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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.53  São Paulo  2023  Epub 29-Sep-2023

https://doi.org/10.1590/198053149993 

EDUCAÇÃO BÁSICA, CULTURA, CURRÍCULO

O CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO FÍSICA E A DISPERSÃO DE SEUS DISCURSOS PEDAGÓGICOS

THE PHYSICAL EDUCATION CURRICULUM AND THE DISPERSION OF ITS PEDAGOGICAL DISCOURSES

EL PLAN DE ESTUDIOS DE EDUCACIÓN FÍSICA Y LA DISPERSIÓN DE SUS DISCURSOS PEDAGÓGICOS

LE PROGRAMME D’ÉDUCATION PHYSIQUE ET LA DISPERSION DE SES DISCOURS PÉDAGOGIQUES

Mário Luiz Ferrari NunesI  , desenvolveu o processo de pesquisa, coleta de dados, revisou a literatura, analisou os dados das entrevistas
http://orcid.org/0000-0003-0680-5777

Marina Contarini BoscariolII  , participou de parte da coleta de dados, transcrição das entrevistas, análises, revisou o texto final
http://orcid.org/0000-0002-6386-678X

IUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas (SP), Brasil; mario.nunes@fef.unicamp.br

IIUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas (SP), Brasil; marina.boscariol1@gmail.com


Resumo

Este artigo trata de alguns discursos pedagógicos presentes no currículo da licenciatura em educação física e de sua dispersão na ação docente. Objetiva caracterizar um enredo que produz e fixa o professor a determinada narrativa atravessada pelos modos de ser impetrados pela racionalidade política neoliberal. Os dados foram produzidos a partir do método de entrevista narrativa, e o artigo utiliza a noção de discurso, produzida por Michel Foucault, como ferramenta de análise. Esta produção indica que o currículo naturaliza regimes de verdade acerca da docência, que, por sua vez, marcam a subjetividade docente e favorecem o acirramento do neoliberalismo.

Palavras-Chave: CURRÍCULO; EDUCAÇÃO FÍSICA; ENSINO SUPERIOR

Abstract

This article deals with some pedagogical discourses present in the curriculum of the degree in physical education and its dispersion in teaching action. It aims to characterize a scenario that produces and fixes the teacher to a certain narrative crossed by the ways of being filed by neoliberal political rationality. The data was produced from the narrative interview method, and the article uses the notion of discourse, produced by Michel Foucault, as an analysis tool. This production indicates that the curriculum naturalizes regimes of truth about teaching, which, in turn, mark the teaching subjectivity and favor the intensification of neoliberalism.

Key words: CURRICULUM; PHYSICAL EDUCATION; HIGHER EDUCATION

Resumen

Este artículo aborda algunos discursos pedagógicos presentes en el plan de estudio de la carrera de educación física y su dispersión en la acción docente. Pretende caracterizar una trama que produce y fija el docente en una determinada narrativa atravesada por los modos de ser presentados por la racionalidad política neoliberal. Los datos fueron producidos a partir del método de la entrevista narrativa, y el artículo utiliza como herramienta de análisis la noción de discurso, producida por Michel Foucault. Esta producción indica que el plan de estudio naturaliza regímenes de verdad sobre la enseñanza, que, a su vez, marcan la subjetividad docente y favorecen la intensificación del neoliberalismo.

Palabras-clave: PLAN DE ESTUDIO; EDUCACIÓN FÍSICA; EDUCACIÓN SUPERIOR

Résumé

Cet article traite de quelques discours pédagogiques présents dans le programme d’études en éducation physique et de sa dispersion dans l’action pédagogique. Il vise à caractériser un scénario qui produit et fixe l’enseignant à un certain récit traversé par la rationalité politique néolibérale. Les données ont été produites à partir de la méthode de l’entretien narratif et l’article utilise la notion de discours, de Michel Foucault, comme outil d’analyse. Il en resulté que le programme naturalise des régimes de vérité sur l’enseignement, qui, à leur tour, marquent la subjectivité de l’enseignement et favorisent l’intensification du néolibéralisme.

Key words: PROGRAMME D’ÉTUDES; ÉDUCATION PHYSIQUE; FORMATION UNIVERSITAIRE

A ancoragem

Os discursos de verdade favorecem a produção de práticas discursivas e não discursivas sobre os modos de operar a docência, modulando a atuação do docente. Permitem a circulação de saberes, interditam o que pode ser dito e feito nesse processo e definem o vínculo do docente consigo mesmo e o vínculo que firma com outros indivíduos que constituem o ambiente escolar. Esses discursos também subjetivam o docente mediante técnicas ou estratégias (Foucault, 2014) que atuam nos modos como ele se vê, se narra, se julga, se descreve, enfim, técnicas que o governam.

Foucault explicita que “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (2006, p. 44). Esse sistema se dá mediante o currículo, que cria procedimentos visando a produzir, distribuir e regular enunciados que operam como estatutos de verdade. Por efeito, fixam lugares e modos próprios de pensar e produzir os sujeitos que atuam na educação, tornando essencial um tipo de conhecimento, que passa a ser tratado como conteúdo de ensino. O currículo promove a distribuição e a apropriação dos discursos científicos, pedagógicos, identitários, morais, isola cada uma das práticas discursivas que os conteúdos escolares e os alunos acessam, além de formular regras de produção e de mudança dessas práticas. Como afirma Popkewitz (1995), o currículo, enquanto produtor de regulações sociais, produz formas de falar e pensar sobre nós, os outros, os fatos, os fenômenos e o mundo. Para sua elaboração, intensas disputas são travadas, pois enquanto efeito de poder de dado projeto político, o currículo visa à produção de determinadas identidades e à condução das condutas dos sujeitos (Silva, 1999). Nele são expressos significados do projeto hegemônico e, também, de resistências, de forma que há processos que almejam dar-lhe legitimidade e que o contestam.

Fruto de debates, o currículo é fragmentado por excelência, pois não tem uma tendência conceitual única. Apesar dessa condição, sua organização e seus mecanismos de funcionamento fazem crer que o discurso pedagógico que ele opera é obra de um agente único e autônomo. As forças que produzem e fazem circular esses discursos não são perceptíveis. Cabe sublinhar que muitos deles são recorrentes e ajudam a naturalizar táticas e modos de organização que moldam a escolarização básica e superior, estabelecendo uma ordem curricular, que, de forma dominante, é disciplinar. Pode-se dizer que os discursos pedagógicos estão imbricados na produção de identidades docentes e suas formas de representar a sala de aula, os alunos e a educação (Sommer, 2007). Assim, favorecem a racionalidade política vigente ou, pelo menos, pouco contribuem para desestabilizá-la.

Para pensar a noção de discurso, optamos pelo modo como Michel Foucault a apresenta na obra Arqueologia do saber:

Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiam na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. (Foucault, 2008a, p. 133).

Para Foucault, o enunciado exerce “uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (2008a, p. 98). Essa função caracteriza-se por quatro elementos básicos: um referente, que permite tanto sua diferenciação como sua identificação; um sujeito, enquanto “posição” a ser ocupada no discurso, no caso, professores e demais sujeitos que se reconhecem nesse discurso; um campo associado, que permite a sua coexistência com outros enunciados do mesmo discurso; e uma materialidade específica (as coisas ditas, escritas, como os livros didáticos, as falas de alunos e professores em diferentes épocas e locais) que permite sua repetição ou reprodução.

