Nas duas últimas décadas, ampliou-se progressivamente a oferta de ensino médio no país. Em 2017, as taxas líquidas de matrícula e de frequência escolar nessa etapa indicavam a cobertura de 91,3% da população de 15 a 17 anos (Senkevics & Carvalho, 2020). Ainda que o percentual aponte para a expansão da cobertura educacional nesse nível, além de avanços em termos de acesso escolar, um conjunto razoável de pesquisas já demonstrou que o ensino médio ainda apresenta as maiores taxas de abandono, repetência e evasão escolar e que essas taxas estão registradas, principalmente, no início da transição, entre o 1º e o 2º ano, comprometendo a qualidade do fluxo educacional e repercutindo na forma como os jovens constroem sua experiência escolar (Santos & Albuquerque, 2019).
Entre os estados da região Centro-Oeste, o Distrito Federal foi o que apresentou, em 2017, a melhor curva de acesso à educação básica, com cerca de 73% dos jovens de 19 anos tendo alcançado o 3º ano do ensino médio (Simões, 2019). No entanto, quando se trata dos índices de abandono e reprovação escolar, as altas taxas registradas nas estatísticas educacionais (4,6% e 12,2%, respectivamente) mostram que esses dois fenômenos ainda são entraves à garantia do direito à permanência e à conclusão da educação básica para um percentual significativo de jovens residentes na capital do país: aqueles que cursam o ensino médio nas escolas públicas da rede (Companhia de Planejamento do Distrito Federal [Codeplan], 2020).
Não é novidade constatar que o número de mulheres frequentando a escola cresceu a ponto de esse grupo representar hoje, no país, a maioria do público estudantil em todos os anos do ensino médio, figurando nas estatísticas educacionais como o grupo que apresenta os melhores índices de desempenho, progressão e conclusão dos estudos nessa etapa (Senkevics & Carvalho, 2020). Apesar disso, raros são os estudos que se debruçaram sobre a experiência escolar de jovens mulheres no ensino médio, menos ainda daquelas que frequentam a escola no período noturno. Quando se trata do ensino regular noturno, muito pouco se sabe sobre quem são as jovens que o frequentam, os motivos da decisão em cursar o ensino médio neste turno e quais são as práticas que compõem sua experiência escolar. No Distrito Federal, elas representam 47,59% do público estudantil que frequenta a escola nesse turno (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep], 2021).
No caso das estudantes egressas do período diurno que, após episódios de reprovação e abandono, retornaram à escola para cursar o ensino médio no período noturno, consideramos que os processos de rotulagem (Becker, 2008) e estigmatização a que estão submetidas institucionalmente alocam essas jovens para um lugar de inadequação perante as expectativas normativas que regulam as condutas e as representações sobre o ofício de aluno1 no mundo escolar. Além das faltas e de precariedades de ordem material que caracterizam nacionalmente a organização pedagógica no período noturno (Oliveira, 2010), problemas de ordem simbólica também se interpõem no cotidiano da experiência escolar do público estudantil feminino, como as experiências de preconceito e discriminação dentro e fora das instituições de ensino (Pontes, 2020).
Entre as estudantes do noturno, pode haver um sentimento de inferioridade e desvantagem produzido pela constante comparação com os colegas dos turnos matutino e vespertino, como demonstrou a pesquisa conduzida por Gomes e Carnielli (2003). Além disso, as condições desiguais de organização escolar entre ambos os turnos empobrecem as experiências das jovens do ponto de vista da sociabilidade, já que a ausência de espaços e tempos ativos de recreação fora da sala de aula dificulta o estabelecimento de redes de convivialidade entre pares (Sousa & Oliveira, 2008).
Diante dessas considerações, este artigo objetiva analisar a experiência escolar no ensino médio noturno de jovens estudantes matriculadas na modalidade regular, em escolas públicas do Distrito Federal. As seguintes questões norteadoras foram colocadas:
Quem são as jovens mulheres que cursam o ensino médio noturno no Distrito Federal?
Quais problemas caracterizam sua experiência escolar no ensino médio regular noturno?
A partir de uma análise comparativa, colocamos no centro da discussão o problema do desajuste habitual, que representa o quadro de orientação que ordena a construção da experiência escolar de jovens mulheres no período noturno.
