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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.52  São Paulo  2022  Epub 03-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/198053149076 

EDUCAÇÃO SUPERIOR, PROFISSÕES, TRABALHO

ALUNAS EGRESSAS DE ENGENHARIA MECÂNICA: UMA ABORDAGEM EXPLORATÓRIA

ESTUDIANTES GRADUADAS DE INGENIERÍA MECÁNICA: UN ENFOQUE EXPLORATORIO

ÉTUDIANTES DIPLOMÉES EN GÉNIE MÉCANIQUE: UNE APPROCHE EXPLORATOIRE

Maria Eulina Pessoa de CarvalhoI 
http://orcid.org/0000-0001-6943-3320

Mayanne Júlia Tomaz FreitasII 
http://orcid.org/0000-0003-3608-8318

I Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa (PB), Brasil;

II Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa (PB), Brasil;


Resumo

Com base em dados quantitativos, entrevistas e referências dos estudos de gênero, ciência e tecnologia, e da sociologia da educação e do trabalho, o texto aborda a raridade de mulheres como alunas e professoras no curso de Engenharia Mecânica em uma instituição de educação superior nordestina. Seis alunas que ingressaram no curso em 2012 são acompanhadas até o presente. A aná- lise sobre suas trajetórias, obstáculos enfrentados e perspectivas pessoais e profissionais ilustra como o filtro de gênero atua na área de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, e indica os desafios da inclusão da perspectiva de gênero para o alcance da paridade de sexo na educação superior e no mercado de trabalho.

Palavras-Chave: RELAÇÕES DE GÊNERO; ENSINO SUPERIOR; ALUNA EGRESSA

Resumen

A partir de datos cuantitativos, entrevistas y referencias de los estudios de género, ciencia y tecnología, y de la sociología de la educación y del trabajo, el texto aborda la escasez de mujeres como estudiantes y profesoras en la carrera de Ingeniería Mecánica en una institución de educación superior en el Noreste de Brasil. Se realiza un seguimiento actualizado de seis alumnas y graduadas, que se incorporaron a la carrera en 2012. El análisis de sus trayectorias, obstáculos enfrentados, y perspectivas personales y profesionales ilustra cómo funciona el filtro de género en el área de Ciencia, Tecnología, Ingeniería y Matemáticas, indicando los desafíos de incluir la perspectiva de género para lograr la paridad de género en la educación superior y en el mercado del trabajo.

Palabras-clave: RELACIONES DE GÉNERO; EDUCACIÓN SUPERIOR; ALUMNA GRADUADA

Resumé

A l’appui de données quantitatives, d’entretiens et des études de genre, sciences et technologies et de la sociologie de l’éducation et du travail, ce texte aborde la rareté des femmes étudiantes et enseignantes dans les licences de Génie Mécanique d’un établissement d’enseignement supérieur au Nord-Est du Brésil. Six étudiantes qui ont accedé au cours en 2012 ont été suivies jusqu’à présent. L’analyse de leurs trajectoires, des obstacles rencontrés et des perspectives personnelles et professionnelles illustre la mise en place du filtre de genre dans le domaine des Sciences, de la Technologie, de l’Ingénierie et des Mathématiques, indiquant les défis posés à l’obtention de la parité des sexes dans l’enseignement supérieur et dans le marché du travail.

Key words: RAPPORTS DE GENRE; ENSEIGNEMENT SUPERIEUR; DIPLÔMÉS

Abstract

Based on quantitative data, interviews and literature on gender, science & technology, and the sociology of education and work, the text addresses the shortage of women as students and professors in the Mechanical Engineering program at a higher education institution in Northeastern Brazil. Six female students who entered the program in 2012 are monitored, up to the present. The analysis of their trajectories, obstacles, and personal and professional perspectives illustrates how the gender filter operates in the area of Science, Technology, Engineering and Mathematics. It indicates the challenges of including a gender perspective to achieve gender parity in higher education and the labor market.

Key words: GENDER RELATIONS; HIGHER EDUCATION; FEMALE GRADUATES

A persistente raridade de mulheres em Ciências Naturais, Tecnologia, Engenharia e Matemática (CTEM)

Na segunda metade do século XX, as mulheres brasileiras avançaram no acesso à educação e ao trabalho remunerado, inclusive em profissões tradicionais e de prestígio, como Medicina e Direito. Na passagem do século XX ao XXI, elas já eram maioria do alunado e quase metade do professorado na educação superior. Contudo, na área de Ciências Naturais, Tecnologia, Engenharia e Matemática (CTEM) sua inclusão foi mínima.

A pergunta “por que tão poucas?” tem sido feita por estudiosas feministas de vários países para entender a reduzida presença de mulheres nessa área. Examinando pesquisas realizadas nos Estados Unidos, Hill et al. (2010) atribuem isso a fatores sociais e ambientais; no Brasil, em estado da arte sobre mulheres nas engenharias, Lombardi (2016) destaca fatores culturais e educacionais. E, embora argumentos sobre habilidades inatas (matemáticas, espaciais e tecnológicas) por sexo/gênero não tenham credibilidade científica, tais estereótipos de gênero persistem em meio à falta de modelos femininos, como apontam Bermúdez et al. (2021) ao discutirem o insuficiente avanço da inclusão de mulheres em CTEM na União Europeia (UE).

