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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.53  São Paulo  2023  Epub 12-Dic-2023

https://doi.org/10.1590/1980531410032 

POLÍTICAS PÚBLICAS, AVALIAÇÃO E GESTÃO

PERFIL RACIAL DOCENTE E A EDUCAÇÃO PARA RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

RACIAL PROFILE OF TEACHERS AND EDUCATION FOR ETHNIC-RACIAL RELATIONS

PERFIL RACIAL DOCENTE Y LA EDUCACIÓN PARA RELACIONES ÉTNICO-RACIALES

PROFIL RACIAL DES ENSEIGNANT(E)S ET L’ÉDUCATION POUR LES RELATIONS ÉTHNICO-RACIALES

Fabiana Cristina da LuzI 
http://orcid.org/0000-0002-8602-4518

IUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil;


Resumo

Este artigo busca compreender se a presença de profissionais negras/os influencia na abordagem racial presente no projeto político pedagógico e nos planos de ensino de quatro escolas do município de São Paulo, sendo as duas com maior percentual de professoras/es brancas/os e as duas com maior percentual de professoras/es negras/os. Assim, por meio dos dados analisados, foi possível constatar que: (i) de maneira geral os documentos pedagógicos ainda não reconhecem a importância estrutural da questão racial; (ii) a presença de docentes negras/os pouco impacta a incorporação da temática nos projetos políticos pedagógicos; e (iii) o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana tem sido realizado por um grupo minoritário de docentes.

Palavras-Chave: RELAÇÕES RACIAIS; EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE; PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO; LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

Abstract

This article aims to understand whether the presence of black male and female professionals influences the racial approach in the political pedagogical project and teaching plans of four schools, two with a higher percentage of white male and female teachers and two with a higher percentage of black male and female teachers, in the city of São Paulo. The data analyzed showed that: (i) in general, the pedagogical documents still do not recognize the structural importance of the racial issue; (ii) the presence of black male and female teachers has little impact on the incorporation of the issue into the pedagogical political projects; and (iii) the teaching of Afro-Brazilian and African history and culture has been carried out by a minority group of teachers.

Key words: RACE RELATIONS; EDUCATION FOR DIVERSITY; EDUCATION PROFESSIONALS; LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

Resumen

Este artículo busca comprender si la presencia de profesionales negras(os) influye en el enfoque racial presente en el proyecto político pedagógico y en los planes de enseñanza de cuatro escuelas de la ciudad de São Paulo, siendo las dos con mayor porcentaje de profesoras(es) blancas(os) y las dos con una mayor porcentaje de profesoras(es) negras(os). Así, por medio de los datos analizados, se pudo verificar que: (i) de manera general, los documentos pedagógicos aún no reconocen la importancia estructural de la cuestión racial; (ii) la presencia de docentes negras(os) tiene poco impacto en la incorporación del tema en proyectos políticos pedagógicos; y (iii) la enseñanza de la historia y la cultura afrobrasileña y africana ha sido realizada por un grupo minoritario de docentes.

Palabras-clave: RELACIONES RACIALES; EDUCACIÓN PARA LA DIVERSIDAD; PROFESIONALES DE LA EDUCACIÓN; LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

Résumé

Cet article cherche à comprendre si la présence de professionnel(les)s noir(e)s influe sur l’approche racial du projet politico-pédagogique et des programmes de cours de quatre écoles de la ville de São Paulo (Brésil), dont les deux qui ont le plus grand pourcentage d’enseignant(e)s blanc(he)s et les deux qui ont le plus grand pourcentage d’enseignant(e)s noir(e)s. Après l’analyse des données, on a pu constater que: (i) dans l’ensemble, ces documents pédagogiques ne reconnaissent pas encore l’importance structurale de la question raciale; (ii) la présence d’enseignant(e)s noir(e)s a peu d’impact sur l’incorporation de cette thématique dans les projets politico-pédagogiques; et (iii) l’enseignement de l’histoire et de la culture afro-brésilienne et africaine est mené par un groupe minoritaire d’enseignant(e)s.

Key words: RELATIONS RACIALES; ÉDUCATION POUR LA DIVERSITÉ; •; PROFESSIONNELS DE L’ÉDUCATION; LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

NESTE ARTIGO BUSCAMOS ANALISAR DE QUE MANEIRA O PERFIL RACIAL DAS PROFESSO- ras e professores da Rede Municipal de Ensino (RME) de São Paulo impacta o reconhecimento da Lei Federal n. 10.639 (2003), que trata do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira. Pretendemos, a partir do tratamento e análise dos dados acerca da identificação racial das/os docentes das escolas municipais de ensino fundamental (Emefs), compreender se a presença de profissionais negras/os influencia na abordagem racial presente tanto no projeto político pedagógico (PPP) como nos planos de ensino de quatro unidades escolares; sendo as duas com maior percentual de professoras/es brancas/os e as duas com maior percentual de professoras/es negras/os.

É importante destacar que a análise proposta resulta também da minha percepção profissional1 acerca do não reconhecimento da Lei Federal n. 10.639 (2003) por grande parcela das/os docentes, bem como do tensionamento pedagógico causado pelo ingresso significativo de professoras/es negras/os conscientes de sua identidade racial na RME, especialmente após a promulgação da Lei n. 15.939 (2013), que dispõe sobre o estabelecimento de cotas raciais para negros e negras nos concursos públicos da cidade de São Paulo.

É fundamental pontuar ainda que a educação para relações étnico-raciais é uma obrigatoriedade legal, logo, cabe a todas/os docentes, independentemente da sua identidade racial, cumprir com as determinações impostas pela legislação. Entretanto há indícios de que o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana tem sido realizado predominantemente por docentes negras/os.

Desse modo, o artigo almeja apresentar novas possibilidades de pesquisas e de aprofundamento de uma discussão que é urgente e necessária, especialmente na cidade de São Paulo, que possui a maior população negra em números absolutos2 do Brasil (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010) e, portanto, tem um papel substancial na construção de uma educação efetivamente antirracista.

Isso posto, o texto está organizado em quatro seções. Na primeira realizamos uma breve discussão acerca da importância das Diretrizes Curriculares da Lei Federal n. 10.639/03 e de outras normativas que tratam da temática étnico-racial. Na sequência, apresentamos o perfil racial das/os docentes da Rede Municipal de Ensino, destacando a metodologia utilizada para o levantamento, bem como o resultado da análise dos dados. Na terceira seção, analisamos como os PPPs das quatros escolas selecionadas reconheceram a importância da questão racial. Por fim, na última seção, avaliamos como os planos de ensino das turmas do 6° ao 9° ano incorporam as diretrizes da Lei n. 10.639/03.

Reconhecimento e institucionalização da questão racial no sistema educacional brasileiro

Historicamente o Movimento Negro tem reivindicado não apenas o acesso à educação formal pela população negra, mas também o reconhecimento da importância de mulheres negras e homens negros para formação histórica, social, econômica, política e cultural do nosso país (Gonzalez, 1983; Nascimento, 1980). Contudo, apesar de algumas conquistas pontuais ao longo da segunda metade do século XX,3 apenas em 2003 esse reconhecimento se transformou em obrigatoriedade, a partir da promulgação da Lei Federal n. 10.639, de 9 de janeiro, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) ao determinar que o currículo oficial dos estabelecimentos de ensino, sejam públicos ou privados, incluam, obrigatoriamente, o ensino da história e cultura afro-brasileira. O artigo 26-A da LDB passou a vigorar da seguinte forma:

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1° O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2° Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. (Lei n. 10.639, 2003).

