O projeto de uma sociedade livre, justa e solidária, como preconizado pela Constituição Federal de 1988 (Costa & Silva, 2020), pressupõe políticas públicas que busquem superar desigualdades estruturais do país. As desigualdades constituem-se em problemas complexos (Rittel & Webber, 1973), que requerem abordagens integradas para seu enfrentamento, a exemplo da intersetorialidade (Junqueira, 1997; Inojosa, 2001; Cunill-Grau, 2016; Bichir & Canato, 2019) e da transversalidade (Walby, 2005; Bandeira, 2005; Papa, 2012; Marcondes & Farah, 2021).
A abordagem teórica da transversalidade e da intersetorialidade aponta convergências entre os dois conceitos, mas também explicita sobreposições e lacunas, havendo alguns esforços incipientes de definição de suas fronteiras e de análise de suas articulações e convergências. Assim, investigações teórico-empíricas que considerem ambas as estratégias podem adensar esse arcabouço teórico, contribuindo com a prática de políticas públicas para enfrentar desigualdades. Uma das políticas que pode se beneficiar dessas abordagens é a de cuidados (Aguirre, 2009; Carrasco, 2011), que, por sua vez, também oferece elementos para o desenvolvimento de ambos os conceitos.
É nesse contexto que nosso propósito com este artigo é analisar, por meio de pesquisa qualitativa de dados documentais e de seis entrevistas, o Brasil Carinhoso, a partir dos conceitos de intersetorialidade e de transversalidade, enfatizando-se a questão dos cuidados.1
O Brasil Carinhoso foi criado pelo governo federal em 2012 e perdurou até 2015, integrando o Plano Brasil Sem Miséria (PBSM). O PBSM, criado em 2011, objetivava superar a extrema pobreza no país até 2014, atribuindo importância à primeira infância (Decreto n. 7.492, 2011). É uma resposta governamental ao diagnóstico realizado a partir de dados do Censo 2010, que identificou 16,2 milhões de brasileiros extremamente pobres, sendo 71% de pessoas negras e 40% de crianças e adolescente de 0 a 14 anos.
Já no PBSM, foram articuladas ações em três eixos (garantia de renda, acesso a serviços públicos e inclusão produtiva urbana e rural) com ações de busca ativa para identificar as pessoas mais pobres que não acessavam os serviços públicos de proteção social. O Plano foi organizado com estratégias multidimensionais com atividades de coordenação intersetorial, articulação federativa, participação social e busca ativa (Campello & Mello, 2014). O decreto que institui o Plano cria instâncias de governança, mas não há a participação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) no Comitê Gestor Nacional, no Grupo Executivo e no Grupo Interministerial de Acompanhamento (Decreto n. 7.492, 2011).
O Brasil Carinhoso foi inserido no PBSM e assumiu uma abordagem de atenção integral à criança de até 6 anos de idade, visando ao fortalecimento de seus direitos e à articulação intersetorial e interfederativa (Cruz & Farah, 2016). Nele, previu-se a articulação de ações de educação, saúde, assistência social e nutrição, abrangendo a União, os estados e os municípios. Partia de uma visão de que a pobreza é um fenômeno multidimensional que atinge de forma desigual diversos segmentos sociais, em especial as crianças.
Os resultados sugerem que o Brasil Carinhoso foi concebido de forma intersetorial, mas sua implementação foi, em grande medida, setorial. Além disso, não se promoveu a transversalidade de gênero, desde sua concepção até a implementação. Considerando que, em 2023, iniciou-se um processo de formulação de uma Política Nacional de Cuidados e de um Plano Nacional de Cuidados, com coordenação conjunta do Ministério das Mulheres e do Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), essas reflexões, que sumarizam lições aprendidas em conjunturas pretéritas, podem subsidiar a conjuntura atual.
Este artigo está estruturado em seis seções, incluindo esta introdução. Na segunda, apresentamos o referencial teórico, ancorado na intersetorialidade e na transversalidade, além de abordar a questão dos cuidados. Sequencialmente, descrevemos o percurso metodológico. Na quarta seção, realizamos uma análise descritiva do Brasil Carinhoso. A quinta seção é dedicada à análise dos dados. Na sexta e última seção compartilhamos uma síntese do percurso, a discussão dos resultados e algumas limitações e contribuições deste estudo. Além disso, atualizamos a discussão dialogando com a realidade atual do Brasil, na qual a formulação de uma Política Nacional de Cuidados está em curso.
O artigo pretende contribuir para o debate sobre intersetorialidade e transversalidade, a partir do exame de um caso empírico, discutindo as especificidades desses dois conceitos, suas aproximações e seus distanciamentos, destacando a importância do debate sobre os cuidados para adensar esse arcabouço conceitual.
Intersetorialidade, transversalidade e políticas de cuidados: O debate teórico
A temática das desigualdades nos estudos de política pública não é uma novidade. Entretanto, mais recentemente, ganharam importância abordagens que enfocam as relações sociais produtoras de desigualdades de forma inter-relacionada, prevalecendo uma visão de problemas públicos como complexos, multicausais e multidimensionais, os quais demandam soluções integradas (Costa & Silva, 2020). A intersetorialidade e a transversalidade são exemplos que podem ser mobilizados como estratégias práticas e conceitos analíticos utilizados por um amplo conjunto de políticas públicas, a exemplo das políticas de cuidados.
Intersetorialidade
A década de 1980 foi marcada pela incorporação da intersetorialidade por políticas sociais no Brasil, com destaque para as políticas de saúde (Junqueira, 1997). Nos anos 2000, a intersetorialidade tornou-se também uma referência das políticas de combate à pobreza no Brasil e na América Latina (Cunill-Grau, 2016; Bichir & Canato, 2019).
A intersetorialidade pode ser compreendida como uma forma de integrar diferentes setores para que, conjuntamente, solucionem problemas complexos e multicausais (Junqueira, 1997; Inojosa, 2001; Cunill-Grau, 2016; Bichir & Canato, 2019). Essa integração pode envolver arranjos formais ou informais e, ainda, colaboração e coordenação (hierárquica e não hierárquica).
