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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.52  São Paulo  2022  Epub 04-Oct-2022

https://doi.org/10.1590/198053148644 

EDUCAÇÃO BÁSICA, CULTURA, CURRÍCULO

ESCOLHA DE SABERES A ENSINAR NA ESCOLA INDÍGENA: DOIS CASOS GUARANI EM SÃO PAULO

JEPORAVO ARANDU NHEMBO’E: NHEMBO’EAPY NHANDE’VA’E SÃO PAULO PY GUA

ELECCIÓN DE SABERES PARA ENSEÑAR EN LA ESCUELA INDÍGENA: DOS CASOS GUARANÍES EN EL ESTADO DE SÃO PAULO, BRASIL

CHOIX DES SAVOIRS À ENSEIGNER DANS LES ÉCOLES INDIGÈNES: DEUX CAS GUARANI DANS L’ÉTAT DE SÃO PAULO, BRÉSIL

Elie Ghanem I 
http://orcid.org/0000-0001-9440-3940

Fabio de Oliveira Nogueira da Silva II 
http://orcid.org/0000-0001-8994-6123

Diana de Paula Pellegrini III 
http://orcid.org/0000-0002-1014-9082

IUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil;

IIUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil;

IIIUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil;


Resumo

Como se escolhem os saberes que circulam nas escolas indígenas? Essa pergunta serve a iluminar as formas de poder local e extralocal que definem os sentidos coletivos da educação em comunidades locais. A pesquisa apresentada neste artigo enfrenta esse problema. Fizemos observação direta de duas escolas em aldeias guarani de São Paulo e realizamos entrevistas e conversas informais com seus profissionais e lideranças. Os resultados são descrições da influência de condutas governamentais, concepções docentes e preferências comunitárias sobre a conformação do trabalho escolar, em que se destaca a atuação dos professores indígenas: estes pontualmente configuram práticas de autonomia que, na perspectiva de pequena escala da lógica de inovação educacional, superam um molde colonialista.

Palavras-Chave: ESCOLA INDÍGENA; GUARANI; INOVAÇÃO; CURRÍCULO

Resumo1

Mbaeixa tu ojeporavo arandu regua oiko iny avã nhembo’e nhande py? Ko porandu ma omoenxakã iny mbaexapa nhembo’e mbaraete oaxa omomba’rupi vy ma jogueroguata nhembo’e regua rupi. Kova’e kuatia para ma tekoa oexauka kova’e porandu regua. Rojapo reve mokoi tekoa nhembo’e apy, roexa guarani rekoa apy S.P. py. Ha’egui rojapo avi roporandu rojogueroayvu ombo’eva’e kuery reve ha’egui hu’vixa kuery reve. Ko ipara pa mavy jaexa jurua ruvixa kuery ojapo va’ekue ombo’eva’e kuery oikuaa aru pi ha’egui nhande va’e kuery oipotaa’arami ko nhembo’e ko mbaeapo nhemboeapy, ha’evy ma ojekaa rai guarani ombo’eva’e kuery; ha’e va’e rive’i rupi mã ojekaa mba’eapo regua ete ha’e vy ma petei anhetenguá aynguigua nhembo’earupi, imbaraete ve ju etava’e kuery regua gui.

Key words: NHEMBO’EATY; NHANDE’VA’E; NHEMOI PORÃ; NHEMBO’E KUATIA PARA REGUA

Resumen

¿Cómo son elegidos los saberes que circulan en las escuelas indígenas? Esta pregunta sirve para iluminar las formas de poder local y extralocal que definen los sentidos colectivos para la educación en comunidades locales. La investigación presentada en este artículo enfrenta este problema. Hicimos observación directa de dos escuelas en aldeas guaraníes de São Paulo y realizamos entrevistas y conversaciones informales con sus profesionales y líderes. Los resultados son descripciones de la influencia de las conductas gubernamentales, las concepciones docentes y las preferencias comunitarias en la conformación del trabajo escolar, en las que destaca la acción de los docentes indígenas: ellos crean puntualmente prácticas de autonomía que, en la pequeña escala propia de la lógica de la innovación educativa, superan un molde colonialista.

Palabras-clave: ESCUELA INDÍGENA; GUARANÍ; INNOVACIÓN; CURRICULUM

Résumé

Comment choisit-on les savoirs qui seront enseignés aux écoles indigènes? Cette question peut éclairer les formes de pouvoir local et extralocal qui définissent les sens collectifs de l’éducation dans des communautés locales. Les recherches présentées dans cet article affrontent ce problème. Deux écoles des collectivités guarani de l’état de São Paulo ont été étudiées par moyen d’observations directes, d’entrevues et de conversations informelles avec leurs professionnels et dirigeants. Les résultats décrivent l’influence des comportements gouvernementaux, des conceptions des enseignants et des préférences de la communauté sur la configuration du travail scolaire, mettant en évidence l’action des enseignants indigènes : ceux-ci façonnent ponctuellement des pratiques d’autonomie qui, dans la petite échelle qui est propre de la logique de l’innovation éducationnelle, surmontent le modèle colonialiste.

Key words: ÉCOLES INDIGÈNES; GUARANI; INNOVATION; CURRICULUM

Abstract

What social processes determine the choice of the knowledge that circulates in indigenous schools? This question may shed light on the modalities of power that contribute to forging collective meanings of education in local communities. The article presents research aimed to answer this question. We made direct observation of two schools in Guarani territories in SP and conducted interviews and informal conversations with their teachers and leaders. The results describe the influence of governmental conduct, teaching conceptions, and community preferences on the conformation of school work. The performance of indigenous teachers stands out, who produce circumscribed practices of autonomy that, in the small-scale perspective of the logic of educational innovation, overcome the colonialist norm which historically shaped schools for indigenous people.

Key words: INDIGENOUS SCHOOL; GUARANI; INNOVATION; CURRICULUM

Neste texto se apresentam resultados parciais de uma linha de pesquisa interdisciplinar, radicada na sociologia da educação, dedicada a identificar aspectos de superação do caráter colonialista da escolarização para indígenas no Brasil.2 Focalizando os sujeitos e processos da escolha dos saberes a ensinar, comparamos duas escolas em territórios dos grupos guarani no estado de São Paulo. Uma é a Escola Estadual Djekupe Amba Arandy, localizada na Terra Indígena (TI) Jaraguá, município de São Paulo. A outra é a Escola Estadual Indígena Txeru Ba’e Kua-i, na TI Ribeirão Silveira, município de Bertioga, litoral do estado.

Projetos anteriores de nossa equipe no Alto Rio Negro (AM) validaram a hipótese de que superações da escolarização colonialista vêm ocorrendo no que diz respeito, por exemplo, à convergência entre saberes ensinados e projetos de futuro enunciados nas comunidades (Abbonizio, 2013; Pellegrini, 2014; Ghanem, 2016) - embora limitadas por padrões uniformizadores das secretarias de educação. Tais fenômenos vêm sendo interpretados como um cenário de superações do molde escolar colonialista na escala das práticas locais abrangidas pela “lógica da inovação educacional” - um ângulo teórico de Ghanem (2018) que almeja combinar a compreensão dos avanços situados e o exame dos obstáculos próprios dessa ordem de iniciativas.

Mantendo a perspectiva da detecção de aspectos de superação do colonialismo na escola indígena, a presente etapa de pesquisa focaliza os atores e condições que intervêm sobre a escolha de saberes a ensinar. Buscando maior alcance comparativo, abrangemos comunidades baniwa (AM), guarani-kaiowa (MS) e guarani (SP). Aqui, se analisam os casos guarani.3 Buscamos identificar quem escolhe os saberes postos em circulação nas escolas e como isso se dá em termos de condições de autonomia (liberdade, informação e influência comunitária). Fizemos observação direta dos ambientes escolares e buscamos declarações dos profissionais das escolas e de lideranças, por meio de entrevistas gravadas e de muitas conversas informais, na opção metodológica do “pesquisador conversador” (Spink, 2008).

A seguir, relacionamos o problema desta pesquisa com os estudos de inovação educacional, e o situamos nos debates sobre currículos e regimes de conhecimento em escolas indígenas. Posteriormente exporemos para cada escola as informações recolhidas sobre: as dificuldades postas à sua atuação; a influência das comunidades na orientação do seu trabalho; os objetivos colocados para a sua existência; e as práticas escolares que nelas ocorrem.