Posteriormente, em 2008, por meio da Lei Federal n. 11.645, foi realizada uma nova alteração na LDB para incluir o reconhecimento da importância estrutural dos povos indígenas na formação da nação brasileira. Não obstante, salientamos que, embora seja essencial compreender como os documentos pedagógicos formulados pelas Emefs têm reconhecido a questão das etnias indígenas, neste artigo não realizaremos especificamente essa análise.

É fundamental destacar a relevância dessa legislação (Lei n. 10.639, 2003; Lei n. 11.645, 2008), já que para a maioria das crianças brasileiras é na escola que ocorre o primeiro contato com a diversidade racial e étnica do nosso país. Assim, a luta e o engajamento histórico dos Movimentos Negros e dos Povos Indígenas, para a inclusão dessa discussão no âmbito das práticas educativas formais, relacionam-se com a função estratégica da escola, pois, além da aprendizagem de conteúdos curriculares, essa instituição também se constitui como espaço de formação social, histórica, política, cultural e afetiva, tantos das/os educandas/os, como de toda a comunidade escolar (docentes, coordenadoras/os pedagógicas/os, diretoras/os, demais funcionárias/os e familiares das/os estudantes).

Logo, não há como negar o quanto a escola é um local estratégico para descolonização e desconstrução de práticas racistas e discriminatórias presentes em nossa sociedade.

A partir da promulgação da Lei n. 10.639 (2003), foram elaboradas e publicizadas as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, por meio da Resolução CNE/CP n. 1 (2004) e seu respectivo parecer, aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (Parecer CNE/CP n. 3, 2004), além de produzidos o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais (Ministério da Educação [MEC], 2009) e outros materiais de orientação para uma prática pedagógica antirracista publicados pelo Ministério da Educação (MEC), dentre os quais destacamos: (i) Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal n. 10.639/2003 (MEC, 2005a); (ii) História da Educação do Negro e outras histórias (MEC, 2005b); e (iii) Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais (MEC, 2006).

No Parecer CNE/CP n. 3 (2004), aprovado pelo Conselho Nacional da Educação, a relatora, Profa. Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, contextualiza a conquista da Lei n. 10.639/03, destacando a luta fundamental do Movimento Negro, e indica os princípios para assegurar uma educação para relações étnico-raciais, na qual:

. . . todos se vejam incluídos, em que lhes seja garantido o direito de aprender e de ampliar conhecimentos, sem ser obrigados a negar a si mesmos, ao grupo étnico/racial a que pertencem e a adotar costumes, ideias e comportamentos que lhes são adversos. (Parecer CNE/CP n. 3, 2004, p. 9).

O parecer aponta ainda que a Lei n. 10.639/03 não busca uma mudança da abordagem eurocêntrica para afrocêntrica, mas sim o reconhecimento e valorização da importância dos povos indígenas, africanos e de seus descendentes (população negra), bem como dos asiáticos e europeus, para a sociedade brasileira. Ademais, o documento sublinha que a legislação “provoca bem mais do que inclusão de novos conteúdos, exige que se repensem relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino [e] condições oferecidas para aprendizagem” (Parecer CNE/CP n. 3, 2004, p. 8).

Diante disso, é fundamental que as/os docentes e todas/os profissionais de educação, bem como a sociedade civil em geral, não apenas possuam conhecimentos relativos ao texto da Lei n. 10.639/03, mas se apropriem das orientações e princípios das Diretrizes Curriculares e de outras publicações que tratam da questão racial, com o objetivo de assegurar e respaldar a efetiva implementação de uma prática pedagógica antirracista.

E, no caso da cidade de São Paulo, também é necessário conhecer os documentos institucionais que buscam orientar as ações em nível local, portanto a leitura das Orientações Curriculares: Expectativas de Aprendizagem para a Educação Étnico-Racial (Secretaria Municipal de Educação de São Paulo [SME-SP], 2008), bem como do próprio Currículo da Cidade,4 é primordial.

Nesse sentido, cabe explicitar que a análise dos projetos políticos pedagógicos e dos planos de ensino de quatro escolas paulistanas vincula-se com as determinações do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, que estabelece como uma das principais ações a serem desenvolvidas durante o ensino fundamental o incentivo e a garantia da “participação dos pais e responsáveis pela criança na construção do projeto político pedagógico e na discussão sobre a temática etnicorracial [sic]” bem como o tratamento e abordagem da “temática etnicorracial [sic] como conteúdo multidisciplinar e interdisciplinar durante todo o ano letivo” (MEC, 2009, p. 50).

Sublinhamos ainda que as práticas antirracistas devem estar presentes não apenas nos conteúdos curriculares e/ou nos documentos institucionais, como o PPP e os planos de ensino, mas sim no âmbito de todas as ações e relações interpessoais existentes no espaço escolar. Tal constatação, no entanto, não diminuiu a importância e o impacto das práticas e materiais pedagógicos na construção da identidade e da autoestima das/os estudantes negras/os, brancas/os, indígenas e amarelas/os, por esse motivo é fundamental compreendermos como os documentos pedagógicos reconhecem e tratam a temática étnico-racial.

Também temos ciência de que os documentos pedagógicos, em especial o PPP, muitas vezes são apenas ritos burocráticos, que pouco expressam a realidade escolar e/ou orientam os percursos pedagógicos (Caria, 2010), contudo, e em consonância com as orientações e determinações legais da própria Secretaria Municipal da Educação de São Paulo (Decreto Municipal n. 54.453, 2013), reconhecemos a potência do projeto político pedagógico em prol de uma prática educativa qualitativa e transformadora, especialmente no momento atual, no qual se discute a implementação de uma nova política curricular municipal.

Nesse contexto, convém assinalar que, nos últimos anos, a Prefeitura de São Paulo publicou um novo Currículo para a Rede Municipal de Ensino, que se alinha às diretrizes gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e também é o documento orientador dos PPPs das escolas públicas municipais (SME-SP, 2017). Portanto, apesar de todas as limitações e ressalvas, o PPP ainda é o instrumento que, conforme dispõe a LBD (Lei n. 9.394, 1996), deve orientar a prática pedagógica a partir da realidade e autonomia de cada escola (Azanha, 1998).

Isso posto, seguimos para a análise do perfil racial das escolas municipais, com o objetivo de identificar as características raciais das/os docentes; posteriormente, nas últimas seções, abordaremos o quanto essa presença impacta ou não o reconhecimento da temática racial pelos projetos políticos pedagógicos (PPPs) e pelos planos de ensino dos componentes curriculares do 6° ao 9° ano das Emefs.

Identificação e análise do perfil racial das(os) docentes da Rede Municipal de Ensino de São Paulo

Em outubro de 2019, a Prefeitura Municipal de São Paulo possuía, segundo informações disponibilizadas no Portal da Transparência, 555 escolas municipais de ensino fundamental. As Emefs são estabelecimentos que realizam o atendimento de estudantes do 1° ao 9° ano, sendo que do 1° ao 5° ano denomina-se de ensino fundamental I ou anos iniciais, e do 6° ao 9° ano, ensino fundamental II ou anos finais.

