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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.52  São Paulo  2022  Epub 22-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/198053149785 

Resenhas

O MERCADO DE TUTORIA PRIVADA NOS PAÍSES AFRICANOS: CRESCIMENTO, ESPECIFICIDADES E TENSÕES

Fernando Vizotto GalvãoI 
http://orcid.org/0000-0001-7967-0477

IUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil;

Bray, M.. 2021. Educação sombra na África: Tutoria privada e suas implicações para as políticas públicas. Comparative Education Research Centre (CERC), University of Hong Kong,


Nas últimas décadas, pesquisadores de diferentes países têm apontado para a importância de mapear e compreender a dinâmica de crescimento da participação de crianças e jovens em atividades de ensino oferecidas fora do tempo dedicado ao ensino regular. Tratadas na literatura em língua portuguesa como ensino suplementar, explicações, reforço escolar, tutoria privada ou educação sombra (entre outros nomes), essas atividades caracterizam-se por dialogar com os currículos do ensino regular, sendo demandadas tanto por estudantes que enfrentam dificuldades de aprendizagem quanto pelos que desejam avançar em relação ao que foi ensinado nas escolas, tendo em vista, principalmente, o preparo para a realização de exames. Devido ao fato de essas atividades serem, na maior parte das vezes, ofertadas mediante o pagamento de taxas ou mensalidades, as pesquisas que tratam do tema costumam salientar que elas podem constituir fonte importante de desigualdade educacional, garantindo vantagens educacionais aos alunos que podem pagar para acessá-las.

Em Educação sombra na África: Tutoria privada e suas implicações para as políticas públicas, Mark Bray, que acumula extensa e reconhecida pesquisa sobre a expansão da tutoria privada em diversos contextos, delineia os meandros da educação sombra na África. Com um olhar sensível às diversidades culturais e socioeconômicas do continente, o autor constrói um mapa denso das questões que permeiam o debate sobre a expansão da tutoria privada nos países africanos, estabelecendo diálogo com pesquisadores, educadores e formuladores de políticas públicas.

Combinando rigor e flexibilidade, o autor utiliza recortes que permitem a comparação das situações dos países africanos quanto ao ensino suplementar, sem deixar de notar as especificidades de cada país. O terceiro capítulo, por exemplo, não só reúne grande quantidade de estudos e dados que indicam padrões de rápido crescimento da participação de crianças e jovens em atividades de tutoria privada em diferentes países da África, mas também registra a diversidade de situações internas dos países, com desigualdades de acesso segundo a localização (rural ou urbana) da residência ou o gênero dos estudantes. O autor dedica atenção especial aos casos de países com alta taxa dessas atividades, como o Egito, onde os gastos das famílias com ensino suplementar chegam a ultrapassar o investimento governamental em educação (Bray, 2021, p. 25).

Em outro recorte, Bray ilustra tanto a diversidade de locais em que as tutorias são ofertadas quanto as tendências similares em diferentes países: ainda que possam ser acessadas em mesquitas, igrejas, bibliotecas e cafés, as escolas de ensino regular são espaços privilegiados dessas atividades. Conforme o livro documenta, mesmo diante da proibição, é comum a oferta de tutoria suplementar privada nas escolas, sendo, muitas vezes, o professor da aula particular o mesmo do ensino regular (Bray, 2021, pp. 22-24).

Esse arranjo, que borra a fronteira entre o público e o privado na educação de diferentes países do continente, é tratado com muito cuidado no decorrer da obra. Por um lado, o autor registra, em diversos momentos, as questões éticas e os problemas decorrentes da oferta de aulas extras particulares pelos professores que atuam no ensino regular. A principal preocupação, nesse caso, é com as situações em que os professores deixam de cumprir o currículo em suas aulas, gerando a própria demanda de aulas extras pagas no contraturno (Bray, 2021, p. 46). Por outro lado, Bray mostra-se sensível às dificuldades salariais enfrentadas pelos professores de diversos países do continente e reconhece que a atuação na tutoria privada pode ser essencial para que os professores tenham condições de vida dignas. O equacionamento dessas questões passaria, assim, pelo debate das possibilidades de melhoria da remuneração dos professores (Bray, 2021, pp. 76-79).