Ao descrevermos os enunciados, buscamos as especificidades do discurso, que acontecem em determinado tempo e lugar. Isso é o que possibilitará situar a rede de enunciados presentes em certa ordem por pertencerem a uma dada formação discursiva. Como escreve Foucault, “a análise do enunciado e da formação discursiva são estabelecidas correlativamente”, visto que “a lei dos enunciados e o fato de pertencerem à formação discursiva constituem uma única e mesma coisa” (2008a, p. 132).

A formação discursiva tem como princípio a dispersão e a repartição dos enunciados, segundo as quais o sujeito que se situa no discurso assujeita-se a ele, sabe o que pode e o que não pode ser dito em dado campo e de acordo com a posição que ocupa nesse campo. Ela fornece sentido aos falantes, para que se reconheçam e compreendam que as significações presentes no discurso são naturais, portanto, verdadeiras. Depreende-se disso que as formações discursivas estão sempre em relação com determinados campos de saber, no caso deste estudo, com a educação física (EF).

Ao tratar do modo como esses enunciados e as técnicas que compreendem os discursos agenciam os sujeitos e as populações, nos cursos Segurança, território e população (1978-1979) e O nascimento da biopolítica (1979-1980), proferidos no Collège de France, Foucault propõe uma distinção entre a anatomopolítica (tema das disciplinas) e o que denominou biopolítica da população (tema do biopoder). A partir dessas ênfases, o filósofo deixa de elaborar diagnósticos globais acerca das relações de poder em certo momento histórico, como fizera em Vigiar e punir, para destacar os princípios gerais que permitem o surgimento de novas configurações e táticas de governo, sem que essas emanem de uma necessidade ou que apresentem qualquer coerência interna. Com isso, o autor pôde estudar e analisar como são configuradas as tecnologias de poder em termos macro, centrando esforços no surgimento da biopolítica enquanto tecnologia (ou conjunto delas), o que lhe permitiu articular os problemas da conduta individual com as questões políticas mais amplas de governo da nação, da população no bojo da emergência do liberalismo.

Para Foucault (2008b), com as várias crises do liberalismo, a ascensão de governos totalitários e a intervenção do Estado na economia do mercado, no início do século XX, diversas críticas foram feitas por conta dos gastos governamentais com a população, tidos como entraves ao crescimento das empresas. Em comum, dizia-se que o setor produtivo deveria produzir riquezas, em oposição a arcar com os custos de governo. Emerge, então, uma nova racionalidade política que institui novas técnicas de governamento e, por efeito, novas formas de governo de si e do outro, isto é, um novo modo de vida, um novo ethos: o neoliberalismo (Foucault, 2008b).

O neoliberalismo expande a racionalidade do mercado para campos não econômicos e passa a definir as relações sociais e subjetivar os indivíduos, adequando as formas de agir e pensar a seus ditames. Nessa organização, o poder embrenha-se na alma de cada um para influenciar possíveis estratégias calculáveis dos indivíduos, tanto para ressaltar o desejo (pela recompensa) como para contê-lo (pela punição), ou, ainda, para redirecionar sua atenção quando imprescindível (pela substituição do objeto do desejo) (Dardot & Laval, 2016), este último atuando de maneira muito efetiva ao permitir governar indiretamente a conduta do indivíduo a partir do pressuposto neoliberal de promoção da liberdade de escolha (Foucault, 2008b). Essa liberdade não é produzida de modo a permitir ao indivíduo identificar a normatividade que impera, mas o conduz a atuar de maneira específica, dentro de um cenário institucional, que precisa ser elaborado para que a escolha, feita com toda a liberdade pelo sujeito, atenda ao interesse da instituição como se fosse um efeito de sua própria vontade.

Nesse quadro, desde os anos 1990, o professor tem se tornado alvo de ações para adequar-se às modificações estruturais impetradas pela racionalidade neoliberal (Ball, 2002). Intensifica-se a produção de políticas públicas que promovem e alteram leis e diretrizes curriculares, por meio das quais sistemas de verdade são estabelecidos. Dão-se os modos pelos quais determinados enunciados acerca dos processos de escolarização e da formação em geral são produzidos, criam-se parâmetros de avaliação, fazendo circular metas para a educação, definindo conceitos, regras, hierarquias, métodos, entre outros, que impactam a subjetividade docente. Condições que mobilizam estratégias que conduzem a pensar e atuar na docência de uma maneira distinta de épocas anteriores (Ball, 2002).

Cabe destacar também o papel da EF no sucesso da promoção e manutenção do neoliberalismo. Em que pese seu vínculo com as ciências humanas nas últimas três décadas lhe possibilitar uma análise crítica social, o paradigma dominante no campo é o das ciências da saúde e biológicas, pautado na racionalidade médica (Carvalho, 2003), de cunho privado e individual (Novaes, 2009). Nesse cenário, vê-se o imperativo da docilização de corpos (Bracht, 1999), que transita ora entre práticas disciplinares, ora entre práticas de controle e produção de sujeitos flexíveis afeitos ao jogo do livre mercado. Por meio dos discursos da saúde, a EF reforça e propaga a noção de vida ativa, promovendo no sujeito a condição de vigia de si mesmo e do grupo do qual faz parte, gerando novas formas de exclusão para os que vivem e pensam fora das curvas de normalidade (Soares, 2009).

A construção desse sujeito “Eu S.A” pela EF (Nunes & Neira, 2018) baseia-se em uma forma de viver que requer uma submissão do corpo aos princípios da competitividade e eficiência nas diversas situações do cotidiano, alimentando um sentimento de autovalorização, de satisfação para consigo. César e Duarte (2009) afirmam que o que se enfrenta é uma cruzada pela saúde e remodelação do corpo, ajustando os sujeitos aos desafios desses tempos. Esses temas contam com pouca crítica tanto nas Diretrizes Curriculares Nacionais de EF como no currículo analisado.

Para fechar o quadro, cabe mais uma observação. No atual momento, formulam-se novas investidas sobre o corpo por meio de propostas curriculares nas diversas etapas e sistemas de ensino pautadas em discursos de desenvolvimento de competências (socioemocionais, cognitivas, motoras) e promoção da saúde, consequentemente da vida saudável e eficiente, como os expressos na Base Nacional Comum Curricular.

São essas configurações que motivam o estudo e a descrição dos discursos pedagógicos que permeiam um currículo de formação em licenciatura de EF e sua dispersão na ação docente, tomando-os como uma técnica estabilizadora de significado, que regula e perpetua os modos pelos quais professores são governados, governam aos outros e a si mesmos e ficam marcados pelos acontecimentos.

A operação

Para identificar os discursos pedagógicos promovidos pelo currículo de licenciatura em EF e sua dispersão na ação docente, fizemos dois movimentos articulados entre si: a leitura e análise do projeto pedagógico de uma instituição de ensino superior pública, consolidado em 20061 e divulgado no site da faculdade; e a realização de entrevista narrativa (Jovchelovich & Bauer, 2002) com egressos da mesma instituição. Trata-se de uma ferramenta não estruturada que transmite informações, favorece a enunciação da experiência pessoal e faz emergir aspectos para compreensão do lugar do entrevistado no discurso e contexto em que está inserido.

Tomamos como critérios de inclusão dos participantes da pesquisa egressos que foram assujeitados ao mesmo currículo (licenciatura em EF), com tempos similares de atuação na educação básica e que mantêm ou mantiveram contato com a faculdade que os formou por meio de cursos de extensão, pós-graduação e presença em grupos de pesquisas. Entendemos que tais espaços, por serem organizados pelos mesmos docentes da graduação, ampliam, aprofundam e reforçam discursos pedagógicos divulgados pelo currículo. A fim de localizar esses sujeitos, fizemos contato com pesquisadores responsáveis pelos cursos de extensão e grupos de pesquisas da faculdade, que enviaram o contato de professores que atendiam aos critérios. O grupo de colaboradores constituiu-se de cinco docentes com atuação em vários anos escolares e sistemas de ensino, com formação posterior em modalidades diversas com foco na EF escolar (stricto sensu, lato sensu, extensão), sendo a maioria realizada na mesma faculdade.