Na organização da Rede Municipal de Ensino de São Paulo existem três tipologias de escolas que atendem as/os estudantes do ensino fundamental: as escolas municipais de ensino fundamental regulares (Emefs) que atendem apenas o ensino fundamental (1° ao 9° ano); as escolas municipais de ensino fundamental e médio (EMEFMs), que, além do ensino fundamental regular, também possuem ensino médio, e os CEUs Emefs, que são escolas municipais de ensino fundamental situadas dentro dos centros educacionais unificados (CEUs), nos quais, além do ensino fundamental, ocorre o atendimento de bebês e crianças (centro de educação infantil - CEI - e escolas municipais de ensino infantil - Emei), bem como a realização de cursos e outras atividades esportivas e culturais abertas a toda a comunidade. Ademais, alguns CEUs também possuem cursos de ensino superior - são as chamadas universidades dos centros educacionais unificados (UniCEU). Assim, das 555 escolas existentes em 2019, 501 eram Emefs regulares, 46 CEUs Emefs e 8 EMEFMs.

Para realizar a análise do perfil racial das/os docentes, utilizamos a base de servidoras/es públicas/os ativos,5 no formato de tabela (xls), disponível no Portal Dados Abertos que integra a Política de Transparência Ativa da Prefeitura de São Paulo. Esse Portal reúne uma série de dados de diversas secretarias e órgãos municipais, incluindo um conjunto de informações sobre o funcionalismo público com atualização mensal. Para a realização deste artigo, utilizamos os dados referente ao mês de outubro de 2019.

Inicialmente, a base de dados contava com informações de 118.905 servidoras/es públicas/o ativas/os (efetivas/os ou comissionada/os) de todas as secretarias e órgãos da administração municipal direta. Assim, foi necessário realizar uma extração inicial que contemplasse apenas as/os funcionárias/os públicas/os da Secretaria Municipal de Educação, para na sequência realizar um novo filtro que contemplasse apenas as/os docentes das Emefs. Concluída a extração inicial, chegamos ao total de 33.391 docentes, distribuídos entre as 555 escolas.

Antes de iniciarmos a análise do perfil racial das/os docentes, é importante destacar que a obtenção dessa informação ocorre mediante autodeclaração do/a servidor/a, que no momento em que ingressa no serviço público municipal ou quando realiza o recadastramento anual6 pode identificar-se racialmente; no entanto, até o momento, tal identificação é facultativa7 e, por esse motivo, não há informações sobre a raça de muitas/os servidoras/es.

Ressalta-se também que a Prefeitura de São Paulo, em conformidade com as definições do IBGE, permite que o servidor ou servidora se identifique como amarela/o, branca/o, indígena, parda/o, preta/o ou não declare sua identificação racial. Nesse sentido, e em consonância com a metodologia proposta pelo Movimento Negro, em algumas análises agruparemos pretas/os e pardas/os na categoria negra/o.8

Isso posto, as primeiras indagações a serem respondidas por meio da análise dos dados eram: do universo das/os 33.391 docentes, quantas/os são amarelas/os, brancas/os, indígenas, negras/os (pretas/os e pardas/os) ou não informaram sua identificação racial? Existe uma presença majoritariamente branca? Ou as políticas de ações afirmativas para ingresso no serviço público municipal (Lei Municipal n. 15.939, 2013) modificaram esse quadro?

Tabela 1 Identificação racial geral das(os) docentes 

Identificação Racial Números Absolutos Porcentagem
Branca 20.197 60,49 %
Negra 8.997 26,94%
Não Informado 3.778 11,32%
Amarela 378 1,13%
Indígena 41 0,12%
Total 33.391 100%

Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP) disponíveis em http://dados.prefeitura.sp.gov.br/pt_PT/dataset/servidores-ativos-da-prefeitura.

Conforme demonstram os dados da Tabela 1, há uma presença majoritária de professoras/es que se declaram como brancas/os - mais de 20 mil ou pouco mais de 60% do total. Na sequência aparecem as/os professoras/es negras/os, representando cerca de 27% das/os docentes. Acerca dessa informação, é importante destacar que os dados desagregados mostram que 18% se autodeclaram pardas/os (5.969) e apenas 9% pretas/os (3.028), número inferior aos de docentes que não informaram sua identificação racial, que totaliza 11,32%. Por fim, 1,13% são amarelas/os (378 docentes) e 0,12% se autodeclaram indígenas, o que corresponde a apenas 41 professoras/es.

As informações sobre docentes indígenas merecem um estudo específico e detalhado, visto que detectamos um docente que se identificou como indígena, mesmo não sendo, pois, segundo ele, as demais classificações raciais (preto, pardo, branco e amarelo) não o contemplavam, já que ele se identifica como não branco. Tal fato evidencia o quanto o projeto de nação brasileiro, fundamentado na miscigenação e no embranquecimento da população, torna a questão da identificação racial complexa (Munanga, 1999). Entretanto, conforme já reconhecido pelo Estado brasileiro,9 em nosso país a identidade racial é demarcada pelo fenótipo, ou seja, as pessoas negras são identificadas a partir de suas características físicas - e no caso dos povos indígenas essa identificação ocorre mediante o vínculo com um determinado grupo étnico e sua ancestralidade. Desse modo, e considerando o caso do professor citado, fica evidente a necessidade de formações contínuas com as/os educadoras/es com foco na temática étnico-racial.

A primeira análise de dados gerou novas indagações, tais como: dentre as 555 escolas, quantas possuem mais de 60% de professoras/es brancas/os? Será que existe uma diferenciação quando consideramos as Emefs regulares, os CEUs Emefs e as EMEFMs?

Após a aplicação de alguns filtros na base de dados identificamos que, dentre as 555 escolas, 277 possuem mais de 60% de docentes brancas/os, o que representa cerca de 50% das unidades escolares. Entretanto, quando consideramos as diferentes tipologias de Emefs há uma diferenciação, visto que, enquanto em 62,5% das EMEFMs, 60% ou mais das/os professoras/es são brancas/os, nos CEUs Emefs a situação se altera, pois, entre as 46 existentes na cidade, em apenas 16 a presença de docentes brancas/os é igual ou superior a 60%, o que corresponde a 35% do total.

Os resultados acerca dos CEUs Emefs nos levaram a refletir sobre a existência de alguma escola na cidade de São Paulo com 60% ou mais das/os professora/es negras/os, o que representaria uma inversão do padrão geral. O resultado desta análise confirma que efetivamente há uma presença majoritária de profissionais brancas/os nas escolas, já que, das 555, apenas uma Emef,10 localizada no extremo Sul de São Paulo, no bairro Jardim Ângela, alcança esse índice para professoras/es negras/os. Cabe salientar que essa é, inclusive, a escola que apresenta o maior percentual de docentes que se autodeclaram como pretas/os, conforme demonstra a Tabela 2.

