SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.52O MERCADO DE TUTORIA PRIVADA NOS PAÍSES AFRICANOS: CRESCIMENTO, ESPECIFICIDADES E TENSÕESERRATA índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.52  São Paulo  2022  Epub 15-Mar-2023

https://doi.org/10.1590/198053149887 

Resenhas

CONFIANÇA, OPORTUNIDADE, TEMPO: TRÍADE FUNDAMENTAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Débora Cristina de Sampaio PeixeI 
http://orcid.org/0000-0002-3419-307X

Cleonice Maria TomazzettiII 
http://orcid.org/0000-0002-1976-4604

IUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis (SC), Brasil; peixedebora2020@gmail.com

IIUniversidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos (SP), Brasil; cmtomazzetti@ufscar.br

Fortunati, A.. 2020. Confiança, oportunidade, tempo: Olhar, imaginar, construir o futuro com os olhos das crianças. Buqui,


Fortunati, A. (Org.). (2020). Confiança, oportunidade, tempo: Olhar, imaginar, construir o futuro com os olhos das crianças. Buqui. 

A obra aqui apresentada foi escrita por Aldo Fortunati com contribuições de Gloria Tognetti, Barbara Pagni, Erica Bagni, Chiara Parrini e Silvia Tani, no âmbito do trabalho desenvolvido em La Bottega di Geppetto - Centro Internazionale di Ricerca e Documentazione Sull’Infanzia Gloria Tognetti, que, nos últimos anos, vem consolidando uma rede de relações nacionais e internacionais em prol da educação de bebês e crianças pequenas e da formação docente. Em San Miniato, no coração da Toscana, onde está localizado o referido centro, constituiu-se um profícuo trabalho de pesquisa e de formação que considerou, sobretudo, o direito das crianças à educação, além do reconhecimento da luta, resistência e direito das mulheres.1

A obra está dividida em três partes e, ao final, apresenta detalhes acerca da Mostra, idealizada e projetada por Aldo Fortunati. Além disso, traz memórias da his- tória dos nidi, que completaram 40 anos de existência, cujo precursor foi o nido Pinocchio, em alusão ao boneco de madeira construído pelo carpinteiro Geppetto, personagem literário criado pelo escritor italiano Carlo Lorenzini, mais conhecido pelo pseudônimo Carlo Collodi.

A primeira parte do livro, intitulada “As contribuições gerais”, é composta por sete textos, e, no primeiro deles, “Educação e mudança”, Fortunati realiza apontamentos e reflexões sobre as crianças e as formas de educá-las. Logo de início, o autor denuncia a limitação histórica de muitos dos discursos acerca da educação de crianças pequenas, o que, inexoravelmente, está no cerne de uma das causas dos significativos retrocessos das políticas para a infância, reféns de uma drástica perda de potencialidade e oportunidades asseguradas às crianças e suas famílias por intermédio das políticas. O autor soma a esse ponto “a pobreza e a fragilidade da imagem pública e social da infância e da tarefa educativa” (2020, p. 13), além da coexistente fragilidade dos referenciais teórico-práticos por meio dos quais esses mesmos adultos se incumbem da educação dos pequenos.

Nesse rastro, Fortunati nos leva a refletir sobre a “criança competente”, segundo ele um autêntico sortilégio, um discurso sedutor nutrido por uma distorção de sentido e sujeita a mal-entendidos que arruínam as potencialidades, no afã de precipitar ações e desempenhos, numa “espécie de corrida para que a infância acabe o mais rápido possível” (2020, p. 15).

Na sequência, Tognetti discorre acerca da complexa articulação da intencionalidade educativa em “Começando pelos bastidores”. De início, sobre educação e diversidade, afirma que “a observação dos processos de crescimento e de desenvolvimento - se não padecer de esquemas de referências rígidos - nos confronta com a questão das diferenças, que deve ser sempre considerada no trabalho educativo” (2020, p. 30).

Para a autora, esse e outros elementos complexos em seu conjunto reivindicam e intimam uma reflexão no que diz respeito ao papel do educador em suas experiências com as crianças e suas famílias, não o afetando somente, mas se estendendo “na dimensão colegiada do trabalho para transformar-se em um projeto dinâmico, capaz de renovar-se e de estar aberto a mudanças” (2020, p. 30).

No terceiro texto, Fortunati e Tognetti abordam “Família e serviços educacionais”, sublinhando a construção social das identidades no que denominam uma “ecologia educante diferenciada e participativa” (2020, p. 40). Os autores destacam que a temática da relação entre família e serviços educativos sempre acompanhou a história das experiências dos nidi pelo indiscutível elo instituído na realização de uma experiência extrafamiliar pelas crianças desde seus primeiros anos de vida.

