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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.53  São Paulo  2023  Epub 30-Mayo-2023

https://doi.org/10.1590/1980531410185 

Espaço Plural

Heleieth Saffioti (1934-2010) A JOVEM AUDACIOSA NO TRAPÉZIO MARXISTA1

Albertina de Oliveira CostaI 
http://orcid.org/0000-0002-9749-3686

IFundação Carlos Chagas (FCC), São Paulo (SP), Brasil; albecosta@uol.com.br


Tributo a uma revolucionária

Venho homenagear a ousadia desenfreada de uma desbravadora de quem estudiosas e militantes feministas somos todas direta ou indiretamente tributárias: Heleieth Saffioti.

Penso que é oportuno não apenas reconhecer seu papel decisivo na consolidação do campo dos estudos feministas no Brasil, mas ressaltar sua contribuição para a renovação das ciên- cias sociais.

Acho louvável e apropriado que os mais jovens continuem reverenciando uma mulher que por 50 anos pensou, escreveu, formou gerações, dialogou, brigou, alimentada e alimentando o movimento de mulheres no Brasil. Uma revolucionária na teoria e na prática. Heleieth Saffioti foi um caso raro, o exemplo difícil de encontrar, de intelectual orgânica, creio que tinha noção da carga de deveres e responsabilidades que isso representava; e que almejou e se comprouve nesse lugar espinhoso.

Fico emocionada ao lembrar de meu último encontro com Heleieth, em Recife, em 2009, num seminário do SOS Corpo, onde apresentou reflexões suscitadas por suas mais recentes pesquisas.2

Conheci Heleieth, jovem, recém-formada, no início da década de 1960, quando entrei no curso de Ciências Sociais da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), na rua Maria Antonia. Logo contraí uma dívida para com ela, que relato apenas porque me parece esclarecedora da temperatura intelectual da época.

Em 1964, me convidou para ser sua assistente na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara e eu recusei. Araraquara era longe de São Paulo, e seu interesse pela condição feminina me parecia pouco promissor como tema de pesquisa; embora achasse pertinente, não me parecia uma questão candente: apenas um problema cultural menos relevante no quadro das graves questões que desafiavam o país. Naquele momento, parecia mais atraente para a jovem integrante de um seminário sobre O Capital com pretensões revolucionárias refletir sobre o papel da burguesia nacional e as teorias da dependência.

Tento aqui retraçar momentos significativos da trajetória intelectual de Heleieth Saffioti e sua contribuição para a renovação das ciências sociais. A socióloga brasileira (1934-2010) ocupa um lugar singular na história do pensamento social. Seu livro A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade, publicado no início da década de 1970, teve um enorme impacto que ultrapassou as fronteiras nacionais. Foi revolucionário em diferentes dimensões: na tentativa de inserir na teoria marxista, então hegemônica na América Latina, o papel central de exército industrial de reserva desempenhado pela mão de obra feminina e na formulação de uma visão alternativa às concepções relativas ao estatuto da mulher da teoria da modernização em voga no ambiente acadêmico anglo-saxão.

Em sua extensa obra, a teórica feminista buscou compreender os mecanismos profundos da exploração das mulheres no capitalismo, insistindo com veemência na relação estrutural entre patriarcado, violência sexista, racismo e capitalismo.

Pensadora, ativista e precursora de um campo de estudos, Saffioti contestou o padrão vigente de divisão internacional do trabalho intelectual, que reserva a elaboração teórica aos cientistas do Norte e a pesquisa empírica aos do Sul.

Outsider

Nascida numa cidadezinha do interior paulista (Ibirá) em 1934, filha de um pedreiro e de uma costureira (segundo obituário da Folha de S. Paulo), veio - depois de um périplo desde o “sertão”, como chamava o local da casa paterna em Auriflama, onde só havia escola isolada, passando por outras cidades como Avaré e Itapetininga, onde residiam familiares - para São Paulo estudar. Carregava o handicap de uma escolaridade entrecortada e realizada em condições pouco propícias. Fez curso Normal, a via expressa preferencial nesse tempo para a profissionalização para um grande contingente de moças. O diferencial foi que estudou no Instituto de Educação Caetano de Campos, a Escola Normal da Praça, modelo de referência da qualidade da escola pública. Frequentou o noturno, precisava se sustentar; batalhadora, teve até três empregos concomitantes.3 Em 1956 ingressou na USP. Foi a primeira universitária de sua família. Como diversas colegas que mais tarde empreenderiam carreiras acadêmicas,4 beneficiou-se de dispositivo legal que permitia a professoras concursadas o comissionamento como estudantes universitárias, mas foi limitada em sua escolha de carreira pela disposição que facultava às egressas do curso Normal apenas os cursos de Pedagogia e de Ciências Sociais (e impedia o acesso aos de ciências duras como Física, Matemática, etc.). Teve uma sólida formação em uma época em que os fundamentos empíricos da explicação sociológica estavam em voga e em que os estudantes se mobilizavam para reclamar a introdução de Marx no currículo. Criaram como alternativa, animados por Michael Löwy, o centro Karl Marx de estudos, onde Heleieth não foi admitida - talvez a condição de normalista não fosse uma boa credencial. Era mais velha que os colegas e casada, o que parecia então um impedimento a atividades extracurriculares. Formada em 1960, acompanhou o marido, o químico Waldemar Saffioti, que foi lecionar na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, onde, para conseguir novo comissionamento, prestou vestibular para Pedagogia. Logo tornou-se assistente de Luiz Pereira. Foi aí que, em um relativo isolamento intelectual, a partir de 1962, empreende seu ambicioso e complexo projeto de abordar a condição feminina em uma perspectiva marxista.