Para entender a persistência da divisão sexual do trabalho em meio ao atual sucesso escolar das mulheres, é importante explicitar essa categoria analítica, articulada à de relações sociais de sexo (análoga a relações de gênero), a partir da sociologia feminista francesa. Segundo Helena Hirata e Danièle Kergoat (2007, p. 599), a divisão sexual do trabalho é tanto a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo (conceito análogo a relações de gênero) quanto a base material dessas relações de poder/dominação, estruturantes e transversais ao campo social (Kergoat, 2009). Tal divisão caracteriza-se pela destinação das mulheres à esfera reprodutiva (do trabalho gratuito, invisível, feito para os outros, em nome da natureza, do amor e do dever maternal), e dos homens à esfera produtiva, onde se situam as funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares, etc.) (Kergoat, 2009). Seus princípios organizadores - o da separação/distinção entre trabalhos de homem e de mulher; e o da hierarquia/maior valorização do trabalho masculino - baseiam-se na ideologia naturalista, biologicista, essencialista, que reduz gênero a sexo (Hirata & Kergoat, 2007).

Assim, o conceito de divisão sexual do trabalho parte da distribuição diferencial, hierárquica e sistemática de homens e mulheres no trabalho doméstico, no mercado de trabalho e nas profissões, embora com variações no tempo e no espaço, imbricadas com relações de classe, étnico-raciais, Norte-Sul. Além disso, assinala que essas desigualdades criam um “sistema de gênero” (Hirata & Kergoat, 2007, p. 596) que desvaloriza o trabalho das mulheres tanto na família quanto no mercado de trabalho, e compromete sua autonomia e participação individual e coletiva (Hirata, 2010; Biroli, 2016). Em suma, as duas categorias - divisão sexual do trabalho e relações sociais do sexo - explicam a repartição assimétrica do trabalho, do saber e do poder entre homens e mulheres (Hirata, 2010).

Contudo, como explica Kergoat (2009), na reprodução social ocorrem deslocamentos, rupturas e novas configurações que, aparentemente, escondem a divisão. Mudam as condições - como a elevação da escolaridade feminina, a ampliação de sua empregabilidade, ou seu ingresso em campos masculinos -, mas permanece a posição inferior das mulheres quando adentram o mercado de trabalho e assumem a dupla jornada. Elas encontram barreiras de gênero, mais ou menos sutis, e pagam um preço simbólico que não é cobrado de seus colegas do sexo masculino.

Convergindo com a crítica feminista, Bourdieu (1999) reconhece três princípios práticos da divisão sexual do trabalho e da exclusão das mulheres das carreiras tecnológicas: o primeiro associa a mulher às funções domésticas (cuidados, serviço, ensino); o segundo a associa a funções subordinadas (ela não pode ter autoridade sobre homens); e o terceiro associa o homem aos objetos técnicos e às máquinas. Esses princípios correspondem à segregação ocupacional e ao “teto de vidro”: à raridade de mulheres na área de CTEM e à subalternidade das posições por elas ocupadas em todas as áreas. Ademais, em CTEM ocorre o fenômeno chamado de leaky pipeline (cano que vaza), o “vazamento” (evasão) das mulheres, produzido pelos filtros de gênero (Blickenstaff, 2005).

Diversos fatores desviam as meninas, desde cedo, das carreiras de CTEM, em um aparente contexto de coeducação: da socialização primária, na família, à socialização secundária, na escola, suas aspirações ocupacionais continuam gendradas. Na escola, destacam-se a experiência curricular e as relações com professores/as e colegas (Roger & Duffield, 2000); as meninas sentem-se alienadas das matérias tradicionalmente masculinas, como a matemática; os meninos dominam o ambiente de sala de aula e exercem um efeito negativo na aprendizagem delas; algumas professoras e professores têm expectativas mais baixas quanto ao desempenho das meninas e consideram mais estimulante ensinar aos meninos (Warrington & Younger, 2000; Lima, 2013). Sendo o currículo escolar contexto de construção de identidade/subjetividade, é nele que as meninas constroem uma suposta incompetência para matérias ditas masculinas (Stepulevage, 2001), deixando de investir na aquisição de competências matemáticas e espaciais (Hill et al., 2010). Trata-se da incompetência aprendida, à qual se refere Bourdieu (1999). Consequentemente, a tradicional socialização de gênero, reforçada na escola, acarreta a baixa da autoestima, da autoconfiança e da autoeficácia das mulheres, resultando na sua autoexclusão de carreiras não tradicionais e na preferência por cursos ligados ao cuidado (Donoso-Vázquez et al., 2013).

Na passagem do ensino médio ao superior opera o primeiro “filtro de gênero”, mas “o vazamento” continua durante o curso superior, na pós-graduação e na inserção profissional (Blickenstaff, 2005). Independentemente de disciplina, da proporção de estudantes mulheres e do país, elas abandonam as carreiras científicas em número muito superior aos homens em todas as etapas e, especialmente, após o doutorado (Rees, 2001; Burger et al., 2010; Lacampagne et al., 2010). Como indica a literatura especializada, mormente em CTEM, as razões são: dificuldade de acesso a recursos; conteúdos curriculares desconectados da experiência e distanciados de aplicações concretas e contribuições sociais; hostilidade nas relações acadêmicas; exclusão das redes sociais masculinas e consequente falta de senso de pertencimento a uma comunidade de prática; e raridade de professoras, sobretudo na pesquisa (Burger et al., 2010; Lacampagne et al., 2010).