Nesse sentido, ponderam que a perspectiva inicial encontra elementos de complementaridade na medida em que deixa de ser apenas importante “acompanhar a experiência das crianças com a atenção focada do adulto; estabelecer elementos de coerência e continuidade entre a experiência na família e no Nido; e comunicar e compartilhar experiências realizadas em uma contínua troca com as famílias” (2020, p. 42).

Os autores reforçam a relevância de se capturar a possibilidade das crianças de engendrar suas peculiares referências nos contextos diversos que fundam sua ecologia de vida cotidiana, corroborando a relação dos elementos de diferença a fim de ampliar a perspectiva dos diferentes entendimentos envolvidos e ainda fomentando a troca de experiências e o “desenvolvimento sereno e consciente de novas estratégias educa- cionais” (2020, p. 42).

Fortunati e Tognetti, em “Espaço e mobiliário”, discutem os fundamentos que contextualizam o projeto educativo e ressaltam, em “Ação e relação”, experiências de meninas e meninos no contexto educativo.

Em “Experiência e memória”, Fortunati enfatiza como planejar e documentar as experiências: entre as memórias do passado e a nostalgia do futuro. Ao final da primeira parte da obra, o autor discorre sobre “Governança e gestão”, indicando como planejar e organizar serviços de qualidade.

Na segunda parte do livro, composta por quatro capítulos, os textos elaborados por Aldo Fortunati em parceria com Bárbara Pagni apresentam o sistema de San Miniato, sua abordagem, seus pressupostos, as linhas norteadoras e o projeto, com riqueza de detalhes e imagens, incluindo as plantas baixas de cada instituição: os nidi Pinocchio, Il Gambero Rosso, Lucignolo, La Fata Turchina, Mastro Ciliegia, La Chiocciola; os micronidi Il Grillo, Il Gatto e La Volpe; e a área de encontros e jogos do Il Paese dei Balocchi. Os autores, ao final, apresentam La Bottega Di Geppetto - Centro Internazionale di Ricerca e Documentazione Sull’Infanzia Gloria Tognetti.

Já na terceira parte da obra, são discutidas as boas práticas, as diversidades, como projetar o espaço, como provocar as experiências com oportunidades, o valor dos cuidados, a centralidade do brincar, as possibilidades do projeto, as instruções ao uso do ateliê, o protagonismo das famílias e os apontamentos essenciais sobre uma formação que nunca acaba.

Na última parte, o livro é encerrado com “A mostra”, que apresenta a abordagem de San Miniato para a educação das crianças, com apontamentos sobre educação e protagonismo das crianças e educação e organização do espaço, bem como indicações preciosas sobre educação e currículo e educação e participação, culminando em uma discussão sobre o prazer da experiência, versando sobre relação e autonomia, as chaves das crianças para conhecer o mundo.

Um dos pontos centrais do livro é, pois, a assertiva de Fortunati de que projetar a ação educativa a partir da organização de oportunidades define algumas consequências positivas e importantes, colocando em relevo uma nova imagem de criança - ativa e protagonista - e destacando o papel do professor que se coloca em uma atitude de disponibilidade, de espera e de escuta.

Nessa perspectiva, Tognetti assevera que identificar e valorizar as diferenças, aplicar a edificação de um sistema de oportunidades organizadas e abertas a possíveis interpretações, dominar ferramentas de observação e de documentação a fim de dar visibilidade aos processos de aprendizagem e estar disponível para se relacionar com as famílias, suas narrativas e conhecimentos são, portanto, componentes primordiais de uma seriedade educativa, atenta à intencionalidade aberta ao imprevisível e, por isso, competente para acolher e valorizar o protagonismo das crianças em suas expressões ao longo dos processos de “crescimento e do desenvolvimento de suas experiências, relações e conhecimentos” (2020, p. 39).

Assim, concorda-se com os autores dessa obra que focalizam o sujeito criança e sua potência no centro do debate e o sujeito professor mediador do processo - que encontra na formação e no aprofundamento teórico sobre sua prática docente caminhos salutares que elevam a outro patamar seu modo de olhar, imaginar e construir o futuro com os olhos das crianças, sintetizados na tríade confiança, oportunidade e tempo, que dá título à obra.