O tempo médio de cada entrevista foi de aproximadamente duas horas. Após a transcrição e leitura das entrevistas, foram produzidos alguns temas para análise. Por priorizar os discursos pedagógicos do currículo da licenciatura em EF e sua dispersão na ação docente, não nos interessamos pelas condições identitárias (classe, raça, sexualidade, etc.) ou por possíveis legados das práticas que antecederam ou estão presentes na atuação dos entrevistados nas escolas. Destacamos que as narrativas operam com memórias/lembranças, e que essas são influenciadas pelo modo como as perguntas desta pesquisa foram disparadas. Entendemos, com Foucault (2008a), que o que importa são as condições de possibilidade que fazem acontecer as narrações e os discursos dos sujeitos.

Como indica o método, o papel do pesquisador foi o de favorecer a interação, sem julgamento de valor, emissão de opiniões, mantendo apenas o fio condutor da narrativa. O tema central da pesquisa foi apresentado (a experiência no currículo da formação em licenciatura e a relação dela com a prática pedagógica) e teve a função de ser o disparador da narração. Por meio dele, os colaboradores contaram sua vivência enquanto discentes do currículo e realçaram o modo como os discursos pedagógicos que acessaram estão dispersos e contribuíram para a ancoragem de suas práticas pedagógicas. Realçamos que não tomamos os professores como origem primeira de um discurso escolar, tampouco o currículo. Entendemos que a narrativa permite ao sujeito posicionar-se no interior dos discursos da EF pelos quais é produzido, aprender a falar com mais propriedade acerca deles e a governar a si mesmo e aos outros (alunos, pares, etc.) enquanto docente da área. Os discursos destacados permitiram localizar as condições de existência que possibilitaram aos sujeitos um modo particular de ocupar sua posição no interior dos discursos pedagógicos e o modo como se reconhecem nele. Dessa forma, foi possível observar as escolhas, ênfases e omissões de conhecimentos que modelam o currículo analisado. Aqui aproximamos o método adotado com as ferramentas de análise foucaultiana ora utilizadas.

Como parte de um projeto de pesquisa mais amplo, neste texto, o recorte foi direcionado às análises dos discursos que tratam da organização curricular, das concepções de conhecimento, ensino e aprendizagem postas pelo currículo e que estão dispersos nos discursos que tratam dos modos como compreendem a escola/escolarização, a EF e a prática pedagógica. Cabe assinalar que esses temas não foram suscitados a priori pelos entrevistadores. Sob o enfoque foucaultiano também é de bom tom retomar que não se trata de unificar ou reduzir tais discursos a uma totalidade que se quer verdadeira. Descrevemos e demonstramos a seguir algumas das forças que mobilizam o currículo a tentar naturalizar sua existência, a evitar a repartição de sua diversidade discursiva, assim como a enfraquecer o aspecto multiplicador e sem controle dos discursos pedagógicos, além de sua dispersão. Destacamos, por conta dos limites impostos por um artigo, que optou-se por apresentar o material empírico ora descrevendo posicionamentos genericamente, ora citando as falas individualmente.

A pesquisa recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa para ser realizada (CAAE:55920816.7.0000.5404).

Os discursos pedagógicos

Os discursos pedagógicos enunciados pelos entrevistados destacam o currículo de sua formação pautado em uma organização disciplinar, tomada aqui como uma “tecnologia de organização e controle de saberes, sujeitos, espaços e tempos em uma escola” (Lopes & Macedo, 2011, p. 107) básica ou superior. Para Lopes e Macedo (2011), a organização por componentes curriculares implica a legitimação dos conhecimentos a serem ensinados, na seleção e aplicação das atividades de ensino, na distribuição do tempo e do espaço do trabalho didático, nas concepções de avaliação. Isso explica o fato de os entrevistados narrarem sua trajetória a partir das experiências que tiveram nas diversas disciplinas que cursaram conforme o transcorrer dos anos, atribuindo valor a cada uma de acordo com a sua organização interna e condução docente, reforçando simpatias, rejeições e preferências, além da concepção de currículo. Sem dúvida, a organização disciplinar é uma marca na vida escolar.

O currículo que os formou segue o modelo hegemônico da área, em acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais da EF em vigor à época em que os entrevistados fizeram a graduação (Resolução CNE/CES n. 7, 2004). Seu projeto político apresenta 70% de disciplinas que compõem o núcleo comum do curso, que serve à formação em bacharel e licenciado. Os 30% restantes referem-se às disciplinas específicas da licenciatura, sendo que algumas são realizadas na Faculdade de Educação.

No núcleo comum há disciplinas oriundas das áreas das ciências da saúde, exatas e humanas, com maior carga didática para a primeira; há um conjunto de disciplinas curriculares (obrigatórias e optativas) que tratam da pedagogização das práticas corporais, disciplinas essas tidas pelos depoentes como pouco exigentes. Os percentuais e o enredo reforçam a concepção hegemônica da EF ligada à área da saúde e técnica-instrumental, além de contribuir para valorização de saberes científicos em detrimento dos pedagógicos (Bracht, 1999). Outro aspecto interessante refere-se a algumas disciplinas do núcleo comum, que, do ponto de vista histórico e da própria ciência - como ginástica, atletismo, socorros de urgência, entre outras -, não se configuram como disciplina, seja sob o enfoque positivista ou crítico. Não se está aqui a debater a importância ou não desses saberes ou atividades não disciplinares no currículo, mas, por conta dessa presença em cursos de EF desde sua gênese no Brasil, alertamos para a ausência de esclarecimento ou menção a essa presença no currículo, naturalizando-a.2 Ainda nesse aspecto, há disciplinas específicas referentes aos esportes hegemônicos da área na escola (futebol, basquete, handebol e voleibol) e outras que generalizam sob o mesmo termo várias práticas corporais distintas, como luta, dança, esportes de raquete, esportes coletivos (não convencionais). Nessas é apresentado um repertório diferente de práticas corporais ao longo do semestre, sendo que em algumas delas a cada aula oferta-se uma modalidade diferente. Por não adentrar com profundidade em nenhuma prática corporal, entendemos que essa distribuição reforça, mais uma vez, hierarquias - expressas na maior presença dos esportes hegemônicos tanto nas aulas do componente como nos programas curriculares oficiais brasileiros para a EF - e substancia uma perspectiva técnica instrumental de ensino, por que não dizer de ensino aligeirado?, algo que também é comum no cotidiano da EF escolar.

Então, nós aprendemos técnica de forró, técnica de samba. Não foi para conhecermos, foi um momento de aprender a técnica. (Docente 4).

Cabe assinalar as condições que influenciaram, em certa medida, a organização do currículo em disciplinas e sua consolidação como modelo hegemônico nos processos de formação da educação básica e superior, com destaque para a influência dos efeitos de a União Soviética ter tomado a dianteira da corrida espacial com os Estados Unidos no início dos anos 1960. Para Cherryholmes (1993), esse modelo emerge de uma variedade de discursos que, à época, se entremeavam e se reforçavam. Questões como segurança nacional, desenvolvimento tecnocientífico e melhor formação acadêmica associaram-se aos discursos educacionais em cena, como os da taxionomia dos objetivos educacionais, de Benjamin Bloom, e os princípios básicos do currículo, de Ralph Tyler. Deve-se considerar, ainda, os discursos de controle e da eficiência administrativa, pois é das disciplinas que se extraem os conteúdos, elabora-se a planificação de sua transmissão e definem-se os métodos de ensino que garantirão sua compreensão. Além disso, essa organização é conveniente em termos de operação, pois contribui para fixar os horários letivos e compor turmas, pautadas na lógica do desenvolvimento e crescimento humano, do conhecimento simples para o complexo.

