominação de um grupo sobre outro(s), existe uma tendência de que os dominados desvalorizem o próprio grupo em benefício do grupo dominante. Aqui, identificamos o grupo dominante como sendo aquele formado por estudantes do ensino superior, cujos sujeitos são mais velhos, maiores de idade, que gozam de menor controle por parte da instituição (podem sair do campus a qualquer momento, bem como circular por seus espaços mesmo em horário de aula, diferentemente dos/as estudantes do ensino médio), e que frequentam um curso amplamente valorizado na região e na escola, no qual inclusive muitos/as estudantes do ensino médio almejam ingressar posteriormente. Os valores e crenças compartilhados no contexto tornam fácil desprezar a alteridade das pessoas assediadas - nesse caso, as jovens estudantes mulheres - e dificultam a adoção de uma posição que vá contra aquela que é dominante no grupo social.

Para pensar esse fenômeno que observamos em campo também é interessante trazer as reflexões de Rodrigues (2018), que propõe um diálogo entre a Teoria da Influência Social de Kelman, a abordagem cognitiva do desenvolvimento moral de Kohlberg e a TMA. Ao analisar pesquisas que apontam que a maioria da população brasileira universitária está no nível convencional de pensamento moral - ou seja, aquele em que há conformidade com o que é visto como comportamento “natural”, majoritário (Kohlberg & Hersh1 apud Rodrigues, 2018) -, Rodrigues (2018, p. 6) argumenta que “essa maioria exerce uma forte pressão psicológica para a conformidade . . . , agindo pela conservação da sociedade como ela está e em defesa da autoridade vigente”, sendo essa autoridade, em muitas situações, perpetuadora de injustiças. Assim como Rodrigues, entendemos ser preciso que as minorias rompam com o pensamento convencional da maioria, o que só pode ser feito se a minoria, que, segundo o autor, deve apresentar um pensamento moral pós-convencional, souber “como se organizar e agir para enfrentar a legitimação do pensamento de uma maioria” (Rodrigues, 2018, p. 6).

Quanto a isso, entendemos que a TMA pode oferecer algumas respostas, como veremos mais à frente, quando abordarmos as formas como as minorias ativas podem influenciar as maiorias. Na perspectiva da TMA, a influência sempre “se exerce em duas direções: da maioria em relação à minoria e da minoria em relação à maioria” (Moscovici, 2011, p. 74). Nesse sentido, a partir de sua atuação, o coletivo foi capaz de fazer com que os/as demais estudantes assinassem a petição mesmo que, posteriormente, o grupo majoritário os/as tenha influenciado a voltar atrás em sua decisão. O documento elaborado pelas jovens acabou, então, por tensionar as relações dentro do campus, escancarando os conflitos existentes e anunciando ao coletivo que, apesar de sua crença genuína na justeza de sua demanda, suas ações calcadas em ideais feministas teriam detratores e não seriam tão facilmente aceitas.

Ao se colocar no espaço escolar e exigir o reconhecimento de sua presença, o coletivo feminista causa um incômodo, sua presença é o que Flickinger (2018, p. 143) denomina como “uma provocação que exige reação”. No cotidiano escolar, as estudantes integrantes do Ovelhas Negras passaram a se diferenciar - e a ser diferenciadas - por sua demarcação como feministas e enquanto coletividade. Ao se posicionarem, definindo um nome e uma identidade, elas se colocaram frente a seus Outros, que são uma maioria difusa, imprecisa, sem uma marca ou uma organização específica - observamos que, por mais que elas tenham apontado os estudantes de um determinado curso como opositores em certo momento, a oposição ao coletivo não se restringiu a eles. Em um dos eventos realizados no campus pelo NEPGS2 em parceria com o Movimento Ovelhas Negras, foi possível registrar a fala de uma das integrantes do coletivo sobre isso:

Adelise falou bastante de como elas têm coragem de mostrar a cara, de colocar seus posicionamentos ali, na frente de todos, e de como aqueles que discordam delas se escondem . . . não se expõem, não têm coragem de levantar a mão e falar aquilo que acreditam, de discordar. Ela disse que sempre se propôs a debater, a dialogar, que é isso que as Ovelhas sempre procuram, e convidou àqueles que discordam delas a falar o que pensam e a dialogar. (Diário de campo, registro de 04/09/2018).

