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Cadernos de Pesquisa

versión impresa ISSN 0100-1574versión On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.53  São Paulo  2023  Epub 29-Sep-2023

https://doi.org/10.1590/1980531410377 

RESENHAS

EDUCAÇÃO E ANCESTRALIDADE EM CONTRATEMPO: NOS RASTROS DE AILTON KRENAK

Diego dos Santos ReisI 
http://orcid.org/0000-0001-6977-7166

IUniversidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa (PB), Brasil; diegoreis.br@gmail.com

Ailton, K.. 2022. Futuro ancestral. Companhia das Letras,


Imagem: Freepik

Nas últimas décadas, o debate em torno à questão indígena no Brasil tem sido protagonizado por movimentos sociais e lideranças dos povos originários, que não cessam de denunciar o genocídio em curso no país, na luta por justiça social. O refluxo político experienciado durante o governo Bolsonaro e o desmonte de políticas e órgãos de proteção e promoção da terra, da floresta e da saúde indígenas atestam o recrudescimento da violência endereçada às pessoas e grupos indígenas, com especial virulência nas regiões Norte e Centro-Oeste do país, onde o desmatamento, o garimpo e a ocupação criminosa de terras indígenas consolidaram-se como políticas de governo. Nesse contexto, atualizado com as discussões acerca do Marco Temporal, que determina que os povos indígenas só podem reivindicar determinada terra caso já estivessem nela no dia 5 de outubro de 1988 - aprovado na Câmara dos deputados pelo PL n. 490/2007 e, doravante, em análise no Senado com o PL n. 2.903/2023 -, os direitos à legitimidade das culturas dos povos originários, à dignidade e à existência são colocados em xeque, diante de políticas de morte que obstaculizam o acesso a direitos políticos e sociais.

A expansão da violência física e simbólica materializa um conjunto de violações que culmina nos dados estarrecedores dos indicadores, em todos os campos sociais, que evidenciam a marginalização, o silenciamento e a aniquilação de uma agenda efetivamente comprometida com a vida dos povos originários. A luta pela terra, pelo bem-viver e pela cultura torna-se enfrentamento das investidas violentas e criminalizantes, como têm denunciado organizações como a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), o Conselho do Povo Terena, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre outros, além de consideráveis produções acadêmicas.

É nesse horizonte que Futuro ancestral, mais recente livro de Ailton Krenak, desafia não apenas as ideias de progresso e desenvolvimento que, historicamente, adiantam o fim do mundo, mas embaralha também tempos, espaços, saberes e sentidos, no túnel do tempo presente. A reunião de cinco ensaios, organizados por Rita Carelli, fruto de conferências e debates que contaram com a participação do pensador entre 2020 e 2021, engloba temas e itinerários de escrita que percorrem florestas, rios, cidades e ocupações, para fazer emergir a lição cantada por seus ancestrais: “os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui” (Krenak, 2022, p. 11).

A matéria aquosa que atravessa boa parte dos ensaios, como fluência de rio sinuoso, corre por entre as palavras para expressar a potência e o ritmo irrefreável daquilo que é capaz de impor a trava e o ralentar do tempo em um momento de fluxos aceleradíssimos de trocas, de mercadorias e pessoas, pós-pandemia. Furor que não se configura apenas como desejo de atravessar rapidamente o rio a nado até outra margem, mas também de tapar “com placas de concreto” e lajes os canais d’água e de modernizar as paisagens natural e urbana com uso ilimitado de cimento, vidro e aço, como signos do progresso.

É contra essa maré de detritos e restos, como aquela que vitimou o avô dos Krenak, Watu, ou rio Doce, em 2015, que a denúncia aos assomos de devastação e de terra arrasada ganha os contornos da reflexão fértil acerca da potência do selvagem como insurreição e intrínseca à experiência de bem-viver e pertencer. Lembre-se que, em 2021, no apogeu da pandemia, a Vale alcançou um lucro recorde, o maior da história do país, de R$ 121,2 bilhões, enquanto o processo criminal de Brumadinho (MG) segue envolto por lama tóxica, ameaças e perseguições a lideranças comunitárias. Vale lembrar também que, em 2019, o rompimento da barragem da empresa em Brumadinho resultou em 272 mortes e três pessoas ainda hoje desaparecidas.