Outra característica que se destaca na obra é o olhar conjunto para o sistema de ensino regular e para sua sombra, a tutoria privada. Como registrado em diferentes momentos do texto, a expansão da oferta de educação básica e superior nos países do continente, em certa medida, tem acentuado os anseios por mais e melhor educação, que progressivamente é percebida como um meio importante para a melhoria das condições de vida. Paralelamente, apreendidas cada vez mais como elementos de vantagem em uma competição educacional (e social), as atividades suplementares têm sido consideradas como necessárias ou indispensáveis (Bray, 2021, p. 31), vistas como importantes para aumentar as chances de acesso às posições educacionais mais almejadas e disputadas. Por outro lado, a falta de recursos para garantir a adequada expansão da educação pública, em alguns países, tem levado à insatisfação dos pais com a qualidade do ensino oferecido, o que motiva a procura pela tutoria privada.

Ainda com um olhar atento às relações entre o ensino regular e o suplementar, o autor trata de situações em que os estudantes, geralmente motivados pela percepção de que a tutoria afeta positivamente os resultados nos exames, passam a dedicar seus melhores esforços para o ensino suplementar privado, deixando o ensino regular em segundo plano. De forma similar, são registradas situações em que os professores se voltam com mais afinco ao momento da tutoria. Em ambos os casos, o tipo de dinâmica que se instaura não só amplia as desigualdades entre os alunos que podem e os que não podem pagar pelas aulas extras, mas também fragiliza a concepção de educação como um direito e tende a relegar as escolas a um papel de certificação, como alertam Costa, Neto-Mendes e Ventura (2009), ao tratarem do tema no contexto de Portugal.

Diante das tensões existentes em torno da educação sombra nos países do continente africano (similares às dificuldades enfrentadas em diversos outros contextos), o sexto capítulo traz um rico recorte acerca de como os governos lidam com a proliferação de atividades de tutoria privada (ofertadas por professores ou empresas de tutoria). Da Etiópia, que estabelece parâmetros claros para tamanhos de turmas e duração das aulas nos centros de tutoria, à Eritreia, que baniu a operação de centros de tutoria; de Moçambique, que proibiu os professores de oferecer tutoria particular a seus próprios estudantes, à Tunísia, que proibiu a tutoria particular fora das escolas; a dificuldade parece ser a criação de esquemas de regulação viáveis, em termos de monitoramento e fiscalização (Bray, 2021, pp. 60-66).

Novamente, o autor chama a atenção para o caso do Egito, que parece tratar o problema de forma mais ampla. Em diferentes partes do livro, o autor registra a importância de acompanhar a reforma que tem sido empreendida no sistema educacional do país, que procura tanto melhorar o ensino oferecido nas escolas públicas quanto minimizar a competição educacional via testes, que têm estimulado a demanda por tutoria particular (Bray, 2021, p. 58, pp. 77-78). Em face da alta prevalência das atividades suplementares no contexto do Egito, o objetivo da reforma seria “trazer a aprendizagem de volta à sala de aula”, conforme a fala do ministro da Educação do país (Bray, 2021, p. 77).

Por fim, parece importante registrar a forma equilibrada com que o livro trata a questão da expansão da educação sombra na África. O autor concilia uma visão crítica e, ao mesmo tempo, realista sobre o tema. Alerta para os efeitos que essas ati- vidades podem ter nas desigualdades educacionais e no funcionamento dos sistemas de ensino, mas reconhece que os cenários ideais nem sempre serão viáveis e não deixa de notar os aspectos positivos da educação sombra. Nesse sentido, não assume pontos de vista fechados, mas problematiza, contextualiza e amplia o debate, em vez de limitá-lo.

O livro reúne, de forma rigorosa e didática, a riqueza de pesquisas e dados já produzidos sobre a educação sombra na África e abre caminhos promissores para novas investigações. O tema tende a ganhar importância. Mais uma vez, Mark Bray nos ajuda a não o deixar passar despercebido.

Referências

Bray, M. (2021). Educação sombra na África: Tutoria privada e suas implicações para as políticas públicas. Comparative Education Research Centre (CERC), University of Hong Kong. https://cerc.edu.hku.hk/books/educacao-sombra-na-africa-tutoria-privada-e-suas-implicacoes-para-as-politicas-publicas/Links ]

Costa, J. A., Neto-Mendes, A., & Ventura, A. (2009). As explicações em estudo de caso: Alguns dados da cidade de Aquarela. Revista Lusófona de Educação, 13(13), 81-88. https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rleducacao/article/view/551Links ]

Recebido: 30 de Agosto de 2022; Aceito: 28 de Outubro de 2022

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