Pelo relato apresentado, é possível ver como as integrantes do coletivo estão implicadas, sem receio da exposição, enquanto seus opositores pouco se manifestam abertamente, não assumindo um rosto ou um nome. Eles são o que Moscovici (2011) denominou de maiorias, enquanto elas são as minorias ativas, que tensionam os saberes majoritários apresentando representações sociais polêmicas. As Ovelhas Negras são olhadas, identificadas e diferenciadas coletivamente por seus Outros a partir das representações sociais majoritárias sobre feminismo, construídas social e historicamente, na escola, na família, na mídia e nos demais espaços que frequentam. Dessa forma, não apenas a maioria ganha diferentes significados enquanto um Outro para o coletivo como as integrantes do movimento também são vistas como Outros e recebem diversos sentidos diferentes sobre si enquanto uma coletividade. A situação narrada a seguir, presenciada por uma participante da pesquisa enquanto estava no ônibus escolar, mostra parte dessa diferenciação entre feministas e não feministas que passou a vigorar na escola:

No ônibus, ela [integrante do coletivo] viu duas meninas falando entre si sobre a sujeira que sua sala de aula tem estado, e disse que uma das meninas afirmou que, longe dela ser feminista, mas “os meninos nunca limpam a torradeira” [os/as alunos/as levam utensílios domésticos para a sala de aula em algumas turmas, pois passam a maior parte do dia na escola]. (Diário de campo, registro de 18/07/2017, p. 15).

Nesse trecho, a estudante conta como percebeu que outras jovens já estavam buscando se diferenciar do feminismo e, consequentemente, do Movimento Ovelhas Negras. A tensão na escola começou a causar polarização e demonstrou o quanto era preciso ter cuidado para esclarecer os diferentes sentidos atrelados ao feminismo que coexistiam naquele espaço. Como o feminismo é tido por muitos/as como o ódio aos homens, e as feministas como mulheres “mal-amadas”, inimigas dos homens (Saldanha et al., 2013), uma reclamação com relação a eles precisaria vir acompanhada de um “atestado” de que sua emissora não era feminista. Esse medo de ser confundida com uma feminista nos lembra do medo que as pessoas “sãs” na pesquisa de Jodelet (2005) tinham do contágio dos “loucos” com os quais conviviam - contágio não apenas biológico, da doença, mas também um contágio simbólico, de perder sua identidade, confundir-se com o outro, ainda mais sendo esse outro tão deslegitimado.

Por essa via, faz sentido que as mulheres que reivindicassem outros lugares na Idade Média fossem classificadas como bruxas - elas eram insanas, perigosas ou, nas palavras de Moscovici (2011), minorias desviantes, minorias ativas no seu tempo e lugar. Hoje, nossa pesquisa indica a mobilidade dessas representações, quando as mulheres - enquanto minorias ativas - passam da representação de bruxas e insanas para “feministas”, mantendo a diferenciação e tentativa de vilanização da postura reivindicatória. Mais precisamente, os ataques ao feminismo e às feministas se renovam e ganham força na atualidade com o crescente neoconservadorismo, pensamento político que surgiu na primeira metade do século XX e que atribui as crises econômicas a uma crise moral e de abandono de valores tradicionais da sociedade ocidental em nome de uma igualdade tida como nociva e antinatural (Almeida, 2018). Os discursos de uma volta às relações de gênero e familiares tradicionais “aparecem como soluções de retorno a algum tipo de ordem em meio à instabilidade sentida diante de transformações político-sociais rápidas e intensas” (Freitas & Gonçalves, 2021, p. 186). No Brasil, como mostram Freitas e Gonçalves (2021), esse processo tem ocorrido ainda mais fortemente a partir de 2010, com a eleição de Dilma Roussef, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), agravando-se com seu afastamento forçado da presidência em 2016 e com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Esse pleito avançou com “a retórica familista, conservadora, antigênero, privatista, punitivista, militarista e ufanista” (p. 202), que encontrou eco na sociedade brasileira na época.