Para Krenak, trata-se, no livro, de uma espécie de retorno em direção ao presente- -futuro, tão simples como a narrativa que figura na epígrafe do livro dos meninos do povo Yudjá, na canoa, cuja remada quase “parece a de seus antepassados”, o que é razão de inestimável orgulho. A promessa da continuidade revelada pelo gesto sincro- nizado, lento e ritmado das remadas é movimento de resistência ancestral - de encontro de tempos e sentidos na superfície do presente, ou do rio. Se, na antiguidade grega, um filósofo como Heráclito podia afirmar que o ser humano não se banha duas vezes no mesmo rio, Krenak desdobra as múltiplas formas e faces do mesmo rio, que permanece, apesar de correr por entre as pedras, seguir sua travessia entre estados - desconhecendo fronteiras -, emergir e retrair, em si mesmo, em função da relação estabelecida com os demais entes florestais, pois, “quando a paisagem se torna insuportável, o rio migra e conflui para outras viragens” (Krenak, 2022, p. 23).

O livro, de modo geral, retoma a imagem-guia do rio para aprofundar tensões, rupturas e problematizar barreiras e barragens, ali onde elas se pressupõem expressão máxima da civilidade e da cidadania. Se por elas corre, além da água, o sangue e os detritos tóxicos do garimpo e do agronegócio, Krenak parece apontar para a barra do que não pode ser recalcado nessas construções devastadoras: a voracidade do necrocapitalismo, afirma o pensador, ou do capitaloceno, dois nomes da morte que assombram a vida. Junta-se a eles a pandemia de covid-19, com suas funestas consequências, em um país tomado de assalto pelo bolsonarismo e por fundamentalismos que colaboraram ativamente para o alastramento do vírus. Se a pandemia por aqui teve sua virulência intensificada, muito se deve, como é notório, à ausência de políticas públicas voltadas para debelar, restringir ou prevenir o avanço das tsunâmicas ondas virais. Não estranha que, recoberta por uma estapafúrdia mentalidade redentora, a pandemia tenha sido interpretada como momento de aprendizado e evolução, quando a população marginalizada - sobretudo negra, quilombola, indígena e ribeirinha - seguia sendo dizimada e superexposta à morte, para que o país não “parasse”. Krenak é peremptório ao dissolver a ideia branco-cristã do apocalipse pedagógico. Antes, aponta nessa fábula a perversão e a truculência ideológica de (des)governos sedentos, vis e secos, bem como as grandes corporações, impermeáveis a qualquer inclinação humanitária.

Recorda Krenak, contudo, que “somos boas pedras no caminho das grandes corporações”. No avançar da barbárie capitalista, o pisar suave a terra, tal como evocado pelo filósofo, é contundente, “impedindo que o dedo urbano - fosse ele de geógrafos, topógrafos ou sismógrafos -, apontasse finais dentro da floresta” (Krenak, 2022, p. 77).

O primeiro ensaio do livro, como indica o título, “Saudação aos rios”, é, a um só tempo, pedido de licença, agradecimento e recordação de quem evoca os nomes próprios de seus ancestrais na escuta dos cursos d’água. Xingu, Amazonas, rio Negro, Solimões, Guaporé, Araguaia, São Francisco, para mencionar apenas alguns, são vivos, cantam e dançam, “rio-música”, e permitem “conjugar o nós: nós-rio, nós- -montanha, nós-terra” (Krenak, 2022, p. 14).

Imerso nesse ser água e em suas formas de resistência, em rios ora pacatos, ora bravíssimos, as “Cartografias para depois do fim”, segundo ensaio do livro, propõe, de ré, revisitar narrativas de origem, para afirmar que “no princípio era folha”. O exercício aventado por Krenak sugere “imaginar cartografias, camadas de mundos, nas quais as narrativas sejam tão plurais que não precisamos entrar em conflito ao evocar diferentes histórias de fundação” (Krenak, 2022, p. 32). Essa cartografia afetiva desdobra-se no movimento de recriar mundos possíveis, onde confluem, para lembrar outro pensador, Antonio Bispo dos Santos (2023), Nego Bispo, lógicas plurais e experiências radicais de existência contrárias às perspectivas da colonização.

