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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.53  São Paulo  2023  Epub 18-Ago-2023

https://doi.org/10.1590/1980531410306 

Resenhas

UMA ETNOGRAFIA DAS VOZES E PERCEPÇÕES DE ALUNOS E PAIS SOBRE O FRACASSO ESCOLAR

Alessandra Dos SantosI 
http://orcid.org/0000-0003-1427-0661

IPrismas Ltda., Rio de Janeiro (RJ), Brasil; alesantos02@gmail.com

Mattos, C. L. G. de.. 2022. Fracasso escolar: Uma etnografia. Appris, 359pp.


Imagem: Freepik

O livro Fracasso escolar: Uma etnografia, de Carmen Lúcia Guimarães de Mattos, foi publicado em dezembro de 2022. Ele é fruto de sua tese de doutorado, defendida na Universidade da Pensilvânia, em 1992. Há, portanto, 30 anos. De lá para cá muitas mudanças aconteceram: a LDB está na sua 2a versão; a internet, as tecnologias da informação e da comunicação e os objetos conectados são parte inerente do nosso dia a dia; uma nova proposta de ensino médio foi instituída; e ainda estamos enfrentando as consequências da pandemia de covid-19 para a educação de crianças e adolescentes. Com o fechamento de escolas, medida adotada em todo o mundo para impedir novas infecções e mortes, a evasão, o abandono e a distorção idade-série aumentaram, agravando as desigualdades e acentuando o problema do fracasso escolar.

De acordo com pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef (2021), em 2019, 2,1 milhões de estudantes foram reprovados no Brasil, mais de 620 mil abandonaram a escola e mais de 6 milhões estavam em distorção idade-série. Em 2020, com a pandemia, mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não tiveram atividades escolares - remotas ou presenciais. Para além do fracasso escolar acentuado na pandemia, o problema das desistências e repetências já existia em 1991. Na época, como relata Carmen de Mattos, cerca de 5 milhões de crianças e adolescentes na faixa dos 7 aos 14 anos estavam fora da escola primária, 25 milhões acima de 15 anos de idade eram analfabetos, e o índice de repetência se aproximava de 85% no primeiro e segundo ano do ensino fundamental. Como entender o fracasso do sistema educacional brasileiro em manter crianças e adolescentes nas escolas? Por que um índice de repetência e reprovações tão grande? Tanto antes quanto agora, não são questões simples. As respostas requerem entender a cultura que produz o fracasso escolar: a sociedade, o sistema educacional e o papel da pobreza dentro desse sistema.

O livro traz, como aponta no prefácio dessa edição o orientador de sua tese, Frederick Eriksson, as diferenças de perspectivas e de visão de mundo de alunos e pais em contraste com a generalidade distanciada da visão de administradores escolares, diretores e supervisores. De acordo com Eriksson, “as vozes dos alunos na nomeação de sua experiência produzem contranarrativas que contradizem a sabedoria convencional dos profissionais da escola” (Mattos, 2022, p. 20).

Dessa forma, o estudo focaliza as percepções de pais, meninos e meninas de séries iniciais do ensino fundamental sobre o fracasso escolar, bem como as visões de professores, diretores, supervisores e autoridades governamentais. As análises apontam duas linhas de explicações para a dificuldade educacional: a primeira localiza o problema nos alunos (problemas disciplinares) e a segunda, na interação entre alunos e o sistema escolar (choque cultural).

A autora, amiga e discípula de Paulo Freire, utiliza há mais de 34 anos a etnografia como metodologia de pesquisa, e nesse trabalho faz da entrevista seu principal meio de coleta de dados. Por meio da observação em sala de aula e dos registros audiovisuais amplia o diálogo entre si e os sujeitos da pesquisa, dando-lhes voz e descrevendo suas percepções. A pesquisa reúne informações de 187 participantes de duas escolas brasileiras: uma escola rural do município de Cachoeiras de Macacu, na região serrana do estado do Rio de Janeiro, e uma escola urbana no bairro da Gávea, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, onde 99% dos alunos moram na favela da Rocinha.

