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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.52  São Paulo  2022  Epub 28-Abr-2022

https://doi.org/10.1590/198053149306 

Resenhas

A ESCOLHA DA ESCOLA E A REPRODUÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS

Luiza MascarelloI 
http://orcid.org/0000-0003-3850-3095

Maria Amália de Almeida CunhaII 
http://orcid.org/0000-0002-0233-3883

IUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte (MG), Brasil;

IIUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte (MG), Brasil;

Choisir son école: Stratégies familiales et médiations locales. van Zanten, A. PUF, 2009.


van Zanten, A. (2009). Choisir son école: Stratégies familiales et médiations locales. PUF.

A escolha do estabelecimento de ensino é um tema relativamente recente no campo da Sociologia da Educação. Agnès van Zanten tem demonstrado em seus estudos que essa escolha não é neutra, ao contrário, é uma prática que pode estar associada a certos juízos valorativos que tendem a corroborar a segregação escolar, a qual está relacionada a uma série de consequências negativas, como o enfraquecimento dos laços sociais e a reprodução das desigualdades sociais.

Para algumas famílias, a escolha do estabelecimento é uma estratégia que compreende uma ação mais social do que individual. A autora analisa famílias de classe média que empreendem estratégias para distanciar-se de “outros indesejáveis”, diferentes de si ou semelhantes a si no espaço escolar, a depender das estratégias utilizadas. Essas famílias elaboram operações mentais e práticas que são analisadas sociologicamente nesse livro. Na análise, van Zanten mostra que elementos tais como profissão e nível de diploma dos pais, bem como seus valores escolares e suas expectativas e confiança em relação à instituição escolar - e à res publica de forma mais ampla - influenciam diretamente a escolha, sendo mais ou menos preponderantes, de acordo com o estrato da classe social na qual se insere a família. Ou seja, existem diversos tipos de escolha da escola.

É o que a leitora e o leitor podem descobrir quando da leitura de Choisir son école, de Agnès van Zanten, publicado na França em 2009 pela editora Presses Universitaires de France (PUF) e ainda sem tradução no Brasil. A obra vem somar a diversas outras da mesma autora a respeito da reprodução social, principalmente entre as elites, e das estratégias educativas das famílias, notadamente as de classe média.

A socióloga e diretora de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), ou Centro Francês de Pesquisa Científica, oferece-nos nessa obra uma robusta análise qualitativa de 167 famílias (131 mães, 26 pais e 10 casais) que escolarizam seus filhos nas cidades da região metropolitana (communes urbaines) de Paris, com o intuito de produzir um modelo teórico das escolhas escolares. O método etnográfico empreendido pela autora permite analisar as motivações que conduzem os pais a construir melhor suas estratégias, uma vez que são capazes de realizar certos julgamentos, mobilizar informações e planejar meios de ação na escola (van Zanten et al., 2010, p. 409).

A análise dos dados baseia-se em três categorias teóricas: o exame da escolha escolar como estratégia de “enclausuramento” social; a utilização de uma tipologia das diferentes frações da classe média (tecnocratas, intelectuais, técnicos e mediadores1); um modelo de análise que relaciona os motivos da escolha, os interesses por trás deles, o capital cultural e econômico dos pais, as mediações familiares e locais, os efeitos diretos e indiretos da oferta escolar local sobre os diferentes grupos de família e a forma como os pais agem na regulação política local.

Logo de início, a autora situa os leitores a respeito do atributo eminentemente social da escolha escolar, que é, por isso, atravessada pela estratificação social. Van Zanten explica que nem todos estão na mesma posição ao fazerem suas opções, por não terem as mesmas competências necessárias para decifrar as possibilidades de uma oferta que, em princípio, pode parecer genérica, nem os mesmos recursos econômicos, culturais e sociais necessários para obter os produtos ou serviços necessários.

Em seguida, esclarece que a escolha do estabelecimento de ensino não é como qualquer outra - o que justifica a importância de seu estudo -, pois apresenta três particularidades. A primeira e mais central é que são escolhas que concernem crianças que são, para os pais, a maior causa de angústia e de felicidade e, para a sociedade, uma peça-chave para sua reprodução econômica, social e cultural. A segunda particularidade das escolhas escolares são seus efeitos a um prazo mais longo que as escolhas em geral. Por fim, a terceira consiste no fato de que são escolhas vinculantes - no sentido de comprometerem a família -, pois sua renúncia é onerosa não somente em razão dos vínculos formais, mas também das relações de troca e de vínculos afetivos que são construídos com os profissionais envolvidos.

A obra é organizada em duas grandes partes - Estratégias e Mediações -, com capítulos que facilitam acompanhar o desenvolvimento da análise da autora, iniciando pela categorização das famílias de acordo com os papéis que elas concebem sobre a educação, chegando até as estruturas sociais que influenciam as escolhas.