Desde a década de 1990, há países que desenvolvem iniciativas para incentivar a inclusão de meninas e mulheres em cursos e carreiras de CTEM. Na União Europeia, a política de promoção da equidade de gênero em universidades e institutos de pesquisa tem assumido três abordagens: tratamento igual entre homens e mulheres, ação afirmativa e transversalidade de gênero. Todavia, mesmo onde existem políticas de inclusão, o avanço das mulheres nos campos científicos e tecnológicos masculinos tem sido lento (Rees, 2001). Segundo Cooper et al. (2010), no século XXI ainda não se tem uma academia amistosa para as mulheres e persistem o clima frio e o “teto de vidro”, até mesmo em países onde há legislação e políticas de combate à desigualdade (Kjeldala et al., 2005), sobretudo nos campos do conhecimento dominados por homens.

Quanto à segregação vertical, no século XXI as mulheres continuam exercendo, majoritariamente, as tarefas menos qualificadas e excluídas dos postos de liderança, inclusive em países onde as lutas feministas já geraram políticas para mulheres. No desenvolvimento e na progressão profissional, o “teto de vidro” funciona tanto como uma barreira externa (socialmente imposta) quanto interna (internalizada pelas mulheres, que não aspiram os postos de trabalho mais valorizados) (Sarrió et al., 2002). Nesse contexto, há ainda a barreira psicológica do medo da avaliação negativa, e a falta de modelos e mentoras que possam inspirar, ensinar “as regras do jogo”, oferecer apoio, proteção e oportunidades de aprendizagem compartilhada (Donoso-Vázquez et al., 2013; Cooper et al., 2010).

A interação desses fatores afeta as trajetórias de alunas, professoras e demais mulheres profissionais nas relações de trabalho ulteriores, criando desvantagens específicas de gênero, que se somam, ademais, ao desafio de conciliação entre filhos/as e carreira, caso optem por isso. No campo acadêmico, em particular, a falta de professoras, pesquisadoras e gestoras de sucesso afeta as raras alunas, que tendem a se sentir estranhas na cultura homossocial masculina dominante da área de CTEM.

Segundo Leonard (2001), a cultura das universidades radica-se, por um lado, em um projeto de masculinidade baseado na super racionalidade, cientificismo, independência e antagonismo, comportamento competitivo e autopromocional, que exclui elementos associados à feminilidade (o corpo, a emoção, as conexões pessoais e a aceitação da diversidade humana); e, por outro lado, em um projeto heterossexual, que proporciona vantagens e privilégios aos homens e exclui as mulheres das redes e organizações formais masculinas, enquadrando-as na heterossociabilidade: como esposas, colegas dóceis e diligentes em posições auxiliares, e objetos de assédio sexual. Por isso, minoritárias na área de CTEM, elas tendem ao isolamento, ao não se incluírem facilmente nas redes masculinas, nem contarem com suas próprias redes de apoio femininas nas relações horizontais ou com o apoio de superiores e mentores do mesmo sexo nas relações verticais (Lacampagne et al., 2010; Öhrn et al., 2009; Leonard, 2001).

É nesse contexto que se reproduz a raridade das mulheres em CTEM: elas tendem a se excluir, sendo excepcionais as que passam pelos filtros de gênero. Formam-se menos professoras de Matemática para as escolas de educação básica, poucas meninas seguem para os cursos superiores da área de CTEM, onde se encontram raras professoras e mentoras que as inspirem ao sucesso acadêmico e profissional. As universidades não fazem rotineiramente acompanhamento de egressos, de tal forma que há carência de pesquisas qualitativas e biográficas sobre as trajetórias das raras mulheres bem-sucedidas nesses campos estereotipados como masculinos.

Neste texto, desdobramento de um projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Carvalho, 2017), apresentam-se dados históricos e atuais de uma instituição federal de ensino superior (Ifes) nordestina sobre a in(ex)clusão de mulheres na Engenharia Mecânica (doravante citada EM), uma das engenharias mais masculinas. Para ilustrar o filtro de gênero, destacam-se experiências de alunas de uma turma ingressante no curso em 2012, acompanhadas até o presente.

A raridade de mulheres no alunado e professorado de Engenharia Mecânica

Nas engenharias, a inclusão de mulheres tem aumentado lentamente desde a década de 1990 (Lombardi, 2006), alcançando 9,3% nos cursos de Engenharia Mecânica e Metalúrgica em 2011 (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep], 2013), redutos dos mais fechados dentre as engenharias (Carvalho & Sobreira, 2008). Especificamente, a EM ocupava a 15ª posição nacional em número de matrículas, com um total de 132.267 discentes em 2016 segundo o Censo da Educação Superior, sendo 10,2% mulheres (Inep, 2018, p. 26). Já nos números do ingresso no curso em 2016, de um total de 40.040 estudantes, as mulheres perfaziam 10,5% (Inep, 2018, p. 32).

Na Ifes pesquisada, as matrículas de alunas em EM vêm crescendo, mas continuam majoritariamente masculinas. Em uma série histórica apresentada em trabalho anterior (Freitas & Carvalho, 2018), o ingresso de mulheres no curso duplicou de 6,5% na década de 1970 para 12,9% na década de 2010. Todavia, em 47 anos de existência do curso, até 2017, elas representavam 6% dos egressos, ou seja, a Ifes pesquisada graduou apenas 72 engenheiras mecânicas.

No período 2017.1 (primeiro semestre de 2017) entraram 9 alunas e 52 alunos; e em 2017.2 (segundo semestre de 2017) entraram 5 alunas e 46 alunos. Portanto, em um total de 112 ingressantes em 2017, 12,5% eram mulheres.

Atualmente, o curso de EM dessa Ifes conta com 566 matrículas, sendo 491 de alunos e 75 de alunas (13%). Em 2020 ingressaram 16 mulheres para 84 homens, situando-se em 10% a entrada feminina.