Nessas bases, a intersetorialidade pode promover a articulação entre setores, no processo de políticas públicas, ou, ainda, estabelecer um espaço de negociação entre os atores envolvidos, consolidando novos valores na orientação das políticas, e mobilizar diferentes áreas para o enfrentamento de problemas públicos (Inojosa, 2001). Pode ainda contribuir para a valorização do território nesses processos, respeitando os saberes e particularidades de cada área a partir de uma articulação dos atores (e atrizes) em torno de um projeto comum (Junqueira, 1997).
Na literatura, são identificados dois sentidos para a intersetorialidade: a) “restrito”, envolvendo diferentes setores/órgãos públicos; e b) “ampliado”, abrangendo o setor2 público, o setor privado, o não governamental, sem fins lucrativos (Farah, 2001; Cunill-Grau, 2016; Cruz & Farah, 2016; Bichir & Canato, 2019). Na literatura de políticas públicas, é mais frequente o uso do conceito em sua acepção “restrita”, utilizado aqui. A intersetorialidade pode abarcar formas de cooperação “horizontal” entre setores de uma esfera de governo ou “vertical”, agregando setores de entes federados distintos (Cruz, 2017), embora o uso do termo com esse sentido seja bem menos frequente.
Transversalidade
O conceito de transversalidade de gênero despontou, no Brasil, por sua vez, como uma tradução-adaptação do conceito de gender mainstreaming, que se disseminou após a IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em Beijing, em 1995 (Bandeira, 2005; Walby, 2005). A transversalidade refere-se à introdução de perspectivas de equidade de gênero por todas as políticas públicas, por meio da reorganização dos processos de política pública e de sua cultura organizacional (Bandeira, 2005; Moser & Moser, 2005; Walby, 2005; Marcondes et al., 2020). Segundo Walby (2005), gender mainstreaming (transversalidade de gênero) pode ser entendida como um processo que tem duas dimensões: a) uma visão de equidade de gênero que orienta o processo; e b) uma estratégia e táticas que consistem no caminho para atingir esta visão.
Posteriormente, no contexto nacional, a noção de transversalidade disseminou-se como uma estratégia para a estruturação de outras políticas públicas, associada à “visão” de equidade de todos os cidadãos e cidadãs, como nos casos de políticas de igualdade racial para a juventude e de direitos humanos (Papa, 2012; Reinach, 2013; Marcondes & Farah, 2021).
Neste trabalho, entendemos transversalidade como o processo de incorporação de uma nova perspectiva às políticas públicas, que as comprometam com o enfrentamento de desigualdades e com a inclusão de sujeitos historicamente discriminados (Bandeira, 2005; Walby, 2005; Marcondes & Farah, 2021). É o caso da transversalidade de gênero, foco deste artigo, mas também da transversalidade de raça/cor/etnia e do ciclo de vida.
Na transversalidade, os valores das políticas são reposicionados para comprometê-las de forma mais abrangente com a promoção da equidade, sendo desenvolvidas condições institucionais que sustentem esse processo, a exemplo da criação de organismos de políticas (p. ex. secretarias ou ministérios), planos nacionais e, ainda, conferências e conselhos (Papa, 2012; Reinach, 2013; Marcondes & Farah, 2021).
As condições institucionais para a transversalidade são necessárias, porém não suficientes para garantir a efetivação da incorporação de perspectivas de equidade de gênero. De fato, as condições institucionais tendem a ocorrer uma vez que o compromisso com a visão de equidade prevaleça entre os atores que orientam o processo de formulação e implementação das políticas. Esse compromisso corresponde ao que Walby (2005) chamou de “visão” de equidade, uma das dimensões da transversalidade. No caso da transversalidade de gênero, esse compromisso significa que a concepção do problema público que a política pública se propõe a enfrentar inclua uma perspectiva de equidade de gênero.
O caso das políticas de cuidados é um dos que permite apreender de forma mais clara em que consiste a transversalidade de gênero, como a próxima seção procura evidenciar.
Políticas de cuidados, intersetorialidade e transversalidade
As políticas públicas de cuidados vêm ganhando maior relevância no contexto atual em decorrência de um conjunto de fatores que articulam mudanças no mundo do trabalho - com o aumento da participação da mão de obra feminina -, com a importância crescente atribuída à primeira infância e às alterações na pirâmide demográfica, diante do envelhecimento populacional e da diminuição da taxa de fecundidade (Aguirre, 2009; Batthyány, 2009; Carrasco, 2011; Marcondes et al., 2020).
As políticas de cuidados têm como foco a satisfação de necessidades humanas básicas (p. ex. alimentação, higiene, afetos, etc.), envolvendo garantia de direitos, oferta de serviços, prestações sociais e atividades regulatórias, de modo a ampliar a corresponsabilização do Estado pelos cuidados (Haddad, 2006; Martínez Franzoni, 2005; Batthyány, 2009). Por meio delas, é possível enfrentar desigualdades que recaem sobre quem é cuidado (p. ex. crianças ou pessoas idosas e pessoas com deficiência em situação de dependência), mas, também, sobre quem cuida, sobretudo mulheres, em especial mulheres negras, no caso brasileiro.
Como as políticas de cuidados buscam satisfazer múltiplas necessidades básicas que garantem a sustentabilidade da vida humana, elas demandam uma visão integrada das ações públicas (Daly & Lewis, 2000), e, portanto, tendem a requerer uma abordagem intersetorial. É o caso da articulação da educação, saúde, assistência social e nutrição para promover o desenvolvi- mento infantil.
No que diz respeito à transversalidade, as políticas de cuidados permitem evidenciar a importância de uma abordagem transversal (Pautassi, 2016), especialmente para dar visibilidade a quem cuida, integrando, assim, perspectivas de equidade de gênero e cor/raça às ações voltadas à infância, pessoas idosas ou com deficiência. Ao mobilizar uma perspectiva de equidade de gênero, de forma transversal, as políticas de cuidados assumem o compromisso com o enfrentamento da divisão sexual do trabalho de cuidados e com a superação da injusta organização social dos cuidados - que sobrecarrega as famílias e, dentro delas, as mulheres (Daly & Lewis, 2000; Batthyány, 2009). Incorporam, assim, o que Walby (2005) chamou de “visão” de equidade de gênero para os cuidados, que consiste no reconhecimento, nas políticas de cuidado, dos direitos de quem cuida, que são, majoritariamente, as mulheres. Nessas bases, essa “visão” de equidade de gênero é incorporada de forma articulada e orientada para a garantia de direitos de quem requer cuidados, a exemplo das crianças, dos adolescentes, das pessoas idosas e com deficiência.