Um exemplo ilustrativo desse ponto está na forma como observamos a manifestação das/os estudantes nas paredes da escola. Uma ação comum do coletivo Ovelhas Negras no contexto escolar vinha sendo a colocação de cartazes com imagens, desenhos, dizeres e frases feministas. Na Figura 1, vemos a fotografia de cartazes que foram afixados em um mural no saguão do campus, ao lado dos cartazes que haviam sido confeccionados pelas integrantes do coletivo, como forma de contraposição ao seu discurso. Não há assinatura ou identificação dos/as autores/as dos cartazes, o que confirma o caráter difuso e de não identificação clara de seus opositores.

Fonte: Dados da pesquisa (Diário de campo de Vanessa S. Castro).

FIGURA 1 Fotografia de cartazes colocados ao lado de cartazes do coletivo Ovelhas Negras no mural do campus em maio de 2017 

O primeiro cartaz faz referência clara ao antifeminismo, com um sinal de proibição sobre uma das imagens mais representativas do feminismo - o símbolo da deusa Vênus com um punho cerrado em seu interior; o segundo busca criar uma narrativa sobre figuras históricas e sua relação com o movimento feminista, enaltecendo aquelas que supostamente não representariam o feminismo e depreciando aquela que, esta sim, representaria os ideais feministas, com o objetivo de deslegitimar o movimento. O cartaz promove um discurso sobre as figuras representadas e sobre o feminismo baseado no julgamento moral e na descontextualização histórica. Em busca no Google, é possível encontrar esse material com imagens e texto idênticos ao que foi afixado no campus. Também se encontram diversos outros materiais que usam a imagem da química Marie Curie (representada na fotografia à esquerda) na tentativa de deslegitimar o feminismo usando o mesmo discurso presente no cartaz. Assim, podemos entender que o uso das redes sociais e fóruns on-line não apenas servem ao espalhamento do feminismo, como também são ferramentas para o compartilhamento e disseminação dos discursos antifeministas.

Para Marques (2014), o antifeminismo não apenas envolve a oposição ao feminismo enquanto movimento político, mas também está calcado “na ordem social de matriz judaico-cristã que influencia e define a sociedade ocidental e que, assim, está na origem das manifestações antifemininas” (p. 276). Com isso, a autora refere-se aos discursos que atribuem ao feminino fundamentalmente características negativas, colocando a feminilidade como alvo de censura e vigilância. Essa postura pode ser adotada tanto de forma consciente, lançando mão dos discursos científicos e racionais que justificam a subjugação das mulheres (e de qualquer expressão socialmente associada à feminilidade), como de forma latente, resultado do modo como o feminino é tradicionalmente representado (Marques, 2014). Na época, observamos esse tipo de manifestação nas imagens afixadas no mural do campus com o propósito claro de se contrapor ao feminismo e à organização das jovens iniciadas na escola. Houve também fixação de cartazes no campus com a imagem de Jair Bolsonaro, bem como depredação de uma cópia do abaixo-assinado das jovens colada em uma parede, com uma escrita a caneta dizendo “BOLSONARO2018”. Essas demonstrações remetem claramente aos movimentos embasados nas ideias neoconservadoras citadas anteriormente. Já o posicionamento de ataque ao abaixo-assinado pode ser entendido como estando mais próximo a uma forma latente de antifeminismo, pois não ataca diretamente o discurso feminista e o feminino, mas sim sua forma, tida por demais “intimidadora” e ameaçadora.

As mediações como potenciais de transformação: o encontro com o outro por meio da dialogicidade

Essas e outras formas de interpretação do feminismo são tentativas de deslegitimá-lo enquanto um movimento minoritário, quer seja buscando deslegitimar seus métodos de ação ou invalidar suas pautas. Entretanto, a aceitação de uma minoria dessas limitações acarretaria renúncia ao seu potencial transformador (Sobottka, 2010). Ao formar um coletivo e propor o debate feminista no cotidiano escolar, as estudantes se colocaram em situações em que foram confrontadas com seus Outros e precisaram se relacionar com esses Outros, não podendo criar uma “bolha feminista” para si mesmas. O termo “bolha feminista” é usado pelas jovens ativistas universitárias entrevistadas por Lacey Lanigan (2008, p. 71), que criaram o coletivo ativista “Miss G_Project” em Ontário, Canadá, para se referir à situação em que elas se encontravam, na qual não entravam em contato com os críticos de suas pautas feministas, a ponto de por vezes esquecer que o mundo fora de seu coletivo, de seu meio social e de seu curso universitário não era feminista.