O conceito de experiência escolar
No final da década de 1990, a tradução do livro En la escuela: Sociologia de la experiência escolar, de François Dubet e Danilo Martuccelli, apresentou ao público de acadêmicos da América Latina uma nova teoria que abriria espaço para pensar inferências mais complexas sobre o processo de socialização escolar na contemporaneidade (Weiss, 2000).
Na obra, que é fruto de pesquisa empírica realizada na França, Dubet e Martuccelli (1998, p. 79) definem a experiência escolar como a “forma pela qual atores individuais e coletivos combinam as várias lógicas de ação que estruturam o mundo escolar”. Entre essas várias lógicas, os autores elencam os princípios da integração, estratégia e subjetivação como os mais determinantes da experiência, já que se ligam diretamente a três funções centrais do sistema escolar na modernidade: socialização, distribuição de competências e educação. Em tese, cada uma das lógicas realiza-se na articulação reflexiva de condutas distintas, e cabe aos atores escolares o trabalho de construir a coerência entre elas e disso extrair um sentido. Enquanto um exemplo de experiência social, as experiências escolares são combinações subjetivas de elementos objetivos do sistema, isto é, tipos de ação que não pertencem aos indivíduos, mas que eles podem mobilizar pela via da reflexividade (Wautier, 2003).
Concebida como um tipo de “prova imposta” (Dubet & Martuccelli, 1998, p. 316), a construção da experiência escolar no interior de cada etapa que compõe o sistema educacional equivale a combinações específicas de lógicas de ação, que variam em função tanto das particularidades do nível educativo quanto das características sociais do público estudantil que o frequenta (Weiss, 2000), e a relevância de uma ou outra é atribuída pelo ator ao articulá-las. Enquanto no ensino primário a experiência escolar está fortemente estruturada pela lógica da integração, ou seja, pela conformação da subjetividade dos alunos às normas e modelos de conduta institucionais, o cenário a partir do início do ensino médio fica mais complexo, e os próprios jovens se tornam os responsáveis por conduzir seus processos de formação identitária, bem como são chamados a elaborar, em seus próprios termos, o sentido da escolarização e do estar na escola.
No cenário educacional descrito por Dubet e Martuccelli (1998) e sob o qual concentram seus esforços de análise - o lycée, equivalente à escola de ensino médio no Brasil -, a lógica da subjetivação aparece como o elemento central e o eixo estruturante da experiência escolar concreta. À medida que os estudantes avançam em seus percursos de escolarização, ingressam em novas redes de relações e passam a incorporar expressões de identidades e práticas sociais que não se encaixam nos moldes da cultura escolar, mais a subjetivação juvenil se separa da lógica da integração, mais a experiência no ensino médio se define como uma construção autêntica dos atores e menos como a adequação de suas condutas a expectativas normativas ligadas ao ofício de aluno. Um dos efeitos desse distanciamento é a crise que se instaura na relação entre juventude e escola a partir dessa etapa, uma constatação que também se tornou consenso nas pesquisas realizadas no Brasil (Dayrell, 2007).
Dubet e Martuccelli (1998) mostram que durante a experiência no ensino médio as possibilidades de individualização se tornam mais tangíveis, e a decisão de aderir totalmente às referências culturais da escola ou conciliá-las com as referências e significados oriundos de seu próprio mundo, o juvenil - o que os autores nomeiam de uma integração entre parênteses -, é uma prerrogativa individual dos atores. No registro da subjetivação, a construção da identidade pessoal não é mais determinada pela atuação de um papel, mas pela “experiência subjetiva de formação de si” (Dubet, 1994, p. 30), por um trabalho reflexivo que os sujeitos realizam sobre si mesmos a fim de se constituírem. A passagem para esse lugar de construção autogestionada, que toma distância dos processos de socialização tradicionais e de papéis coletivizados, sustenta-se pela atividade crítica que caracteriza a lógica da subjetivação, definida pelo engajamento na construção de uma identidade social que resiste à alienação (Wautier, 2003).
Nacionalmente, investigações já realizadas sob esse prisma teórico, como o trabalho de Sposito e Galvão (2004), também evidenciaram que a lógica da subjetivação é central na construção da experiência escolar durante a trajetória no ensino médio. No entanto, o processo de subjetivação dos e das jovens aqui não é compreendido em sua relação de negação ou conformidade com o aparato normativo e cultural da escola - isto é, à lógica da integração -, mas numa relação positiva com o conhecimento escolar. Mais do que um meio necessário para a aquisição de um diploma, a apropriação desse conhecimento é parte determinante de sua identidade futura, motivo pelo qual estabelecem um vínculo subjetivo com os estudos. Contudo a valorização da instituição escolar na vida dos jovens ocorre principalmente quando se projetam no futuro, e não pelo desdobramento de uma relação de integração total à identidade de aluno no presente.