Na medida em que as políticas de cuidados demandam abordagens intersetoriais e transversais para seu desenvolvimento, elas também contribuem para a compreensão desse arcabouço conceitual. Nesse sentido, olhar para a transversalidade e a intersetorialidade a partir das políticas de cuidados é um exercício que explicita algumas das potencialidades, dos limites e dos desafios dessas abordagens.
Primeiramente, as políticas de cuidados permitem apontar que a intersetorialidade e a transversalidade possuem pontos comuns, como a compreensão do problema público como complexo, multidimensional e multicausal, o que demanda a integração de ações para o enfrentamento do problema ou desafio dos cuidados.
Entretanto intersetorialidade e transversalidade não são abordagens idênticas. É possível, por exemplo, que uma política intersetorial de cuidado infantil, que articule setores como educação e saúde, não incorpore a transversalidade de gênero, contribuindo, inclusive, para reproduzir, nas políticas públicas, o familismo (centralidade nas famílias) ou o maternalismo (centralidade nas mulheres-mães) (Daly & Lewis, 2000; Martínez Franzoni, 2005; Batthyány, 2009).
Dessa forma, há denominadores comuns entre transversalidade e intersetorialidade, mas também especificidades em cada uma das estratégias e abordagens teóricas que dão sustentação a tais estratégias. É a partir dessa concepção e para contribuir com tal discussão que realizamos o presente estudo.
Metodologia
Este artigo foi produzido a partir da convergência de duas pesquisas mais amplas (Cruz, 2017; Marcondes, 2019). A primeira, sobre implementação da política de creches no Brasil, enfoca o Brasil Carinhoso, a cooperação federativa e as articulações intersetoriais. A segunda, sobre transversalidade de gênero nas políticas de cuidado infantil (0 a 3 anos). Dessa convergência, emergiu como denominador comum o Brasil Carinhoso, as políticas de cuidado infantil e a reflexão sobre conceitos e estratégias de intersetorialidade e de transversalidade. Por isso, a partir da pesquisa realizada nos dois estudos, foram selecionados os dados dessa ação do PBSM (2012-2015), enfocando sua dimensão federal.
Ainda que fosse possível explorar a transversalidade de diferentes relações sociais (p. ex. gênero, raça/cor, classe, etc.) no Brasil Carinhoso, optou-se por enfocar gênero, mais especificamente a questão das mulheres. Isso porque as ações do Brasil Carinhoso têm forte interface com as políticas e planos para as mulheres, como a expansão de creches. Com efeito, são principalmente as mulheres que cuidam de crianças pequenas, de forma remunerada e não remunerada.
O recorte temporal refere-se ao momento de criação do Brasil Carinhoso (2012) até o ano que precede as mudanças e rupturas mais profundas ocorridas na referida iniciativa (2015). O foco no governo federal justifica-se por ter sido ele o responsável pela criação, coorde- nação e articulação dessa ação entre os órgãos federais e também entre os entes federativos - estados e municípios.
A investigação realizada pode ser caracterizada como um estudo de caso único qualitativo (Stake, 1998). A escolha do Brasil Carinhoso decorreu de sua singularidade: a iniciativa permite desenvolver análises aprofundadas e contextuais acerca das estratégias e abordagens teóricas da intersetorialidade e da transversalidade, além de trazer elementos relevantes para refletir sobre o cuidado.
A construção dos dados envolveu, principalmente, a análise documental de atos normativos constitutivos do Brasil Carinhoso, além dos planos governamentais - PBSM e Planos de Políticas para as Mulheres (PNPM) -, o que possibilitou conhecer elementos da formulação da política (Subirats et al., 2012).
Esses dados foram complementados pela análise de seis entrevistas, realizadas entre 2015 e 2017, com atores-chave dos seguintes ministérios: 1) Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) (duas entrevistas); 2) Ministério da Educação (MEC) (uma); 3) Ministério da Saúde (MS) (uma); e 4) Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) (duas). Os setores respondiam, à época, respectivamente, pelas políticas nacionais de assistência social, educação, saúde e mulheres. As pessoas entrevistadas estão identificadas pelo órgão em que atuavam, numeração e ano da entrevista (p. ex.: MDS_1, [2015]).
Finalmente, a pesquisa foi complementada por dados secundários, produzidos em outras pesquisas sobre o tema, como a realizada por Cruz et al. (2020), envolvendo as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias dos Conselhos Nacionais de Assistência Social (CNAS); Saúde (CNS); Educação (CNE); e dos Direitos da Mulher (CNDM).
Brasil Carinhoso: Uma descrição
Durante o governo de Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores - PT), em 2012, foi instituído o Brasil Carinhoso, no âmbito do PBSM (Costa et al., 2014). Do diagnóstico, constava que, segundo MDS_1 (2015) e MDS_2 (2017), a pobreza recaía desproporcionalmente sobre crianças com idades até 6 anos, comprometendo seu desenvolvimento. Debates trazidos pela neurociência, sobre a organização cerebral da criança pequena e sua influência sobre o desenvolvimento sociocognitivo, também nortearam a priorização de ações a essa faixa etária, com destaque aos mais pobres (MS_1, [2015]).
Nesse contexto, o Brasil Carinhoso congregou iniciativas de diferentes setores: educação infantil, nutrição, saúde e transferência de renda (Lei n. 12.722, 2012). Essa ação federal era coordenada pelo MDS, que realizava as negociações, acompanhando os resultados, além de articular os órgãos envolvidos por meio de reuniões bilaterais (Cruz & Farah, 2016). Em sua formulação, ações do MDS, MS e MEC foram incorporadas, inclusive com participação, no âmbito municipal, das secretarias ligadas a essas áreas.
Na formulação do Brasil Carinhoso ocorreram diversas pactuações, entre ministérios e instituições representativas dos municípios. Foram integradas ações já existentes e criadas outras - universais e focalizadas (MDS_2, [2017]) -, especialmente as que pudessem ter início imediato (MS_1, [2016]).