Esse não é caso do coletivo pesquisado, conforme demonstramos. A partir de nossas experiências e observações junto às participantes, deduzimos que isso se deve especialmente a dois fatores. Primeiramente, porque ele se encontra em uma cidade interiorana, tendo pouco contato direto com outras pessoas/grupos abertamente feministas. A maior parte dos conteúdos e movimentos com os quais as integrantes tiveram contato foi por meio de redes sociais, em páginas voltadas a esses temas. A construção de sentidos produzida nesses contatos incentivou as jovens a começarem seu ativismo, mesmo que com pouco contato com outras ativistas no seu cotidiano. Logo, enquanto um grupo que apresenta posturas e ideias não hegemônicas, a condição de isolamento torna as jovens um alvo de estigmatização até mesmo no contexto externo à escola. O medo do “contágio feminista” vindo de fora da instituição pôde ser observado na fala de uma estudante recém-ingressante na escola, que disse que “já tinha ouvido falar mal das Ovelhas, e já tinha ouvido que, se entrasse nessa escola, ia se tornar feminista” (Diário de campo, registro de 01/10/2018, p. 66).

O segundo fator que entendemos ter afastado a formação de uma “bolha feminista” ao redor do coletivo Ovelhas Negras - e que, em parte, pode ser consequência de sua localização em um contexto em que seria pouco provável conseguir escapar do conflito aberto - é que suas integrantes buscavam ativamente o conflito com ideias diferentes das suas, demonstrando com frequência sua vontade de debater com aqueles de quem discordavam e fazer seu ponto de vista alcançar lugares onde sabiam que, pelo menos a princípio, não seria aceito. É ao se posicionar e questionar a mentalidade dominante, criando um conflito, que uma minoria ativa faz pressão contra o consenso e mostra sua visão de mundo como válida (Moscovici, 2011). Uma minoria que resiste à imposição das visões de mundo majoritárias irá pressionar o grupo dominante a compreender e aceitar seus valores minoritários, de modo que esse conflito desestabiliza relações institucionalizadas, abrindo caminhos para que se possam começar a provocar mudanças no mundo (Hernandez & Freitas, 2017; Hernandez, 2010). Por isso o conflito, por mais árduo que seja para as minorias contra- -hegemônicas, é também essencial, já que, sem ele, as minorias não alcançam a visibilidade de suas demandas e, consequentemente, não alcançam as transformações que propõem.

Para elas [integrantes do coletivo], apesar de haver discordâncias com relação ao coletivo, de existirem pessoas que não querem sequer ouvir o que o coletivo tem a dizer, pessoas que já tem “um pé atrás” por suas ações anteriores, mesmo assim elas conseguiram atingir alguns objetivos. Elas se deram conta, enquanto conversavam, de que aquilo a que se propuseram - acabar com os assédios no saguão - elas alcançaram. Disseram que não se escuta mais nada quando se passa ali, e que não ouviram relatos de outras meninas que tenham passado por isso novamente. (Diário de campo, registro de 04/07/2017, p. 13).

Nesse fragmento do diário de campo, vemos como o conflito cumpriu sua função e ajudou as estudantes a alcançarem seu objetivo, pressionando a direção e os estudantes a encararem o problema apontado. Além do conflito, também foi essencial, para a continuidade se seu ativismo, que as jovens adotassem determinados comportamentos, formas de agir enquanto coletivo. Moscovici (2011), ao desenvolver a Teoria das Minorias Ativas (TMA), aponta que a adoção de determinados estilos de comportamento pelas minorias é crucial para que exerçam influência social. Os estilos descritos pelo autor são aqueles que demonstram esforço, autonomia, consistência, rigidez e equidade. Buscamos observar como cada um desses comportamentos levantados por Moscovici cumpriu seu papel na atuação do coletivo participante.