Tabela 2 Identificação racial das(os) docentes da Emef N-01 

Identificação Racial Número Absoluto Porcentagem
Preta 11 33,3%
Parda 9 27,3%
Branca 7 21,2%
Não Informado 6 18,2%
Amarela 0 0,0%
Indígena 0 0,0%
Total 33 100%

Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados da PMSP disponíveis em http://dados.prefeitura.sp.gov.br/pt_PT/dataset/servidores-ativos-da-prefeitura

A existência de apenas uma escola como mais de 60% de educadoras/es negras/os demonstra que, mesmo em um contexto no qual há políticas de ações afirmativas para ingresso de servidoras/es negras/os, ainda persiste a disparidade racial nas Emefs, especialmente se considerarmos que, em 139 escolas, mais de 71% das/os docentes são brancas/os, conforme revela a figura a seguir:

Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados da PMSP disponíveis em http://dados.prefeitura.sp.gov.br/pt_PT/dataset/servidores-ativos-da-prefeitura

Figura 1 Presença de docentes brancas(os) e negras(os) nas Emefs 

A Figura 1 evidencia também que, enquanto em 440 escolas mais de 50% das/os docentes são brancas/os, em apenas 9, de um total de 555 - ou seja, em menos de 2% -, mais de 50% das/os professoras/es são negras/os. Na Tabela 3, detalhamos o perfil racial das nove escolas que contrariam o padrão racial das Emefs paulistanas.

Tabela 3 Perfil racial das Emefs com mais de 50% das(os) docentes negras(os) 

ID da Escola Amarela Branca Não Informado Negra Indígena
N-01 0% 21% 18% 60% 0%
N-02 3% 29% 9% 59% 0%
N-03 0% 43% 0% 57% 0%
N-04 2% 24% 19% 56% 0%
N-05 3% 42% 0% 55% 0%
N-06 0% 42% 4% 54% 0%
N-07 6% 35% 6% 53% 0%
N-08 0% 38% 11% 52% 0%
N-09 0% 37% 11% 51% 0%

Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados da PMSP disponíveis em: http://dados.prefeitura.sp.gov.br/pt_PT/dataset/servidores-ativos-da-prefeitura

Há uma questão interessante acerca da localização dessas nove escolas, já que todas elas estão situadas na extrema periferia da zona sul (7 escolas) e da zona leste (2 escolas). Seria necessária uma pesquisa específica para compreender os motivos dessa concentração periférica. Entretanto uma das hipóteses se relaciona com a própria característica racial desses territórios, visto que a população que mora nessas regiões é majoritariamente negra e há grande probabilidade de as/os docentes residirem próximo às escolas nas quais trabalham.

Em contrapartida, em 43 escolas a presença das/os docentes brancas/os é igual ou superior a 80%, sendo que em 15 esse índice supera os 85%, o que significa que, de cada 10 professoras/es, mais de 8 são brancas/os, conforme detalhado na Tabela 4.

Tabela 4 Perfil racial das Emefs com 85% ou mais das(os) docentes brancas(os) 

ID da Escola Amarela Branca Não Informado Negra Indígena
B-01 0% 89% 5% 6% 0%
B-02 0% 88% 4% 8% 0%
B-03 3% 87% 8% 2% 0%
B-04 0% 87% 6% 7% 0%
B-05 0% 87% 7% 7% 0%
B-06 0% 86% 3% 10% 0%
B-07 0% 86% 2% 12% 0%
B-08 3% 86% 5% 6% 0%
B-09 0% 85% 11% 4% 0%
B-10 0% 85% 4% 11% 0%
B-11 2% 85% 8% 5% 0%
B-12 3% 85% 3% 10% 0%
B-13 2% 85% 4% 9% 0%
B-14 2% 85% 2% 11% 0%
B-15 8% 85% 0% 8% 0%

Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados da PMSP disponíveis em: http://dados.prefeitura.sp.gov.br/pt_PT/dataset/servidores-ativos-da-prefeitura

Outro ponto a ser destacado relaciona-se com a existência de uma escola que não possui nenhuma/um docente que se autodeclara negra/o. Trata-se de uma Emef da região do Ipiranga, na qual 83,3% das/os professoras/es se autodeclaram brancas/os, 2,4% amarelas/os e 14,3% não informaram sua identificação racial. É urgente refletir sobre a existência de uma situação como essa, em que, dentre 42 educadoras/es, nenhum é ou se autodeclarou negra/o, especialmente na cidade com a maior população preta e parda em números absolutos do Brasil.

Assim questionamos: Qual o impacto da ausência de diversidade racial na prática pedagógica, principalmente no que diz respeito ao reconhecimento da importância da Lei Federal n. 10.639 (2003)? Será que existe uma diferenciação nessa abordagem quando comparamos as escolas com maior presença de docentes negras/os àquelas com presença majoritária de docentes brancas/os?

Para responder essas questões, realizamos a análise dos projetos políticos pedagógicos, bem como dos planos de ensino do 6° ao 9° ano, de quatros escolas, sendo as duas com maior percentual de docentes negras/os e as duas com maior percentual de docentes brancas/os.

O impacto do perfil racial docente no reconhecimento da Lei Federal n. 10.639 (2003)

Antes de apresentarmos a análise dos documentos institucionais, cabe explicitar o percurso para a obtenção dessas informações. Nosso objetivo era analisar o projeto político pedagógico, bem como os planos de ensino das turmas do ensino fundamental II (6° ao 9° ano) das quatros escolas foco deste artigo. Assim, para acessar essas documentações, foi realizada uma solicitação, via Lei de Acesso à Informação (LAI) (Lei n. 12.527, 2011), à Secretaria Municipal de Educação (SME). Entretanto a SME simplesmente ignorou o pedido inicial, sendo necessária a abertura de dois recursos, que também não foram respondidos. Foi preciso solicitar a intervenção da Controladoria Geral do Município (CGM), órgão responsável pelo monitoramento da aplicação da LAI na cidade de São Paulo, para que os dados fossem então disponibilizados. Contudo, do pedido inicial até o acesso às informações, decorreram mais de seis meses.11

Essa situação evidencia que o acompanhamento das políticas públicas educacionais, bem como das determinações legais estabelecidas pelas Leis federais n. 10.639/03 e n. 11.645/08, não é um processo simples. É necessário, portanto, que o poder público, os Movimentos Negro e dos Povos Indígenas, bem como toda a sociedade, se engajem para que ocorra uma ampla divulgação das informações que são extremamente importantes, não apenas para diagnosticar e compreender como a temática étnico-racial tem sido incorporada pelas práticas pedagógicas, mas especialmente para contribuir com a efetivação de uma educação que promova, respeite e valorize a pluralidade racial, étnica e cultural presentes nas escolas brasileiras.

Os projetos políticos pedagógicos e o reconhecimento da Lei n. 10.639 (2003)

Neste tópico nosso foco de análise serão os projetos políticos pedagógicos (PPP) das Emefs B-01, B-02, N-01 e N-02,12 referentes ao ano de 2019, que foram examinados com vistas a compreender como a temática racial tem sido reconhecida pelos documentos em questão.