Ou seja, a apropriação do conhecimento escolar não está diretamente relacionada à performance desse papel ou sua subjetivação.
O estudo empírico que desenvolvemos sobre a experiência escolar no ensino médio noturno não se ateve inteiramente à tipologia de lógicas que integra o conceito de Dubet e Martuccelli (1998). Nossa rápida menção a ela e à obra dos autores é justificada até o ponto em que nos ajuda a pôr em perspectiva o conjunto de lógicas que integra a dimensão comunicativa do conhecimento - isto é, um conjunto de lógicas de tipo teórica - que está implicado na ação cotidiana das jovens estudantes, e na medida que pressupõe a existência de princípios de orientação subjacentes às condutas escolares. Para complexificar a noção de experiência escolar, complementá-la e reconstruir sua dimensão conjuntiva - isto é, o conhecimento ateórico ou habitual que participa de sua construção pela via das práticas cotidianas -, recorremos aos aportes da sociologia praxiológica do conhecimento, desenvolvida por Ralf Bohnsack (2014) e sua noção central de quadro de orientação.
A categoria quadro de orientação nos ajudou a recolocar o habitus na discussão sobre experiência escolar, uma vez que introduz a dimensão conjuntiva dessa experiência, uma dimensão marcada pelo conhecimento habitual que orienta a prática da ação no cotidiano. O conceito de quadro de orientação (Figura 1), no sentido amplo, alarga a análise da noção bourdiesiana de habitus para incluir a forma como o habitus, individual ou coletivo, é desenvolvido, reproduzido ou transformado no confronto e na interação com expectativas normativas de papéis e identidade social (Bohnsack, 2014), elementos abarcados na teoria bohnsaquiana pela categoria “esquema de orientação”. Por esse viés, consideramos que a construção da experiência escolar no ensino médio noturno, e o conjunto de práticas e ações a ela associado, é estruturada por um quadro de orientação constituído empiricamente na relação de conflito que se estabelece entre as estruturas normativas que regulam a “cultura institucionalizada da escola” (Silva, 2006, p. 205) e o habitus coletivo das jovens estudantes (Bohnsack, 2014).
Enquanto que, para Dubet e Martuccelli (1998), a tensão gerada pelo conflito entre as lógicas da integração e subjetivação produz no cerne da experiência escolar e, portanto, no núcleo da ação, uma ruptura consciente com a estrutura normativa que regula a cultura da escola, para Bohnsack (2014), das múltiplas relações de tensão que ocorrem entre norma e habitus emerge um quadro de orientação que redefine o significado do primeiro na relação com o segundo. Nos limites desse quadro de orientação e da relação de tensão que o caracteriza, e a partir da qual ele se forma, ocorre uma recomposição da norma e de seu significado nos termos da estrutura do habitus. Em seu domínio, normas e habitus coexistem numa relação dialética e de interdependência geradora de novas orientações.
Do ponto de vista sociológico, regras e normas têm uma função legitimadora, podendo ser mobilizadas nas justificativas que os indivíduos produzem ao explicarem o motivo de suas ações no cotidiano, a fim de responder às expectativas morais que sobre eles recaem a depender do conjunto de papéis que lhes são atribuídos. No entanto, em cenários de análise científica, o significado empírico de padrões normativos só assume contornos mais precisos na relação com o habitus dos agentes, ou seja, no confronto com seus esquemas de disposições geradoras ou estruturantes de práticas. O acesso a esse significado não é facilmente alcançado pelo trabalho racional dos indivíduos, já que se constitui e se desdobra nos processos complexos e implícitos de reflexão inerentes à estrutura performativa do habitus, isto é, que operam no nível do modus operandi da ação prática (Bohnsack, 2014). É no centro desse processo circular de reflexão entre norma e habitus que a ação e seu sentido são constituídos e que um quadro de orientação pode ser reconstruído analiticamente pelos intérpretes sociais.