Começando pelo comportamento esforçado, que descreve uma minoria que persiste mesmo em situações em que os ganhos são incertos e em que perdas ou punições podem surgir como consequência por suas ações. Esse modo de agir comunica confiança e certeza em suas escolhas, bem como comprometimento e valorização de suas causas (Moscovici, 2011). A fala de uma das participantes demonstra que a resistência ante a uma situação de pressão tem impacto também na visão da minoria sobre si mesma:

É, no início eu não participei, enfim, da criação e tal, mas depois que eu entrei foi muito louco, porque . . . era um negócio que eu não pensava sobre, e tal, e eu me vi num mundo em que tu pode debater e discutir, e as pessoas estão ali para te apoiar, sabe, e tal, e isso é muito bom. E eu acho que . . . o ápice de tudo foi com a Agronomia [situação do abaixo- -assinado], que foi um momento em que eu tive que parar e pensar se era isso que eu queria. E foi o momento em que eu me reconheci e eu consegui dizer “sou feminista”, sabe, porque eu acho que essa é a parte mais complicada, assim, para ti se assumir como algo que as pessoas tanto criticam e caem em cima. (Roda de sistematização de experiências de 28/04/2018).

Essa fala mostra como o embate direto foi importante para que a estudante sentisse o “peso” de ser feminista. Ela viveu na prática o incômodo que o feminismo causa, a cisão social que muitas vezes emerge desse incômodo, e precisou tomar uma decisão sobre como se posicionar a respeito disso. Ou seja, resistir ao conflito causado pela defesa de ideais contra-hegemônicos acarretou uma mudança subjetiva na estudante, que suscitou uma mudança também política, no sentido de repensar o que significa ser feminista. Como coloca Alvarez (2014), está na constituição dos espaços discursivos de mobilização social a formação política, pois são espaços nos quais “a cidadania é construída e exercida, os direitos são imaginados, e não só demandados, as identidades e necessidades são forjadas e os poderes e os princípios são negociados e disputados” (p. 19).

Outro comportamento crucial levantado por Moscovici, e que está relacionado com os significados e os conceitos usados pelas minorias ativas, é a consistência. Para exercer influência, as minorias precisam estar conscientes das relações existentes entre a intenção no uso do signo e sua manifestação externa; expressar-se de modo “sistemático e consistente a fim de evitar um mal-entendido por parte do receptor” (Moscovici, 2011, p. 118); e manter os significados das palavras ao longo das interações, de modo que os comportamentos e seus significados não se percam. O comportamento consistente oferece convicções firmes para situações em que normalmente haja muitas dúvidas, por meio da evitação de contradições, da repetição de termos e de padrões de comportamento e da busca por provar logicamente os ideais defendidos (Moscovici, 2011).

Essa consistência está relacionada ao que Alvarez (2014) chama de uma “gramática política” compartilhada em um mesmo campo discursivo. A autora entende o feminismo como um campo discursivo, no qual estão inseridos não apenas movimentos e grupos formais, organizados, da sociedade civil, mas também coletividades e agrupamentos mais flexíveis, como o que faz parte de nossa pesquisa. O campo do feminismo, assim, se constitui em um “universo de significados que se traduzem ou se (re)constroem ao fluir ao longo de diversas teorias político-comunicativas, norteando as estratégias e identidades das atoras/es que se coligam nesse campo” (Alvarez, 2014, p. 19), que se articulam por meio de linguagens, sentidos, visões de mundo, mesmo que parcialmente compartilhados.

As jovens Ovelhas Negras se inserem nesse campo, adotando termos feministas em seus cartazes e em suas falas e os colocando como pauta no cotidiano escolar (por exemplo, feminismo, assédio, sororidade, machismo, questionamento dos papéis de gênero, direito ao corpo, entre outros - para uma análise dos usos desses termos no coletivo em questão, ver Castro et al. (2021)). Para isso, elas relataram buscar estudar esses e outros temas, como as diferentes vertentes do feminismo, bem como participar, na medida do possível, de palestras e eventos sobre o tema, especialmente em uma cidade razoavelmente próxima, de médio porte, que conta com maior oferta desse tipo de atividade. Ou seja, buscam aprofundar sua inserção nesse campo.

O que a observação do campo nos mostra, entretanto, é que o convencimento apenas pela via do que é racional e lógico não é o suficiente para que uma minoria ativa provoque mudanças. Afinal, como nos lembra Arruda (2009), as representações sociais não contêm apenas elementos racionais; elas também são formadas por “elementos que envolvem interesses, exercício do poder, desejo de aceitação, eventuais questões circunstanciais, compondo um novo desenho traçado pelos diversos atravessamentos do social” (p. 747). Valores e interesses grupais, bem como a necessidade de pertencimento e de aceitação, os afetos, as crenças, agem na manutenção e na transformação das representações dos sujeitos e dos grupos sobre o mundo (Arruda, 2009). Esse entendimento reforça a importância dos estilos de comportamento para a atuação das minorias na arena social, já que não basta a mensagem contra-hegemônica ser racionalmente válida ou justa; é preciso que seja apresentada de modo a ser ao menos minimamente aceita pelos demais.