Sob essa lógica, não por menos, o projeto pedagógico do currículo investigado apresenta disciplinas que são tidas como pré-requisitos de outras e as que tratam da EF escolar sob esse mesmo enfoque do desenvolvimento, como: EF no ensino infantil; EF no ensino fundamental; e EF no ensino médio. Essa organização curricular revigora modos de pensar e fazer da área sob o prisma psicobiológico, reforçando hegemonias. É importante ressaltar que tais marcas constituem o campo da EF como um todo, por decorrerem de um debate entre grupos com visões diferentes da área, consolidado e apresentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, 1996), que adequaram as propostas para a EF na escola ajustadas à faixa etária (como propunha à época da formulação do currículo o art. 26, §3º, da mesma lei, alterado recentemente).

Para Ribeiro (1990), a organização curricular por disciplina favorece a fragmentação de conhecimentos, o que fragiliza a possibilidade de estabelecer relações ou integração de saberes. Pode promover uma separação entre a formação geral do aluno e a ação especializada, valorizar a consolidação de um modo específico de pensar do futuro docente, afastar o egresso dos problemas sociais, das experiências dos alunos e dificultar a compreensão da complexidade dos problemas que envolvem a profissão.

Questionados a respeito de outras formas de organização curricular, como núcleos de problemas e temas transdisciplinares, os colaboradores disseram que não as acessaram. Tampouco ocorreram debates sobre escolas que se organizam de forma diferente em relação à idade dos alunos ou ao tempo de aulas e turno, como as indígenas, quilombolas, rurais, de educação de jovens e adultos, de privação de liberdade, escolas noturnas, de tempo integral e de educação infantil. A ausência do trato com esse conhecimento parece favorecer a ocorrência de situações inusitadas quando o trabalho acontece em condições diferentes das previstas no currículo da universidade.

Bom, chegando lá quase infartei porque, primeiro, ela não tinha divisão de perfil, então tinha vários perfis. Todo mundo junto e misturado. Então, na hora que eu entrei naquele pátio, e vi aqueles meninos, muitos em atividades, outros sem atividade, mas olhando pra mim, eu me assustei bastante! (Docente 1, comentando seu ingresso em uma escola que atende jovens em situação de privação de liberdade).

No estado eu entrei com o fundamental I, o que já foi um choque pra mim e ainda tinha uma professora mais velha de casa. Então, ela pegava as turmas na minha frente, pegava os mais velhos, e eu fiquei com o primeiro ano. (Docente 3, comentando seu ingresso na rede estadual).

Como é uma escola central, tem muito filho de imigrante . . . tem muita gente que a família veio de algum lugar do Nordeste ou do Paraná, tem um bando de criança, de chinês, que não entende o que você fala, isso complica bastante o trabalho. Tem um pessoal de diversos países da América Latina, também da África. (Docente 5, comentando o início da profissão em uma creche municipal).

O estranhamento nos leva a inferir que, nesse currículo, não foram abordados temas como o momento histórico, as forças determinantes e as razões para o estabelecimento da organização curricular por disciplinas, tampouco suas consequências e motivos de sua manutenção, muito menos o impacto disso no currículo da EF.

Por efeito, o que vivenciaram com currículo não contribui para questionar a organização curricular disciplinar, levando-a a ser tomada como natural, logo, difícil de ser desobedecida. Isso ganha corpo em tempos de discursos de ineficiência da educação e da produção de programas curriculares oficiais impostos por secretarias de educação, que implementam formas de governo afeitas às mudanças da estrutura do Estado.

Eu seguia a proposta do Estado de São Paulo. A escola que eu trabalhava . . . exigia que do sexto ano até ensino médio fosse obrigatória uma aula teórica e uma aula prática, e provas. E essas provas subiam pra diretora de ensino, pra ela verificar se o professor estava trabalhando ou não. (Docente 2, comentando a organização curricular na escola).

Isso é o que vem da secretaria. A gente tem uma coordenadora de área responsável por coordenar todos os professores. Então, provavelmente vem dela. Vem todo mês. . . . Desde que eu entrei é assim, é aquele modelinho... E como é a mesma pessoa como coordenadora, então meio que só se reproduz... (Docente 4, comentando a organização curricular na escola).

Outro ponto importante de descrição, mencionado pelos colaboradores, sublinha que em algumas disciplinas presentes no currículo que tratam da intervenção pedagógica na escola é dominante o estudo do currículo crítico-superador da área.3 Alguns dos depoentes o citam como a “Bíblia da EF”, em razão da ênfase dada no transcorrer de várias disciplinas no curso. Essa proposta apresenta uma escolarização por ciclos (sem negar as séries). Entretanto os entrevistados informam que em nenhum momento da formação inicial essa divisão foi abordada. Apesar de se posicionarem favoráveis e afirmarem que ancoram seu trabalho docente no currículo crítico-superador, impera certa confusão. Organizam seus planos de curso na divisão por bimestres dos esportes hegemônicos presentes na área, ou, em alguns momentos, os compõem com outras práticas corporais. Nota-se que acabam por contribuir com a hegemonia tanto da forma de organização curricular conforme o período letivo da escola como do conteúdo das aulas.

Trimestre! Como a grade de atividades pedagógicas . . . muda a cada três meses, acompanhando a troca de cursos da educação profissional e atividades de arte e cultura, a EF segue essa mesma linha de raciocínio. Então eu organizava as atividades trimestralmente. Cada grupo optava por uma modalidade [esporte] e permanecia três meses. (Docente 1).

Esse ano eu fui trabalhar por bimestres. Eu comecei trabalhando com jogos. Trabalhei jogos populares, jogos pré-desportivos, aí depois entrei no esporte. (Docente 2).

Quando eu chego no primeiro dia de aula, lá em fevereiro, eu chego, eu me apresento, os alunos já me conhecem, aí eu coloco na lousa os temas do bimestre. Primeiro bimestre, eu trabalhei ginástica e circo; segundo bimestre o esporte; e aí eu coloquei lá o esporte que eu ia trabalhar com eles: o atletismo. No terceiro bimestre, trabalhei lutas. Eu coloquei lá: esgrima, kung fu e tinha um aluno que queria conhecer o taekwondo. Eu coloquei no quarto bimestre tacos e raquetes. (Docente 3).

Como sempre eu também gostei muito dos esportes, os conteúdos básicos que eu gosto não eram difíceis, os conteúdos propostos eram bem simples... Era esporte e tal... Aquela clássica do esporte. Primeiro bimestre basquete, vôlei [no] segundo bimestre. Alguma coisa de jogos cooperativos, então, um conteúdo bem simples na verdade... Então, eu lembro de sempre trabalhar os jogos cooperativos, trazendo coisas daqui no primeiro bimestre, todo ano eu trabalhei imagem corporal. (Docente 4).

A questão do conhecimento também é relevante, visto que a significação do termo é compreendida de forma diferente a depender do enfoque teórico que o produz (Lopes & Macedo, 2011). Se tomarmos como referência que os colaboradores adotam a perspectiva crítico-superadora, que reforça a importância do acesso por parte dos alunos ao conhecimento científico socialmente sistematizado, temos de considerar que um dos principais alertas feitos por autores das teorias críticas da educação, como Michel Apple e Michael Young, refere-se aos critérios de seleção dos conhecimentos presentes no currículo.