Foi o caso, por exemplo, na saúde, da ampliação do fornecimento de vitamina A, sulfato ferroso e medicamentos para asma, além da inclusão da distribuição do NutriSUS para prevenir e controlar deficiências nutricionais. Ademais, foi ampliado o Programa da Saúde na Escola (PSE), para atender crianças da educação infantil, contemplando unidades com maior número de alunos e alunas do Programa Bolsa Família (PBF) (MDS_1, [2015]).
As ações de transferência de renda geraram a reformulação do PBF, de forma a garantir que as famílias com crianças de até 6 anos recebessem, no mínimo, R$ 70,00 per capita. O benefício variava segundo a intensidade da pobreza nas famílias (Costa et al., 2014).
Na educação, o Brasil Carinhoso incorporou a política de creches à agenda federal de enfrentamento da pobreza e de redução das desigualdades na oferta (Silveira & Pereira, 2015) sob a perspectiva de atuação integral e de direito, articulando as perspectivas de cuidado e de educação. Para isso, foi prevista a ampliação do acesso para as crianças de 0 a 48 meses (4 anos) à educação infantil, por meio de três estratégias.
A primeira delas foi a antecipação de repasses do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) para novas turmas de educação infantil. Isso permitiu agilizar o repasse do Fundeb, sem que os municípios tivessem que aguardar a consolidação dos dados do Censo Escolar, o que poderia atrasar por até dois anos o repasse dos recursos de custeio.
A segunda estratégia foi o apoio financeiro adicional para novas vagas de crianças que estivessem vinculadas ao PBF e que frequentassem a rede municipal própria ou conveniada, utilizando-se como base o valor de referência de 50% do Fundeb. Nela, o MDS repassava a suplementação para cada vaga ocupada por crianças beneficiárias do PBF (Resolução n. 1 SEB/MEC, 2014). Isso permitia que os municípios comprassem fraldas, alimentos, além de brinquedos para as creches. O valor de referência foi alterado na implementação do Brasil Carinhoso.
A terceira estratégia foi a ampliação do valor per capita da transferência feita pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), com financiamento do MEC, o que permitiu o apoio financeiro e a atualização do Pnae.
Em síntese, o Brasil Carinhoso foi uma iniciativa voltada aos cuidados na primeira infância, em uma perspectiva de atendimento de necessidades básicas de crianças pequenas, visando ao desenvolvimento infantil.
Análise do Brasil Carinhoso: Intersetorialidade e transversalidade
Intersetorialidade
A intersetorialidade, como abordado anteriormente, envolve a integração de diferentes setores para que, conjuntamente, solucionem problemas complexos e multicausais. Em relação a essa abordagem, o programa inovou ao criar um novo arranjo para o financiamento do Brasil Carinhoso, que envolvia três ministérios. Enquanto as ações de saúde eram financiadas pelo próprio MS, o MDS apoiava as ações do PBF e arcava com o apoio financeiro adicional às novas vagas em creche para as crianças do PBF. Isso possibilitava flexibilidade no uso do recurso para atender às necessidades das crianças não previstas no Fundeb. A antecipação de repasses do Fundeb para novas vagas/turmas e a ampliação do valor per capita do Pnae para a educação infantil eram custeadas pelo MEC.
. . . este recurso do MDS está associado à pobreza, está associado ao Brasil Sem Miséria, então ele é uma estratégia de enfrentamento à pobreza . . . tem outro apoio do MEC que são as novas matrículas e novas turmas da rede pública e conveniada independente de ser do Bolsa, independentemente de ser 0 a 3 [anos] ele recebe [do MEC] . . . o recurso [apoio financeiro do MDS] ele tem aplicação diferente do recurso do Fundeb, ele pode comprar alimentação, coisa que o recurso do Fundeb não pode, ele pode comprar alguns materiais da educação infantil e ao mesmo tempo ele pode ser usado em pagamento de pessoal, pagamento de professores, pagamento de formação de capacitação. (MEC_1, [2016]).
A política de educação infantil, que utilizava recursos do MDS e do MEC, e que era gerenciada pelo MEC, promoveu a expansão da oferta de vagas na creche, após a adesão dos municípios ao Brasil Carinhoso. Assim, houve uma indução federal para ampliação de vagas em creches, focalizando as crianças pequenas mais pobres (Costa et al., 2014), mas também uma ação para agilizar o repasse de recursos às novas vagas criadas, além de possibilitar o uso dos recursos para atividades não permitidas pelo Fundeb.
Na articulação entre diferentes setores para o Brasil Carinhoso emergiram conflitos decorrentes em parte de concepções sobre o teor das políticas sociais envolvidas. Um dos pontos que gerou embates foi a tensão “focalização-universalização”. A focalização na educação foi enfrentada com diálogos entre o MDS e o MEC, com impasses ainda a serem superados: “Quando descambava para essa coisa da focalização, a Educação não curtia muito não. Mas a gente conseguiu fazer um pouquinho... Porque a equidade e o universal são complementares. Não existe universal que o cara não acessa” (MDS_2, [2017]).
Também houve questionamentos relativos à não universalização do PSE: “Porque ele [PSE] não é universalizado. O município tem que aderir; é uma adesão conjunta do secretário da saúde e do secretário da educação e nem todos os municípios faziam a adesão” (MEC_1, [2015]).
Dificuldades na ação intersetorial também envolveram a concepção sobre a natureza do serviço a ser prestado. O depoimento a seguir mostra, em decorrência disso, a disputa entre diferentes lógicas de atendimento:
O PSE é outro que a gente não teve interlocução, precisava muito melhorar a interlocução, a gente tem propostas. Eu queria criar um protocolo de saúde para creche que é completamente diferente do protocolo de saúde do Posto de Saúde . . . porque a nossa lógica é que a creche é um ambiente saudável, a lógica da saúde é doença, é prevenção. (MEC_1, [2015]).