O comportamento autônomo, outro dos estilos descritos na TMA, insere-se nesse espaço onde a racionalidade, por si só, não é suficiente. A autonomia de uma minoria pode ser notada quando ela demonstra independência para agir, sem estar subordinada a interesses ocultos, que vão além de seus ideais e princípios declarados. Comportamentos que podem ser lidos como extremistas, como quando, por exemplo, uma minoria se recusa a fazer certas concessões ou acordos, também podem ser vistos como autônomos, já que demonstram comprometimento com seus ideais (Moscovici, 2011). Além desse extremismo do qual por vezes foram acusadas as Ovelhas Negras por seus interlocutores, outra forma como as jovens exibiram comportamentos autônomos foi mostrando que seu objetivo é apenas tornar a escola e seu entorno mais justo em termos de gênero e ajudar outras jovens como elas a discutir feminismo, sem obter ganhos pessoais com isso.

Observando as falas dos/as “antagonistas” do movimento Ovelhas Negras, foi possível notar que, de modo geral, eles/as reconheciam a atuação autônoma do coletivo e, por vezes, até afirmaram concordar, em certa medida, com suas pautas. Demonstrando a validade das palavras de Arruda (2009) sobre os elementos que movem (ou mantêm estáticas) as representações sociais, os/as detratores/as apresentam elementos sociais e afetivos, de sociabilidade e disputas intergrupais, para justificar seus posicionamentos, como mostra o seguinte trecho do diário de campo:

[Reunião em um intervalo do almoço, no pátio da escola] Todas as meninas presentes concordaram que são muito visadas, que estão sempre sendo atacadas de alguma forma. Sobre esses ataques, citaram os cartazes no mural, e Adelise me mostrou alguns áudios que foram enviados no grupo [do aplicativo WhatsApp] da turma, que foram enviados por um de seus colegas, mas gravados em grupo (ouviam-se várias vozes ao mesmo tempo). Nos dois áudios que ouvi, havia uma gritaria de pessoas, e ouviam-se vozes de alguns meninos, soando um pouco embriagados, dizendo que odeiam as Ovelhas e lançando alguns xingamentos ao grupo. Adelise disse que foi confrontar um dos meninos sobre o áudio (um que não está mais na escola), e que ele se esquivou. Ela disse que perguntou a ele se ele odiava as Ovelhas (“Ah, então tu odeia as Ovelhas Negras?!”), e ele teria dito que entende a causa, mas que quando se está bêbado com os amigos, se fala bobagem. Cecília e Joice comentaram ser absurdo, na opinião delas, eles se reunirem para beber e ficar pensando em xingá-las. . . . Elas falaram sobre como isso mostra que elas estão “mexendo” as coisas, provocando. (Diário de campo, registro de 04/07/2017, pp. 11-12).

Esse trecho reafirma a busca do confronto de ideias como sendo um ponto crucial do coletivo participante, bem como a importância do conflito enquanto forma de dar visibilidade e garantir a aceitação de suas pautas na arena social em que atuam. Demonstra, também, que a disputa em torno das pautas minoritárias vai além de um convencimento apenas racional, passando também pelos afetos e pelas dinâmicas intergrupais. É nesse contexto do contato intergrupal direto, face a face, que os últimos dos estilos de comportamentos descritos por Moscovici, a rigidez e a equidade, têm lugar. Eles se referem à forma como o grupo minoritário se posiciona e é percebido pelo grupo majoritário, se de modo rígido e inflexível, sem preocupação em negociar seus termos, ou se de modo equânime, mostrando disposição para dialogar e levar em conta opiniões opostas às suas.