Mirando-se no exemplo de Florestan Fernandes, seu professor e orientador no doutoramento, buscou alargar sua formação de modo autodidata devorando os livros que encontrava, o que se refletirá na variedade de recursos teóricos e metodológicos que utilizará em seu trabalho, “sem resvalar para o ecletismo”, como gostava de afirmar.

Em outro contexto, Mística feminina, de Betty Friedan,5 publicado em 1963,6 descrevia o mal sem nome, a miríade de frustrações que vitimava as mulheres educadas de classe média, confinadas à domesticidade dos subúrbios norte-americanos. Apesar da má acolhida inicial, o livro sem pretensão acadêmica que culpava educadores, publicitários, psicólogos e cientistas sociais pelo afastamento feminino da força de trabalho e da vida pública tornou-se um best-seller que galvanizou a América, teve forte impacto internacional e erigiu sua autora à condição de ícone da nova onda feminista.

O projeto de doutorado de Heleieth Saffioti na USP transformou-se em livre-docência em Sociologia na hoje Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), com a defesa da tese A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade, em 1967. Dois aspectos desse rito de passagem merecem ser sublinhados: essa foi a primeira defesa de sua carreira universitária, e, mais importante, a tese (como todas de livre-docência que pressupõem um pesquisador experimentado) foi sustentada sem patrono. Heleieth enfrentou sozinha o ritual, fato que, mesmo naquele contexto em que o sistema de pós-graduação ainda não estava codificado e consolidado no país, confere contornos singulares a sua trajetória acadêmica.

Para avaliar o alcance e a repercussão da sua primeira obra, é interessante situá-la no contexto do debate acadêmico em curso, tanto sobre a relação entre mulher e desenvolvimento quanto sobre o que então se denominava questão feminina.7

A grande novidade da tese de Saffioti, sua relevância e o impacto que causou podem ser atribuídos a sua visão divergente tanto dos estudos inspirados pela teoria da modernização como daqueles que propunham uma abordagem marxista. De acordo com a teoria da modernização, muito em voga no mundo anglo-saxão e difundida na região sobretudo pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a posição social da mulher seria um indicador de modernidade, pressupondo uma classificação das sociedades como modernas e tradicionais ou como desenvolvidas e subdesenvolvidas, bem como um movimento de mudança social do tradicional para o moderno, do sub para o desenvolvido, que poderia ser induzido. Essa concepção8 formatou (e formata) políticas de cooperação internacional que privilegiam o papel da mulher como agente de mudança social e buscam reparar sua marginalização econômica pela erradicação de instituições, tecnologias, crenças e práticas consideradas atrasadas quando comparadas às dos países centrais.

O argumento central de Saffioti seria que o capitalismo, segundo suas exigências, ora incorpora as mulheres ao sistema de produção, ora as repele e as marginaliza na família como exército de reserva com a função de rebaixar os salários e dividir a classe trabalhadora, mistificando tanto para mulheres quanto para homens a estrutura da exploração capitalista.

De outro lado, historiadoras marxistas, analisando o processo de industrialização na Grã- -Bretanha, preocupavam-se em estabelecer se o advento do capitalismo teria trazido mais benefícios ou prejuízos para as mulheres, sem buscar explicações estruturais. No campo do feminismo, Cristine Delphy teorizou sobre o inimigo principal9 e conferiu à divisão sexual do trabalho e às relações sociais entre os sexos um estatuto crucial, postulando a existência do trabalho doméstico como modo de produção distinto do modo de produção capitalista. O fundamento da opressão das mulheres residiria na apropriação pelos homens do trabalho gratuito das mulheres. Discussões sobre o trabalho doméstico, seu valor ou seu peso na configuração do estatuto social das mulheres ganharam centralidade.

No cenário de um debate aquecido e de um movimento feminista emergente, ávido por argumentos substantivos, o pioneirismo e o mérito da contribuição de Saffioti em A mulher na sociedade de classes conquistou notoriedade internacional antes mesmo de ser reconhecida no Brasil.

Protagonista

No decorrer da década de 70, as questões menores em que Heleieth se especializara vão gradativamente adquirindo relevo e um novo campo de investigação vai ganhando legitimidade e importância. Desse processo de profundas transformações na sociedade e na teoria social, ela é protagonista. Seus estudos teóricos e empíricos, suas pesquisas quantitativas e qualitativas sustentam-se em análises rigorosas e consistentes e abrem espaços para problemáticas feministas na academia.

Apesar de reclamações constantes contra os mais diversos obstáculos encontrados em seu percurso acadêmico, é forçoso reconhecer que esses entraves eram mais de ordem simbólica, de prestígio e reconhecimento. Como outras colegas de sua geração, Saffioti usufruiu em sua carreira tanto do sistema de concursos da universidade pública brasileira (que penalizava menos as mulheres do que a competição em sistemas privados) quanto de um sistema de fomento à pesquisa baseado no mérito. As vicissitudes enfrentadas por Heleieth não se comparam, por exemplo, com as da soció- loga Viola Klein,10 pioneira nos estudos empíricos sobre mulher na força de trabalho e até hoje pouco reconhecida. Discípula de Karl Mannheim, sua tese sobre o caráter feminino (The feminine character: History of an ideology), de 1945 , foi mal recebida pela crítica em razão de seu feminismo militante e por encorajar as mulheres a trabalhar. Viola teve dificuldade em encontrar empregos correspondentes a suas qualificações. Basta lembrar que demorou 20 anos para conseguir um posto acadêmico. Sua contribuição é, até hoje, pouco lembrada pelas estudiosas do gênero. No entanto, uma década depois de sua publicação, a leitura da obra dessa socióloga irá contribuir em muito para o envolvimento de Saffioti com o tema.

A obra de Heleieth Saffioti, apesar de uma acolhida morna no país, teria enorme ressonância internacional num contexto de predomínio da teoria marxista no campo acadêmico na América Latina e de crescente ascendência do feminismo nos países centrais.

Saffioti será líder de diversas iniciativas, estará presente em todos os grupos de discussão do incipiente campo do conhecimento (no primeiro grupo de trabalho sobre a mulher na força de trabalho, desde a primeira reunião da Anpocs em 1978, em seminários, colóquios, etc.). Num primeiro momento, prefere ser identificada como intelectual marxista rebelde e ostenta um certo desconforto com o rótulo feminista, que considera de viés estigmatizante. Heleieth quer fazer de sua teoria sua militância. Mais tarde, sempre concernida pela emancipação das mulheres, sentirá igual desconforto com a falta de radicalidade e a pretensa neutralidade das terminologias gênero e estudos de gênero, e se orgulhará com a credencial de teórica feminista. Heleieth foi sempre uma pensadora voltada para totalidades e História e se manteve fiel a grandes teorias, mesmo quando caíram em descrédito e desuso.

Heleieth Saffioti realizou uma revisão teórica da obra de Karl Marx, investigando a inserção das mulheres nos mecanismos estruturais do modo de produção capitalista. Foi uma das raras pessoas que garantiram um lugar para o Sul na história do pensamento social.

Referências

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Boserup, E. (1970). Woman’s Role in the Economic Development. Earthscan. [ Links ]

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1Uma primeira versão deste texto foi apresentada no XXX International Congress of the Latin American Studies Association (LASA), GEN 7941, San Francisco, Califórnia, em maio de 2012.

2A apresentação resultou no artigo “Quantos sexos? Quantos gêneros? Unissexo/unigênero”, publicado posteriormente em Cadernos de Crítica Feminista, 3(2), dez. 2009.

3Informações obtidas na entrevista concedida a Juliana Cavilha Mendes e Simone Becker em 2004, publicada na coletânea organizada por Miriam Grossi, Luzinete Minelli e Rozeli Porto (2006), e republicada depois de sua morte na Revista Estudos Feministas (Mendes & Becker, 2011).

4Como se pode ver nos depoimentos de Olga Pantaleão (Geografia), Alice Canabrava (Economia), Gilda de Mello e Souza (Filosofia), Conceição Vicente de Carvalho (História), Jandira Barzaghi (Química) e Verônica Raupp (Medicina), recolhidos por Eva Blay e Alice Lang, em Mulheres na USP: Horizontes que se abrem (2004).

5Daniel Horowitz, seu biógrafo, mostra que a jovem militante trostkista Betty Friedan, que se tornaria o rosto público do feminismo liberal, cultivou propósito semelhante ao de Saffioti, ou seja, investigar a participação feminina na força de trabalho, mas sem encontrar patrocinador para seu estudo (Horowitz, 1998).

6A Mística só seria publicada no Brasil pela Editora Vozes, em 1971.

8Nesse sentido, foi exponencial a obra da economista dinamarquesa Ester Boserup (1910-1999), Woman’s Role in the Economic Development, de 1970, evidenciando a contribuição do trabalho doméstico para a economia nacional e arguindo que os custos do desenvolvimento caem sobre as costas das mulheres.

9“L’ennemi principal”, publicado originalmente na revista Partisans (1970).

10Depois de escrever sobre o casamento soviético, 7Viola Klein (1908-1973) publicaria, em 1946, The feminine character history of an ideology; seria coautora com a futura prêmio Nobel da Paz de 1982, Alva Myrdall (1902-1986), de Women's two roles, home and work (1968), traduzido para o espanhol pela Península em 1969. Informações baseadas no artigo de E. Stina Lyon (2007).

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