Outros desafios na implementação de uma ação intersetorial ocorreram na governança compartilhada do PBSM. Foi estabelecida uma instância de governança compartilhada para o acompanhamento do PBSM, que abrangia o Brasil Carinhoso, que era composta por: Comitê Gestor; Comitê Executivo; e Grupo Interministerial de Acompanhamento. Participavam de pelo menos uma delas: MDS; MEC; MS; Casa Civil; Ministério da Fazenda (MF); Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPOG); Desenvolvimento Agrário; entre outros (Falcão & Costa, 2014).
No entanto essas estruturas de governança, além de não contarem com a participação da SPM, não tinham foco no Brasil Carinhoso, e até mesmo o vínculo entre essa iniciativa e PBSM não era suficientemente claro na implementação. Como observa MDS_2 (2015): “a ação Brasil Carinhoso ela entra no âmbito do Brasil Sem Miséria, mas ela é uma ação paralela . . . , não está dentro do Brasil Sem Miséria”. A entrevistada do MS, por sua vez, via um espaço de negociação no PBSM, mas tampouco esse era focado no Brasil Carinhoso:
A gente tem um espaço na gestão do Bolsa Família em que periodicamente o Ministério da Saúde e o MEC vão juntos, se juntam com o MDS, pra prestar contas . . . não só do Brasil Carinhoso, mas do Brasil Sem Miséria, no processo de monitoramento. (MS_1, [2015]).
Dessa forma, o Brasil Carinhoso não tinha um espaço formal de negociação intersetorial permanente com as áreas envolvidas do governo federal e de escuta dos municípios, e as instâncias voltadas ao PBSM não absorviam efetivamente essa atividade.
Além disso, a formulação do Brasil Carinhoso foi discutida em reunião apenas no CNAS (MDS_1, [2017]), e não nos demais conselhos (de educação, saúde ou mulheres). Isso é corroborado pela análise de Cruz et al. (2020) de 342 atas de reuniões dos quatro conselhos (CNAS, CNE, CNS e CNDM), de 2012 a 2015. Conforme as autoras, o termo Brasil Carinhoso é mencionado em apenas 13 atas. O CNAS foi o conselho que mais fez menções a essa ação federal; ocorreram duas no CNS; uma no CNDM; e nenhuma no CNE. Assim, a articulação do Executivo, na formulação, ocorreu sem a participação efetiva dos Conselhos voltados às áreas envolvidas no Brasil Carinhoso; as ações e deliberações de cada um ficaram restritas aos seus próprios setores de atuação.
Em síntese, apesar dos avanços na construção dessa ação federal, a intersetorialidade é ainda um desafio: “[a intersetorialidade] é muito frágil porque ele [o Brasil Carinhoso] tinha que vir associado com mudanças na gestão, com financiamento” (MEC_1, [2015]). Observam-se diferentes intensidades na ocorrência da intersetorialidade na formulação, na implementação e no acompanhamento dessa ação federal. Ainda que o Brasil Carinhoso tenha sido concebido como parte do PBSM, de forma intersetorial, com a participação dos MS, MEC e MDS, sua implementação foi, em grande medida, setorial, por meio de ações específicas de cada ministério. Como exemplo, pode ser mencionado que a antecipação do Fundeb, o acompanhamento das matrículas e o apoio à alimentação escolar foram implementados pela Educação; e as ações vinculadas à saúde das crianças, pelo MS.
Transversalidade
Em relação às políticas para as mulheres, a transversalidade de gênero implica incorporar uma perspectiva de equidade de gênero às políticas públicas para reorientá-las de forma a assumir o compromisso com a promoção da equidade entre mulheres e homens. Além disso, a transversalidade pressupõe o desenvolvimento de condições institucionais para a sua efetivação, por meio da criação e implantação de instâncias e mecanismos de gestão da transversalidade e de participação e controle social (Marcondes & Farah, 2021).
Para que as condições institucionais para a transversalidade de gênero no Brasil Carinhoso estivessem garantidas, seria necessária a participação da SPM na estratégia de governança do PBSM, que incluía o Brasil Carinhoso, estruturando-se esse espaço para a vocalização de diferentes demandas e perspectivas relacionadas às políticas abrangidas por essa ação federal, a exemplo das creches.
Como vimos, as instâncias do PBSM - Comitê Gestor Nacional, Grupo Executivo e Grupo Interministerial de Acompanhamento - existiam, mas não tinham um foco específico no Brasil Carinhoso. Além disso, a SPM não tinha assento nessas instâncias, o que é reconhecido pelas pessoas entrevistadas, do MDS e da SPM, como mostram os depoimentos de integrantes dos dois ministérios:
Entrevistadora: E as outras secretarias, Direitos Humanos, Mulheres, participavam?
Entrevistado: Zero. Só no discurso.
Entrevistadora: Só no discurso de quem?
Entrevistado: Discurso da ministra Tereza. Assim, a Educação é muito reticente nessa questão. . . . Era um discurso que vinha sempre assim: “Olha, e além de tudo isso, nós estamos ainda assegurando que as mulheres tenham tempo livre”. Essa linha do cuidado mesmo. Era bem... Nunca foi central, não. A Educação não chama para si... (MDS_2, [2017]).
Entrevistadora: No diálogo com o MDS chegava a ter essa discussão do Brasil Carinhoso ou...
Entrevistada: Não. Nada. (SPM_1, [2017]).
Não, nós não participamos [da formulação do Brasil Carinhoso] nós sempre colocamos na nossa pauta . . . pro governo a melhoria das condições de creche, o aumento do número de creches, mas não foi de fato construída como uma política intersetorial, por mais que estas coisas são bem difíceis de serem feitas no governo, a gente normalmente entrava depois ou entrava no debate já no conjunto de governo, nós não participamos da elaboração efetiva da política. (SPM_2, [2016]).
Observa-se que as pessoas entrevistadas são categóricas em afirmar que a SPM não esteve envolvida na iniciativa, e que uma abordagem para as “questões das mulheres” se limitava ao “discurso” de algumas autoridades e que encontrava resistência na “educação” (no MEC). A fala das entrevistadas, revelada nos trechos citados, reproduz a reivindicação dos movimentos feministas e de mulheres em relação às políticas de creches e de cuidado de modo geral, e constava nos PNPM vigentes no período aqui analisado.