A Figura 1 resume os números de matriculados hoje, por ano de ingresso, ao longo da última década, possibilitando visualizar que, pelo menos para 55 homens e 5 (8,3%) mulheres, ingressantes de 2010 a 2014, a conclusão ultrapassa os cinco anos; dos ingressantes em 2015, 84% de discentes homens e 16% de mulheres ainda não concluíram o curso. O “vazamento” maior de alunas em cursos de alta evasão, como a Engenharia Mecânica, foi apontado por exemplo, por Kohler e Ioshiura (2017) na Universidade Federal de Santa Catarina, onde uma em cada quatro alunas desistia.

Fonte: Elaboração das autoras com base em dados oficiais do sistema da Ifes (ago. 2021).

Figura 1 Distribuição de discentes com matrículas ativas no curso de Engenharia Mecânica, por sexo, em 2010-2020 

De modo geral, segundo Lombardi (2016, p. 4), as razões da raridade de mulheres nas engenharias são tanto de ordem prática, pelas “limitações impostas pela profissão, por exemplo, sua origem militar, as condições de trabalho adversas encontradas pelos profissionais em algumas especialidades, o comando de equipes masculinas”, quanto de ordem simbólica, ou seja, uma “incompatibilidade entre a engenharia e uma dada concepção de feminino, avessa às matemáticas, à racionalidade e à objetividade, não predisposta à competição”. Por outro lado, a “lentidão do processo de feminização nas engenharias” seria decorrente da construção da identidade e cultura profissionais, que cobraria a masculinização das engenheiras “como forma de sobrevivência, resistência e defesa”, para serem exitosas (Lombardi, 2017, p. 126). Nesse contexto, são raras também as docentes na formação superior nas engenharias, de forma que se estabelece um ciclo vicioso de exclusão fe- minina nessa área.

O Departamento de Engenharia Mecânica (DEM) da Ifes pesquisada chegou a ter duas professoras, que ingressaram em 1976 e 1978 e se aposentaram na década de 1990 (Carvalho, 2017). Embora tenha tido uma professora substituta em 2000, o DEM não contou com nenhuma mulher em seu quadro efetivo até dezembro de 2011, quando ingressou uma docente por concurso, graduada em Engenharia Civil, com mestrado e doutorado em EM. Em 2014, outra docente chegou à instituição por remoção, graduada, mestra e doutora em EM, mas deixou a Ifes em 2016, por não se sentir acolhida (Carvalho, 2017). Portanto, até o ano de 2020 havia apenas uma professora (3,4%) em contraste com 28 professores homens no DEM. Recentemente, em 2021, foi contratada uma nova professora, então o quadro docente do DEM passou a incluir duas mulheres (6,6%) entre 30 docentes homens, excetuando-se dois colaboradores voluntários e um visitante.

A falta de modelos femininos no mercado de trabalho das engenharias - e desde a formação profissional - soma-se à enorme retenção e evasão nos cursos dessa área, bem como à migração de profissionais formados para outras áreas, problemas bem conhecidos e relacionados a múltiplos fatores (Watanabe et al., 2015), porém não enfrentados. São problemas pertinentes à cultura androcêntrica, com sua epistemologia e metodologia de ensino “duras”,1 como se ilustrará a seguir na experiência formativa e laboral das alunas de EM.

Acompanhando as alunas

Na turma do período 2012.1 (primeiro semestre de 2012) do curso de Engenharia Mecânica ingressaram 61 discentes, conforme o registro de dados institucionais, sendo 8 mulheres (13%) e 53 homens (87%). Todavia, quando entramos em contato com a turma, no contexto da pesquisa mencionada (Carvalho, 2017), só encontramos 6 alunas. Identificadas de A1 a A6, elas foram entrevistadas, em diferentes momentos,2 sobre suas percepções das relações de gênero na vida acadêmica e seus planos profissionais e pessoais após a graduação.

Em dezembro de 2012 foi aplicado um questionário3 e realizado um grupo focal com essas alunas. A1, A2 e A4 ingressaram por cota para estudantes negros, indígenas e oriundos de escola pública. A Tabela 1, a seguir, apresenta sua caracterização.

Tabela 1 Caracterização das alunas de Engenharia Mecânica ingressantes em 2012.1 

Aluna Idade Cor Ocupação do pai Ocupação da mãe
A1 18 anos Parda Comerciante informal Desempregada
A2 20 anos Negra Professor da educação básica Professora da educação básica
A3 18 anos Branca Engenheiro elétrico Professora de Educação Física
A4 18 anos Branca Motorista Técnica de enfermagem
A5 18 anos Branca Bancário (curso superior incompleto) Professora da educação básica
A6 18 anos Parda Professor universitário (arquiteto) Professora de Matemática (engenheira elétrica)

Fonte: Questionário aplicado em dezembro de 2012 (Carvalho, 2017).

Todas apontaram a facilidade em matemática e o gosto por máquinas e motores como motivos da escolha da EM, portanto passaram pelo filtro de gênero ao longo da educação básica. A3 tem pai engenheiro elétrico e A6 tem mãe engenheira elétrica, outra das engenharias com predominância masculina. A6 afirmou ser “apaixonada por matemática”. Todas também se declararam satisfeitas com o curso no final do primeiro ano, porém A6 ainda estava em dúvida quanto à escolha e permanência.