Inicialmente, cabe pontuar que cada escola adota uma metodologia específica para construção do seu PPP. Assim, enquanto o documento de uma Emef tem cerca de 50 páginas e apresenta as principais características da unidade escolar e das/os estudantes, os objetivos e as diretrizes gerais do processo de ensino-aprendizagem, outro PPP, além desses elementos, incorpora, em suas 200 páginas, trechos de documentos institucionais da Prefeitura, os planos e objetivos das áreas de conhecimento, bem como a caracterização socioeconômica das/os discentes e de seus familiares. Essas diferenças - de formato, dimensão e organização - não se mostraram determinantes na qualidade e finalidade geral do documento, tampouco impactaram no reconhecimento ou não das determinações impostas pela Lei Federal n. 10.639 (2003).

Outro ponto que merece ser ressaltado vincula-se ao perfil racial das/os diretoras/es e coordenadoras/es pedagógicas/os, pois o PPP é um documento que deve apresentar os anseios, perspectivas e objetivos de toda comunidade escolar, e na Rede Municipal de Ensino de São Paulo, em conformidade com o artigo 11 do Decreto n. 54.453 (2013), os processos de elaboração, implementação e avaliação do PPP devem ser conduzidos pelas/os coordenadoras/es pedagógicas/os. Assim, apresentamos nas tabelas 5 e 6 as informações raciais das gestoras e gestores das escolas com maior percentual de docentes brancas/os e com maior percentual de docentes negras/os.

Tabela 5 Perfil racial da gestão das Emefs com maior % de docentes brancas/os 

Cargo ID da Escola Raça
Coordenador pedagógico Emef B-01 branca
Coordenador pedagógico Emef B-01 branca
Diretor de escola Emef B-01 branca
Coordenador pedagógico* Emef B-02 branca
Diretor de escola Emef B-02 branca

Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados da PMSP disponíveis em http://dados.prefeitura.sp.gov.br/pt_PT/dataset/servidores-ativos-da-prefeitura

* No momento de levantamento dos dados nesta unidade escolar havia apenas uma Coordenadora Pedagógica (CP), diferentemente das demais escolas, nas quais havia duas CPs.

Tabela 6 Perfil racial da gestão das Emefs com maior % de docentes negras/os 

Cargo Nome da Escola Raça
Coordenador pedagógico Emef N-01 parda
Coordenador pedagógico Emef N-01 preta
Diretor de escola Emef N-01 preta
Coordenador pedagógico Emef N-02 branca
Coordenador pedagógico Emef N-02 branca
Diretor de escola Emef N-02 parda

Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados da PMSP disponíveis em http://dados.prefeitura.sp.gov.br/pt_PT/dataset/servidores-ativos-da-prefeitura

Verifica-se que a característica racial da equipe gestora das escolas com maior número de docentes brancas/os também possui gestoras/es brancas/os, e, em uma das escolas com presença significativa de docentes negras/os, a gestão também segue o mesmo perfil racial, já na Emef N-02 apenas o diretor é negro.

Salientamos ainda que, para a análise da documentação pedagógica, optamos pelo agrupamento das escolas a partir do perfil racial de cada uma delas, logo as Emefs serão identificadas da seguinte forma:

  • Grupo A: Emefs com maior percentual de docentes negras/os.

  • Grupo B: Emefs com maior percentual de docentes brancas/os.

Os PPPs do Grupo A apresentam informações acerca das práticas pedagógicas gerais das unidades e das propostas específicas para cada componente curricular, fato que contribuiu para a compreensão de como a temática racial é incorporada pelos planos de ensino.

Em uma das escolas do Grupo A a Lei Federal n. 10.639/03 é indicada como um documento que embasou a elaboração do PPP, entretanto no decorrer do texto não se encontra nenhuma referência às diretrizes da legislação, nem mesmo quando se trata dos objetivos das práticas pedagógicas a serem desenvolvidas ao longo do ano letivo.

Nesse PPP também há o registro da realização do Leituraço, ação proposta pela Secretaria Municipal de Educação, que incentiva o tratamento da questão étnico-racial a partir da leitura de livros com a temática indígena no mês de agosto e com a temática negra no mês de novembro. Destacamos que essa ação, embora importante, é criticada por parcela das/os docentes, pois reproduz o tratamento pontual da temática ao estabelecer a leitura em momentos específicos do ano letivo.

Já no PPP da segunda escola do Grupo A a questão racial não aparece em nenhum momento, há apenas uma referência acerca da importância de considerar as diferenças entre infâncias e juventudes e, nesse momento, cita-se a diversidade étnica, mas não se faz menção à questão racial.

No que concerne às propostas curriculares constantes nos PPPs das escolas do Grupo A, não há o reconhecimento explícito da importância da temática foco deste artigo; embora alguns trechos dos documentos apontem a necessidade de considerar a diversidade e a identidade das/os discentes, os documentos não especificam quais elementos as compõem. Ademais, algumas propostas curriculares apresentam como objetivo o combate aos preconceitos e as discriminações sociais, de gênero e étnicas. Nesse sentido, verifica-se que há uma substituição do uso das palavras raça/racial por étnica/etnia, já que essas últimas, de certa forma, amenizam e apaziguam os conflitos e tensões que as palavras raça/racial trazem consigo, contudo é necessário lembrar que:

. . . quando se discute a situação do negro na sociedade brasileira, raça é ainda o termo mais adotado pelos sujeitos sociais. É também o que consegue se aproximar da real dimensão do racismo presente na sociedade brasileira. Dessa forma, o Movimento Negro e alguns cientistas sociais quando falam em raça não o fazem mais alicerçados na ideia de purismo racial tampouco de supremacia racial. Ao contrário, usam essa categoria com uma nova interpretação, baseados em uma reapropriação social e política, construída pelos próprios negros. Usam-na, ainda, porque, no Brasil, o racismo e a discriminação racial que incidem sobre os habitantes negros ocorrem não somente em decorrência dos aspectos culturais presentes em suas vidas. (Gomes, 2001, p. 84).

Ademais, essa negação em relação à palavra raça é semelhante à que ocorre com a palavra negro, visto que ambas “não encobre[m] o racismo, além disso lembra[m] a reivindicação antirracista” (Cuti, 2012, p. 2).

Acerca dos projetos políticos pedagógicos das escolas do Grupo B (maior percentual de docentes brancas/os), cabe pontuar que, no PPP de uma das escolas, o cumprimento da Lei n. 10.639/03 consta como um dos principais objetivos do documento, e, entre as ações para alcançá-lo, está a formação docente, realizada durante o expediente escolar, com a finalidade de promover uma prática pedagógica que valorize a diversidade étnico-racial brasileira.

Dos quatros PPPs, apenas esse identifica expressamente o espaço escolar como um local de reprodução do racismo, além de reconhecer que para combatê-lo é necessário ter embasamento teórico sobre a questão. Existe, portanto, uma compreensão acerca dos processos formativos como estratégia fundamental para a garantia de uma educação para relações étnico-raciais.

No outro PPP do Grupo B há alguns pontos que merecem destaque: embora o documento faça menção à importância da discussão étnico-racial no processo de implementação do currículo, essa questão aparece como mais um elemento dentro de uma lista que engloba as temáticas de “sustentabilidade, tolerância, mulher na sociedade e diversidade”. Desse modo, ao colocar a questão étnico-racial no mesmo nível das questões relacionadas à tolerância, por exemplo, ignora-se o fato de que o racismo estrutura as relações sociais em nosso país e consequentemente no espaço escolar.