Com efeito, o II PNPM, no capítulo “Autonomia Econômica e Igualdade no Mundo do Trabalho, com Inclusão Social”, previa, como uma de suas ações, “construir, reformar e aparelhar creches e pré-escolas e melhorar a qualidade dos equipamentos existentes”, e como parte da prioridade “promover a oferta de equipamentos sociais que contribuam para ampliar o tempo disponível das mulheres” (SPM, 2008, p. 48). Trata-se, portanto, de uma abordagem para as políticas de educação infantil que parte da perspectiva de gênero. É importante observar que o PNPM era reconhecido pela SPM como um dos mecanismos de gestão da transversalidade, tema esse ao qual o II PNPM dedicava um capítulo (“Capítulo 11 - Gestão e Monitoramento do Plano”).
Tendo em vista que a transversalidade de gênero era uma estratégia central para a ação da SPM e que o II PNPM trazia orientações específicas em relação a como se deveria efetivar essa transversalidade nas políticas de creches e pré-escolas, seria esperado que a transversalidade de gênero em relação a creches e pré-escolas abrangesse o Brasil Carinhoso. Em contrapartida, seria esperado, ainda, que a SPM fosse uma interlocutora estratégica para a formulação e implementação dessa iniciativa.
A pouca articulação com as políticas para as mulheres não envolvia apenas a gestão da transversalidade, mas também a participação e o controle social. Nas reuniões do CNDM, o Brasil Carinhoso foi tratado em apenas uma reunião (Cruz et al., 2020). Ou seja, a temática dos cuidados na perspectiva de gênero tampouco estava na agenda política do CNDM, o que gera desafios adicionais para garantir sua transversalidade.
O Brasil Carinhoso, em sua face “transferência de renda”, atribui às mulheres o papel de beneficiárias e de responsáveis pela gestão dos recursos destinados aos cuidados das crianças, reforçando padrão adotado pelo Bolsa Família. Essa priorização das mulheres envolve uma tensão entre dois movimentos contraditórios no que diz respeito à equidade de gênero. Por um lado, reiteram-se desigualdades de gênero baseadas na “naturalização da feminização do cuidado, desresponsabilizando os homens” (Marcondes et al., 2015, p. 259), reforçando o familismo maternalista e o estereótipo da mulher cuidadora. Nesse sentido, a política não incorpora a transversalidade de gênero, o que implicaria contribuir para a redução de desigualdades de gênero. Por outro lado, como alguns estudos sugerem, a renda sob controle das mulheres tem possibilitado maior autonomia para elas, que conseguem se emancipar da posição de subordinação diante do homem provedor, com impacto sobre sua autoestima e em seu reconhecimento como sujeito de direitos, que pode não só “falar” como “decidir” (Farah, 2004; Rego & Pinzani, 2013; Marcondes et al., 2015; Corrêa, 2021).
Mas é especialmente em relação às ações do Brasil Carinhoso voltadas à educação que se projeta de forma mais proeminente a possibilidade de efetivação da transversalidade de gênero. Isso porque uma reivindicação dos movimentos feministas e de mulheres, que foi incorporada aos PNPMs, sob coordenação da SPM, era justamente a de ampliação de políticas de creches (e da educação infantil de modo geral) para contribuir com a autonomia econômica das mulheres e a igualdade no mundo do trabalho (SPM, 2004, 2008, 2013). Ou seja, trazer para as políticas de cuidar e educar um olhar para quem cuida de forma não remunerada, que são principalmente as mulheres, na condição de mães, avós ou irmãs.
A concepção das creches em uma perspectiva de gênero é especialmente explicitada, na política para as mulheres, a partir do II PNPM, que previa como uma de suas prioridades: “Promover a oferta de equipamentos sociais que contribuam para ampliar o tempo disponível das mulheres” (SPM, 2008, p. 48). Dentre esses equipamentos sociais constavam creches e pré-escolas, que teriam o potencial de contribuir para liberar tempo de quem cuida (mulheres), por meio da corresponsabilização do Estado pelos cuidados. Assim, as mulheres poderiam dispor de tempo para inserção no mercado de trabalho, estudar ou, ainda, ter tempo para lazer e autocuidado.
Isso era evidenciado no PNPM (2013-2015), em que uma das linhas de ação previa: “ampliação da oferta de equipamentos públicos e de políticas que favoreçam o aumento do tempo disponível das mulheres, promovendo a sua autonomia, inclusive para a sua inserção no mercado de trabalho” (SPM, 2013, p. 17).
Assim, o Brasil Carinhoso projetava uma possibilidade de redução da desigualdade de gênero no mundo do trabalho e de promoção de autonomia econômica das mulheres, destacando as beneficiárias do PBF. Essa concepção, entretanto, não é evidenciada na análise da iniciativa. Isso porque as mulheres não são assumidas como sujeitos beneficiários da política, de forma autônoma, ou seja, como um fim em si mesma. Ao revés, elas são incorporadas como o que poderíamos denominar de sujeitos instrumentais ou funcionais: elas são beneficiadas como um meio para atingir a finalidade da política (enfrentamento da pobreza na primeira infância). Aqui está presente o que Farah (2004) designa como funcionalização das mulheres, e que Carloto e Mariano (2012) intitulam instrumentalização das mulheres dentro das famílias. As mulheres não são vistas como sujeito de direitos, mas como instrumentos do desenvolvimento infantil, aparecendo apenas como as responsáveis pela destinação dos recursos em prol das crianças e pela gestão de condicionalidades.
Dessa forma, ainda que as mulheres possam se beneficiar da transferência de renda e da ampliação das creches, promovidas pelo Brasil Carinhoso, essas medidas não são pensadas com base nas necessidades delas. Por isso, há um efeito contraditório, em relação à transversalidade de gênero. Enquanto ações como o Brasil Carinhoso contribuem para a maior autonomia das mulheres, ao não reconhecer nelas beneficiárias legítimas de ações específicas, os papéis tradicionais de gênero tornam-se inclusive funcionais para garantir eficácia ao programa (Molyneux, 2006). Consequentemente, medidas fundamentais para garantir a superação da divisão sexual do trabalho e a autonomia econômica das mulheres não são assumidas como objetivos a serem perseguidos pela iniciativa, como a ampliação da jornada de creches e pré-escolas e a complementação de horários desses serviços para atender a demandas por cuidados em horários noturnos, finais de semana e feriados - nos quais muitas dessas mulheres, que cuidam e sustentam as crianças, trabalham.