Seguindo a abordagem bohnsaquiana, consideramos que as ações diárias das jovens enquanto “alunas do noturno” se inscrevem inicialmente no quadro de um conhecimento comunicativamente generalizado que atravessa e constitui as relações escolares nesse turno. O conjunto de expectativas, estereótipos e classificações que define as instituições fundamentais de dada cultura escolar é a expressão desse tipo de conhecimento. No caso, um conhecimento sobre o que é o ensino médio noturno, a quem ele se destina e quais papéis, deveres e obrigações estão colocados como horizonte normativo para os indivíduos que frequentam esse turno.
No contexto real da experiência de jovens estudantes egressas do diurno e que passaram por uma nova socialização formal nas normas e regras da vida escolar no turno da noite, esse conhecimento é apreendido enquanto esquemas de orientação (Bohnsack, 2014) ou modelos de conduta inerentes ao papel de aluna do noturno, capaz de informar, ainda que parcialmente, seus repertórios de ação e alinhá-los ao que está estabelecido na ordem simbólica que organiza o ambiente escolar, mesmo que conflitos, desconfortos e estranhamentos façam parte do processo de adequação. Contudo a socialização vivenciada pelas jovens em outros milieux culturais, as referências identitárias neles produzidos e o tipo de socialidade que os constituem também alimentam a construção prática da experiência no ensino médio, produzindo um significado inteiramente novo sobre essa etapa, diferente daquele que compõe a narrativa pública acerca de sua função social.
Esses distintos milieux, ou espaços conjuntivos de experiências, se referem a estoques de conhecimento implícitos e formas coletivas de habitus compartilhados por certos grupos ou pessoas socializadas em contextos de vida e condições sociais similares, que estão conectadas por um tipo de “socialidade fundamental”2 (Bohnsack & Nohl, 2003, p. 369). Tais estoques de conhecimento, em grande parte pré-reflexivos, têm um efeito orientador de ação e são adquiridos no curso de uma socialização comum que se desdobra no desenvolvimento de práticas sociais homólogas e formas semelhantes de processamento e construção da realidade social (Weller & Pfaff, 2012).
Empiricamente, as experiências conjuntivas podem ser as experiências partilhadas de um grupo real - no caso dos dois grupos de estudantes apresentados adiante neste trabalho -, referem-se ao envolvimento conjunto em práticas de desajuste habitual e aos estoques de conhecimento que nelas e através delas se materializam e são processados. Esses estoques de conhecimento habituais, reconstruídos a partir da análise das práticas das estudantes do noturno, são produzidos num tipo “socialização informal” (Stecanela, 2008, p. 50) que ocorre no cotidiano das relações com pares, dentro e fora da escola. Desses espaços de produção conceitual e prática, emerge um conjunto de significados sobre a vida no e durante o ensino médio, que são a base das orientações que guiam as ações das estudantes do período noturno, jovens mulheres que também compartilham vivências comuns em suas biografias escolares e processos de socialização familiar.
Os grupos de discussão e o método documentário
Como método de pesquisa, os grupos de discussão passaram a ser utilizados a partir da década de 1980 em investigações qualitativas sobre juventude (Weller, 2019). No contexto germânico, foi Ralf Bohnsack quem atualizou a proposta dos grupos de discussão introduzida nos anos de 1950 pela Escola de Frankfurt e, posteriormente, reelaborada pelo sociólogo alemão Werner Mangold. Bohnsack (2020) recuperou o conceito de opiniões de grupo presente na perspectiva de Mangold, mas centralizou o foco de sua abordagem na investigação das orientações coletivas que sustentam essas opiniões e estão ancoradas em espaços conjuntivos de experiências. Nesse ponto, os aportes da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (1982), em especial, sua noção de coletividade, foram primordiais para os avanços na fundamentação teórico-metodológica dos grupos de discussão (Weller, 2019).
Em campo, os grupos referem-se a contextos de interação no qual processos de comunicação iniciados externamente devem se desenvolver de forma autônoma por indivíduos que, com base em seus sistemas de relevância e estoques de conhecimento comuns, delimitam quais tópicos serão discutidos, em qual sequência e a partir de qual perspectiva, horizonte ou enquadramento. Os participantes são concebidos como portadores de orientações coletivas, documentadas interativamente no discurso e que são representativas de dimensões sociais subjacentes aos espaços conjuntivos de experiências do grupo.