No entanto, os colaboradores da pesquisa não reconhecem esse aspecto. Fazem crer que tomam o conhecimento como natural, e as mudanças na história da EF como decorrentes da evolução da área. Do mesmo modo, ao serem indagados sobre os processos de seleção dos conhecimentos e disciplinas que compuseram a própria formação, informam que, além de não questionarem, não foram informados a respeito de quaisquer critérios que justifiquem sua presença e distribuição. Embora o currículo apresente complexidades, divergências entre teorias e o embate ou modos de pensar diferentes entre as ciências que servem de base para a EF, a questão colocada se evidencia nos enunciados que proferem de perspectiva tecnicista, que recrudesceram nas reformas educacionais atuais. Isso aponta a naturalização dos processos de construção e reelaboração curricular. Não por menos, não tencionam aspectos utilitários do conhecimento, recorrem sem reflexão às estratégias aprendidas nas aulas ou buscam soluções imediatas para a prática pedagógica em fontes variadas e sem o devido rigor, o que incide do mesmo modo no trato do conhecimento na ação docente. Tal modus operandi nos permite inferir que é grande a possibilidade de adesão por parte desses docentes aos discur- sos (neo)tecnicistas das atuais reformas curriculares. Cabe dizer que na EF está em expansão a produção de livros didáticos, livros de jogos e brincadeiras variadas, cursos diversos e até vídeos de produção individual de docentes, divulgados no YouTube, demonstrando suas aulas, entre outros produtos.

Eu lembro que tinha bastante diversificação de movimentos. A gente tinha que imitar bichos e fazer várias coisas. Era o momento da diversão. Essa eu fiz com a minha sala. (Docente 1).

As aulas do [nome do professor] foram bem legais. Acho que me serviu mais de instrumental, sabe? Aquela coisa de atividades que depois a gente acaba utilizando nas aulas. (Docente 2).

Então, com a ginástica é bem mais fácil. Futsal fica mais complicado, aí precisei pegar mais fora. Na internet, pegar material, eu não sabia, não muita coisa. (Docente 5).

Ainda sobre o conhecimento, os colaboradores informam dificuldades para tratar dos conteúdos temáticos das práticas corporais, como requerem os programas curriculares oficiais que regulam suas práticas e a proposta crítica-superadora. Para eles, isso decorre do fato de a maior parte do conhecimento acessado por meio do currículo referir-se ao domínio das técnicas/métodos para ensinar algumas práticas corporais (as hegemônicas) e aos saberes das ciências básicas, reforçando discursos acerca do distanciamento entre teoria e prática. Em suas narrativas, também se nota a presença do discurso que afirma a existência de um conhecimento verdadeiro, ao passo que são negados outros, considerados ultrapassados e praticados por colegas de trabalho. Por efeito, aqueles que apresentam outras formas de pensar a EF são criticados.

Os outros [professores], que vieram das particulares, têm ainda uma visão muito biológica, que é difícil desconstruir. Então a gente fala, vamos trazer uma aula legal aqui então, aí vem um professor com uma aula dele de condicionamento físico. Assim, me quebra as pernas! (Docente 1).

. . . chegou uma professora pra pegar minhas aulas. É uma pessoa super dedicada, super envolvida, mas que deu aula 12 anos atrás e ela já traz essa outra visão diferente. (Docente 2).

As professoras eram muito diferentes de mim, era um monte de tiazinha assim já cansada. (Docente 3).

Muitas vezes no sentido de uma crítica, uma parcela dos professores de EF que olha só pro lado do físico, do gesto de algum esporte, do desempenho do esporte. Então o que teve muito aqui foi essa crítica e na prática um pouco essa dificuldade também, que eu senti em reuniões de área, de só professores de EF, uma certa resistência, uma certa visão encurtada de alguns assuntos...(Docente 4).

. . . é tentar primeiro tirar as concepções da própria EF que a criançada já vai ter. (Docente 5).

Aqui temos uma situação interessante. Por não questionarem o currículo, ou tomá-lo de forma natural, denotam que não o tratam como campo de força, são capturados pela racionalidade neoliberal, reforçando atributos da eficiência, do desempenho e da performatividade. Isso se evidencia ao tomarem a si mesmos como referência e criarem critérios de comparação com os colegas. Para além da afirmação de um conhecimento verdadeiro e da negação de outro, o que se percebe é o desencadeamento de uma postura característica do gerencialismo dos tempos atuais, que incide em parâmetros de trabalho e relação social normatizados que determinam modos de fazer e de ser na docência de EF, afastando aspectos éticos da profissão (Ball, 2005). Percebe-se, ainda, que essa racionalidade atua nos sujeitos a partir dos discursos pedagógicos do currículo, e seus efeitos de poder são observados também na construção de um orgulho pelo que se faz, e pela crença na qualidade do que realiza. Por outro lado, essa iniciativa demonstrada pelos docentes colaboradores, de submeterem seus pares a uma ação avaliativa e classificatória, no que tange a suas escolhas de seleção de objetivos e práticas de ensino, em algum momento será aplicada a eles mesmos, seja pelos próprios pares, pelos discentes, pela instituição ou pelo Estado com suas avaliações em larga escala. Não é difícil pressupor que essa cultura de avaliação gere sentimentos diversos que podem ir da alta à baixa autoestima, do orgulho à culpa pelo que produz. Não por menos, a prática de avaliar para comparar se espraia por todos os cantos da atividade docente. Afinal, enquanto dispositivo de comparação de desempenho, a avaliação constante e de todos os tipos é o que permite inserir a escola e seus sujeitos na cultura-empresa. O currículo da graduação contribui para isso por apresentar práticas avaliativas constantes (seleção de bolsas, avaliação de curso, etc.) e informar quem o professor deve ser (e quem ele não deve ser), o que e como ele deve ensinar, sem cerimônia ou questionamento.

Era uma disciplina que eu gostava muito de olhar, pra aprender... aprender. É porque dizem que professor de EF precisa ter criatividade. E aquela era uma aula bem criativa, pra você ensinar diversos fundamentos de modos diversos. (Docente 1).

Como resultado, mais uma vez, discursam acerca de sua prática pedagógica como crítica, mas produzem uma prática baseada nas teorias psicobiológicas, logo, tradicionais (Silva, 1999).4

. . . sempre tento começar com uma bola neutra, uma bola de borracha e arremessar a bola no seu colega, faça a bola chegar no seu colega. O jeito tanto faz, o jeito que você conseguir e trabalhar algumas aulas ali dessa experimentação, faz chegar, joga com uma mão, joga com a outra, dá pra lançar com o pé, dá pra receber com a mão, dá pra receber com o joelho. Então, partir de brincadeiras, experimentações e aos poucos ir colocando coisas como tenta arremessar assim, tenta movimentar seu corpo junto que a bola vai mais longe, e caminhando pra uma construção do jogo de handebol. (Docente 2, comentando o modo como trabalha a perspectiva crítico-superadora).

Eu gosto muito de pensar ainda as aulas de EF, é pensando muito nos PCNs quando ele traz as dimensões de conteúdo, pensar no conceitual, no procedimental, no atitudinal e como essas três dimensões se inter-relacionam entre si e como eu posso pensar [as aulas]. (Docente 4, ao abordar o modo como trabalha a perspectiva crítico-superadora).

Ou, por vezes, reconhecem que produzem uma prática híbrida, que constitui uma das características dos currículos na atualidade (Lopes, 2005).