Foi observado, no período de implementação do programa (2012 a 2015), um grande aumento nas matrículas, atendendo 1.946.559 crianças de 5.419 municípios (97%). As matrículas de crianças do Brasil Carinhoso representam 10%, 17%, 20% e 21% do total de matrículas do Censo Escolar no Brasil, em 2012 a 2015, respectivamente. O apoio suplementar de 50% do Fundeb à inserção de crianças do PBF em creches trouxe resultados expressivos, acima do esperado pelo próprio MDS (2016). Silveira e Pereira (2015) também destacam que o repasse de recursos contribuiu com a expansão da oferta de vagas na creche.
Entretanto identificaram-se diferenças entre as jornadas de atendimento (parcial e integral) ofertadas. Das 1.946.559 crianças atendidas, 1.203.319 realizavam jornada integral (62%) e 743.240, parcial (38%). Há, ainda, uma grande variação do atendimento do Brasil Carinhoso entre os estados; apenas para exemplificar, no Ceará, em 2015, apenas 13% das vagas eram integrais e, em São Paulo, 60%. As vagas parciais representam um retrocesso para autonomia econômica das mulheres, “comprometendo as possibilidades de inserção no mercado de trabalho em postos formais e bem remunerados, cuja jornada de trabalho integral é incompatível com a responsabilização apenas parcial do Estado pelo cuidado” (Marcondes et al., 2015, p. 260).
Em 2022, mesmo com a finalização do programa, a Sinopse Estatística indica que 57% das matrículas no Brasil eram integrais (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep, 2022]) e se concentravam em 12 estados (todos da região Sul; Sudeste - menos Espírito Santo; Centro Oeste - menos o Mato Grosso; Roraima, Paraíba e Bahia). O estado com menor oferta de vagas integrais era o Rio Grande do Norte, com 5%.
A taxa de escolarização também é desigual entre os estados. No Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) - Educação 2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2022), a taxa de escolarização em creche foi de 36% e tem se mantido estável ao ser comparada com 2019; entre as crianças de 4 a 5 anos, a taxa foi de 91,5% em 2022, e de 92,7% em 2019. Quando os dados são analisados por faixa etária: 14,5% das crianças estavam em creche para 0 a 1 ano; 54,4% na creche para 2 a 3 anos; e 91,5% em pré-escola. A maior taxa de escolarização de crianças de 0 a 1 ano em creche era na região Sul (24,6%) e a menor, na Norte (3,4%). Na pré-escola, a maior, no Nordeste (93,6%), e a menor, no Norte (82,8%). Mesmo a Pnad tendo identificado que parcela dos pais, mães ou responsáveis optaram para que as crianças pequenas não frequentem creches, há, ainda, falta de vaga ou a não aceitação da criança, por parte da escola, devido à idade. A jornada de atendimento e a faixa etária atendida têm relevância ao ser pensada a igualdade no mundo do trabalho e a autonomia econômica das mulheres, em especial as mais pobres. Essa situação mostra o desafio de atendermos a Meta 1 do Plano Nacional de Educação (2014-2024).
Esses efeitos contraditórios de uma iniciativa que não é pensada a partir da transversalidade de gênero, mas que pode ter resultados positivos em relação às mulheres, evidenciam-se na análise de um conjunto de medidas importantes: a ampliação do acesso à creche e a possibilidade de municípios utilizarem os recursos do Brasil Carinhoso para garantir segurança alimentar e nutricional e, ainda, para a compra de fraldas e outras necessidades não previstas pelo Fundeb (Resolução n. 1 SEB/MEC, 2014). Essas são iniciativas que contribuem para melhorar as condições de cuidado e, indiretamente, beneficiam quem cuida (as mulheres). Trata-se, contudo, de uma externalidade positiva, e não de um objetivo explicitamente assumido na concepção da iniciativa, para comprometê-la com a igualdade de gênero, como preconiza a transversalidade.
Assim, não foi evidenciada a transversalidade de gênero incorporada explicitamente nessa iniciativa do governo federal. As mulheres não foram incluídas como sujeitos beneficiários da iniciativa, que enfocou exclusivamente as crianças e não a relação de cuidado como um todo. Isso não significa, contudo, que o Brasil Carinhoso não possa ter contribuído para a melhoria das condições de vida das mulheres, como destacamos. Mas não é possível evidenciar, na análise, que tenha havido uma abordagem integrada das necessidades de quem é cuidado (educação e cuidado das crianças nos primeiros anos de vida) e de quem cuida (principalmente as mulheres).
Discussão dos resultados e considerações finais
O propósito deste trabalho foi refletir sobre a intersetorialidade e a transversalidade no Brasil Carinhoso, dando destaque, para tanto, às discussões sobre o cuidado. Em síntese, identificamos que essa iniciativa adotou uma abordagem intersetorial para a primeira infância em sua formulação, que contemplou a articulação de ações de saúde, educação, assistência social e nutrição com atenção ao enfrentamento da pobreza. Trata-se de um olhar sobre as necessidades de cuidados das crianças pequenas que valoriza a complexidade e a multidimensionalidade, e sua implementação contribuiu para a ampliação do acesso à creche, em especial das crianças mais pobres.
Além disso, novos arranjos organizacionais foram criados e inovou-se com o cofinanciamento da política de creches, apontando para uma integração entre os setores prioritariamente na formulação da política (Cunill-Grau, 2016): MEC, MS e MDS. Houve avanços no acompanhamento das ações, por meio de reuniões entre envolvidos, que estimularam a criação de uma cultura de diálogo. No entanto, na implementação, prevaleceu a lógica setorial e não foram enfrentadas as dificuldades que emergiram nas atividades que supunham alguma intersetorialidade.
A transversalidade de gênero não foi evidenciada na análise. A SPM não participou das instâncias de coordenação e articulação do Brasil Carinhoso, e o programa foi pouco discutido no CNDM. Tampouco identificamos, na concepção do Brasil Carinhoso, a incorporação da igualdade de gênero como um pressuposto valorativo, ou como um objetivo a ser perseguido pela iniciativa. Ainda que essa iniciativa possa ter efeitos concretos de melhoria na vida das mulheres, enquanto uma externalidade positiva, por serem elas que mais cuidam das crianças pequenas, não se explicitou a atenção a quem cuida como um objetivo da política. Assim, uma abordagem integrada de quem cuida e de quem é cuidado não foi adotada, o que é central na transversalidade de gênero nas políticas de cuidados.