Moscovici (2011) defende que o uso de cada um desses comportamentos deve estar relacionado ao objetivo e ao momento vivenciado pela minoria em questão. Se a minoria busca se distanciar e fazer oposição a um outro grupo, teria mais sucesso se adotasse uma postura rígida; por outro lado, se deseja convergir com o outro, o comportamento flexível é válido (Moscovici, 2011). O autor entende que a rigidez é necessária no momento de estabelecimento do grupo minoritário, quando ele se diferencia da maioria. Após conseguir certa estabilidade no seu interior, o grupo pode se permitir ser mais flexível e equitativo, podendo estabelecer alianças e compromissos sem correr o risco de se desfazer. Observamos isso na atuação do coletivo participante quando ele consegue se diferenciar e chamar atenção para suas pautas no contexto escolar justamente ao entrar em conflito direto com o grupo majoritário, passando a ser visto como um “grupo radical”. Posteriormente, o coletivo procurou também se aproximar e dialogar com aqueles e aquelas com quem não tinham entrado em embate direto. Exemplo disso é a recepção que as Ovelhas Negras têm realizado anualmente a estudantes ingressantes do campus, de modo a dialogar sobre feminismo, assédio, machismo e masculinidade com grupos de meninas e meninos, separadamente. Outro exemplo foi um momento em que promoveram uma conversa sobre assédio em alusão ao Dia Internacional da Mulher em todas as salas de aula do Ensino Médio Integrado.

Elas disseram que entraram nas primeiras turmas com um certo receio, com medo de como seria o debate, mas que depois foram já tranquilas, mesmo ao chegar nas turmas de terceiro ano da Agropecuária e da Mecânica (turmas que elas já conhecem, e onde consideram que haveria mais pessoas contrárias a seu discurso). Foram sozinhas, sem acompanhamento de nenhum servidor. Elas contaram que a conversa foi muito melhor do que esperavam, que inclusive saíram aplaudidas dessas turmas de terceiro ano. (Diário de campo, registro de 14/03/2018, p. 40)

A partir dos estudos que analisou, Moscovici (2011) também encontrou que, ao agirem de maneira mais “dogmática” (p. 155) e rígida, as minorias têm mais chances de influenciar aqueles/as que já demonstram simpatia por suas visões de mundo; já ao agirem equitativamente, as minorias conseguem alcançar também sujeitos que, inicialmente, não simpatizam com suas causas. Por esse motivo, o autor relaciona o comportamento rígido como compatível com as relações no interior do grupo minoritário, e o comportamento equitativo como mais importante no contato com outros grupos, de modo que “não é possível comportar-se da mesma forma dentro e fora do grupo” (Moscovici, 2011, p. 157). Nesse sentido é que vimos que, nas conversas entre si, as Ovelhas Negras brincavam, faziam piadas, recorriam a exageros e a termos que não usavam ao tentar dialogar com seus Outros. Ao fazer isso, elas reforçavam o sentimento de pertencimento grupal, estimulando que as participantes sentissem o espaço do coletivo como um lugar seguro para expressar posicionamentos que seriam tidos como extremistas ou radicais pelo senso comum dominante. De modo geral, então, vimos no próprio coletivo uma análise do contexto em que estavam e os objetivos que buscavam alcançar ao definir seu comportamento em seus diferentes espaços de circulação.

Como observa Alvarez (2014, p. 20), “[o]s fluxos do campo feminista resultam das suas interações dinâmicas com os campos de poder nos quais ele se insere em uma determinada conjuntura histórica”, de modo que essa conjuntura mais ampla viabiliza e até mesmo demanda determinadas formas de atuação, ao mesmo tempo que limita outras. Ao analisarmos um recorte da trajetória do coletivo participante, propusemos-nos a desvendar algumas das dinâmicas que entraram em cena na colocação do feminismo no contexto escolar por parte das jovens, dinâmicas essas que podem ajudar na compreensão de cenários semelhantes, especialmente no momento marcado pelo espalhamento tanto do feminismo quanto daqueles/as que se opõem a ele.

Considerações finais

Neste artigo, tivemos como objetivo refletir sobre a função da alteridade na construção do ativismo do Movimento Ovelhas Negras - um coletivo definido por seus objetivos principais, que são promover mudanças na escola por meio do confronto e do desvelamento de discursos e atitudes machistas, sexistas e preconceituosas e fortalecer e empoderar outras jovens. Essas metas são perseguidas na interlocução com pessoas que têm objetivos e visões de mundo semelhantes aos seus e com pessoas antagonistas às suas ideias.