Indagadas sobre o baixo interesse feminino pela EM apontaram o condicionamento cul- tural. Segundo A3, “pela falta de interesse de algumas mulheres com relação às máquinas/engenharia, e pelo fato de já existir uma relação histórica ligando o homem à máquina”. Para A5, “como EM é um curso normalmente associado a carros e graxa, eu acredito que as mulheres não têm a curiosidade de pesquisar mais sobre ele, muito menos escolher como uma carreira profissional”. Na mesma linha, A6 refletiu:

Há uma ideia de que as mulheres se interessam mais pela área de [ciências] humanas, enquanto os homens se interessam (e são melhores) em [ciências] exatas. Não acho que seja verdade, mas a repetição, consciente ou não, desse pseudofato deve criar bloqueios nas meninas na hora delas escolherem os cursos.

Essas falas indicam que elas têm consciência de que se situam fora do padrão cultural.

Após o primeiro ano de frequência ao curso, relataram não terem sido objeto de preconceito por serem mulheres ou presenciado episódios de discriminação de gênero. Referindo-se aos colegas, A5 notou que “as mulheres se envolvem mais que os homens. Proporcionalmente, participam mais dos projetos, e a atual presidente do centro acadêmico é uma mulher”. Entretanto, A3 notou que no trabalho de oficina do seu projeto as mulheres não eram “tão cobradas quantos os homens, por envolver tarefas em que é necessária maior força física”.

Quanto às perspectivas profissionais e oportunidades de trabalho na área, todas eram otimistas e desejavam um emprego fixo, em empresa privada ou pública, com renda estável. A1, A2 e A4, que ingressaram por cota, enfatizaram o desejo de pronto ingresso no mercado de trabalho e estabilidade financeira, ratificando o que apontam Huff e Koppe (2016, p. 8) sobre a carência de profissionais qualificados da área de CTEM ter despertado “o interesse das mulheres para profissões que oferecessem melhores oportunidades de emprego, com salários mais elevados”.

Nenhuma delas contemplava a carreira acadêmica, exceto A6, que revelou pretender “fazer mestrado e doutorado e depois seguir para a área de pesquisa”. A3 afirmou almejar a pós-graduação, mas não a docência: “Quando me formar, pretendo me especializar ou começar um mestrado na área que vou escolher e começar, juntamente, a trabalhar. Não pretendo seguir carreira de professor”. Mencionou altas aspirações profissionais e de contribuição social: “No futuro espero estar bem- -sucedida, em um cargo significativo, de liderança, gostar do meu trabalho, pesquisar e oferecer novas ideias e produtos para o bem-estar da sociedade”.

Planos de casamento e filhos foram lembrados por metade das alunas. A4 projetou “ter um emprego fixo, com renda estável, na área de pesquisa da Petrobrás ou em uma montadora automo- bilística. Pessoalmente me vejo com uma família formada e filhos”. A5 também incluiu casamento junto com sucesso profissional em seus planos:

Tenho grande interesse na área de Energias, espero estar trabalhando com algo relacionado a isso, ter um emprego fixo, ser uma pessoa bem-sucedida e respeitada profissionalmente. Pessoal- mente, espero constituir uma família e manter um contato frequente com meus pais e irmã.

E A6 declarou: “Espero casar ou morar junto. Atualmente eu não gosto muito de crianças... mas provavelmente vou ter um ou dois filhos”.

Ao longo de 2017 as alunas foram entrevistadas novamente e constatou-se que a turma se dispersara. Apenas A4 pretendia se formar no prazo de cinco anos - no período 2016.2 (de fato, no meio do ano de 2017, devido ao calendário de greve), o que não ocorreu. Das demais, A6 tinha migrado para o curso de Matemática no terceiro semestre de EM; A3 e A5 se atrasaram um ano, por terem participado do Programa Ciências sem Fronteiras, e A1 e A2 também se atrasaram, mas por perderem disciplinas.

Segundo entrevista com A3, ao longo do curso ela nunca teve uma professora de EM mulher, só uma de Matemática e outra de Química no primeiro ano e, posteriormente, outras de Ergono- mia e Segurança Industrial do Departamento de Engenharia de Produção. Contou que se sentiu incluída no curso, embora no início fosse vista como “Patricinha” (estereótipo que denota claramen- te uma jovem mulher frívola e anti-intelectual) e tivesse de provar que era boa estudante. Passou, então, a se vestir de forma convencionada como masculina e discreta, para contrariar o estereótipo.

A3 considerava o tratamento no curso igualitário, porém recordou um episódio marcada- mente sexista:

No período passado a gente foi apresentar um trabalho, justamente nós quatro, um grupo só de mulheres, a gente tirou a nota máxima, 9,5, foi aí que os meninos falaram que o professor estava babando a gente, sabe? Ele é um professor bem bruto, bem grosso... [risos].

Esse relato de que os colegas homens atribuem o sucesso das mulheres a favorecimento por parte de professores ou orientadores homens, com conotações sexuais implícitas, é comum e foi escutado na pesquisa mais ampla, inclusive de docentes mulheres relembrando suas experiências quando estudantes (Carvalho, 2017). Carvalho e Sobreira (2008) também destacaram, em suas pesquisas junto a estudantes de cursos de engenharia, a existência de uma desvalorização intelectual frente à condição de gênero das alunas.

Nessa altura do percurso formativo, tanto A3 quanto A4, que estava prestes a se formar, mudaram suas perspectivas profissionais e passaram a considerar a possibilidade de seguir carreira acadêmica. “A gente espera conseguir um programa de trainee logo, assim que se formar, se o mercado estiver bem, não do jeito que está, mas, se não, a gente pensa, eu e as outras, na carreira acadêmica também”. Todas querem fazer mestrado, porém fora, pois segundo A3: “pensamos que o curso daqui precisa de mais estímulo, professores melhores que estimulem e incentivem”. Ela fala da necessidade de ir à indústria antes de seguir a carreira docente, pois percebe que seus professores têm essa deficiência na relação entre a teoria e a prática.