Além disso, ao destacar os objetivos de aprendizagens das/os discentes, o PPP sublinha a importância de “conhecer as características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao país” (grifos nossos).13 Fica assim explícito que não existe o reconhecimento da raça como elemento estrutural da formação da identidade das/os estudantes, pelo contrário - na nossa percepção, há uma negação, ao longo desse PPP, acerca da importância de debater a questão racial na escola. E esse é um fato grave, pois, além da necessidade de romper com o silêncio que estrutura as relações raciais no Brasil (Bento, 2002), é urgente que se abordem:

. . . as diferenças sem medo, receio ou preconceito. Nesse ponto, deparamo-nos com a obrigação . . . de implementar medidas que visem o combate ao racismo e à estruturação de projeto pedagógico que valorize o pertencimento racial dos(as) alunos(as) negros(as). (MEC, 2006, p. 23).

Na atualidade as escolas não podem mais se abster de sua obrigatoriedade de proporcionar uma prática pedagógica que busque promover a equidade étnico-racial, especialmente porque, ainda hoje, permanecem na nossa sociedade estereótipos negativos sobre a população negra e indígena, e o padrão estético, social e cultural ainda é branco e eurocêntrico.

Nessa perspectiva, é necessário assinalar que, para além da ausência ou omissão sobre a temática, o PPP pode induzir práticas que intensificam a discriminação racial e, consequentemente, a exclusão social, visto que, como nos ensina Silva (2001, p. 68), “a exclusão escolar é o início da exclusão social da criança negra, já que o acesso ao conhecimento sistematizado é condição estruturante para que o repertório cultural das pessoas possa se expandir”.

Em relação aos componentes curriculares, nenhum dos PPPs do Grupo B detalha os objetivos de aprendizagem, embora em um dos documentos esteja presente a reprodução literal de trechos do Currículo da Cidade. Aliás, essa é uma prática que se repetirá em alguns planos de ensino das quatros escolas foco deste artigo e cuja análise apresentaremos na seção a seguir.

A questão racial nos planos de ensino das Emefs

Antes de iniciarmos a análise dos planos de ensino das turmas do 6° ao 9° ano das quatro escolas que constituem o foco deste artigo, é importante salientar que a Prefeitura de São Paulo possui um sistema informacional, denominado Sistema de Gestão Pedagógica (SGP), que funciona de forma semelhante ao Diário de Classe, no qual as/os docentes registram os planos de ensino e de aula, bem como a frequência e as notas das/os estudantes.

A despeito da importância do SGP em relação aos registros e acompanhamento do processo de ensino-aprendizagem, a primeira versão14 desse Sistema apresentou uma série de problemas e falhas, e, por esse motivo, inicialmente o SGP não foi devidamente apropriado pelas/os professoras/es como uma ferramenta estrutural da prática educativa.

As informações dos planos de ensino registrados no SGP das quatro escolas também foram obtidas via Lei de Acesso à Informação, e a própria Controladoria Geral do Município e a Secretaria Municipal de Educação reconheceram as instabilidades do Sistema,15 inclusive para a extração e envio dos dados solicitados.

Acerca do reconhecimento da questão racial e étnica, dado que percebemos que há uma interdependência e uma confusão acerca de ambos os termos/conceitos nos documentos pedagógicos das Emefs, podemos apresentar quatros situações mais frequentes nos planos de ensino, a saber:

  1. planos que não fazem nenhuma menção à questão racial e étnica;

  2. planos que abordam a temática racial e étnica de forma, aparentemente, colonizada e estereotipada;

  3. planos que tratam da questão racial somente no mês de novembro, tido como mês da Consciência Negra; e

  4. planos que apresentam propostas de tratamento étnico-racial em consonância com as determinações da Lei n. 10.639 (2003).

Apesar de essas situações terem sido verificadas nas quatros escolas, é importante destacar que, em alguns casos, existem diferenças consideráveis entre planos de ensino de uma mesma unidade escolar. Tal fato ocorreu quando mais de um/a professor/a ministrava o mesmo componente curricular para turmas diferentes de uma mesma série/ano.16

Assim, na nossa análise foi possível constatar que nenhum plano de ensino do componente curricular de Ciências Naturais, tanto das escolas do Grupo A como do Grupo B, trata da questão racial e/ou étnica. No caso de Matemática, em apenas duas turmas do 6° ano, sendo uma da escola do Grupo A e outra do Grupo B, a questão racial é trabalhada partir da exploração dos conceitos e relações matemáticas pelas culturas africanas. Entretanto, em uma das escolas tal abordagem acontece apenas no quarto bimestre, fato que indica uma provável relação com a temática da Consciência Negra, no mês de novembro.

Essa ausência tem relação direta com o Currículo da Cidade de ambos os componentes curriculares, pois, embora nas diretrizes e determinações gerais do Currículo a questão racial apareça como estruturante, quando analisamos as competências e habilidades, denominadas Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento (OAD), previstas para os componentes de Ciências Naturais e Matemática, não há nenhuma menção a raça, etnia e/ou povos indígenas, há apenas uma breve referência à matemática africana17 no Currículo de Matemática.

Verifica-se assim um descompasso entre as diretrizes gerais do Currículo da Cidade e as linhas/temáticas dos componentes curriculares, processo que, consequentemente, se repete em alguns planos de ensino que foram construídos somente a partir das determinações do referido documento.

A segunda situação mais comum é a reprodução de uma perspectiva racial e dos povos africanos e indígenas de forma colonizada e estereotipada, que trata especialmente dos processos de escravização dessas populações, da caracterização dos povos colonizados como “índios e escravos”,18 acarretando uma visão limitada das práticas culturais desses grupos étnico-raciais.

Essa situação é frequente no caso dos componentes curriculares de História e de Artes, que são, inclusive, os componentes que aparecem como prioritários no âmbito da aplicação da Lei n. 10.639/03; ou seja, existe ainda uma compreensão limitada e equivocada do modo como a temática étnico-racial deve ser trabalhada, fato que reforça a importância da formação continuada das/os docentes. Essa situação foi constatada nas escolas de ambos os Grupos.

Em relação ao componente curricular de Língua Portuguesa, que também aparece como um componente curricular prioritário na referida legislação, em nenhum dos Planos de Ensino das escolas do Grupo B há referência à questão racial e/ou étnica; nem mesmo os Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento presentes no Currículo da Cidade que tratam da temática são reproduzidos nos planos de ensino.

Ainda sobre o Currículo da Cidade de Língua Portuguesa, é importante assinalar que a questão racial aparece no documento de forma extremamente limitada e, na nossa avaliação, problemática. No caso do ensino fundamental II, por exemplo, em apenas dois momentos ela está presente, sendo que uma delas se repete em todas as séries/ano e está relacionada com a temática de variação linguística, para a qual devem ser considerada as influências interculturais africanas e também indígenas; ainda, no segundo caso a temática étnico-racial aparece junto com a questão de gênero e do uso desregrado dos recursos naturais, como um possível tema a ser debatido pelas/os discentes do 8° ano; o fato curioso é que o documento de Língua Portuguesa aborda um elemento estrutural, e que, obrigatoriamente, deve ser trabalhado no processo de ensino-aprendizagem, como um tema polêmico, ainda que de relevância social:

(EF08LP20) Participar da definição coletiva de uma questão polêmica a ser debatida na classe: uma questão de relevância social como as questões de gênero, as relações étnico-raciais, o uso desregrado dos recursos naturais, a situação do planeta e as implicações para a humanidade. (SME, 2017, p. 160, grifos nossos).