Dessa forma, o Brasil Carinhoso não incorporou aquilo que estava previsto nos PNPMs, que tinham como propósito “transversalizar” gênero em políticas de educação e de cuidado, como creches e pré-escola. Os planos preconizavam que o cuidar e o educar deveriam atender, também, às necessidades de quem cuida, possibilitando liberação de tempo, inclusive para a inserção no mercado de trabalho.
É a partir dessa síntese que discutimos os resultados. Há, na atualidade, muitas lacunas, sobreposições e assimetrias no desenvolvimento de teorias e práticas de intersetorialidade e de transversalidade no campo de política pública. A análise das políticas de cuidados, a exemplo de iniciativas como o Brasil Carinhoso, pode contribuir para subsidiar reflexões teóricas, mas também ações práticas, que envolvam intersetorialidade e transversalidade.
Os resultados da análise da intersetorialidade e da transversalidade no Brasil Carinhoso permitem observar que há denominadores comuns entre as duas abordagens. Ambas estão associadas ao reconhecimento da complexidade dos problemas públicos, enfatizando-se a multidimensionalidade e a necessidade de articulação e integração de ações de diferentes setores. Por outro lado, a implementação dessas estratégias (e, no caso da transversalidade, desse objetivo) traz nova complexidade ao processo de política pública e à gestão das políticas que procuram incorporá-las.
No entanto é possível que uma mesma política adote a intersetorialidade como uma referência, sem necessariamente incorporar a transversalidade de gênero, como observamos no Brasil Carinhoso. Isso permite argumentar que intersetorialidade e transversalidade não são sinônimas e que a existência de uma abordagem não implica a ocorrência da outra. Além disso, a previsão de uma delas na concepção de uma política não resulta em sua efetivação, devendo ser considerado o processo de política pública como um todo para sua análise, como assinalamos ao identificar a presença da intersetorialidade na formulação do Brasil Carinhoso e a prevalência de uma atuação setorial na sua implementação.
É importante refletir sobre os resultados da análise à luz da realidade atual. Isso porque, em 2023, primeiro ano da terceira gestão Lula no governo federal, foi criada uma Secretaria Nacional de Políticas de Cuidados e Família3 (SNCF), no âmbito do MDS, e que tem como propósito formular uma política nacional de cuidados intersetorial com atenção às desigualdades de gênero, raça, etnia, territoriais e de ciclo de vida (Decreto n. 11.392, 2023). E, no âmbito do Ministério das Mulheres (MM), foi criada uma Secretaria Nacional de Autonomia Econômica e Cuidados (Senaec), também com competências relacionadas à elaboração da Política Nacional de Cuidados (Decreto n. 11.351, 2023).4
A SNCF/MDS e a Senaec/MDS compartilham a coordenação do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI-Cuidados) (Decreto n. 11.460, 2023), que foi criado, em março de 2023 e instalado em maio do mesmo ano com o propósito de: realizar um diagnóstico da organização social dos cuidados no país e propor uma Política e um Plano Nacional de Cuidados. O GTI-Cuidados é composto de outros 15 ministérios e, ainda, três entidades governamentais, que são convidadas permanentes (IBGE, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea e Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz). Seu prazo para finalizar os trabalhos é até maio de 2024.
Há, na conjuntura atual, uma realidade diversa da que investigamos quando do Brasil Carinhoso. Isso porque a intersetorialidade entre desenvolvimento social e políticas para as mulheres está no cerne do desenho da estratégia do GTI-Cuidados. Além disso, a transversalidade de gênero é central para a formulação dessa política, inclusive com intersecções com outras formas de desigualdades. Nas competências da SNCF/MDS é previsto que a Política Nacional de Cuidados adotará estratégias intersetoriais e interfederativas, com ênfase nas desigualdades de gênero, de raça, de etnia, territoriais, de ciclo de vida e às pessoas com deficiência (Decreto n. 11.392, 2023). Já a Senaec/MM deve atuar, em relação às políticas de cuidados, para garantir a visibilização e desnaturalização da divisão sexual do trabalho (Decreto n. 11.351, 2023).
Em face dessa nova conjuntura, entendemos que desponta uma das contribuições deste artigo, que é de ordem prática. Por meio da sistematização da experiência do Brasil Carinhoso, pelas lentes da transversalidade e da intersetorialidade, entendemos que a Política Nacional de Cuidados pode se beneficiar das reflexões contidas neste trabalho.
Há, também, uma contribuição teórica neste estudo. Ao refletir sobre a intersetorialidade e a transversalidade em políticas públicas, a partir de uma análise empírica de um caso concreto, buscamos subsidiar o adensamento desses conceitos, no âmbito dos estudos de políticas públicas.
É importante assinalar algumas limitações desta análise. A primeira é a ênfase no nível federal, que é particularmente limitadora da análise da intersetorialidade no Brasil Carinhoso. Além disso, seria possível aprofundar a discussão sobre como equacionar as dificuldades identificadas, a exemplo das verificadas no financiamento compartilhado de ações integrais e integradas e na viabilização da estratégia intersetorial em todas as etapas do processo de políticas públicas.
Outro aspecto limitador é o enfoque unicamente na transversalidade de gênero, entendido como limitado às políticas para as mulheres (o que não inclui LGBTQIA+), que não incorpora a interseccionalidade com outras relações produtoras de desigualdades, como raça/cor, classe e etnia. Isso é especialmente importante para refletir sobre políticas de cuidados, uma vez que são principalmente as mulheres negras que cuidam no Brasil, com especial destaque para o trabalho doméstico remunerado.
Essas limitações compõem possibilidades para pesquisas futuras que permitam avançar no desenvolvimento do arcabouço teórico da transversalidade e da intersetorialidade, de forma a não apenas contribuir com reflexões inovadoras nesse campo, mas também subsidiar práticas de políticas públicas para enfrentar desigualdades.