Por que falar em inovação nas escolas indígenas?

Ao enquadrar certos esforços das escolas pesquisadas como casos de inovação, adotamos a definição de inovação educacional como uma das lógicas de ação que podem reger as iniciativas de alterar práticas educativas - escolares ou não - em determinado contexto, num sentido proposto por Ghanem (2018) desenvolvendo ideias de Torres (2000).

Contrastando com a “lógica da reforma” (que caracterizaria as alterações educacionais de grande porte, concebidas e gerenciadas por estruturas governamentais ou supranacionais), a “lógica da inovação” descreveria o movimento típico das iniciativas de pequena escala que visam a alterar processos educacionais na dimensão local. Não precisam ser práticas inéditas, bastando que contrariem as costumeiras em dado lugar ou grupo, usualmente seguindo processos de concepção e execução em que o protagonismo e a liberdade docente são centrais.

Assim, evitando certas trilhas comuns no trato dos heteróclitos fenômenos chamados de “inovação” em educação4 - por exemplo, centrar demasiadamente o enfoque nos tipos de resultado obtido; ou não discriminar os tipos de atores que podem originar iniciativas de alteração educacional; ou ainda considerar excessivamente os aspectos de inovação técnica e tecnológica, esgotando neles o alcance do termo -, a conceituação de Ghanem interessa-se antes pelo caráter endógeno, criativo, empírico e mobilizador de sua realização mesma.

Demarca, também, a ambivalência constitutiva da lógica pela qual tais práticas tipicamente se movem: relevantes por sua alta pertinência local, inventividade e potencial agregador, ficam contudo restritas à pequena escala e têm baixa visibilidade, pouca articulação e fraca sustentação institucional e financeira, apoiando-se em forte voluntarismo e vendo-se, por isso, muito propensas à efemeridade ou intermitência.

Além de esbarrarem nessas inerentes dificuldades, tais exercícios se chocam, por seu próprio aspecto singular e desviante, contra as lógicas oficiais de intervenção educacional (“de reforma”) que, operando “de cima para baixo”, direcionam recursos públicos e provêm firme sustentação e visibilidade a certas linhas de ação concebidas e implementadas sob fortes tradições hierárquicas, centralistas, burocráticas e padronizadoras.

As escolas indígenas, “presas entre duas lógicas”, exemplificam o impasse estabelecido por Torres (2000), já que nenhuma das duas modalidades de ação pode produzir a alteração almejada pelos atores. Ghanem (2018) chama de “lógica da mudança” aquela que se suporia capaz de levar a cabo a alteração sistêmica desejada em educação (ou de deliberadamente direcionar e dosar a mudança veloz que é a norma das sociedades contemporâneas).

Se a Colonialidade é parte fundante dos grandes esquemas culturais da Modernidade (Ballestrin, 2013), superar a primeira é, no limite, a mesma coisa que superar estes últimos. A superação do colonialismo na escola diz respeito, portanto, a um horizonte de mudança sistêmica em educação - que, em última instância, coincide com a mudança social em nível histórico- -cultural. Mas a pesquisa com escolas indígenas vem indicando superações em termos de inovação e de reforma, alcançando sucessos caracteristicamente circunscritos às potencialidades e limitações dessas respectivas lógicas.

Saberes escolares, saberes indígenas e formação da criança

A escolarização colonialista historicamente impingida aos indígenas nas Américas adotou, sob certas variações (Oliveira & Nascimento, 2012), os mesmos conjuntos eurocêntricos de saberes proposicionais, que prevalecem como um tácito “currículo oficial” na grande massa das escolas brasileiras não indígenas. Muito embora tal seleção alegue legitimar-se pelo ideal republicano da popularização do patrimônio de conhecimentos da ciência, a própria escola representa, organiza e expõe tais saberes como verdades estáticas, em vez de frutos do questionamento científico permanente. Ao ser aplicada indistintamente sobre numerosos territórios, a ementa fixa desses tópicos universalizantes, descolados de seus processos de origem e revisão, encontra difícil pertinência local e inspira um rarefeito engajamento intelectual de docentes e estudantes.

Reagindo à hegemonia desse padrão, a inclusão de saberes ditos “tradicionais” entre os objetos de conhecimento focalizados pelas escolas indígenas - medida muito preconizada no que se veio a chamar de “educação escolar indígena diferenciada” (Grupioni, 2008, p. 48) - tem se mostrado uma via igualmente incompleta ou ambígua de reconhecer legitimidade e importância aos conhe- cimentos autóctones.

Em primeiro lugar, porque essa solução também pode atender a agendas externas, como as influências e expectativas de aliados, formadores e assessores. Em segundo lugar, porque também está sujeita a “armadilhas”, como adverte Gallois (2013), já que tais saberes emanam de regimes próprios de produção, aprendizagem e circulação, com seus critérios de autoridade e verdade, procedimentos determinados e definição prévia de quem os pode transmitir, como e a quem. Quando escolarizados, passam por transposições didáticas que (daquela mesma maneira que fazem com saberes científicos) os autonomizam em relação a tais regimes de origem e sentido. Note-se que o conhecimento dos Guarani sobre plantas, por exemplo,

. . . implica um saber especializado e vinculado a distinções sociais que vão de encontro à proposta de se fazer um inventário, com o registro em cartilha e vídeo . . . . Como disse um dos tamõi [o mesmo que xamoῖ], “é preciso rezar o remédio, senão não funciona”. (Macedo, 2009, p. 140).

Com efeito, a formação da criança nas sociedades ameríndias se dá numa variedade de modos muitas vezes incompatíveis com os escolares. Cohn (2000), recusando para o exame dos fatos indígenas um raso entendimento da socialização como inculcação sobre gerações imaturas que emulam a vida adulta, descreveu como as crianças kayapó-xikrin não só recebem cuidados e ensinamentos, mas também desempenham papéis ativos pelos quais conformam sua própria ins- crição no mundo social.

Em procedimentos de formação desse tipo, seria indispensável haver liberdade das crianças para circular e conviver cotidianamente, entre pares e com outras gerações. Subtraindo-as dos períodos e espaços em que aprenderiam nos contextos consuetudinários, o que o modelo escolar poderia fazer em favor de conhecimentos cuja aprendizagem situada foi assim abdicada?

Com preocupação semelhante, entre os Mbya, Testa (2008, p. 293) defende que, “em vez de fazer um inventário dos modos de vida ou dos saberes como conjunto de características e produtos culturais”, a discussão sobre o conhecimento nativo “[acompanhe] a realização dos processos de conhecer”. A autora começa por “[levar] a sério a ideia frequentemente repetida pelos Mbya de que a vida de cada um é seu caminho de buscar e aprender” - na qual reverbera a reconhecida “importância que os Guarani dão à mobilidade” enquanto “busca produtiva de lugares e relações” (-guatá, “caminhar” e, mais especialmente, relacionar-se com a alteridade ao caminhar) - e conclui que “a transmissão de conhecimentos e a aprendizagem também podem ser abordadas como processos de deslocamento e comunicação entre espaços e interlocutores diferentes”.

Estudar o conhecimento dos Mbya, portanto, “não se restringe ao levantamento do que se sabe, mas significa explorar a questão de como se sabe e conhecer os caminhos que dão acesso a esses saberes” (p. 293). Testa (2008) sustenta que a produção de conhecimento nesses grupos reside justamente nas práticas xamanísticas de formação de parentesco e nos cuidados tomados em torno de nascimentos, doenças, mortes, viagens, etc., depreendendo que,

. . . a não ser que insistamos em reduzir o conhecimento à educação escolar, os processos de produção, aquisição e transmissão de conhecimento estão no centro do cotidiano gua- rani de caminhar entre e se relacionar com parentes, outros humanos e não-humanos. (2008, p. 295).

Tal ênfase mbya em um sentido relacional do conhecimento implica que “as pessoas não possuem definitivamente os conhecimentos que adquirem, antes [os] acessam continuamente para colocá-los em circulação”. Por isso, prestigia-se “não aquele que possui muito conhecimento, mas aquele que demonstra a capacidade de acessá-lo e mobilizá-lo, seja na cura, na liderança de um grupo ou no aconselhamento” (Testa, 2008, p. 297).