O livro está estruturado em sete capítulos, além da apresentação e do prefácio, e ainda traz ao final a trajetória da autora em forma de autoetnografia. Tal relato assume o tom ora de relatório de pesquisa, ora de diário de vida, entrelaçando seu percurso pessoal e profissional em um movimento dialético ascendente de resiliência e sucesso.

O primeiro capítulo apresenta seu objeto de estudo, “fracasso escolar”, e sua percepção de como ele foi negligenciado pela legislação em educação, pela pesquisa educacional e, principalmente, pelas autoridades educacionais. Relata também as questões, a justificativa e as limitações do estudo. O segundo capítulo é dedicado a uma revisão de literatura não exaustiva com foco na natureza do fracasso escolar no Brasil: sua visão é social, educacional e política.

No terceiro capítulo, além de descrever os dois locais onde foram feitas as pesquisas, a autora discorre sobre seus procedimentos de investigação, nos quais o método etnográfico permitiu o uso de vários instrumentos de registro e análise. No quarto capítulo, a autora vai em busca de explicações para a exclusão, e, por meio de entrevista, dá voz a jovens que tinham sido expulsos, ameaçados de expulsão ou que estavam familiarizados com a experiência. Tais jovens contaram suas histórias de fracasso e como lidaram com ele. Ainda, traz a visão da diretora, professora, do político, as percepções populares sobre o processo de expulsão. Os entrevistados dão algumas explicações sobre os conceitos de disciplina e falta de disciplina.

O quinto capítulo usa as falas dos participantes e estudos de caso para responder a questões sobre as interações em sala de aula: sua natureza, a prática dos professores, a relação entre a “falta de interesse e de conhecimento” do professor e a “falta de motivação” dos alunos, e é examinada a hipótese de que a experiência dos professores com os alunos que fracassam é resultado do choque cultural e conflitos entre ambos. A batalha se daria entre: 1) os jovens que se percebem vistos como “menos capazes” ou “menos inteligentes”; 2) os professores que atribuem à linguagem dos alunos o principal obstáculo ao seu progresso; e 3) a percepção do conjunto dos valores que as autoridades governamentais acreditavam que os alunos e suas famílias precisavam ter.

No sexto capítulo, a autora traz as explicações sociais para a ocorrência do fracasso escolar. Enquanto os jovens apontam a discriminação como um fator importante para seu fracasso, esse aspecto raramente é mencionado por professores, diretores ou dirigentes escolares. A partir das entrevistas dos alunos e outros participantes, a autora pôde fazer uma análise da discriminação contra os alunos baseada na raça/cor da pele, sexo e local de moradia. As evidências de discriminação são óbvias em estudos empíricos e em dados estatísticos oficiais, e são uma fonte importante de injustiça que não pode ser negligenciada.

No sétimo capítulo, a autora aborda o papel do governo nos investimentos e nas políticas educacionais para a educação básica. Investiga a suposição dos próprios jovens e de seus pais de que o governo não se importa em fornecer boas escolas, contribuindo, pois, para o fracasso escolar.

Em suas conclusões, mostra que os jovens que fracassam não têm voz e que a sociedade considera que estão cumprindo seu destino. Aponta a necessidade de políticas educacionais para lidar com os evadidos e repetentes e afirma que, embora a melhora no sistema educacional brasileiro ainda seja algo distante, a determinação dos jovens em frequentar a escola indica que a transformação social é possível.

Fracasso escolar: Uma etnografia, apesar de escrita há 30 anos, é uma obra atual e deve ser tomada como uma importante referência. Como diz a autora, é

. . . quase um documento histórico para as jovens professoras que querem entender as interações no interior das escolas, e, para os mais antigos, é um lembrete de que o tema continua a incomodar muitos - todos que acreditam na educação como um ato político de libertação e de conscientização. (Mattos, 2022, p. 9).

Referências

Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). (2021). Enfrentamento da cultura do fracasso escolar. Unicef. www.unicef.org/brazil/media/12566/file/enfrentamento-da-cultura-do-fracasso-escolar.pdfLinks ]

Mattos, C. L. G. de. (2022). Fracasso escolar: Uma etnografia. Appris. [ Links ]

Recebido: 31 de Maio de 2023; Aceito: 02 de Junho de 2023

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