A primeira parte - Estratégias - destina-se a explorar os objetivos individuais das famílias, seus ideais coletivos, suas “boas razões” e seus múltiplos recursos. Primeiro, as famílias são categorizadas em três tipos ideais de orientações em matéria escolar: as de desenvolvimento reflexivo, de instrumentalismo e de moratória expressiva.2

No tipo “desenvolvimento reflexivo”, a ênfase da família recai sobre o conhecimento como fator de enriquecimento intelectual ao longo de toda a vida do indivíduo. Ali, os pais consideram que a cultura escolar deve ser autônoma diante das pressões econômicas e sociais, devendo, assim, transmitir o que há de mais valioso na esfera intelectual, contribuindo para a reprodução e a renovação de uma sociedade esclarecida. O importante não é uma formação ligada a projetos profissionais, mas uma formação que equilibre tanto as disciplinas escolares quanto a cultura geral da sociedade, formando indivíduos críticos, reflexivos, analíticos e autônomos intelectualmente. Ao contrário dos projetos de escolarização mais curtos das famílias de classes populares, os projetos de escolarização mais longos dessas famílias de classe média permitiriam que as exigências instrumentalistas tenham mais peso no ensino médio ou até no ensino superior, e não precocemente na educação infantil ou no ensino fundamental.

No tipo “instrumentalismo”, o foco são as aquisições, as competências e a classificação escolar como investimentos que permitam aumentar as chances de sucesso dos filhos, tanto em relação à escolarização quanto à profissão, acentuando suas vantagens em termos de posição na hierarquia social. O que prevalece aqui é uma racionalidade econômica que confere ênfase aos resultados, à rentabilidade e à resposta às demandas externas e hierarquiza as disciplinas escolares segundo sua utilidade futura, opondo-se aos pais “reflexivos”, que privilegiam uma formação global, de desenvolvimento ao longo de toda a vida. A educação, no instrumentalismo, é vista como um “bem de posição” a serviço do indivíduo e não como um “bem comum” a serviço da sociedade. Operam nessa lógica do tipo instrumental, na pesquisa de campo empreendida por van Zanten, principalmente os pais de classe média superior, que visam para seus filhos um diploma das “grandes écoles”, que são os estabelecimentos de ensino superior mais prestigiados da França, equivalentes (do ponto de vista de status) às principais universidades públicas e algumas particulares do Brasil. De fato, a autora analisa que a lógica instrumentalista seria necessária às classes médias para que elas possam se reproduzir enquanto grupo social.

Por último, no tipo “moratória expressiva”, prevalece a percepção da escola como um lócus e um tempo de desenvolvimento humano, valorizando-se o bem-estar, o prazer e a felicidade dos filhos. Dessa forma, ela faz um contraponto necessário à lógica instrumental, às ambições “potencialmente destruidoras” e às “estratégias manipuladoras” da classe média. Essa lógica é, junto com o instrumentalismo, muito presente na maioria dos entrevistados na pesquisa desse livro. Os pais que analisam a educação por essa ótica consideram que a escola pode ser um lugar menos rígido, com menos pressão e competição escolar, que propicie a cooperação, o prazer de aprender, a convivência e as relações humanas. Assim, eles chegam a desenvolver estratégias domiciliares, no sentido de optarem por estabelecimentos próximos à residência, ainda que inferiores em termos de eficácia nos resultados, a fim de que seus filhos possam criar e manter amizades no bairro em que já residem. Nesse ponto, opõem-se aos pais da lógica instrumental, que escolhem os estabelecimentos em função dos resultados, mesmo distantes do domicílio - pois a distância não importa, se os benefícios utilitários valerem a pena. Van Zanten também analisa os pais reflexivos em oposição aos das classes populares, com base em importante obra de Lareau (1989): aqueles possuem uma preocupação de distinção social e preferem blindar-se da educação genérica das escolas públicas, com a qual se contentam as classes populares.

A segunda parte da obra - Mediações - dedica-se a explorar, em uma sequên- cia que vai da análise microssociológica à macrossociológica, as mediações que se desenvolvem no bojo da família. Com esse raciocínio, van Zanten nos conduz desde a negociação familiar e as redes locais até o mercado escolar e a regulação política.