A perspectiva se coaduna com o sentido êmico que Nogueira da Silva (2015, p. 18) recolheu para o termo “conhecimento” no português dos Mbya: uma “capacidade de enfrentamento a agentes causadores de males espirituais”.

Esse autor testemunha que um importante local de aprendizagem do modo de ser guarani é a opy (casa de reza), local de reuniões espirituais diárias, cantos e dança. As crianças cantam e os jovens aprendem a pedir proteção às divindades, ou sua intermediação para pacificar relações com as subjetividades não humanas.

Também no cotidiano das famílias e núcleos se aprende sobre os cultivos, a convivência, as relações sociais e os assuntos espirituais. Os sonhos são meios de comunicação de qualquer pessoa com as divindades, sendo habitual contá-los aos parentes pela manhã, à beira da fogueira e preparando ka’a (chimarrão), de modo que os velhos podem interpretá-los e tomar decisões. Igualmente o uso do cachimbo (petỹgua), o canto-reza (poraei) ou o preparo de remédios (poã) envolvem conhecimentos e práticas xamânicas de ampla circulação.

No treinamento dos xondaro,5 aprendem-se a destreza física, o trabalho coletivo e as defesas diante dos perigos oferecidos pelos jurua (não guarani, “branco”), por outras etnias ou por agentes não humanos. Recebem-se orientações, tecem-se laços solidários para além do parentesco e visitam- -se outras aldeias, para danças e colaboração nos rituais.

Outras ocasiões de aprendizado são as reuniões de lideranças,6 ou que tratam de demarcação, ou com não indígenas, para as quais jovens são chamados e instados a ouvir e observar.

A Terra Indígena Jaraguá e o Tekoa Ytu

A TI Jaraguá7 teve demarcação homologada em 1987, com apenas 1,7 hectare: é a menor terra indígena do Brasil. Somente em 2015 se reconheceu uma área ampliada de 532 hectares (5,32 km2), ainda exígua, que aguarda homologação.

Segundo o Relatório de Demarcação de 2013, habitavam a TI 586 pessoas. Parte da área é sobreposta ao Parque Estadual do Jaraguá, mas seu entorno tem forte adensamento urbano. Abriga seis tekoa (“aldeias” na tradução usual, ou “local onde se vive o modo de vida [guarani]”), denominados Ytu, Pyau, Itakupe, Yvy Porã, Itavera e Itaendy. A Escola Djekupe Amba Arandy se situa no Tekoa Ytu.

Testa (2008, p. 294) percebe que, em grupos mbya,

. . . a eventual cisão de um grupo em relação a outro, que pode resultar na constituição de um novo tekoa no interior de uma mesma terra indígena ou em outro local, como característica da organização social mbya, para a qual a dinâmica fluida das relações é altamente produtiva.

Mas a concentração em uma área exígua tem a capacidade de potenciar particularidades e divergências, resultando em dificuldades na construção de consensos sobre o conjunto do território. Portanto a proximidade não torna as relações entre os moradores do Tekoa Pyau e do Tekoa Ytu - os dois tekoa principais, situados no maior conglomerado da TI, divididos apenas por uma rua e apelidados, respectivamente, “aldeia de cima” e “aldeia de baixo” - muito mais fortes do que as estabelecidas com outras aldeias onde haja conexões de parentesco mais diretas.

Há uma opy separada em cada um desses dois tekoa contíguos, que comumente se polarizam em conflitos de variável intensidade (Nogueira da Silva, 2015, p. 69). Mas a independência entre as vidas cotidianas dos tekoa e dos núcleos em termos políticos, econômicos e cerimoniais é atravessada por relações de parentesco e de xamanismo.

A diminuta área inviabiliza a produção de alimentos e obriga o abastecimento por meio da compra. A renda advém do artesanato comercializado, de aposentadorias e programas sociais, e dos salários de quem trabalha no posto de saúde e nos equipamentos escolares. Roças de 4 m2 a 6 m2 visam apenas a manter variedades tradicionais, usadas como dádivas entre parentes e aliados e no ensino das crianças.

Em nossa equipe de cinco pesquisadores/as, um já dedicava dezesseis anos a estudos sobre os Mbya do Jaraguá, em especial do Tekoa Pyau. Apoiados/as nessas consolidadas relações, realizamos trabalhos de campo durante o segundo semestre de 2019.

Expusemos inicialmente a proposta de pesquisa em uma reunião na opy do Tekoa Ytu, a poucos metros da construção principal da escola, com os docentes e estudantes do período matutino.

À porta da casa de reza, um professor jurua dizia se incomodar com a fumaça dos petỹgua e da fogueira dentro do recinto, condenando o uso dos cachimbos e dizendo-se “antitabagista”. Manifestou contrariedade com a indiferença dos pais dos estudantes em relação à escola: não incentivariam a frequência e não veriam a importância dos estudos para obter empregos.

A Escola Estadual Indígena Djekupe Amba Arandy

A escola é expressamente identificada como um domínio da família extensa que esteve à frente da sua reivindicação, e que está até hoje envolvida em sua operação. Seja pela ocupação dos postos e gestão dos recursos, inclusive da merenda, seja pela concentrada oportunidade de interlocução com não indígenas, tal preponderância é fator de projeção dessa parentela na vida da aldeia. A hegemonia do grupo dá o direcionamento pedagógico da escola, e o torna alvo de críticas por parte de outros grupos internos.

O corpo discente sabe a língua portuguesa, utilizada corriqueiramente no ambiente escolar e em comunicação fluente com os jurua. Mas, fora da escola e da presença destes últimos, praticam mais a língua guarani.

Dificuldades

O estabelecimento foi inaugurado em 2000, desvinculando-se de uma escola estadual jurua. Os alunos vêm dos seis tekoa. Os do Itakupe, mais distante, não estavam comparecendo por falta de transporte. Estimaram que cinco crianças estudavam em escolas jurua, fora do território.

Mesmo acreditando que “tudo o que tem no meio ambiente dá para utilizar como parte de aprendizagem”, um docente lamentou a falta de “uma estrutura boa”, com computadores e salas de aula maiores para os já cerca de 200 estudantes. Não havia um cômodo para livros e materiais. As instalações de um antigo centro cultural foram divididas por arquivos de aço para criar mais quatro “salas”, só duas com lousa.

Apesar dessas limitações, dois professores afirmaram conseguir desenvolver bem o seu trabalho, um dos quais disse acordar animado com as ideias para as aulas. Para ele, o governo estadual poderia oferecer um curso de especialização para professor de educação indígena diferenciada.

Outra docente apontou a falta de professores e gestores indígenas com mais “propensão para a cultura”, “mais nhandereko8 indígena no coração”, que seriam mais fortes em debater com o jurua, recusar o material enviado e decidir trabalhar “o nosso jeito de ser indígena”. Para isso, seria necessário que as lideranças se interessassem também pela escola, e que o corpo docente pedisse mais o apoio delas, o que estaria dificultado pela divisão com a aldeia de cima. Ela afirmou serem “colonizados, ainda, na educação”.

Influência da comunidade

Tinha havido “reunião geral” da escola no início do ano, decidindo-se que a língua guarani só fosse ensinada a partir do 5º ano, e que as aulas do 1o ano fossem passadas da manhã para a tarde. Na “reunião de pais” bimestral, os professores conversavam sobre cada aluno, mas não discutiam outras questões da escola. Embora as reuniões sejam abertas à comunidade, “sempre vem metade [dos pais] ou quase ninguém”. Um professor acredita que os pais e mães têm “um pouco de vergonha” e afirmou que eles e as lideranças sempre são chamados para discutir e saber se estão satisfeitos com “os conteúdos que a gente passa”.

Embora os alunos de educação infantil do Centro de Educação e Cultura Indígena (Ceci), equipamento municipal, localizado na aldeia de cima, se dirijam para a matrícula na escola estadual, não há interação entre os dois estabelecimentos. O Ceci foi reivindicado “para manter a cultura e a prática do guarani”. Mas, na escola estadual, ensina-se em português por demanda dos pais, porque a aldeia está na cidade e as crianças saem para fazer compras no entorno, ou para vender artesanato mais longe, e precisariam saber português e matemática para negociar.