A terceira situação identificada na análise dos planos de ensino é aquela na qual a temática racial é abordada apenas no mês de novembro. Encontramos tal prática nas escolas do Grupo A e do Grupo B, especialmente nos componentes de Artes, História, Leitura e em uma série/ano de Tecnologias para Aprendizagem/Informática (escola do Grupo B) e de Língua Inglesa (escola do Grupo A). Essa abordagem aparece nos planos de ensino com as seguintes denominações: “Cultura africana em nosso país”; “Cultura afrodescendente no Brasil”; “Evento Cultural: Novembro Negro”; “História da Consciência Negra”; “Literatura africana”; “Poemas e Contos africanos”; e “Semana da Consciência Negra”.

O foco no tratamento da questão racial no mês de novembro não é, por si só, problemático, inclusive porque a própria Lei n. 10.639/03 estabelece a incorporação no calendário escolar do dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra. O ponto discutível é a abordagem da questão em um único momento do ano letivo, fato que reforça justamente o que a lei busca combater, isto é, a perpetuação de um processo de ensino-aprendizagem eurocêntrico e no qual as/os estudantes negras/os não se veem incluídos (Parecer CNE/CP n. 3, 2004). Além disso, a abordagem restrita ao mês de novembro reafirma uma perspectiva de que negras/os e indígenas tiveram participação secundária na formação histórica, social, econômica e cultural brasileira, quando, na verdade, esses grupos foram estruturais para a construção física e simbólica da sociedade brasileira (Gonzalez, 1983).

Ademais, as denominações de algumas atividades do então denominado mês da Consciência Negra presentes nos planos de ensino das escolas analisadas indicam um tratamento superficial e limitado da temática, especialmente ao vincular a Consciência Negra somente à questão cultural e ao ignorar a população negra brasileira, já que há um hiperfoco nos povos africanos, negando assim que o processo de escravização das etnias africanas contribuiu para a reconstrução/redefinição do que é ser negra/negro na diáspora e na sociedade brasileira.

Por fim, chegamos à quarta situação, na qual há uma correspondência entre os planos de ensino e o reconhecimento das determinações da Lei n. 10.639 (2003). Essa situação foi verificada sobretudo nos componentes curriculares de Geografia e de Educação Física. Os Currículos da Cidade de ambos os componentes abordam a questão étnico-racial em momentos variados das etapas de aprendizagem, fato que é reproduzido pelos planos de ensino e que evidencia a importância das políticas e documentos educacionais e/ou curriculares, pois, conforme constatado, eles ampliam as possibilidades de as/os docentes reconhecerem e incorporarem a questão em seus planos e propostas pedagógicas.

Entretanto, há alguns problemas na forma como o próprio Currículo da Cidade lida com a questão. De maneira geral, quando fala da população negra, dos povos africanos e/ou indígenas, o Currículo o faz apenas a partir de uma perspectiva cultural que, sem a devida mediação da/o docente, pode reforçar, conforme já pontuamos, uma compreensão limitada da importância desses grupos raciais e étnicos para a formação do nosso país.

Não obstante, apesar da presença da temática no Currículo da Cidade, constatamos que alguns planos de ensino de Educação Física ignoraram e/ou invisibilizaram a questão racial. Esse fato foi verificado em uma escola do Grupo B, de maioria de docentes brancas/os, na qual o/a professor/a reproduziu na integra os Objetivos de Aprendizagens e Desenvolvimento do Currículo da Cidade, excluindo justamente os trechos que tratam do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, fato que evidencia uma negação consciente das determinações da Lei Federal n. 10.639 (2003).

Em relação ao componente curricular de Geografia, dentre as quatro Emefs, em apenas uma escola do Grupo A, de maioria de docentes negras/os, a questão racial não é abordada em nenhum momento do ano letivo. Em contrapartida, na outra escola do Grupo A, em todos os bimestres o/a docente de Geografia indica que trabalhará com o “desenvolvimento da temática africanidades19 e de povos indígenas”, para além das determinações e indicações do Currículo da Cidade. Esse foi o único caso, dentre todos os planos de ensino analisados, no qual a questão foi incorporada como tema constante e contínuo do processo de ensino-aprendizagem.

Outra questão que merece destaque é que não se verifica uma correspondência direta entre os PPPs e os planos de ensino, ou seja, o fato de a temática racial estar ou não presente no projeto político pedagógico pouco impactou o tratamento da questão pelos documentos elaborados pelas/os docentes. Na verdade, ocorreu um processo inverso: na escola cujo PPP abordou de maneira mais qualificada a questão racial, os planos de ensino pouco trataram da temática, e, na escola que não indicou a Lei n. 10.639/03 em seu PPP, houve uma abordagem mais coerente da questão étnico-racial pelos planos de ensino.

Diante do exposto, é possível apresentar alguns elementos conclusivos, a saber: (i) os planos de ensino não consideram necessariamente os objetivos e diretrizes do projeto político pedagógico; (ii) há um descompasso entre o que prevê o PPP e os conteúdos/práticas pedagógicas dos planos de ensino; (iii) a presença de docentes e/ou gestores negras/os nas escolas tem pouca influência no reconhecimento da Lei n. 10.639/03 pelos PPPs; (iv) os planos de ensino indicam que o perfil racial da/o docente (responsável por um determinado componente curricular) impacta, de forma mais significativa, a incorporação ou não da questão étnico-racial no planejamento; e (v) após 20 anos da promulgação da Lei n. 10.639 (2003), suas Diretrizes Curriculares ainda não foram efetivamente reconhecidas pelos documentos que, ao menos “teoricamente”, orientam as práticas pedagógicas.

Assim, de modo geral, nos projetos políticos pedagógicos, nos planos de ensino e também no próprio Currículo da Cidade, a questão racial está ausente ou aparece de forma pontual, como um tema secundário, o que acaba por reforçar justamente o que as normativas que tratam da educação para relações étnico-raciais buscam combater, isto é, a ausência de reconhecimento da importância estrutural de africanas/os, negras/os e indígenas na formação da sociedade brasileira. Ademais, é preciso lembrar que:

. . . para obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que desfazer mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos. Isto não pode ficar reduzido a palavras e a raciocínios desvinculados da experiência de ser inferiorizados vivida pelos negros, tampouco das baixas classificações que lhe são atribuídas nas escalas de desigualdades sociais, econômicas, educativas e políticas. (Parecer CNE/CP n. 3, 2004, p. 6).

É fundamental que o poder público, e, no caso desta pesquisa, a Prefeitura Municipal de São Paulo por meio de sua Secretaria de Educação, desenvolva ações diagnósticas, formativas e avaliativas sobre o reconhecimento e implementação das Diretrizes Curriculares da Lei n. 10.639 (2003), haja vista que a não racialização do processo educativo desconsidera que as escolas são espaços nos quais há uma intensa reprodução de práticas racistas presentes na sociedade brasileira e cuja principais vítimas são os sujeitos negras/os e os povos indígenas (Cavalleiro, 2004).