Ao tentar colocar suas pautas e posicionamentos, as ativistas se deparam com tensões e resistências, até mesmo por parte dos grupos “dominados” que de algum modo se aproximam das ideias feministas, mas que, no fim das contas, tendiam a beneficiar o grupo dominante no “embate” que se colocava. Exemplo disso é a luta contra os assédios e o bullying no campus perpetrados por estudantes do ensino superior, que obteve apoio inicial deles, mas terminaram por “proteger” os agressores (estudantes da Agronomia) na medida em que se identificaram e se solidarizaram com os realizadores dos assédios. Em suma, a “empatia” pelas ideias feministas não foi suficiente para promover mudanças. No campo das relações de gênero, a maioria continuou exercendo uma forte pressão para que as relações de gênero permanecessem inalteradas, resistindo à transformação das representações sobre as mulheres e as formas como seus corpos são tratados no espaço público.

Todavia, precisamos olhar não apenas para o resultado final (não transformação das representações), mas também para a travessia, pois é nela que podemos vislumbrar as potencialidades de mudança. A assinatura da petição, mesmo que seguida de arrependimento da parte de alguns sujeitos, tensionou e deu visibilidade às relações injustas dentro do campus, deslocando dinâmicas naturalizadas e marcando uma “pequena” vitória - ou, ao menos, uma pequena provocação coletiva, que exigiu reação.

Mais importante ainda é o registro, na memória da instituição, da audácia do coletivo em contestar abertamente as injustiças e apresentar outros modos de fazer e pensar, características típicas de minorias ativas. Esse registro desestabiliza o instituído ao mesmo tempo que produz uma marca simbólica da cisão do corpo institucional em dois polos distintos: as feministas e as não feministas. Uma polarização mais positiva que a de outrora, que busca romper com a colocação das primeiras como as “loucas” e das segundas como as “sãs”, ao colocar a postura feminista como viável e legítima. Uma polarização que se abre para uma questão fundamental para novas pesquisas: como ativistas feministas podem dialogar com as não feministas e com o antifeminismo latente?

Essa é uma questão-desafio. Nosso estudo mostrou que o conflito e as mediações são justamente potência de transformação, via alteridade e dialogicidade. Apesar de o discurso majoritário tentar deslegitimar o feminismo, as Ovelhas Negras não se intimidaram e se apropriaram da dialogicidade para seguir a travessia. Poderiam, talvez, ter tentado tomar um atalho e se encerrar em uma “bolha feminista”, mas decidiram ativamente por um estilo de comportamento característico das minorias ativas, mantendo o debate com aqueles de quem discordavam e o posicionamento consistente, contínuo e amparado em discursos e práticas de outras feministas. E os resultados foram positivos, haja vista que o coletivo ganhou visibilidade, inclusive entre os estudantes homens, o assédio parece ter deixado de ser onipresente na instituição, e outras estudantes começaram a se reconhecer como feministas. As ações das jovens produziram um impacto a longo prazo na cultura institucional, colaborando com a inclusão da discussão do feminismo na escola que produz novas práticas de convívio que perduram até os dias atuais.

Esse contato com o Outro, permeado tanto pelo conflito como pela mediação e diálogo, possibilita às jovens feministas vivenciar o caráter político do feminismo, que coloca em disputa, na arena social, debates antes tidos como pessoais, individuais. A travessia de dissidentes é longa e precisa continuar apesar do Outro, mas também com o Outro, pois é na alteridade que nos desassossegamos e nos ressignificamos.

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Disponibilidade de dados Os dados subjacentes ao texto da pesquisa estão informados no artigo.

1Kohlberg, L., & Hersh, R. H. (1977). Moral development: A review of the theory. Theory into Practice, 16(2), 53-59.

2Os NEPGS são setores propositivos e consultivos, criados por portaria instituída em cada campus, que estimula e promove ações de ensino, pesquisa e extensão orientadas à temática da educação para a diversidade de gênero e sexualidade.

Recebido: 03 de Abril de 2021; Aceito: 29 de Outubro de 2021

Nota sobre autoria

Vanessa Soares de Castro: responsável pela concepção, coleta de dados, análise de dados, elaboração do manuscrito e redação do artigo, derivado de sua dissertação de mestrado. Adriane Roso: concepção, redação, discussão de resultados, revisão e aprovação da versão final e orientação da dissertação. Camila dos Santos Gonçalves: redação, discussão de resultados, revisão e aprovação da versão final e coorientação da dissertação.

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