Buscando maior articulação com os pais, o coordenador da escola disse que, para além das reuniões “normais, bimestrais”, foram implementadas reuniões com professores, lideranças e pais “voltadas para o cuidado com os jovens, envolvimento com drogas” e assuntos como gravidez, casamentos e abandono de estudos. A resposta foi muito boa: os pais agradeceram, disseram não saber antes como agir, e valorizaram porque “a escola também estava se preocupando com os filhos”.

Um professor atribuiu importância à participação dos xeramoῖ. Quando ele vai à casa de reza com alunos, pede para o ancião acompanhar o que ele diz, e lhe ensinar se fala da forma certa.

Mas uma liderança mulher declarou que a sabedoria dos xeramoῖé só espiritual mesmo”, ou seja, sem nexos com a escola.

Ela disse não estar “muito ligada à educação”, e que as lideranças não têm uma relação forte com a escola. O motivo aludido foi a rigidez da Secretaria, que preponderaria em qualquer questão, fornecendo uma espécie de álibi para a equipe escolar não tratar dos assuntos que mobilizam as lideranças. Estas ficariam à espera de serem chamadas para participar na sala de aula, e isso nunca ocorreria. Lembrou, porém, haver uma liderança que também exerce a função de professor.

A inserção da comunidade na escola foi caracterizada por um professor como sendo de muita oscilação. Mais intensa na realização de algum projeto, ou no programa Escola da Família (“que não é uma coisa nossa”), da Secretaria, com atividades de lazer aos fins de semana. Ele considera o programa insuficiente para que os saberes do nhandereko não sejam esquecidos pelas crianças: “Tem que ter uma participação maior, principalmente das pessoas mais velhas, que têm a sabedoria muito rica, e a gente não consegue inserir eles”. Penderiam dúvidas quanto a remunerá-las ou não, com qual fonte, e se isso seria bom para “a cultura”. Mas a escola não deve virar o foco da existência do tekoa: deve fazer parte, mas não ensinar tudo.

De acordo com outra professora, no início a escola pretendia ter a participação da comunidade, pela presença de anciãos e lideranças para lidar com “a parte da cultura”. Mas afinal o Ceci “concentrou essa parte” e a escola se afastou dela. Havia divergências entre as pessoas do Pyau (de cima, local do Ceci) e as do Ytu (de baixo, local da escola): estas se consideram acusadas pelas primeiras de não serem boas falantes de guarani, não frequentarem a casa de reza e pretenderem impor o ensinamento não indígena. Para a professora, os “de cima” querem ter “mais domínio sobre a escola” e “colocar gente do jeito deles”.

A comunidade avalia professores “quando tem necessidade”, disse outra docente, sugerindo que não se trata de uma prática regular. Não se indicam os professores a serem contratados. Havendo vaga, é afixado um comunicado de inscrição.

A professora informou também que os alunos da noite não frequentavam os rituais cotidianos noturnos na opy, conflito de horários que ainda não tinha chegado a uma solução. Para outro docente, esses alunos poderiam também receber sabedoria na opy, mas isso não os dispensaria das aulas: “Tem que ter a escola”.

Objetivos da escolarização

Segundo Macedo (2009, p. 134), alguns xamoῖ mbya fazem ressalvas à escola, que valoriza os saberes e modos de saber dos brancos e ameaça os modos de vida guarani, e cujo ambiente seria inadequado ao aprendizado do nhandereko. Com efeito, haveria no Jaraguá anciãos e lideranças que preferem apenas conteúdos jurua na escola.

Para uma professora guarani dali, a escola constitui uma arma de sobrevivência justamente na medida em que ensina português e a cultura branca. Ela não fala guarani, e seu trabalho há vários anos é de alfabetização em português. Queixou-se da falta de contato prévio das crianças com a escrita (“Nem sabem o que é lápis”).

Uma liderança mulher afirmou que o aluno guarani quer estudar apenas para trabalhar na própria comunidade, talvez como professor. Não seria sua intenção “ser advogado, médico, dentista”, formar-se para trabalhar fora, ou sair de perto do tekoa, porque há “uma ligação espiritual entre a aldeia e o modo de vida mesmo guarani”. Para ela, alguns pais não se envolvem: “O filho vai e volta da escola; se tem matéria pra fazer em casa ou não, tanto faz”. Dar-se-ia mais importância a brincar, ter espaço, mexer com a terra, ficar correndo, ter um campinho de futebol para jogarem: “Essa é a vida do guarani”.

Mas há professores que buscam conciliar uma orientação jurua e um direcionamento para “a cultura” - ao mesmo tempo que admitem a dificuldade do consenso ou duvidam da viabilidade dessa conciliação. Um deles afirmou que querem focar bastante “na nossa nhandereko”, mas sem privar os alunos “do mundo”, por exemplo, de “coisas para ser advogado”. Ele quer dar subsídio para que os alunos façam o que desejarem, trabalhando para a tekoa ou fora: “O que a gente tem que se preocupar é de dar suporte para ele seguir sozinho depois”. Advertiu que a escola tem a capacidade de ensinar, mas também a de fazer esquecer “a cultura”.

Práticas escolares

As várias preferências quanto aos objetivos da escola se expressam nas práticas informadas. Uma professora do 1º ano do ensino fundamental disse que as crianças “precisam ser controladas” porque “vêm achando que é tudo brincadeira, tudo festa”. Em uma turma de 35 crianças, “bagunçavam, gritavam”. Na licenciatura, ela fez estágio na Escola de Aplicação da USP, que considerou “interessante, completamente diferente daqui” porque as crianças “já eram comportadas, quadra- dinho, sentadinho”.

Outro professor considera que a escola indígena é diferenciada por ter autonomia (para realizar projetos sem pedir autorização), mas não foge muito dos currículos “do estado”, e faltam materiais para ensinar os estudantes guarani. Ele havia se baseado em pessoas da comunidade, no xamoῖ e nas próprias crianças para se inspirar. Convidava parceiros externos para atividades sobre plantas, e levava as turmas à opy para ouvir o xamoῖ.

Ainda outro docente tentava seguir as prescrições da Secretaria quanto ao conteúdo e modo de ensino, mas viu que isso o atrapalhava e confundia os alunos. Para ele, o indígena nasce livre na aldeia, o que difere de “prender” as crianças em salas, e torna muito difícil ensinar conteúdos teóricos. Decidiu “fazer um trabalho bem diferenciado” levando-as à casa de reza, contando histórias ouvidas dos avós, montando um coral, praticando semanalmente culinária tradicional, fazendo idas à mata e explicando sobre esse meio (“Cada lugar que a gente vai, sempre tem um protetor ali”). Ensinou os momentos de cortar árvores ou pegar lenha, como se faz armadilha, e que se deve evitar de fazê-la naquela região, para preservar a hoje escassa mata da cidade.

Esse docente diz que procura “passar o conteúdo” do “sistema jurua” (“matemática, português, ciências”) e pensa ser necessário que aprendam português - “Quem sabe, futuramente, um deles queira ser liderança, lutar pela causa indígena, pela saúde, pela educação, pela terra”. Leciona a disciplina de língua materna, na qual só se fala guarani. Nas demais, ele fala em português e os alunos falam em guarani. Leciona também matemática, ciências, história, geografia e educação física. Acha difícil dividir os horários entre as disciplinas, optando por “aulas diferenciadas” nas quais vai “passando um pouco desses conteúdos”.

Alguns alunos mais velhos, por curiosidade, procurariam escolas jurua, mas retornariam. Uma docente vê nessas escolas mais exigência de estudo e atividades escritas, turmas numerosas, professores distantes e preconceito contra indígenas. Na escola da aldeia, “somos tudo parente e são poucos alunos na sala”; haveria menos carga de lições e respeito ao “jeito deles” sem imposições. Essa professora leciona inglês, artes e língua materna. As aulas são dentro das salas porque atividades fora requereriam transporte e alimentação. Algumas vezes ela circula com os alunos pela aldeia, anotam palavras e fazem buscas na internet com o celular, para verter para o inglês e conhecer a pronúncia.