Não. Até hoje, não, até hoje é muito difícil; é muito confuso, histórico-crítica, histórico- -superadora. Até hoje pra mim é um pouco confuso. Era uma inspiração que eu tinha em trabalhar essas coisas, mas ressignificado, né? A minha leitura daquilo, então tinha coisas de tudo. (Docente 3, comentando a respeito do que faz na sua prática crítico-superadora).

Ah, mesmo a concepção desenvolvimentista, que o pessoal acha meio chato, que a prefeitura se eu não me engano usa bastante. Eu acho legal também o pessoal saber também, que teoricamente você deveria fazer tal coisa até tal idade, principalmente pra tratar a questão do desenvolvimento. . . . Eu acho legal também trazer essa questão do desenvolvimentismo. (Docente 5, comentando que outras perspectivas de EF compõem o seu trabalho, além da crítico-superadora).

Essas opções podem ajudar a explicar a presença de um problema recorrente na área: a miscelânea de propostas curriculares na prática pedagógica da EF, decorrentes de uma formação que versa sobre temas tão variados como distintos entre si. Esse entrave tem se ampliado desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que à época apresentou para a área um programa permeado por várias formas de pensar e fazer, pautadas em objetos de estudo distintos, logo, com formas de intervenção pedagógica diferentes (Caparroz, 2003). Não por menos, a maioria dos programas curriculares oficiais no Brasil se apresenta dessa maneira (Neira & Gramorelli, 2017).

Interessa-nos enfatizar que a fragmentação e a generalização do currículo organizado por disciplinas, assim como a naturalização de uma forma de produzir conhecimento, favorece esse processo. Se as condições postas no currículo não fornecem aos egressos elementos conceituais para análise crítica da organização curricular e do conhecimento, tampouco contribuem para discernir as bases epistemológicas presentes nas propostas e políticas curriculares e os efeitos do caráter performativo da avaliação, muito menos colaboram para identificar o jogo da recontextualização que nelas ocorre. O risco que se corre é facilitar o assujeitamento dos docentes às propostas curriculares oficiais e à avaliação de resultados sem a menor resistência. Não à toa, o(a) Docente 4 toma os PCN como referência para sua ação, mesmo não os acessando na graduação, nem as críticas produzidas na área a esses documentos.

Com certa dose de cuidado, podemos asseverar que esse hibridismo decorre da diversidade de matrizes teóricas presentes de modo geral na formação em EF. Em específico, o currículo que os colaboradores acessaram na graduação manifesta saberes da psicologia do desenvolvimento em suas várias vertentes; do neotecnicismo, enfatizado no desenvolvimento de competências e habilidades propagado por boa parte das pedagogias das práticas corporais; da teorização crítica, presente em larga escala nas disciplinas da licenciatura; e uma certa alusão à noção de diversidade cultural, apresentada nas disciplinas das ciências humanas e retomada (às vezes) de modo aligeirado nas disciplinas que tratam da EF escolar.

O problema anunciado se articula com outro discurso pedagógico presente no currículo e disperso na ação docente: o do ensino centrado nos alunos. Sublinham que a graduação dá destaque em muitas disciplinas para que o docente realize uma avaliação inicial que considere as necessidades e os interesses da criança.

E eu cheguei, levei eles para a quadra, falei como a gente vai fazer, o que vocês querem fazer. (Docente 1).

Aí eu falei... eu gostaria que vocês escolhessem dois temas pra gente trabalhar no segundo trimestre e no terceiro trimestre. Aí a gente fez uma assembleia, e eles trouxeram temas. Foi votado várias vezes e no final das contas eles escolheram esportes não alternativos. (Docente 2).

Aí eu falei pros meus alunos: olha! Isso aqui, esse, todo esse conteúdo, é o que eu quero trabalhar, alguém quer sugerir alguma coisa? Alguém gosta de alguma coisa que não tem e gostaria que tivesse? Então, aí eu conversei com os alunos o que eles gostariam de aprender de esporte. (Docente 3).

Como se sabe, a noção de interesse vincula-se ao saber pedagógico de resolução de problema ou aprendizagem e experiência, que, associado a termos como crescimento e desenvolvimento, tornou-se central nos discursos pedagógicos desde o fim do século XIX até os dias de hoje (Noguera-Ramírez, 2011). Para melhor análise, retomamos, de forma superficial, que o psicólogo suíço Edouard Claparède, no início do século XX, desenvolveu uma teoria de aprendizagem na qual afirmava que o interesse depende de uma necessidade,5 influenciando a pedagogia ao longo do mesmo século. O interesse não está nas coisas em si. A questão é tornar as coisas interessantes para que o professor consiga dirigir a atenção dos alunos para determinada finalidade educativa, pois a aprendizagem só ocorre em atividade mental ou a serviço da ação. Ou seja, a organização das atividades de ensino e qualquer tarefa educativa tem como princípio ancorar-se nas necessidades (carências) dos alunos. Para Claparède, as atividades formuladas a partir desse princípio apresentam maior eficiência do que aquelas pautadas na ameaça, na sanção e na repetição, presentes na escola tradicional à época (Noguera-Ramírez, 2011). Como coloca o Docente 3, comentando como conduz as suas aulas:

. . . tentar levar o conteúdo e fazer com que ele fique interessante. Não somente no ponto de vista prático, mas também no ponto de vista conceitual.

Atualmente, atribui-se às noções de interesse e necessidade (dos alunos) grande relevância no discurso pedagógico, misturando-se com outros que consideram tanto o que eles gostam como a sua cultura de origem. Não por menos, retomam, de maneira difusa, o planejamento participativo da pedagogia crítica como a mesma coisa.

Eu lembro que falava muito de compartilhar com os alunos, de incluir os alunos no planejamento das aulas, o que os alunos gostariam de aprender e como construir as aulas a partir do que eles também gostariam. Todo o desenrolar das aulas, os alunos também como sujeitos participantes desse processo, e não só o professor decide. É isto! A aula vai ser assim, a forma de avaliar vai ser assim, o aluno também participaria disto, decidindo junto. Disso mais que eu me lembro. (Docente 1, comentando aulas que tratavam das pedagogias críticas).

Essas afirmações podem produzir um docente que não se identifica com currículos tecnicistas, mas com os denominados progressivistas ou até críticos e pós-críticos. Mas o que não se aprende ou se percebe é que essa noção de interesse está articulada à ideia de liberdade individual (por estar fora de um debate mais amplo de transformação do ethos), logo a de propriedade, característica do liberalismo, em que governar ou produzir interesses é uma das ações prioritárias do modo de operar do neoliberalismo. Os interesses individuais são os meios que permitem influenciar tudo e todos. A intervenção do Estado não ocorrerá sobre as coisas e os indivíduos, mas sobre os interesses particulares de cada um, alinhando-os aos interesses coletivos. Por atuar naquilo que movimenta o indivíduo, sua motivação, o governo atua menos na disciplina, governando com mais eficiência e menor custo (Foucault, 2008b).

Ao fazer circular o discurso do interesse, o que se tem é a participação ativa do docente na manutenção e reprodução de determinada forma de governo, orientando-se pelos interesses das crianças e fortalecendo as teorias neoliberais da educação (Noguera-Ramírez, 2011). Destacamos que, para Foucault (2008b), o sujeito de interesse, promovido pelo liberalismo e reforçado na figura do empresário de si pelo neoliberalismo, é o que permite à racionalidade (neo)liberal regular as condutas dos governados.