Para finalizar, é fundamental recordar que buscamos compreender como o perfil racial de docentes e/ou gestores negras/os influencia no reconhecimento ou não da temática racial pelos projetos políticos pedagógicos e pelos planos de ensino das escolas com maior percentual de docentes negras/os e brancas/os, não almejamos e não trabalhamos com a efetiva implementação das determinações da Lei Federal n. 10.639 (2003). Portanto, ainda que, nem sempre, a teoria (os documentos institucionais) represente a prática, a análise aqui realizada indica que ainda estamos distantes de uma prática educativa que reconhece e valoriza a diversidade racial e étnica do nosso país.

Isso posto, acreditamos que existe um campo de pesquisa em aberto, e o momento atual é propício para tal discussão, já que a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo recentemente revisou sua política curricular, fato que, consequentemente, impõe a adequação das práticas pedagógicas e possibilita também uma discussão acerca da garantia de uma educação para relações étnico-raciais.

1 Desde 2017 sou servidora municipal da RME de São Paulo. Inicialmente atuei como docente e, desde 2021, atuo como coordenadora pedagógica.

2 Segundo dados do Censo, realizado pelo IBGE, em 2010 a cidade de São Paulo possuía 4.164.504 habitantes que se autodeclaravam pretas/os e pardas/os.

3 Vide as seguintes legislações: de São Paulo, Lei n. 11.973 (1996); de Belém, Lei n. 7.685 (1994); de Aracaju, Lei n. 2.251 (1995).

4 Ao longo das três últimas gestões, a Prefeitura de São Paulo, por meio de sua Secretaria de Educação, investiu na revisão de sua política curricular. Assim, desde 2017, publicou os Currículos da Cidade para Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio, bem como para a Educação de Jovens e Adultos. Destaca-se que o Currículo da Cidade deve orientar a prática pedagógica das escolas municipais a partir de orientações curriculares gerais e de competências e habilidades específicas, denominadas de Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento. Todos os Currículos publicados estão disponíveis em https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/curriculo-da-cidade/

5 A base que utilizamos possui a respectiva nomeação e descrição: Relação de Servidores Ativos da Prefeitura de São Paulo; Extraída do Sistema Integrado de Gestão de Pessoas e Competências - SIGPEC; essa base contém informações sobre todos os funcionários ativos da administração direta da Prefeitura de São Paulo, tais como nomes, cargos, órgão de lotação e perfil (sexo, idade, raça), e encontra-se disponível em http://dados.prefeitura.sp.gov.br/pt_PT/dataset/servidores-ativos-da-prefeitura

6 Anualmente, no mês de seu aniversário, todas as servidoras e servidores ativos, aposentadas/os ou pensionistas da Prefeitura de São Paulo devem, obrigatoriamente, realizar o recadastramento, que, basicamente, consiste na atualização dos seus dados cadastrais, inclusive de sua identificação racial, sendo esta, como já destacamos, facultativa.

7 Cabe destacar que desde 2015 a cidade de São Paulo possui uma lei (Lei n. 16.129, 2015) que estabelece que “o quesito raça/cor deve ser incluído em todos os sistemas de informação, avaliação, monitoramento, coleta de dados, censos e programas da cidade”, entretanto não há na referida legislação nenhuma orientação sobre a obrigatoriedade do preenchimento dessa informação.

8 É importante destacar que historicamente o Movimento Negro defendeu a unificação de pretas/os e pardas/os na categoria negra/o, inclusive como estratégia de combate ao processo de embranquecimento da população brasileira. Nesse contexto, cabe ressaltar que a proposta metodológica de agrupamento também foi adotada pelos órgãos e instituições estatais, como o IBGE, que durante o Censo de 1990, por exemplo, se engajou na campanha do Movimento Negro “Não deixe sua cor passar em branco, responda com bom c/senso”, pela defesa da autodeclaração racial. Para saber mais, consulte a apresentação de Wania Sant’Anna: https://celade.cepal.org/censosinfo/Documentos/SANTANA_No__.pdf

9 A Portaria Normativa n. 4 (2018), que disciplina o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração da população negra para as vagas reservadas nos concursos públicos, ressalta que a identificação racial da população negra brasileira ocorre mediante as características fenotípicas desse grupo racial.

10 Para evitar a identificação das unidades escolares, o que poderia acarretar juízo de valores, críticas e comparações específicas, optamos por não identificá-las nominalmente; assim, ao longo deste texto, as Emefs com maior percentual de docentes negras e negros serão identificadas com a letra N e um número natural que substitui o nome oficial (p.ex.: N-01; N-02, N-03, etc.), e as escolas com maior percentual de docentes brancas e brancos, com a letra B e um número natural (p.ex.: B-01, B-02, B-03, etc.).

11 É necessário destacar que a Lei n. 12.527 (2011) estabelece que os órgãos públicos devem fornecer as informações no prazo de 20 dias, prorrogáveis por mais 10, mediante justificativa expressa.

12 Conforme exposto acima, com vistas a preservar a identidade das unidades escolares, optamos por identificar as Emefs com as letras N (maior percentual de docentes negras/os) e com a letra B (maior percentual de docentes brancas/os).

13 Destacamos que, apesar de apresentarmos uma citação literal do PPP, com vistas a evitar a identificação específica da unidade escolar, não informaremos dados (autor/escola, ano e página).

14 Atualmente está em funcionamento uma nova versão desse sistema, denominada Novo SGP, que apresenta melhorias significativas quando comparada à versão anterior, da qual os registros aqui analisados foram extraídos.

15 Em resposta ao questionamento realizado sobre os campos dos planos de ensino não preenchidos corretamente ou com informações incompletas e/ou ilegíveis, a CGM e a SME informaram que “trata-se de Sistema em fase de aprimoramento e que apresentou diversos problemas técnicos ao longo dos últimos anos” (informação recebida via e-mail no dia 17 de junho de 2020).

16 Por exemplo, um determinado professor lecionava inglês paras as turmas do 6°A e 6°B, enquanto outra docente era responsável pelo ensino do componente para as turmas do 6°C e 6°D.

17 Nos Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento do Currículo de Matemática do 6° ano do ensino fundamental, há uma breve referência à matemática africana. Ademais, nas orientações gerais desse documento, há o reconhecimento da importância da etnomatemática para as práticas pedagógicas do componente; entretanto, nos Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento, tal perspectiva não está presente.

18 Os povos indígenas não se reconhecem como índios, haja vista que esse foi um termo atribuído a eles pelos colonizadores e que apaga/ignora a diversidade e diferenças entre as etnias indígenas. Já a palavra escravo desumaniza as populações negras e africanas que foram escravizadas, sendo que este último termo reconhece a escravidão como processo sofrido por um grupo racial e não como uma característica inerente a essa população.

19 É necessário pontuar que o termo africanidades é polissêmico, mas, de maneira geral, indica que a abordagem a ser realizada terá como foco os povos/países africanos. Embora essa abordagem possa incluir a relação e influência estrutural destes povos para a formação da sociedade brasileira, a escolha desse termo, a nosso ver, pode indicar também uma possível exclusão da população negra brasileira.

Disponibilidade de dados

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Referências

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Recebido: 21 de Janeiro de 2023; Aceito: 10 de Outubro de 2023

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