O professor coordenador relatou que, antes, não permitia que os alunos entrassem com 10 minutos de atraso e “cobrava muito desempenho” deles. Lecionava matemática no 5º ano: passou a temas mais difíceis, viu que eles reagiam bem e cobrou mais. Os temas eram “o conteúdo mesmo do livro”, por exemplo: “que eu lembro, potenciação”, fórmula de Bhaskara, equações de 1º e de 2º grau. Ele era mais rígido em algumas turmas “a ponto de não deixar levantar da carteira, porque eu sabia que se levantasse ia aprontar alguma coisa . . . fugir da sala de aula, ou ir lá no coleguinha ficar atrapalhando”.

Para esse professor, o sistema de notas é um assunto “um pouquinho complexo” porque não o praticam completamente. Lançam notas no registro oficial on-line e, para atribuí-las, os professores “já sabem qual aluno está bom ou está ruim; os que eles acham que têm que aprender mais eles dão uma nota mais baixa”. Segundo ele, o governo é muito focado em resultados em termos de notas, com metas. Também há cobrança dos prazos dos registros on-line: “Lançar nota, quantidade de ATPC [Atividade de Trabalho Pedagógico Coletivo] que foi dado, digitar”.

Ele entende que, idealmente, deveria auxiliar os professores com turmas ou alunos que não aprendem, focando “na parte pedagógica apenas”. Mas quase não tem tempo para isso e fica “mais na parte burocrática”, ajudando a diretora.

O coordenador acredita que as ATPC deveriam tratar das dificuldades quanto ao plane-jamento do ano e à frequência e evasão de alunos. Esta foi abordada com o corpo docente: identifi- caram os faltosos no ensino médio, cerca de 15, e foram de casa em casa procurando recuperá-los. Entre os motivos do afastamento, o coordenador informou que alguns estavam desanimados, outros disseram não saber para quê estudar e outros ainda se referiram ao perigo de cachorros no caminho.

A Terra Indígena Ribeirão Silveira

Localizada no litoral norte de São Paulo, entre os municípios de Bertioga (4.310,61 ha), São Sebastião (4.036,40 ha) e Salesópolis (154,68 ha), essa TI9 conta, segundo Macedo (2009), com relativa infraestrutura e presença dos órgãos públicos. Foi criada em 1987, mas se estima que a aldeia que lhe deu origem se formou nos anos 1950. Está cortada por uma estrada principal, na qual se situa a escola. Sua população reúne as parcialidades guarani Mbya e Nhandeva, entre as quais há muitas uniões conjugais. Falam-se os dois dialetos, sendo mais usado o mbya. Os que a literatura denomina Nhandeva são chamados e se autodesignam Tupi ou Tupi-Guarani. Habitavam a TI 350 pessoas em 2008 e 474 em 2021, mas o número varia continuamente devido à característica mobilidade dos Guarani.

A área é geograficamente contígua ao mundo jurua e ao mesmo tempo mantém sua separação. Há poucos trabalhos regulares externos, e os empregos nos equipamentos públicos do território são objeto de disputas atravessadas pelas relações de parentesco e pelas hierarquias de prestígio. As demais fontes de renda são pensões por aposentadoria, programas sociais governamentais, comércio de plantas e artesanato e serviços de guia turístico. A televisão está presente em quase todas as casas e são cotidianas as relações de comércio, doação ou prestação de serviços, bem como a circulação crescente dos jurua na área.

As habitações se dividem em cinco núcleos, cada um com sua respectiva liderança. O conjunto é chefiado politicamente por um cacique. Dadas as interações com os jurua em projetos e relacionamento com o poder público, essa função foi se especializando, de modo que um cacique nem sempre é o principal líder espiritual da aldeia. Durante nossas visitas, no segundo semestre de 2019, ocupava o cargo uma pessoa que nasceu em Santa Catarina e viveu em grandes cidades. Aprendeu português e tomou a frente na gestão de conflitos fundiários em diferentes lugares, inclusive na TI Ribeirão Silveira. Uma de nossas interlocutoras entende que, com a instituição dos caciques, “os líderes espirituais perderam um pouco a força de decisão” e os problemas deixaram de ser solucio- nados “de forma tradicional”.

Escola Estadual Indígena Txeru Ba’e Kua-i

Em 1996, a prefeitura instalou uma escola em dois contêineres, comportando 70 alunos da pré-escola ao 4º ano, com um professor indígena e três jurua, um auxiliar de serviços gerais e uma merendeira. Substituiu a escola que os moradores haviam criado no início da década, construída de madeira, com um professor mbya. Um ancião afirmou que, na época, quem “conseguiu estudar até 4ª série, essas pessoas a gente indicava para poder dar aula”.

No final de 2000 foi inaugurada a Escola Municipal Indígena Nhembo’e’a Porã, construída em alvenaria, atendendo da educação infantil ao 7º ano do fundamental, com cinco docentes cursando magistério indígena na USP. O 8º ano iniciou-se em 2006, e o ensino médio, em 2008. Um acerto administrativo em 2009 manteve a escola municipal com turmas até o 4º ano e criou, para os anos seguintes, a Escola Estadual Indígena Txeru Ba’e Kua-i. Macedo registrou em 2009 a ocupação dos cargos na escola (então restritos a quatro professores e dois auxiliares administrativos) principalmente por pessoas de duas famílias.

Os professores que entrevistamos falam bem português e guarani. Afirmaram que, no início da escola estadual, somente dois docentes eram indígenas. Em 2011 passaram a ser contratados mais professores guarani, formados na primeira turma do ensino médio daquela própria escola, para lecionar no fundamental. O ensino médio continuou por um tempo com professores jurua, mas, em 2019, a maior parte já era indígena.

A primeira diretora da Txeru Ba’e Kua-i era jurua e exerceu a função de 2009 a 2011, sendo removida por demanda da comunidade devido a condutas inadequadas: dizer que as crianças iam sujas à escola e que não deviam comparecer descalças, ou exigir que olhassem nos olhos quando ela falava, sendo que o costume respeitoso é olhar para baixo. Em 2012, um professor indígena assumiu a direção, mas foi acusado de um crime e a comunidade o expulsou. Em 2013, a escola ficou sem diretor.

Em julho de 2014, assumiu outra jurua, que, em dezembro, foi afastada a pedido da comunidade por ser considerada “terrível”: “Parecia um soldado”. Segundo uma professora, o procedimento é aceito pela Diretoria de Ensino, órgão regional da Secretaria Estadual de Educação, mediante uma carta assinada por “cacique, liderança, comunidade”. A escola ficou sem diretor em 2015. Em 2016, outro jurua foi designado. Ficou apenas três meses devido à “incompatibilidade de carga horária”.

Provada a inocência do ex-diretor acusado de crime, ele retornou à direção, mas recebeu críticas da Diretoria de Ensino quanto ao desempenho no cargo, acolhidas por um grupo em torno do vice-cacique. Em 2017, assumiu outro jurua, que chegou impondo português e matemática como espinha dorsal da escola, passando depois a entender que essa diretriz seria inadequada.

Segundo um docente da escola Txeru Ba’e Kua-i, em 2019 todos os cinco professores da escola municipal Nhembo’e’a Porã eram guarani e somente a diretora era jurua. Ele disse ser difícil os integrantes dos corpos docentes e as diretorias das duas escolas conversarem, e ser “complicado a gente trabalhar junto”. Não soube dizer se a razão da distância entre os grupos docentes seria falta de interesse ou “porque um não gosta do outro”.

Dificuldades

Um professor disse que faltam áreas de lazer. Há um campo de futebol na TI, próximo da escola, e as crianças gostam de jogar bola, mas não dispõem de uma quadra ou campo escolar, nem de um parquinho para as menores. Algumas destas não ficam o tempo todo nas aulas, disse ele, reconhecendo que “é chato ficar na sala”. Por isso os professores procuram fazer algumas aulas no gramado.

Na opinião de uma professora, faltam formação dos professores, um diretor que entenda os professores indígenas, materiais para executar os planos de aula, saídas das turmas para percorrer a comunidade e um centro cultural dialogando com os fazeres tradicionais e auxiliando a escola, por exemplo, em oficinas de tecelagem ou cerâmica. Ela disse que houve diversas tentativas do corpo docente para elaborar uma proposta própria de organização e currículo. Quando o diretor e a maior parte dos professores eram indígenas, pensaram em sair da escola uma vez por semana para “atividades culturais”, e combinaram com uma xejaryi (mais velha, conhecedora) para fazer uma roça com a escola. Mas a descontinuidade na direção prejudicou o processo. Interrupções e imposições, disse ela, acabam desmotivando e atrapalhando o fluxo de um trabalho lentamente desenvolvido: “Quando tem um diretor jurua que não entende nada, até você explicar tudo pra ele, em que ponto estamos, para onde vamos e o que é educação escolar indígena… Eu já contei essa história mil vezes”.

A mesma professora afirmou que os Professores Coordenadores de Núcleo Pedagógico (PCNP) da Diretoria de Ensino deveriam dar apoio, mas só criticam e atentam ao que os professores não estariam fazendo. O apoio da Secretaria teria ocorrido por meio de uma reforma da estrutura física, mas isso resultou de uma denúncia que fizeram ao Ministério Público Federal.

Outra professora ressaltou essas cobranças e apontou o preenchimento dos diários de classe como dificuldade de professores iniciantes, mais acentuada com mulheres mães, que acumulam atribuições domésticas com a elaboração de aulas, a leitura de textos e a criação e testagem de propostas de ensino. Ela também destacou a falta de televisão e outros equipamentos, materiais de pintura e teatro, e transporte para passeios na cidade que incentivem o interesse dos alunos.

Objetivos da escolarização

Para uma liderança homem, as crianças de até 12 anos deveriam fazer companhia aos adultos e, até 16 anos, aprender a fazer armadilha e caça, tendo educação familiar sobre como se comportarem quando forem grandes. De manhã cedo as famílias “já ficam sem as crianças” porque vão todas à escola, o que não é um “comportamento de ser indígena”. Muitas vezes a escola é distante, e os adultos precisam deixar suas atividades para acompanhá-las no trajeto. A rotina de frequentar as aulas começa a cansar em três ou quatro anos, algumas crianças não aprendem e outras abandonam. Ele entende que estudar dos 6 aos 20 anos é muito sacrificante e torna difícil “frequentar uma parte cultural com xeramoῖ, com pajé”. Se a pessoa não pretende chegar à universidade, onde a escolarização será “importante no futuro”, torna-se desnecessário estudar por 15 anos: “Nós não temos esse costume de jurua . . . não há necessidade de todos os indígenas fazer o mesmo percurso escolar”.

Ele se disse satisfeito com a escola bilíngue, não sendo necessário que as crianças falem muito bem português, mas que falem as duas línguas, e o guarani sempre, para “manter a tradicionalidade”. Pensa que são necessários (e não discutidos nas aldeias) cursos profissionalizantes que possibilitem pesquisas para servir às comunidades e à subsistência: “Se puder menos precisar da cidade, seria um passo muito grande”. Pessoas a partir de 16 anos poderiam frequentar tais cursos em vez de necessariamente buscar cursos superiores na cidade.

O trânsito por diferentes códigos culturais e a interculturalidade presente na orientação da licenciatura da USP foram observados por Macedo (2009, p. 133) como cercados de ambiguidades. Em sua pesquisa, os moradores se dividiam entre prezar a escola - por livrar os filhos de dificuldades vivenciadas por quem não sabe ler e escrever, ou por formar profissionais para defender direitos diante dos brancos - e condená-la junto com a televisão, por abrirem ambas “caminhos errados” e diminuírem a frequência à opy, onde as pessoas se fortalecem e obtêm conhecimentos para não serem atingidas por doenças e infortúnios.

Como é comum, não há consenso na comunidade e entre os professores sobre a orientação a imprimir à escola. Docentes apoiam a elaboração de currículos diferenciados, com parte das aulas dedicada ao ensino ou reforço de elementos de sua cultura, mas se preocupam com um preparo insuficiente para a continuidade dos estudos. Um professor narrou sua experiência em uma universidade no interior de São Paulo, da qual desistiu. Além da distância de seus parentes e do modo de vida em área urbana, sentiu-se sem preparo para as atividades. Ouvimos também de uma professora que os docentes precisam de formação diferenciada para dar aulas diferenciadas.

Influência da comunidade

Uma professora, que também é mãe de alunos da escola, disse ter estimado a presença de oito mães na “reunião de pais”, o que considera muito pouco para um corpo discente de cerca de setenta estudantes. Acredita que alguns pais “não têm esse conhecimento do que é a escola, pra que serve”. Pensa também que muitos mandam os filhos à escola por exigência para receber o benefício do programa Bolsa Família.

Uma experiente liderança, homem, declarou que nunca teve estudo, sempre trabalhou mais com demarcação de terras, e gostaria de aprender um pouco sobre educação. Nunca havia sido chamado a falar sobre a escola e brincou que estava falando “até tudo errado” por não ter experiência no assunto. Ele entende que, nos longos anos de escolarização, os professores ou a direção deveriam tratar de demarcação, legislação e outras coisas, dando respaldo para que xeramoῖ, lideranças mais velhas e outros expusessem também o seu pensamento na escola.

O mais novo de seus filhos tem 6 anos e ele ainda não o deixou ir à escola. Os demais passaram a frequentar a partir dos 12 anos. Ele não mostrou preocupação com o aprendizado do guarani, porque conversam mais nessa língua em casa: “Na escola só aprende mais as aulas oficiais: matemática, português e outras coisas, coisas oficiais do estado”.

Segundo um professor, a comunidade gosta do trabalho com os alunos e não liga muito para a orientação seguida pelos professores. A maior parte do tempo na escola “é tomada” (pelos temas jurua), havendo poucas atividades em relação à cultura indígena. Procura-se equilibrar a abordagem dos dois tipos, o ensino do conhecimento dos brancos e o “da cultura”, e dentro da escola alguns seguem “lutando pra fazer currículo diferenciado”. Mencionou a atuação dos PCNP, que semanalmente vão olhar se os professores estão “fazendo o que eles mandam”.

Um professor foi indicado pela comunidade para ser contratado, mas também passou por um processo seletivo da Diretoria de Ensino, por meio de uma prova sobre povos indígenas. Ele não tinha certeza se o procedimento de indicação pela comunidade ainda era seguido.

As lideranças, disse uma professora, dão grande ênfase para a saúde e não estão muito comprometidas com a educação. Não compreenderiam que os alimentos da merenda escolar, por exemplo, afetam a saúde. Ou que censurar as crianças que vão descalças à escola afeta modos de “ser e existir dentro do tekoa”. Ela disse haver sábios anciãos críticos à escola: esta roubaria o tempo das crianças e seria indiferente a aspectos tradicionais tais como remédios, parto, resguardo de menstruação ou pós-parto. Isso estaria relacionado com o predomínio do sistema do jurua, “um rolo compressor que vai engolindo a gente: pensar o mercado de trabalho, parir no hospital”.

Essa professora levantou a hipótese de que, sendo em sua maioria homens, as lideranças atribuem importância secundária à escola. Preocupados com demarcação, não conceberiam porém o assunto do território junto com o mundo das mulheres (cunhãguareko), que inclui temas como abuso contra mulheres e crianças, escola, alimentação, diálogo entre professores e parteiras. Ela disse que muitas meninas hoje não sabem o que era transmitido de geração em geração “porque acorda, vai correndo pra escola, daí volta, fica no celular ou vai pro campo [de futebol]”. Estudar atrapalharia até o sonho, que os alunos deixam de lembrar porque acordam com pressa. O papel da escola não seria viabilizar a entrada na universidade: embora haja uma pequena parcela que quer se tornar “advogado, professor ou dentista”, a grande maioria não quer sair da comunidade. A escola poderia servir também para “aprender a contar dinheiro pra vender bichinho lá fora”, mas deveria ser mais do que isso e dar tratamento aos saberes guarani.

Práticas escolares

Um professor que fez todo o seu estudo básico na escola da aldeia, onde começou com 6 anos, tornou-se professor da mesma escola com 20 anos, em 2019. Ele definiu essa escola como “diferenciada”: “A gente aprende a nossa língua, a nossa cultura”. Mas, para ser aprovado em exame vestibular ou no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), é preciso aprender “as matérias”.

Outro docente informou: fora as disciplinas de língua materna e de cultura étnica, nas demais cada professor “passa a teoria no português” e, como há estudantes que não entendem, dá explicações em guarani.