Isso não é à toa; a concepção de aprendizagem tratada nas disciplinas que os docentes entrevistados acessaram refere-se às teorias psi. Como demonstrou Foucault (2012), a psicologia é uma das ciências do homem que está envolvida nos processos de individualização, vigilância e controle dos sujeitos. Por conhecer de forma cada vez mais detalhada os indivíduos, os saberes produzidos pela psicologia contribuem para melhor controlá-los, produzindo certas subjetividades. O caráter científico-psicológico que envolve a aprendizagem e o ensino dá às teorias psi um aparente aspecto democrático, pois propaga a ideia de que todos são capazes de aprender. Mas, ao fundamentar a pedagogia, essas teorias desconsideram a escolarização como processo de regulação e controle social, logo, desconsideram o currículo como prática discursiva não homogênea, como campo de forças. Por ser dominante no currículo estudado, tanto como base para as disciplinas das pedagogias dos esportes como para a organização e condução didática de boa parte das demais, o que se percebe é que nele não se discutem as questões políticas que envolvem a escolarização, isto é, as escolhas quanto ao que se ensina, para que se ensina, quem se quer formar, como essas “coisas” se estabelecem. Não se percebe ou não se aprende que a prática curricular, ao focar as questões da aprendizagem, de um lado, individualiza e estimula o cultivo de habilidades necessárias ao convívio para a coesão social, por outro, é tomada pela dinâmica cultural que lhe precede, o que, por efeito, minimiza seus aspectos políticos (Silva, 1998).

A ênfase no discurso do interesse da criança também decorre da carga didática ampla das disciplinas que enfocam aspectos biopsicossociais. No currículo que acessaram, há disciplinas que abordam os aspectos qualitativos e quantitativos do desenvolvimento e crescimento, há as que exaltam a aprendizagem motora, além de uma que trata especificamente dos sujeitos com as denominadas deficiências. Das que tratam da pedagogia das práticas corporais, grande parte enfatiza métodos de aprendizagem pautados em brincadeiras e jogos adequados à faixa etária dos indivíduos, que fortalecem as marcas das teorias psi e, com elas, as noções de interesse e necessidade dos sujeitos. Em um rápido mergulho nos planos de curso dessas disciplinas, disponíveis em seu site institucional, notam-se, além das descrições das ementas, diversas referências que valorizam, nos processos de aprendizagem e desenvolvimento, a superação de etapas e os pré-requisitos para o acesso a determinados conhecimentos e/ou elaboração de movimentos. Interessa-nos sublinhar que a noção de que o sujeito acessa a educação para sair de um estado bruto para construir a autoconsciência ou garantir o desenvolvimento motor, cognitivo e afetivo social, a fim de tornar-se humano, é naturalizada e hegemônica na EF.

Apesar de o enfoque da formação ser centrado na aprendizagem e os colaboradores discursarem acerca do planejamento participativo de forma ambígua, em sua prática realizam o ensino centrado no professor, assim como o que vivenciaram no ensino superior.

Eu tinha por objetivo na época propiciar as mais diversas práticas que eu pudesse ter com eles... queria, porque, existe a zona de conforto de cada professor. Muitas vezes a gente entra na EF por um caminho do esporte, da ginástica, alguma coisa específica. E aí você acaba na escola enfatizando aquilo que é confortável pra você. (Docente 2).

Porque eu penso que os meus alunos têm que passar por mim, do primeiro ao quinto ano, tendo o conhecimento dos cinco conteúdos básicos pelo menos: o jogo, a dança, da ginástica, do esporte e das lutas. Então eu penso de ter contato de alguma forma, de ter uma iniciação. (Docente 3).

Indagados acerca do formato das aulas que assistiram, apontam que em grande parte há mais falas do docente do que dos alunos; mais instrução para com o grupo inteiro do que em pequenos grupos; determinação do tempo da aula estabelecido pelo docente; exigência de repetição de informação em atividades avaliativas e organização das salas de aula em fileiras. Em geral, a finalização do estudo é feita pelo professor, o que acontece são mudanças na distribuição dos espaços da sala de aula no momento em que se dão atividades em grupo ou por conta da realização de seminários, práticas que denotam o ensino centrado no docente (Cuban, 1992). Nesse modelo, o modo de atuar e planejar as aulas depende em grande medida das concepções, crenças pedagógicas e dos processos de socialização que incidem e agenciam as formas de intervenção de cada docente (Pérez Gómez, 1998). Em que pese a complexidade dessa trama, não podemos deixar de fora que se trata de um modelo hegemônico presente nos processos de formação, desde a educação básica até a superior. Assim, não é de se estranhar que os docentes reproduzam o modelo dominante em sua atuação, visto que determinam: O que? Para que ensinar? Como será realizado, o ritmo da aprendizagem, o instrumento e o objetivo da avaliação? Embora os colaboradores afirmem que realizam práticas inovadoras, como uso de filmes, seminários e trabalhos em grupo, autores que trataram de aspectos genealógicos da educação, como David Hamilton, Julia Varela, Ramos do Ó e outros, mostram-nos que algumas delas estão presentes na didática escolar desde o século XVII. Ou seja, não são tão inovadoras assim. Podemos inferir que, para além da manutenção de práticas de outrora com novos contornos, acabam por reforçar discursos da inovação sob a égide de um culto ao novo, favorecendo a descartabilidade, a volatilidade e o efêmero, características desses tempos de globalização neoliberal (Dardot & Laval, 2016).

Principalmente eu trabalhava a questão do ensino esportivo, então, eu trabalhava bastante...Não ficava naquele modo tradicional de fazer a aula, mas trabalhava os fundamentos, dos fundamentos para o global. (Docente 1).

Sim, trabalhava não muito, mas pelo menos uma vez por mês com aula teórica e muito trabalho também, trabalho em grupo, trabalho individual pra eles produzirem alguma coisa a partir de pesquisa, matéria, alguma coisa assim. (Docente 2).

A forma com que eu consegui fazer render as atividades era fazer pequenos grupos, fazer várias atividades ao mesmo tempo, e ir rodando eles nessas atividades . . . sistematizar um conhecimento e discutir com eles, eu trabalhava com eles, a escola já tinha isso de outros professores... um caderninho. (Docente 3).

Estava trabalhando o corpo humano. Era o sistema esquelético. Eu lembro que eu levei um desenho impresso pros alunos, um dos ossos e um dos músculos. E foi muito interessante, porque muitos pegaram e foram pintar. Esse aqui chama fêmur - mostrava no slidezinho lá, onde ficava, aí pintava o fêmur de vermelho... (Docente 4).

A questão relativa às concepções que modulam o ato de ensinar também não é aprofundada na formação. O que os entrevistados narram é que aprendem métodos diretivos e não diretivos nas disciplinas que tratam da pedagogia das práticas corporais e que as disciplinas que tratam da EF na escola não enfatizam particularidades dos métodos. Nessa linha, o currículo não aborda as questões sociais, políticas e históricas a respeito das vinculações epistemológicas dos métodos de ensino.

Além do culto ao novo, também é interessante ressaltar que, ao longo das entrevistas, os colaboradores destacaram várias vezes as aulas “legais”, que acessaram no currículo da formação inicial, e as que produziram na escola, bem como a mesma percepção dos seus discentes. Por outro lado, não ocorreram narrações de aulas que elaboraram e que foram frustrantes para si ou para os estudantes. Não por menos, algumas disciplinas que marcaram a passagem desses sujeitos pela graduação reforçam a ênfase no prazer, aspecto que produz o neosujeito destes tempos (Dardot & Laval, 2016). Interessa apenas salientar que, mais uma vez, diante dos discursos proferidos pelos colaboradores, no currículo em análise não são questionadas, suspeitas ou discutidas as relações dos processos educativos que reforçam o princípio do prazer com os modos pelos quais a racionalidade neoliberal dele se apropria e faz crer que é almejado pelo próprio indivíduo, naturalmente.

A aula de [esporte X] não achava tão criativa. Muita repetição, não era tão divertida. Na aula de [esporte Y] Eu achava que o professor não tinha um olhar pra diversão no caso, aquela atividade divertida, né? Que você vai aprender as coisas, mas que seja divertido. (Docente 1).

Matérias que eu lembro que no meu primeiro semestre me marcaram. Acho que foi pela visão de uma EF mais prazerosa, mais divertida. É que tinha uma referência sobre corpo e tal, mas que também tinha essa importância do campo de ir, aproveitar, valorizar o movimento corporal como uma atividade prazerosa. (Docente 2).

O alerta

O controle da conduta docente decorre de várias ordens normativas, entre elas a que produz discursos pedagógicos responsáveis por instaurar regimes de verdade acerca da docência e do currículo. Descrever essa trama é uma tarefa arriscada, complexa, e que não é única, muito menos expressa a verdade sobre o tema. Sem querer determinar qualquer noção de causa e efeito, sob uma ótica e um procedimento metodológico específicos, evidenciamos neste trabalho parte da ordem discursiva dispersada pelo currículo e acessada por egressos em um curso de licenciatura em EF. Entendemos que essa ordem seja um dos aspectos que cria condições para que esses sujeitos se embaracem nessa trama e passem a se narrar a partir de dada história.

Desde os anos 1990, a educação passa por ataques constantes, por não atender tanto às demandas exigidas pelo mercado como àquelas pleiteadas por quem defende uma educação crítica (Silva, 1995). As reformas educacionais em voga atuam como mecanismo de regulação social e visam a favorecer o ajustamento dos sujeitos ao (neo)sistema social, de modo a servirem como dispositivo de controle das relações que se estabelecem no contexto global. Como efeito, essas reformas introduzem a racionalidade política neoliberal nas sensibilidades, disposições e consciências dos diretores, professores e estudantes, enfim, de todos os envolvidos nesses processos de mudanças. Objetiva-se por essas reformas a produção de um sujeito professor competente, autorreferenciado, autorresponsável e automotivado (Ball, 2002, 2005). Os dados produzidos indicam que alguns aspectos formulados ao longo de décadas para constituir as formas de atuação do docente da EF na escolarização básica estão naturalizados no currículo da formação inicial, o que dificulta as mudanças estruturais requeridas e a resistência a elas.

Para o contento dessas reformas, produziram-se ou recrudesceram determinados discursos pedagógicos alinhados a essa meta, como o da interdisciplinaridade, o ensino centrado no interesse e na necessidade do aluno, a metodologia ativa, a pedagogia de competências, o aprender a aprender, a educação lúdica, entre outros, que se misturam e enfraquecem os discursos da pedagogia emancipatória/crítica e a respeito do próprio professor (professor-pesquisador, professor-reflexivo, etc.). Como parte do mesmo projeto, estabeleceram-se os discursos pedagógicos que são criticados e, por isso, rejeitados: a fragmentação do conhecimento promovida pela organização curricular por disciplinas; o ensino centrado no docente; os métodos diretivos; as pedagogias tecnicistas, etc. Percebe-se que o docente é atravessado por esses discursos desde a graduação e atua de forma ambígua: ora os negam, ora os colocam em cena, vivenciando práticas heterogêneas e contraditórias.

Notamos que no caso desta pesquisa, o currículo analisado opera de tal forma que não permite aos egressos (deste estudo) atentarem-se às forças que produzem esses discursos. O que se tem é a afirmação da EF falsa e da EF verdadeira, a melhor e a pior, a atual e a ultrapassada, da validação do professor inovador, criativo, crítico e da rejeição ao retrógrado, conservador, passivo. O currículo acessado não possibilitou a esses sujeitos constatarem que sua trajetória formativa é composta por múltiplas ordens de discursos, que essas têm história, são políticas e os conduzem a agir de modo específico no âmago de aparelhos que visam a regular a ação dos indivíduos que compõem uma população (Diaz, 1999). Sublinhamos que alguns aspectos que operam subjetividades não são percebidos pelos docentes entrevistados em sua prática pedagógica, fragilizando sua atuação política.

Em que pese a atuação docente ser complexa e nela haver a dispersão e a repartição de muitos discursos e a produção de muitos modos de subjetivação, mediante a empiria produzida, entendemos que boa parte dos discursos acessados no currículo que formou os professores deste estudo, que são heterogêneos e antagônicos, estão dispersos em sua prática pedagógica e, em alguma medida, contribuem para não perceberem que atuam no chão da escola de modo a favorecer estratégias de governo da população afeitas à racionalidade da política neoliberal, apesar de assumirem a posição de agente da transformação social e de o projeto pedagógico do curso formador objetivar uma formação crítica. O quadro descrito se consolida com as constantes investidas dos docentes depoentes em práticas de formação contínua, conforme anunciaram nas entrevistas. Ao confrontarem suas dificuldades com o que deles se exige, sujeitam-se à ordem vigente da responsabilização pessoal para superação de adversidades, ou seja, a do autoinvestimento.

Diante dos dados produzidos, alertamos para o modo como o currículo da formação em licenciatura em EF potencializa o acirramento do neoliberalismo. Ancorados nas ferramentas foucaultianas, reforçamos que a compreensão do que nos compele a atuar de determinada maneira, do que nos impede de experimentarmos formas de ser que escapem da ordem vigente requer a interrogação do que está presente em nossas condutas. Apostamos em um currículo que problematize esse debate com intensidade, rigor e profundidade.

Não se trata de mostrar o que está escondido ou conscientizar o docente alienado. Trata-se de elaborar ferramentas que nos permitam um exercício do pensamento acerca dos modos como somos constituídos docentes mediante os discursos pedagógicos que nos atravessam, para, a partir dessa problematização, produzirmos outros saberes sobre a docência que abasteçam o enfrentamento aos saberes dominantes fomentados pelo ethos neoliberal. Entendemos que esse movimento possa ser um caminho para que, assim, fabriquemos atitudes críticas, a fim de promover políticas de resistência a essa arte de governar, e para que nos seja permitido fazer valer o direito dos governados (docentes) de ser, pensar, ensinar, enfim, governar a si e aos outros de outro modo, a partir de outros pressupostos.

Disponibilidade de dados

Os conteúdos poderão estar disponíveis no momento da publicação do artigo.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pelo auxílio que viabilizou este estudo.

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1Cabe dizer que se trata de uma produção influenciada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (Resolução CNE/CP n. 1, 2002) e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a EF (Resolução CNE/CES n. 58, 2004).

2A formação em EF estruturou-se a partir de saberes formulados para atender demandas da escolarização básica, visando à especialização profissional (Paiva, 2003). Desde então, as pedagogias das práticas corporais tornaram-se disciplinas, (con)fundindo-se com as próprias.

3O currículo crítico-superador da EF foi publicado na obra Metodologia do ensino de EF (Soares et al., 1992).

4Para Silva (1999), as teorias tradicionais de currículo são tanto as progressivistas como as da eficiência.

5Não tomamos esse autor como fundador dos discursos pedagógicos que tratam a noção de interesse. No entanto, marcamos sua importância para o movimento da Escola Nova, que contribuiu para espraiar essas ideias até a atualidade, principalmente aquelas que anunciam as metodologias ativas como requerem as mudanças neoliberais.

Recebido: 02 de Janeiro de 2023; Aceito: 07 de Agosto de 2023

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