A fundamentação teórico-metodológica para os grupos de discussão também foi trabalhada por Ralf Bohnsack concomitantemente ao desenvolvimento do método documentário para a análise de dados empíricos (Weller, 2019). Esse método, utilizado na análise dos grupos que realizamos no campo, nos permitiu o acesso, pela via da interpretação, à lógica interna de um milieu cultural até então desconhecido no âmbito das pesquisas em educação e à reconstrução teórica das orientações coletivas (Bohnsack, 2020) que se articulam na ação prática de jovens estudantes do ensino médio noturno que frequentam a modalidade regular.
O método documentário e sua interpretação sociogenética consiste em uma proposta de análise que visa a reconstruir a gênese e a ancoragem social de ações práticas.3 Nesse sentido, tomamos o conhecimento habitual dos próprios atores como a base empírica de proposições teóricas e formulações conceituais, evitando que a lógica de teorias externas se sobreponha à lógica da prática, à lógica do habitus.
Analiticamente, tomamos como documento não apenas a prática de ação narrada, mas também o próprio ato de falar, argumentar e representar das estudantes enquanto uma via possível para a reconstrução de seus habitus. Nesse sentido, o modelo de transcrição empregado no tratamento inicial dos dados e suas normas de codificação da fala4 foi um recurso que viabilizou a realização da atitude sociogenética que caracteriza o estilo de análise do método documentário. O objetivo deste trabalho não consistiu apenas em reconstruir “o que” as jovens falavam a respeito da realidade de uma estudante do noturno, mas “como” elas falavam dessa realidade e como a construíam no discurso.
Sobre a pesquisa com jovens do ensino médio noturno no Distrito Federal
No primeiro semestre de 2019, demos início ao trabalho de campo em duas escolas públicas do Distrito Federal que ofertavam o ensino médio noturno na modalidade regular. As instituições de ensino pertenciam a duas regiões administrativas (RA), distintas em termos de maior e menor renda per capita e nível de escolaridade da população. Na RA 1, optamos por selecionar uma escola situada próximo ao centro comercial da cidade, uma área desenvolvida economicamente, com boa infraestrutura e organização espacial. Já na RA 2, a escola eleita localizava-se em uma região habitada por pessoas de menor poder aquisitivo, em um território caracterizado por alta vulnerabilidade sociodemográfica e ausência de serviços públicos básicos, como policiamento regular e limpeza urbana.
Além de observações do cotidiano escolar, realizamos grupos de discussão em duas turmas de 3º ano de cada uma das escolas. Ao todo, 35 estudantes mulheres participaram ativamente da pesquisa, distribuídas em 8 grupos de discussão. Apesar de importante, o aspecto da representação numérica não foi central na composição do corpus empírico. Semelhante ao modus operandi da teo- ria fundamentada, no método documentário utilizamos a constituição do theoretical sampling e o princípio da comparação constante (Strauss & Corbin, 2008) na seleção dos grupos e delimitação do corpus empírico. Esse procedimento foi aplicado no curso da coleta de dados por meio de contrastes nos horizontes de comparação que emergiram das conversas nos grupos, isto é, espaços de experiências comuns documentados sistematicamente em casos distintos e que, em determinado ponto da realização dos grupos, alcançaram relativo grau de saturação nos discursos coletivos.
Já em campo, para a definição do primeiro grupo de discussão, consideramos dois critérios, com base nas características do público que seria investigado: jovens mulheres estudantes do período noturno, matriculadas no último ano do ensino médio regular e que haviam cursado o período diurno em algum momento de sua trajetória na mesma etapa escolar. A partir do segundo grupo, foi possível começar a identificar nos discursos das jovens a documentação de um tipo de desajuste habitual na relação prática com as instituições da cultura escolar, uma condição que repercutia em suas representações sobre ser uma estudante do período noturno. Continuamos com os grupos de discussão até o momento em que as possibilidades de enquadramento teórico do desajuste se esgotaram no horizonte narrativo dos demais grupos. Dos oito grupos realizados, dois foram selecionados para análise em profundidade, o GD Pressão e o GD Festa (Tabela 1).
GD PRESSÃO | ||||||
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Participante | Idade | Raça/cor | Escolaridade e ocupação | Fratria | Experiências escolares anteriores | |
Paterna | Materna | |||||
Babi (Bf) | 18 anos | Negra | EF (anos iniciais) Mecânico | EF (anos iniciais) Diarista | Duas irmãs | Abandono escolar (1º ano do EM) Reprovação (2º ano do EM) |
Carla (Cf) | 19 anos | Branca | EM Funcionário público | ES Publicitária | Dois irmãos e duas irmãs | Reprovação (5º ano) |
Daniela (Df) | 18 anos | Branca | EF Vigilante | ES Esteticista | Dois irmãos e duas irmãs | Abandono escolar (1º ano do EM) Reprovação (3º ano do EM) |
GD PRESSÃO | ||||||
Participante | Idade | Raça/cor | Escolaridade e ocupação | Fratria | Experiências escolares anteriores | |
Paterna | Materna | |||||
Fernanda (Ff) | 18 anos | Branca | EF Empresário | EF Dona de casa | Três irmãos e duas irmãs | Reprovação (9º ano) |
Michele (Mf) | 18 anos | Branca | EM Autônomo | EF Auxiliar de serviços gerais | Um irmão | Reprovação (9º ano) |
GD FESTA | ||||||
Bebela (Bf) | 18 anos | Negra | EF (anos iniciais) Autônomo | EF Frentista | Dois irmãos | Reprovação (2º ano do EM) |
Cecília (Cf) | 18 anos | Branca | Falecido | EF Dona de casa | Três irmãos | Reprovação (2º ano do EM) |
Flávia (Ff) | 18 anos | Negra | Não conheceu o pai | EF (anos iniciais) Empregada doméstica | Três irmãos e uma irmã | Reprovação (1º ano do EM) |
Jennifer (Jf) | 18 anos | Negra | EF Cozinheiro | EF Seladora | Três irmãos | Reprovação (2ª ano do EM) |
Rayla (Rf) | 18 anos | Branca | EM Funcionário público | EF Desempregada | Duas irmãs | Reprovação (1º ano do EM) |
Luana (Lf) | 19 anos | Negra | Não conheceu o pai | EF Empregada doméstica | Duas irmãs | Abandono escolar (1º ano do EM) Reprovação (3º ano do EM) |
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir dos dados da pesquisa (2023).
EF: ensino fundamental; EM: ensino médio; ES: ensino superior.
Os grupos selecionados foram nomeados a partir de metáforas elaboradas coletivamente no discurso das participantes para representar a realidade escolar no turno da noite. Em ambos os grupos, o problema empírico do desajuste habitual foi desenvolvido com maior densidade e detalhamento nas narrativas coletivas, indicando que se tratava de um espaço de experiência compartilhado entre estudantes do ensino médio noturno de diferentes escolas públicas, de mesma origem social e com biografias escolares semelhantes.
As consequências do desajuste habitual: O abandono escolar
Para muitas jovens, a vivência da transição para o ensino médio é um momento crítico da formação escolar, podendo ser interpretada como um desafio biográfico no âmbito de suas trajetórias na educação básica. As normas nas quais elas foram socializadas durante a experiência no ensino fundamental parecem perder sua relevância como horizonte de orientação diante das modificações que caracterizam a cultura escolar a partir do ensino médio, especialmente, no tocante às novas exigências, práticas e responsabilidades que configuram o ofício de aluno e o trabalho escolar nessa etapa (Corti, 2014).