Um professor de artes contou que recebem material (chamado Caderno do Aluno) do governo estadual, com a determinação de utilizá-lo. Ele procura fazer adaptações para “a nossa cultura” com aulas práticas: pintura corporal, artesanato, pesquisa com os mais velhos para que se aprendam as funções originais dos artefatos. Diz sobre os animais esculpidos em madeira: “Antigamente a gente fazia esse adereço pra caça mesmo, agora a gente está fazendo pra gerar sustento [pela venda]”. Os resultados das pesquisas são reunidos em apostilas.

Ele também ministra aulas teóricas e disse ter que ensinar sobre artistas europeus e esco- las de pintura constantes do Caderno do Aluno, porque os PCNP “vêm e ficam olhando”. Não se confronta a exigência do órgão gestor, mesmo com o entendimento de que não há punição. Outra professora disse que levava todos os Cadernos do Aluno do ensino fundamental e do médio para casa a fim de identificar relações com a realidade da aldeia, mas não encontrava nada. Havia perguntas que não faziam sentido para os alunos, por exemplo sobre frequência a teatro e museus.

O professor de artes faz pesquisas de campo com a turma: dedicam-se a plantas, sua história e seus usos, e combinam com o xamã a visita do grupo à opy para obter informação a respeito. O xamã recebe as turmas com muito carinho e amor, conta histórias e suas experiências, e dá conselhos. Conforme outro professor, nas aulas extraclasse vão todos à opy, onde ficam por duas horas ouvindo histórias ou fazendo pesquisas. Antecipadamente, os professores conversam e fumam calmamente petỹgua com os pajés, e marcam o dia da visita da turma. Mas “o estado tem todo um currículo, um sistema que a gente tem que seguir, então a gente não dá para ir todo dia [à casa de reza]”.

As aulas são “faladas em guarani”, enquanto o que se escreve é “mais em português”. Há duas aulas semanais de língua materna e duas de cultura étnica para “fazer prática”, com leituras, escrita, contagem, brincadeiras, “tudo em guarani”. Ele disse ser difícil haver livro didático na língua materna, mas praticam com outros livros, enviados pelo governo estadual, elaborados por indígenas quando estavam na formação da USP.

Os PCNP não parecem representar ajuda, mas antes cobrança: “Tem que fazer diário, . . . tem que dar nota, lançar nota na Diretoria [de Ensino]”. Quando não cumprem as determinações, os PCNP dão um prazo e ameaçam: “Você não serve pra ser professor. No ano que vem, não vai”. Mas o professor pensa que não devem dar muita confiança a “todas pessoas que vêm de fora”, porque, do contrário, “a gente vai deixando um pouco a cultura”.

Um professor de ciências disse que procura trabalhar de forma equilibrada “o conhecimento do guarani e um conhecimento científico”. O Caderno do Aluno não oferece muitos “conteúdos que são importantes para a cultura” e alguns em especial não são “o que a comunidade quer”. Ele opta por apresentar teorias e ressaltar a importância de defender a natureza na TI. De vez em quando, a parte prática conta com saídas para fazer pesquisas, e com oficinas de projetos. Ele dirige um destes sobre “como o lixo está afetando as comunidades indígenas”, pois muitos brancos entram na TI e deixam resíduos. A turma faz coleta de lixo e levantamento de informações.

Temas como violência, drogas ou bebida são pouco abordados porque “não é bom falar pros alunos” e porque, disse um docente, não acontece de saírem da TI para usar drogas ou consumir bebidas alcoólicas.

Considerando que os conflitos internos à comunidade têm sido enfrentados com recurso à polícia ou órgãos burocráticos, uma professora aborda esses assuntos na sua aula de filosofia: “Saber identificar o problema e pensar meios tradicionais de solucionar isso, que é a voz do xamoῖ, não do cacique. O cacique sempre vai olhar um viés político e burocrático”.

Outra professora afirmou que muitos alunos perdem a vontade de frequentar a escola porque esta “não tem muita novidade”: pegam um livro do jurua, leem, fazem os exercícios, e ficam fechados na sala durante toda a manhã ou toda a tarde, com chuva ou com sol.

Conclusão

Características específicas do parentesco e da organização social guarani levam a um intenso movimento de composição e recomposição dos coletivos locais, que reduz muito as probabilidades de opções de conjunto. O mosaico dinâmico que esse movimento configura não coincide com um quadro estável das categorias “anciãos”, “lideranças”, “pais”, “professores”, “alunos” e mesmo “comunidade”.

No Jaraguá, os moradores (seja como um todo, seja em suas parcelas mais ativas politicamente) não indicam professores a serem contratados, nem avaliam o seu trabalho. Os familiares de estu- dantes não tratam da orientação geral da escola; poucos comparecem às reuniões escolares, onde enunciam demandas esparsas. A língua guarani é usada por alguns professores, os mesmos que levam turmas à casa de reza, onde há colaboração dos xeramoῖ. Estes não costumam fazer propostas para o ensino na escola.

Nesse quadro, que aponta não para um equacionamento, mas para a coexistência e tácita acomodação de diferentes perspectivas para a escola, quem sobressai como agente da escolha de saberes a ensinar são os professores em decisões individuais.

Na escola da TI Jaraguá, as declarações indicaram que o material didático predominante são livros jurua; que se opera com o sistema de notas estabelecido pelo governo; e que há docentes jurua que se opõem aos costumes guarani. Permanecem em boa medida a fixidez e exogeneidade que convencionalmente caracterizam os saberes postos para ensinar na escola. A distância das lideranças quanto ao tema da educação deixa fortalecidas as condições de permanência da orientação colonialista.

As aulas têm duração predefinida em minutos, o número de dias letivos é controlado, parte dos professores se restringe à sala de aula e ao prédio escolar, e os docentes são fortemente subordinados a instâncias administrativas superiores no controle dos programas. Uma parcela dos professores valoriza e incorpora saberes indígenas, evita o confinamento e não reduz a escola à preparação para o comportamento, o conhecimento e o mercado de trabalho não indígena. Outros dão importância ao controle da conduta dos alunos, exigindo que se mantenham “sentadinhos” ou impondo rigidez quanto a atrasos.

Existem aqueles que, em vez de optarem por uma orientação exclusivamente jurua para o ensino, relatam buscar uma via de conciliação com o ensino “da cultura”, subsidiando os alunos para depois trabalharem seja fora, seja para o tekoa.

Sendo os professores parte das múltiplas expressões da “comunidade” e considerando as suas diferentes perspectivas quanto ao que e como ensinar, pode-se dizer que nessa escola têm lugar nítidas linhas de inovação no sentido de consolidar condições de autonomia decisória sobre as práticas escolares. Da mesma feita, vê-se a permanência de práticas sob forte heteronomia, representada na coerção administrativa que prioriza certos saberes, condições e modos de ensino. Outras limitações residem na vigência de modelos rígidos e fontes de informação pouco variadas quanto a práticas escolares possíveis, bem como nas formas circunscritas e oscilantes de envolvimento comunitário, também ligadas a uma insuficiência do convencional debate sobre “participação” na gestão escolar para lidar com cenários onde a norma pode ser de alta fragmentação e mobilidade entre os grupos familiares corresidentes, e baixa propensão à constituição de uma imagem estável de “comunidade”.

Igualmente na escola Txeru Ba’e Kua-i há manifestações de continuidade de um modelo colonialista. A heteronomia é ostensiva na permanente determinação e vigilância que os técnicos da Diretoria de Ensino exercem sobre as práticas docentes. O lugar legitimado da língua e da cultura guarani, vistas como propriedades de uma “escola diferenciada”, é reduzido às disciplinas de língua materna e de cultura étnica. Esses saberes são postos para o ensino ao lado “das matérias”, ensinadas principalmente em português (falado e escrito) e explicadas em guarani porque alguns estudantes não entendem a língua envolvente.

Os professores procuram adaptar as prescrições da Secretaria aproximando-se de elementos “da cultura”, mas essas tentativas são limitadas pela pressão de realizar um currículo “do Estado” (que eles, como é usual entre a população geral, acreditam ser legalmente obrigatório, manifestando a rigidez e estreiteza dos modelos de ação disponíveis). Os obstáculos se agravam pela insuficiência e inadequação das instalações da escola e pela carência de formação docente capaz de fornecer subsídios para seguirem um caminho próprio.