Ao tratar das negociações familiares, a obra apresenta o processo de pesquisa e escolha entre o casal, com as diferentes fontes de informação - “frias” e “quentes” - a respeito do estabelecimento. Em seguida, trata do envolvimento do filho, que se dá em diferentes gradações segundo o tipo de família e o nível de ensino. Nessa lógica, entre as famílias dos intelectuais e das frações superiores da classe média, opera uma ideia de “autonomia sob controle” em relação à prole, ou seja, a autonomia é valorizada na teoria, mas na prática a inculcação de um habitus cultural e político específico gera uma forte semelhança entre a escolha dos filhos e a dos pais. Por outro lado, verifica-se maior liberdade de escolha do filho de famílias de classe média intermediária, que pode viver um processo de construção social de si mais satisfatório e inovador. De toda forma, o ponto interessante desse capítulo é mostrar que a liberdade de pesquisa e escolha é limitada tanto pelas características do sistema escolar (com percursos escolares mais hierarquizados do que diversificados e sempre ligados a resultados escolares) quanto pelos recursos econômicos, culturais e sociais das famílias. Acreditamos que essa limitação também ocorre no contexto brasileiro.

Tanto as redes locais quanto a oferta escolar são analisadas de maneira qualitativa, distanciando-se intencionalmente do formalismo da análise quantitativa. As redes locais são consideradas um conjunto de recursos sociais cuja mobilização permite a execução de estratégias escolares, permitindo uma análise para além das classes sociais. No caso pesquisado, um elemento importante é o distanciamento geográfico entre os pais e sua família de origem, consequência da migração para a região parisiense, sobretudo por motivos de trabalho. Essa migração em busca de emprego também se verifica em diversas regiões e cidades brasileiras, o que nos indica que aqui também poderíamos creditar importância às redes locais pelo mesmo motivo. Em suma, as estratégias escolares dos diferentes tipos de famílias de classe média analisadas nessa pesquisa são influenciadas não somente pelos interesses, valores e crenças dos pais, mas também por efeitos de localidade (effets de lieux).

Van Zanten distingue dois modos de se analisar a oferta escolar. Primeiro, pelo ponto de vista da dimensão objetiva da oferta e da demanda do mercado escolar. Segundo, sob uma perspectiva mais subjetiva - a qual ela adota -, que prioriza a percepção dos pais a respeito desse mercado. A autora, assim, mostra como os pais pesquisados constroem seus julgamentos a respeito da rede escolar, dos estabelecimentos de ensino e dos profissionais da educação, sempre considerando o contexto em que se dá essa construção.

Por último, no âmbito mais macrossocial, a regulação política é concebida na sua relação com a autorregulação política que os pais fazem de suas práticas. A regulação política parental consiste no confronto que os pais, consumidores engajados, fazem de seus interesses individuais e os interesses coletivos a respeito da escolha escolar e na “subpolítica” que eles fazem na escala local, com a colonização das escolas, por exemplo.

Choisir son école é um livro que enriquece a temática da relação família-escola no âmbito dos estudos em Sociologia da Educação, sobretudo por explorar as estratégias familiares de escolarização da classe média. Sua leitura mostra os efeitos segregativos das representações e dos modos de ação das diferentes frações da classe média e suas interações com os contextos socioespaciais. Outro ponto forte da obra é a constante costura de trechos das entrevistas ao longo das análises teóricas tecidas tão minuciosamente pela autora.

Em um país atravessado pelas desigualdades sociais como o Brasil, a leitura do livro deixa evidente como a estratificação social opera de maneira insidiosa sobre as oportunidades educacionais. A prerrogativa da escolha, fenômeno crescente em uma sociedade marcada pelo enfraquecimento das tradições e pela expansão das possibilidades, continua sendo um privilégio de uma minoria, e não um direito da maioria, corroborando para a reprodução social das desigualdades.

Contra a “ilusão meritocrática”, o livro mostra que, mesmo que existam algumas ações que possam mitigar os processos de segregação escolar em certos tipos de contextos locais mais heterogêneos, cabe ao Estado formular políticas públicas a favor de uma equalização das condições de ensino entre os estabelecimentos escolares.

1Tradução livre das autoras. Os termos em francês são: technocrates, intellectuels, techniciens e médiateurs.

2Tradução livre das autoras. Os termos em francês são: le développement réflexif, l'instrumentalisme e le moratoire expressif.

Nota sobre autoria

Luiza Mascarello foi responsável pela escrita do manuscrito original, revisão e edição. Maria Amália de Almeida Cunha foi responsável pela revisão e edição da escrita e pela supervisão.

Referências

Lareau, A. (1989). Home advantage: Social class and parental intervention in elementary education. Falmer Press. [ Links ]

van Zanten, A. (2009). Choisir son école: Stratégies familiales et médiations locales. Presses Universitaires de France. [ Links ]

van Zanten, A., Cunha, M. A. de A., & Prado, C. L. (2010). A escolha dos outros: Julgamentos, estratégias e segregações escolares. Educação em Revista, 26(03), 409-433. http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982010000300021&lng=pt&tlng=ptLinks ]

Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 16 de Março de 2022

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