Tal exercício de síntese exige a análise e a compreensão de que o tripé confiança- -oportunidade-tempo está intimamente imbricado em considerar os direitos das crianças, bem como em oportunizar espaços e tempos férteis de relações e comunicação com as famílias, por meio da documentação pedagógica, e possibilitar as interações e a exploração de espaços internos e externos, por intermédio do brincar.

Por tudo isso, considera-se que a relevância da obra está, primeiramente, na explicitação dos fundamentos da abordagem de San Miniato, comuna italiana que deu sequência a um compromisso firmado pelas mulheres pioneiras que provocaram a fundação do primeiro nido e, desde então, vem avançando na elevação da qualidade e responsabilidade social da educação das crianças. Em segundo lugar, pela forma instigante e esclarecedora que tece provocações às práticas pedagógicas desenvolvidas na educação de bebês e crianças pequenas na educação infantil, fundamentadas num referencial teórico-prático cuja especificidade metodológica está articulada a uma concepção diferenciada de formação, focalizando a relevância do papel do professor e do protagonismo das crianças como elementos fulcrais do debate.

Aldo Fortunati é presidente da La Bottega di Geppetto - Centro Internazionale Di Ricerca e Documentazione Sull’Infanzia Gloria Tognetti - da Instituzione del Comune di San Miniato, diretor da área da infância e da adolescência do Istituto degli Innocenti, em Florença, professor da Universidade de Florença, especialista do Eurosocial em Programas de Cooperação internacional, membro sênior do Gruppo Nazionale Nidi Infanzia e representante nacional da Itália na World Forum Foundation.

O centro La Bottega di Geppetto, que acaba de completar 20 anos, vem somar contribuições à experiência italiana e apresentar diferentes contextos no campo da educação das crianças menores de 6 anos, contribuindo com o que ficou conhecido mundialmente como pedagogia italiana em favor do desenvolvimento da pedagogia infantil. Com o trabalho de personalidades históricas, como Maria Montessori, ou de experiências extraordinárias, como as realizadas por Loris Malaguzzi em Reggio Emilia, muitos outros experimentos foram possíveis e se desenvolveram pelo território centro-norte italiano. Nesse sentido, é louvável a menção que o próprio Malaguzzi fez à pequena localidade italiana de San Miniato, no início da década de 1990, como uma experiência que honra os seus nidi, a infância e a cultura das crianças.

Diante do exposto, a obra organizada por Aldo Fortunati contribui salutarmente com as reflexões sobre as experiências do contexto italiano e os pontos de inflexão sobre as políticas nacionais voltadas para a infância nos sistemas de atendimento educacional, sobretudo no caso brasileiro. Nesse sentido, o destaque fica por conta da reafirmação de Tognetti de que não existe, como princípio orientador das políticas para a infância, nenhuma alusão a serviços voltados às crianças cujas famílias trabalham. Também não há um debate sobre se é melhor para uma criança pequena ficar em casa com sua família ou frequentar um nido ou outro tipo de serviço educacional. A questão que se coloca para o autor é: “garantir às crianças e aos pais contextos diferentes e complementares entre si” (2020, p. 129).

Ressalta-se, por fim, a ideia de Gloria Tognetti de que um bom projeto de educação e de futuro perpassa pela conscientização sobre a identidade e potencial de meninas e meninos e, salutarmente, a compreensão de que não nos percamos na simples retórica sobre os direitos.

Recomenda-se que graduandos, pós-graduandos e professores da área da educação infantil que ousem imaginar e perscrutar outro mundo possível para as nossas crianças leiam essa proeminente obra. Inclui-se, ainda, explícita recomendação de leitura aos gestores e às gestoras da educação, responsáveis que são pelas decisões sobre os (des)caminhos que conduzem as políticas públicas que afetam as crianças pequenas e suas famílias, no sentido de pensá-las como políticas públicas para as infâncias brasileiras.

Referências

Fortunati, A. (Org.). (2020). Confiança, oportunidade, tempo: Olhar, imaginar, construir o futuro com os olhos das crianças. Buqui. [ Links ]

1A presente resenha foi elaborada no contexto da pesquisa de pós-doutoramento e contribuiu, conjuntamente a outros procedimentos de pesquisa, com a revisão de literatura, a fundamentação teórica e a preparação da etapa da produção dos dados da investigação na visita técnica à cidade de San Miniato.

Recebido: 02 de Novembro de 2022; Aceito: 22 de Dezembro de 2022

Nota sobre autoria

Débora Cristina de Sampaio Peixe foi responsável pela escrita do manuscrito original, revisão e edição. Cleonice Maria Tomazzetti foi responsável pela supervisão, edição e revisão.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons