SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.52A ESCOLHA DA ESCOLA E A REPRODUÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAISO MERCADO DE TUTORIA PRIVADA NOS PAÍSES AFRICANOS: CRESCIMENTO, ESPECIFICIDADES E TENSÕES índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.52  São Paulo  2022  Epub 22-Oct-2022

https://doi.org/10.1590/198053149671 

Resenhas

AUTONOMIA DE POVOS INDÍGENAS NA PRÁTICA DA ESCRITA

Lígia Egídia Moscardini I 
http://orcid.org/0000-0001-6079-6512

IUniversidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Araraquara (SP), Brasil;

D’Angelis, W.. 2005. Línguas indígenas precisam de escritores? Como formá-los?. Cefiel/IEL/Unicamp, 49p.


Por que as línguas indígenas precisam de leitores? Como formar, de fato, leitores e escritores indígenas? Quais as melhores abordagens para o ensino de línguas minoritárias? Em sua obra Línguas indígenas precisam de escritores?, elaborada para o Centro de Formação Continuada de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem (Cefiel), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), D’Angelis (2005) nos convida à intelecção em relação às práticas de ensino para fortalecer línguas indígenas em sua comunidade escolar.

Da linguagem fluida e didática às ilustrações e notas humorísticas, do panorama histórico às abordagens questionáveis até práticas para professores indígenas e pesquisadores, o livro Línguas indígenas precisam de escritores? conta com vários elementos para reflexões sobre a escola e sobre o ensino de língua. Inicia com importantes ponderações, como a de que a escrita em língua indígena pode representar um risco às formas tradicionais de transmissão cultural e histórica, que alguns pais indígenas não querem o aprendizado em língua materna para o filho, por considerarem que “já sabem” e precisam ir à escola para aprenderem português, além de publicações em línguas indígenas que, na verdade, são simbólicas e pouco relevantes para a sobrevivência das línguas vulneráveis.

D’Angelis (2005) também pontua fatores histórico-sociais de ameaça para línguas indígenas. Pelo contato com a sociedade majoritária, a língua portuguesa se sobrepõe, se tornando uma necessidade e exercendo pressão para seu uso. Vale lembrar que o português não se firmou de primeiro momento no período da colonização, mas foi posteriormente imposto, já contava com uma tradição escrita e a comunidade indígena já estava em contato com a economia majoritária. Tudo isso contribuiu para congelar mudanças em línguas indígenas e ampliação do vocabulário em português, tendo como consequência o aumento da função social apenas da língua majoritária.

Além da assimilação cultural que já ocorreu historicamente, Wilmar D’Angelis questiona algumas abordagens comumente empregadas em algumas escolas indígenas, como as cartilhas, que ajudaram a formar uma imagem empobrecedora das línguas indígenas e intimidaram uma escrita mais extensa e abordagens de temas mais complexos, sem contar o enfoque muito mais no resultado material do que no processo de formação de escritores indígenas.

Outro fator que desfavorece a educação escolar de povos originários é a infantilização da literatura indígena, pois, na maioria das vezes, é produzida com objetivo didático questionável, já que envolve transposição de narrativas orais para a escrita. Ora, não há sentido nessa proposta, pois conduz ao congelamento de uma só versão das narrativas que são transmitidas oralmente, de modo que ela perde sua eficácia e respeitabilidade. Há também narrativas escritas nessas escolas nas quais ninguém se coloca como autor, são pobres em vocabulário e abordam temas de maneira irrelevante, colocando, ainda, a escola em concorrência com a transmissão oral.

Observa-se que já existem várias práticas pouco ou nada eficazes em uma modalidade escolar recente e que busca ser um espaço de reafirmação de identidade cultural. Como, então, contribuir para a resistência de línguas minoritárias? Um dos pontos altos do livro são as várias propostas de D’Angelis (2005) para fazer frente à perda de espaços para o português, garantindo “funções sociais relevantes para a língua indígena”. Compreender o que, de fato, é uma língua significa precisamente compreender sua função social, e com tal objetivo a criança alfabetizada constrói uma imagem positiva de sua língua materna e compreende sua importância por meio da leitura, diferentemente até de seus professores indígenas que passaram por outras abordagens em sua formação e foram alfabetizados em português. Ou que aprenderam sua primeira língua na escola apenas como pretexto para alcançar a língua majoritária...

Para garantir tais funções, é preciso desenvolver a escrita em língua indígena, algo que o autor defende como uma das formas mais importantes e mais eficazes para seu fortalecimento e sobrevivência. Se uma sociedade não tem tradição escrita, ela surge de um processo e para atender às necessidades de registro. Nesse sentido, as comunidades encontrarão gêneros que se apliquem às suas necessidades, ou que as inspirem para produzir gêneros próprios.

É preciso, entretanto, cuidar da prática da escrita, que não é automática com a leitura. Por isso, D’Angelis (2005) tece várias propostas: produção de textos próprios, de preferência longos, publicáveis em língua indígena, e que reflitam a língua falada sem influência do português, tradução em diversos gêneros, como obras literárias e vídeos, transcrição oral, produção e publicação de entrevistas. No decorrer do livro, o autor esclarece o papel de cada uma dessas práticas e sua relevância na formação de escritores indígenas já nas escolas. Havendo material escrito em língua indígena, a comunidade selecionará o que é adequado ou não para a escola. Nesse sentido, há que ir muito além da função de cursos de formação de professores para apenas produzir materiais didáticos, pois a escrita, afinal, se dá por vários gêneros, com variadas funções sociais, e a comunidade percebe isso nesse maior e mais eficiente contato com a língua materna escrita.

Um ponto interessantíssimo também abordado D’Angelis (2005) é quando trata as nomenclaturas gramaticais. Vista como algo “chato e sem sentido” por alunos na escola regular, os indígenas querem aprendê-la em suas línguas, pois seria uma evidência de que ela também é uma língua complexa, organizada e com regras bem definidas. Nesse ponto, percebem-se as muitas diferenças que uma escola indígena pode ter em relação à escola não indígena, e que nem sempre esta pode ser tomada como referência.

O livro Línguas indígenas precisam de escritores? é, pois, inteiramente objetivo, explicativo e sobretudo didático, o que inclui até mesmo suas referências bibliográficas, separadas por temas e com breves descrições sobre o que cada uma trata. A obra nos transpõe para a realidade dessas escolas, nos instiga a aprofundar as pesquisas e reflexões e, mais o que isso, nos inspira a fazer algo de fato prático para a escola indígena, suas línguas e formação de escritores e leitores.

Referências

D’Angelis, W. (2005). Línguas indígenas precisam de escritores? Como formá-los? Cefiel/IEL/Unicamp. [ Links ]

Recebido: 06 de Julho de 2022; Aceito: 04 de Setembro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.