Em “Cidades, pandemia e outras geringonças”, Krenak rememora a experiência da pandemia e seus impactos fúnebres, na floresta e na cidade. A crítica à urbanidade é fundamentada nas premissas e falsas promessas de um modelo civilizatório que produz fome e pobreza. A expropriação dos territórios naturais e os projetos da arquitetura moderna resultam na devoração da vida e dos vivos, para instituir o que Krenak nomeia de “cultura sanitarista”, para a qual “o que não é cidade, o que não é saneado, o que não é limpinho, a gente elimina do mapa” (Krenak, 2022, p. 61). Se a civilização é urbana, resta a associação direta da floresta com o primitivo e selvagem, para “a mente reta, concreta e ereta de quem planeja o urbano” (Krenak, 2022, p. 66). É aí que o pensador propõe uma das ideias fulcrais do livro: a experiência da florestania. Contra os arroubos ígneos da cidadania e seu projeto de associar direitos à vida na cidade, a florestania tensiona a “mentalidade de catacumba”, “transformando as cidades por dentro” (Krenak, 2022, p. 66). Trata-se da mudança da lógica da vida privada nos grandes centros urbanos e de “reflorestar o nosso imaginário”, para “se reaproximar de uma poética de urbanidade que devolva a potência da vida, em vez de ficarmos repetindo os gregos e os romanos” (Krenak, 2022, p. 71).

É ainda nos termos da florestania que, em “Alianças afetivas”, quarto ensaio do livro, Krenak aborda os vínculos político-afetivos que transbordam as alianças institucionais e político-partidárias. Antes, faz confluir potências, linguagens e reivindicações interessadas na “intrínseca alteridade de cada pessoa, em cada ser” e que “obriga a uma pausa antes de entrar” (Krenak, 2022, p. 82). Descalço, com os pés na terra, o chão comum dos afetos é a diferença, que une mundos não iguais. Os fluxos e gramáticas distintas multiplicam sentidos e imaginações acerca do que é, descentrando o humano do ponto de convergência da dinâmica dos afetos e seus enunciados antropocêntricos. Se esse ponto é destacado, deve-se, não se pode esquecer, às consequências coloniais e predatórias da força ocidental que “tudo marca, denomina, categoriza e dispõe” (Krenak, 2022, p. 83).

O livro se fecha com uma flecha lançada no coração do presente. São tematizadas as infâncias e suas (re)invenções no ensaio “O coração no ritmo da terra”, em que educação e futuro, “no rastro dos ancestrais”, são pensados em contratempo. A invocação à ancestralidade é antídoto contra “ansiedade, fúria e uma tremenda aceleração do tempo”. As crianças são aquelas capazes de redimensionar o mundo a que chegam, “um presente que os recém-chegados trazem para nós” (Krenak, 2022, p. 111). A terra, aqui, não é correlata à “sujeira” e à assepsia da educação sanitária, mas o que sustenta e produz o solo comum de aprendizados compartilhados e coletivos. “As crianças Krenak anseiam por serem antigas”, sintetiza o pensador (Krenak, 2022, p. 116). Anseio que se traduz no gesto das infâncias que, inspiradas pelos antepassados, remam em direção a mundos de liberdade e autonomia, orientadas por lógica náutica distinta da rota branco-ocidental.

O futuro é a terra, ancestral, que desafia o concreto. É presente e se pressente nas tessituras do cotidiano orientadas para o bem-viver e na educação que se contrapõe aos processos coloniais de inferiorização racial, epistêmica e ontológica que hierarquizam humanidades. Krenak desvela, em sua análise, com a suavidade de seu pisar e a força de seu pensar, aquilo que, de tão brutalmente cotidiano, é naturalizado na produção da vida formatada e sem fricção do Ocidente. O futuro é, em sua força ancestral, os rios da memória, “capazes de esculpir pedras” (Krenak, 2022, p. 25) e, em sua movência, reinventar mapas e travessias.

Referências

Krenak, A. (2022). Futuro ancestral. Companhia das Letras. [ Links ]

Santos, A. B. dos. (2023). A terra dá, a terra quer. Ubu. [ Links ]

Recebido: 02 de Julho de 2023; Aceito: 05 de Julho de 2023

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