No fim de 2017, A4 não havia conseguido colar grau e estava se preparando para fazer um concurso público para a carreira de Oficial de Inteligência da Polícia Federal; portanto, havia desistido da EM, seja na indústria, seja na carreira docente. A1 pretendia concluir o curso em meados de 2018 (período 2017.2), estava fazendo estágio e disse que iria procurar uma oportunidade de trainee após se formar. A2, A3 e A5 projetavam a conclusão para o final de 2018 (período 2018.1); A3 e A5 estavam fazendo estágio e A2 estava procurando estágio.

Segundo A2, as oportunidades de emprego após a conclusão estavam difíceis para todos, homens e mulheres, assim, a maioria dos concluintes buscava seguir na pós-graduação, estudar para concurso ou trabalhar em outro estado.

A6, que havia abandonado a EM e migrado para a matemática, informou não ter concluído o curso. Ao ser entrevistada, aos 23 anos, em setembro de 2017, por e-mail, ela relatou:

Transferi curso para a Unicamp por ser a melhor universidade do Brasil em Matemática. Fiz um ano feliz, consegui bolsa Fapesp de iniciação científica e intercâmbio para a França, mas acabei pegando asco do curso. No terceiro semestre do curso já não aguentava mais o ambiente castrador . . . e mudei do bacharelado pra licenciatura. Fiz a parte da Pedagogia e gostei, mas quando tive que voltar pros tópicos e pras matérias, professores, ambiente da Matemática, não aguentei mais e larguei o curso.

Apesar de sua afinidade com a matemática, A6 ressaltou seu desgosto com o ambiente acadêmico e os colegas, sobretudo a violência simbólica das piadas machistas também reportada, em relatos, nos estudos de Casagrande e Souza (2017) e Kohler e Ioshiura (2017).

Sempre tive facilidade nas disciplinas e em tudo que se tratava do curso, antes de eu detestá- -lo. Minhas notas sempre foram acima de 9. Mas ouvia piadinhas de que eu só tirava nota boa porque ficava com professor . . . . Comentários, quando meu orientador era homem, do tipo “ah, mas ele só tem orientanda mulher, por que será?”. E quando a minha orientadora era mulher “ela é feminista, só pega orientanda mulher”. Nada nunca era porque eu era boa, era tudofacilitado” seja por sexo seja por viés político. O trabalho ocupa muito tempo da vida adulta e eu ficava apavorada de ter que ficar, no futuro, 8h/dia num ambiente com pessoas daquele tipo.

A6 relatou que estava dando aulas de Francês e pensando em fazer vestibular para o curso de Dança. Seus planos profissionais e pessoais passaram a ser contraculturais e contra-androcêntricos:

Quero ser doula e trabalhar com arteterapia, tirar tarô, ser astróloga e professora (não necessariamente ao mesmo tempo). Cuidar do meu corpo, aprender curas naturais, ter filhas/filhos, cuidar do meu orixá, fazer parte de um grupo de coco só de mulheres, viajar bastante, aprender outras línguas, ter um relacionamento estável não abusivo.

Acompanhando as ex-alunas

Em julho de 2021 as jovens engenheiras mecânicas egressas do curso de EM da Ifes pesquisada foram procuradas mais uma vez, para coleta de informações sobre sua inserção profissio- nal e planos futuros. A Tabela 2 resume as informações obtidas, por WhatsApp, de quatro delas, já que A6 desistiu da EM, e não foi possível localizar A4, nem por meio das colegas, nem das redes sociais.

Tabela 2 Inserção laboral das egressas de Engenharia Mecânica 

Egressa Conclusão Inserção laboral Pós-graduação Emprego atual Planos futuros
A1 2018.2 Fora do campo Especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho (Unifip) Professora de Matemática e Física em escola pública Concurso para Engenharia de Segurança
A2 2019.1 Estágio no Laboratório de inovação da Ifes Mestrado em EM - termofluidos (UFPB) - Empreender em startup ou se engajar como trainee
A3 2019.2 Estágio em indústrias de plástico e termoelétrica Mestrado em EM - geração de energia (Unicamp) Autônoma em empresa de projetos de cogeração Pesquisar e implementar em geração de energia. Doutorado
A5 2019.2 Estágio em indústria de plástico Especialização em Engenharia de Operações (UFRN) Coordenadora de produção em indústria de plástico Continuar na indústria

Fonte: Elaboração das autoras com base em entrevistas de acompanhamento realizadas em julho de 2021.

A1 havia graduado em 2018.2 (segundo semestre de 2018), A2 em 2019.1 (primeiro semestre de 2019); e A3 e A5 em 2019.2 (segundo semestre de 2019). As quatro engenheiras mecânicas, portanto, concluíram o curso num período de sete a oito anos após o ingresso.

Sobre as primeiras experiências de inserção no mercado de trabalho da EM, os estágios foram decisivos, mas não estavam disponíveis para todas. Apenas A3 e A5 estagiaram, ambas em indústria de plástico local, onde A5 permaneceu e foi promovida a coordenadora de produção, cargo que exercia no momento do contato. Já A3 fez outro estágio em indústria termoelétrica, também local, e posteriormente foi indicada pelo seu gerente para trabalho em empresa paulista de projetos de cogeração, que realizava, no momento da entrevista, como autônoma, em contrato temporário de dois meses.

A2 fez estágio no laboratório de inovação da Ifes onde cursou a graduação e então fazia mestrado em termofluidos na mesma instituição. Ainda não trabalhava.

A1 não conseguiu emprego em EM, então resolveu procurar trabalho em outras áreas. Atuava como professora de Física em uma escola estadual. Indagada sobre a satisfação com a atividade, respondeu:

Depende do aspecto. Me surpreendi ao descobrir que realmente gosto de ensinar, gosto da escola e da sua importância para a comunidade. Cresci muito ao me deparar com uma realidade totalmente diferente da que eu conhecia. Mas não estou satisfeita com o financeiro, e infelizmente não existe perspectiva de crescimento como professora. Mesmo os cargos mais elevados hierarquicamente ganham pouco ou nada a mais. Consegui o emprego quando uma amiga, logo que soube que eu estava precisando de um trabalho, disse que várias escolas públicas estavam sem professores de Matemática e Física. Como eles estavam precisando com urgência, já que tinha feito um tempinho que o ano letivo havia começado, me contrataram mesmo eu não tendo a licenciatura.

A3 também procurou trabalho por cinco meses, sem sucesso, e resolveu fazer mestrado em EM. A pós-graduação integra a trajetória das quatro egressas, já que, além de A3 e A2, que fazem mestrado, A5 e A1 fazem especialização; a primeira, em Engenharia de Operações, e a segunda, em Engenharia de Segurança do Trabalho.

Quanto aos planos futuros das jovens engenheiras, A2 almeja “empreender em startup ou se engajar como trainee após a conclusão do mestrado. A3 quer trabalhar e continuar fazendo pesquisa, inclusive fazer doutorado. Posteriormente deseja “criar programas de parcerias/incentivos para implementação no cenário brasileiro (através do governo e empresas privadas) com a minha linha de pesquisa - ainda pouco explorada no mundo”. Já A1, que está lecionando na educação básica, portanto, fora do campo da EM, pretende “prestar concurso para Engenharia de Segurança, cargo que é mais comum de encontrar concurso do que Engenharia Mecânica”.

A5 pretende “permanecer na indústria de plásticos e continuar me desenvolvendo e evoluindo como profissional”. Indagada sobre sua satisfação profissional e percepção sobre as relações com chefes, colegas e subordinados, em um contexto em que as mulheres são minoritárias, ela respondeu:

Estou satisfeita sim. Cerca de um sexto dos funcionários são mulheres. A relação é amigável, embora em determinados momentos, em que preciso me impor para as tomadas de decisões que cabem à minha função, percebo que as ações/reações não são as mesmas se fosse um homem.

Das cinco alunas que concluíram Engenharia Mecânica, portanto, apenas uma (A5) se inseriu no mercado de trabalho da engenharia, particularmente, na indústria, contrapondo-se à segregação de sexo/gênero nas engenharias, segundo a qual os homens se inserem majoritariamente no setor industrial e as mulheres, em setores tradicionalmente femininos, como a administração pública (Carvalho & Sobreira, 2008).

Finalmente, uma última questão pessoal completou as entrevistas: casaram e/ou têm fi- lhos/as? Todas permanecem solteiras e sem filhos/as.

Conclusão

Neste texto, exploramos as trajetórias de seis jovens mulheres que passaram pelos filtros de gênero e chegaram ao curso de Engenharia Mecânica de uma Ifes nordestina, um dos mais masculinos dentre as engenharias. Em 2012 elas ingressaram com altas aspirações de emprego na indústria e de realização profissional e financeira. Uma delas “vazou” no caminho, e cinco concluíram o curso em 2019 e 2020, entre sete e oito anos após o ingresso.

Procuradas em 2021 para verificar sua inserção no mercado de trabalho, das cinco graduadas, apenas uma logo se empregou em indústria de plástico local: começou como estagiária e passou a coordenadora de produção. As demais ainda não atuavam como engenheiras ou faziam pós- -graduação: uma (não localizada na última etapa da pesquisa) pretendia fazer concurso para a Polícia Federal, portanto, provavelmente, não se inseriu no campo; outra se tornou (temporariamente) professora, por falta de oportunidade de emprego na EM; duas faziam mestrado (à espera de emprego); e duas faziam especialização (a que estava atuando como professora e a que trabalhava na indústria). Das quatro entrevistadas em 2021, nenhuma tinha casado ou tido filho/a, o que indica prioridade à formação e ao ingresso profissional.

Estudos longitudinais sobre formação e ingresso no mercado de trabalho, ou de acompa-nhamento de trajetórias de estudantes e de egressos de cursos superiores, não são comuns no Brasil. Embora a evasão nas engenharias seja elevada, e as próprias alunas entrevistadas tenham reconhecido que as oportunidades de emprego estavam difíceis para todos, homens e mulheres, o acompanhamento de alunas e egressas de Engenharia Mecânica tem especial relevância por se tratar de uma minoria de mulheres em um campo tradicionalmente masculino. Entretanto, se, por um lado, o reduzido número de sujeitos acompanhados (apenas seis alunas) e a ausência de abor- dagem comparativa (em relação à trajetória de alunos) impliquem limites, por outro lado, a abordagem exploratória deste estudo pode contribuir para se pensar a inclusão de mulheres nas engenharias em direção à paridade de sexo, eliminando-se os filtros de gênero ao longo da educação básica, minimizando-se os “vazamentos” na formação superior, e transformando-se a cultura homossocial masculina do curso e do ambiente de trabalho.

Como se sabe, “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” é um dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) - Agenda 2030, proclamados em 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU), precisamente o ODS 5.4 Articulada à Agenda 2030, em março de 2015, a ONU Mulheres lançou a iniciativa global “Por um planeta 50-50 em 2030: um passo decisivo pela igualdade de gênero”, à qual o Brasil aderiu.5 Nessa direção, as políticas supranacionais têm enfatizado o estímulo para as meninas estudarem CTEM, a necessidade de promover a participação e o avanço das mulheres nos setores tecnológicos, e a mudança dos estereótipos de gênero.6

Um planeta 50/50 requer inclusão da perspectiva de gênero em todas as políticas e práticas educacionais, formativas, docentes, científicas e laborais/profissionais, como estratégia para efetivar a paridade de sexo. Em conformidade, a Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (ENCTI) 2016-2019, lançada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), registrou o compromisso brasileiro de adotar políticas e programas específicos nas instituições científicas para a “promoção da paridade . . . a fim de reduzir as desigualdades e combater a discriminação” (MCTI, 2016a, p. 55). Além disso, propôs a redução de disparidades no desenvolvimento das carreiras de CT&I e a transversalidade da abordagem de gênero nas pesquisas, sob o argumento de que “garantir e incentivar a participação plena e efetiva das mulheres nas Ciências e assegurar a igualdade de oportunidades na área de CT&I” traz “benefícios diretos para a sociedade como um todo” (p. 57). A ENCTI 2016-2022 manteve o compromisso (MCTI, 2016b).

Ao mesmo tempo, a associação entre qualidade educativa e igualdade, inclusive de gênero, tem sido reconhecida em políticas supranacionais e nacionais (Unesco, 2003; Usaid, 2008) e é lastro para as políticas de CT&I. De acordo com Donoso-Vázquez et al. (2014), a perspectiva de gênero constitui um dos pilares fundamentais de uma universidade com compromisso social, a serviço da cidadania e de uma sociedade democrática e inclusiva, pois possibilita adotar tanto uma epistemologia feminista, que visibilize e reconheça o conhecimento desqualificado pelas disciplinas acadêmicas tradicionais de viés androcêntrico, quanto uma pedagogia feminista/emancipatória, que acolha a diversidade e dê voz a indivíduos e grupos deslegitimados pela tradição acadêmica.

Vale lembrar que o esforço para atrair mais meninas para a área de CTEM deve começar desde a educação infantil e continuar por toda a educação básica, requerendo políticas específicas de incentivo até a educação superior, a exemplo das recentes chamadas do CNPq, de 2013 e 2018, no âmbito do Programa Mulher e Ciência, intituladas “Meninas e Jovens Fazendo Ciências Exatas, Engenharias e Computação”, visando a apoiar projetos voltados à inclusão de jovens mulheres em CTEM. Como apontam Watanabe et al. (2015, p. 59), para atenuar o primeiro filtro de gênero, são estratégicas as “iniciativas junto às estudantes do Ensino Médio no sentido de impulsionar e aumentar a procura por estas modalidades de curso de graduação”.

Na educação superior, a mudança cultural, curricular e pedagógica para superar a raridade das mulheres em CTEM, informada pela perspectiva de gênero, é decisiva para a qualidade da experiência formativa de todos os alunos e alunas, com “adoção de estratégicas pedagógicas que despertem e estimulem o interesse dos/as estudantes de graduação . . . reduzindo os índices de evasão” (Watanabe et al., 2015, p. 59).

Em uma das entrevistas, realizada em 2017, A3 disse que a falta de entusiasmo diante da conclusão do curso e ingresso no mercado de trabalho que percebia entre as colegas não era decorrente somente do momento de crise econômica pelo qual passava o país, mas também da qualidade da experiência formativa, por sua vez igualmente decisiva para o empoderamento das jovens engenheiras nas relações de trabalho, como sugere o depoimento de A5, a coordenadora de produção na indústria de plástico, ao demonstrar consciência das relações de gênero nas suas relações laborais.

Finalmente, cabe ressaltar a importância da presença de docentes mulheres no curso de Engenharia Mecânica para inspirarem a apoiarem as discentes a persistirem no curso e formarem suas próprias redes de pares. Como indica a literatura, as redes são vitais para o empoderamento coletivo ao longo da formação e no ingresso e atuação no mercado de trabalho (Burger et al., 2010; Cooper et al., 2010).

Em conclusão, esperamos que os dados aqui apresentados, embora restritos a um pequeno número de sujeitos e a um único curso, instituição formadora e região, possam dialogar com os estudos brasileiros sobre gênero, mulheres e engenharias, nos âmbitos formativo e laboral, considerando a diversidade regional, institucional e de cursos, e os desafios da inclusão feminina em um mercado de trabalho incerto e desigual.

1Em analogia ao uso ciências “duras”.

2O projeto original previa a abordagem de estudantes em períodos iniciais e finais do curso.

3Além da caracterização dos sujeitos, o questionário enfocava motivos da escolha do curso, percepção da minoria feminina nesse curso, experiências iniciais e perspectivas após a conclusão.

Agradecimentos

A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo 471892/2014-9, e bolsa de produtividade.

Disponibilidade de dados

Os conteúdos poderão estar disponíveis no momento da publicação do artigo.

Referências

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Recebido: 14 de Outubro de 2021; Aceito: 23 de Fevereiro de 2022

Nota sobre autoria

Maria Eulina Pessoa de Carvalho: fez a revisão de literatura nacional e internacional, delineou a metodologia, participou da abordagem empírica e da revisão final. Mayanne Júlia Tomaz Freitas: fez a revisão da literatura nacional, levantou os dados de matrícula, elaborou o gráfico, participou da abordagem empírica e da revisão final.

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