Os ensaios de formulação desse caminho precisaram aguardar a gradativa entrada de docentes indígenas diplomados. Mas o processo, do mesmo modo que no Jaraguá, ainda não chegou ao ponto de constituir um grupo forte e coeso, muito menos com apoio estatal, assessoria estável e aportes financeiros, condições necessárias tanto para transcender as limitações inerentes à inovação em escala local quanto para sustentar o acúmulo de seus avanços. Na escola do Ribeirão Silveira, o desafio foi acirrado pela descontinuidade de pessoas no cargo de direção, em meio a imposições e incompreensões.

À semelhança do que ocorre na TI Jaraguá, não se coloca um direcionamento do conjunto dos moradores da TI Ribeirão Silveira para a escola. As esperadas divisões políticas internas se somam à ambiguidade de atitudes em relação à escolarização.

A escola teve origem na mobilização local por um modesto estabelecimento próprio, e subsequente reivindicação por escola pública. Mas as lideranças não mostram engajamento na disputa pelo sentido da educação escolar. Se as lideranças religiosas colaboram eventualmente em visitas dos alunos à opy, nem essas nem as lideranças políticas são chamadas a expor seu pensamento sobre educação e escola. As contratações de docentes e diretor não têm indicação aberta à influência dos vários segmentos da coletividade, dando-se o mesmo quanto à avaliação do trabalho educacional.

A categoria “pais” acorre pouco às reuniões escolares, e afirma-se que as lideranças e outros integrantes da comunidade estão satisfeitos com o andamento da escola ou indiferentes quanto à orientação seguida pelos professores. A maior parte do período letivo se dá no interior da escola. Mas se fazem atividades esporádicas “em relação à cultura indígena” e há esforços notáveis no sentido do fortalecimento de uma identidade étnica. Há iniciativas de docentes individuais para equilibrar a abordagem dos “dois tipos de conhecimento” e “lutar” dentro da escola para “fazer currículo diferenciado”.

Assim como na escola da TI Jaraguá, quem escolhe os saberes a ensinar são principalmente os docentes, individualmente, condicionados por seu repertório de concepções pessoais, pelas imposições dos órgãos gestores e pela crença de que estão obrigados a seguir um currículo oficial e certos formatos arraigados de divisão do tempo letivo, organização em disciplinas, atribuição de notas e manutenção de registros escritos, ainda que não sigam rigorosamente algumas dessas determinações. A inovação educacional ocorre nas formas intermitentes, parciais ou sub- -reptícias de respeito à língua materna e aos costumes tradicionais. Fundamenta-se no entendimento pessoal de cada docente quanto ao que seriam as necessidades e aspirações daquela coletividade guarani. As decisões podem ser consideradas o exercício de uma forma de autonomia comunitária, no sentido de que ainda retêm entre certos agentes da própria aldeia uma importante medida do poder de escolha sobre práticas educacionais, sobretudo diante das demandas oficiais de controle e padronização.

Nossos diálogos nas aldeias não mostram que os moradores pressionam a organização esco- lar ou os estudantes para que estes venham a frequentar o nível superior. Mesmo os saberes comuns das disciplinas escolares não indígenas com os quais se lida não são justificados, nas entrevistas, por esse tipo de meta. São considerados bem-vindos os desejos de jovens de se tornarem “médicos ou advogados”, mas há grande liberdade em relação a essas escolhas, não diferente da liberdade que marca as relações dos velhos e adultos com os jovens e crianças entre os Guarani.

A participação da comunidade e dos mais velhos na vida escolar e na definição dos saberes que ali circulam é um desejo manifesto de muitos professores em ambas as escolas. O chamado ensino diferenciado nessas localidades já tem incorporado a ocasional participação direta de rezadores e rezadoras cuja autoridade é reconhecida.

Mesmo quando saberes indígenas são postos para aprendizagem na escola, essa pode ser uma decisão sob condições heterônomas e de efeitos controversos. Da mesma maneira, a identificação de decisões endógenas porém mal informadas, ou muito fracamente participativas, mostra que fatores como a parca variedade de modelos de ação e a concentração de poder em poucos decisores podem condicionar até mesmo os processos de escolha localmente sediados, pesando em favor da permanência de padrões antigos. As escolhas feitas nas próprias coletividades, a partir de seus sujeitos e modos de relação, em condições de mínima pressão regulatória, e contando com subsídios adequados, é que representariam ruptura do molde colonialista em seu cerne: o controle externo em lugar da autodeterminação.

A investigação de quem escolhe os saberes a circular na escola interessa-se por agentes definidos, como “os xamãs”, ou difusos, como “a comunidade”, mas os professores também são a comunidade dentro da escola e, ao mesmo tempo, podem ser uma agência xamânica. Isso porque não há exclusividade das figuras de referência como xamãs e rezadores na produção de relações com as subjetividades não humanas. Adultos não idosos também podem ser reconhecidos como fortes xamãs, e muitas pessoas fazem benzimentos para lidar com doenças espirituais, confeccionando remédios ou realizando rituais cotidianos dentro de casa em vez de frequentarem a opy.

Assim, os saberes indígenas que entram na escola, embora sofram modulações e transposições, também não se desmembram nem das relações sociais e relações com as subjetividades não humanas e divindades, nem dos modos e contextos de sua produção. As “atividades práticas” citadas pelos professores quando descrevem suas aulas sobre conhecimentos tradicionais implicam a abordagem de um amplo conjunto de saberes, referidos a uma cosmovisão guarani e relacionados ao encontro de múltiplas agências (cosmopolíticas). A atuação dos professores, quando elaboram suas abordagens dos saberes guarani, leva para a escola suas próprias experiências de vida.

2 Projetos do Centro Universitário de Investigações em Inovação, Reforma e Mudança Educacional (Ceunir), da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

3 A população guarani no Brasil em 2008 era estimada em torno de 51 mil pessoas, entre os Kaiowa (31 mil), Nhandeva/Tupi-Guarani (13 mil) e Mbya (7 mil). Seu território se estende por toda a porção meridional da América do Sul (Instituto Socioambiental, 2021).

4 Para uma revisão de como o campo educacional manejou o disputado termo “inovação”, cf. Tavares (2019).

5 Nogueira da Silva (2015, p. 134) elucida que “xondaro não é um grupo de idade, nem é um cargo, mas uma posição que ganha existência a partir da relação com outra posição, a de uvixa (chefe, liderança), que por sua vez também é contextual, ou seja, existe apenas no desenrolar de um evento”.

6 Cf. Perrone-Moisés (2015, p. 24) para uma discussão desse termo-categoria no “português dos índios”.

7 As descrições da TI e a da Escola Djekupe Amba Arandy se valeram do trabalho de Nogueira da Silva (2015).

8 Livremente: nosso modo de vida, nossa cultura.

9 A descrição da TI Ribeirão Silveira resume as informações compiladas por Macedo (2009).

Disponibilidade de dados

Os dados que respaldam esta investigação não estão disponíveis publicamente porque são notas escritas a mão sem proteção de anonimato. A solicitação de acesso requer ajustes, mas pode ser feita diretamente aos autores por e-mail: elie@usp.br

Referências

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Recebido: 04 de Maio de 2021; Aceito: 22 de Junho de 2022

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Vertido ao guarani por Márcio Boggarim, liderança do Tekoa Yvy Porã (TI Jaraguá), a quem os autores registram seu agradecimento.

Nota sobre autoria

Elie Ghanem: Delineamento do estudo. Embasamento teórico e concepção geral da pesquisa. Observação, conversas e entrevistas com os/as participantes da pesquisa. Seleção, textualização e organização de material coletado em campo. Exame de literatura pertinente aos territórios pesquisados. Interpretação das informações reunidas e discussão de resultados. Redação e revisões do manuscrito. Fabio Nogueira da Silva: Observação, conversas e entrevistas com os/as participantes da pesquisa. Escolha de material coletado em campo. Interpretação das respostas no pano de fundo das relações de parentesco, de grupos políticos e cosmológicas das comunidades pesquisadas. Discussão de resultados. Contribuição à redação e revisão. Diana Pellegrini: Delineamento do estudo. Interpretação das informações reunidas, discussão e enquadramento conceitual de resultados. Seleção de obras pertinentes à abordagem teórica. Articulação dos casos guarani com o panorama comparativo mais amplo do problema, e deste com os acúmulos da linha de pesquisa em educação escolar indígena e inovação educacional. Redação e revisões do manuscrito.

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