Entre as jovens do GD Pressão, a sensação de desajuste aparece como uma das marcas da crise na relação com a escola do ensino médio, quando a pergunta coloca no foco suas vivências durante o percurso de transição para essa etapa (passagem Trajetória, linhas 1 a 47):
1 | Y: | E meninas assim (.) eu queria que vocês falassem um pouco (.) |
2 | eh: como vocês chegaram no ensino médio (2) como foi a | |
3 | trajetória escolar de vocês até agora no terceiro ano | |
4 | Bf: | O ensino médio pra mim foi um desespero (2) quando eu |
5 | cheguei (.) porque tipo (2) é um momento que todo mundo fica | |
6 | ali na tua expectativa de tu ser alguém depois que tu terminar | |
7 | (2) tanto é, que eu reprovei o segundo ano (2) por pressão (.) | |
8 | eu eu abandonei tudo tipo não queria mais saber de nada por | |
9 | pressão tipo de família de amigos que estudavam muito e eu | |
10 | assim não queria estudar (1) então o meu segundo ano (2) foi | |
11 | até no matutino (1) 2MJ (.) eu parei de estudar no terceiro | |
12 | bimestre. (.) eu falei que eu não ia mais e ponto (1) tanto é que | |
13 | eu até coloquei no formulário (1) e aí: (1) depois eu fiquei tipo | |
14 | refletindo se eu realmente não queria e tal (1) aí: via mendigo | |
15 | na rua via uma série, de realidades né (.) aí eu (.) escolhi | |
16 | terminar o ano sem=sem terminar o segundo (1) aí minha mãe | |
17 | me perguntou se eu queria fazer o EJA °pra acelerar o processo | |
18 | ou se eu queria continuar normal (2) como eu tinha (2) eu fiz | |
19 | dezoito anos esse ano (1) acho que eu tinha: (1) ainda ia fazer | |
20 | dezessete (.) isso (1) aí eu escolhi (.) não eu vou (.) como ainda | |
21 | tô na idade ainda mais ou menos (.) que dá pra: concluir eu vou | |
22 | conclui normal. não quero fazer o EJA, porque eu acho o EJA | |
23 | muito empurrado entendeu tipo um tapa, vai logo te=embora | |
24 | TD: | @(.)@ |
25 | Bf: | @E eu não queria aquilo pra mim@ entendeu (1) aí tipo: só |
26 | que o ensino médio pra mim não foi nada daquilo que eu | |
27 | pensei (.) que era (1) quando: eu era do fundamental (1) eu | |
28 | pensei que o ensino médio era muito mais sério e tal (.) é | |
29 | totalmente o contrário, do que aquilo que as pessoas impõem | |
30 | só que o ensino médio tem essa pressão (2) que é das pessoas | |
31 | de fora, ficar te pressionando (1) todos os dias alguém | |
32 | diferente me pergunta o quê que eu quero ser, o quê que eu | |
33 | quero cursar (.) eu (.) gente eu nem sair da escola ainda calma | |
34 | (1) aí? se você | |
35 | Df: | └ Poxa mas você já -tá no terceiro ano parceiro |
36 | Bf: | └ Não beleza? beleza |
37 | Df: | @olha eu cobrando@ é brincadeira |
38 | Bf: | Olha=aí=olha=aí -tá vendo |
39 | Df: | @(1)@ |
40 | Ff: | @olha aí -tá vendo@ |
41 | Bf: | Entendeu como é que é (1) então eu acho assim que a |
42 | gente (1) todo dia, a gente é outro todo dia a gente é uma | |
43 | pessoa diferente (.) hoje? eu posso -tá com esse pensamento | |
44 | amanhã eu já posso -tá decidida do que eu quero (.) tanto é que | |
45 | na já passou três profissões minha mente (.) que eu queria fazer | |
46 | né (1) enfim eu acho que o ensino médio (1) é uma panela de | |
47 | pressão |
A crise na experiência da transição para o ensino médio (“foi um desespero”), se instaurou no momento em que as jovens encontraram dificuldades de habitualizar, em suas práticas estudantis, as disposições de conduta inerentes ao habitus escolar (Brandão et al., 2012) e o conjunto de expectativas normativas que constituem a cultura institucional da nova etapa educativa. Esse problema de encaixe ou ajuste, que poderíamos denominar como um tipo de desajuste habitual, é expressão da discrepância entre um padrão institucionalizado de desenvolvimento da carreira escolar no ensino médio - um padrão socialmente estabelecido que, como veremos, também regula a relação das famílias com a escolaridade das filhas - e o habitus coletivo das jovens.
Se, por um lado, a realização desse padrão requer o compromisso diligente com os estudos (“estudar muito”) e o envolvimento na escolha de um projeto futuro de identidade obrigatoriamente no tempo presente (“o quê que eu quero ser”), por outro, as práticas das estudantes no período do ensino médio apresentam como principais disposições o diferimento de decisões biograficamente relevantes, relativas a um campo profissional de atuação, e a abertura para experimentar transformações diárias no processo de constituição de suas identidades pessoais (“todo dia a gente é outro”).
Na trajetória pessoal de Babi, que se destaca como exemplo na discussão inicial, o desajuste habitual e a relação de tensão com esse padrão institucionalizado e seus esquemas de orientação, isto é, as expectativas normativas externas nas quais ele se atualiza (“todo mundo fica ali na tua expectativa”) se encontram na gênese da pressão que é relatada como um aspecto comum ao campo de vivência do grupo no início da transição para o ensino médio e, no seu caso, foi também um dos catalizadores da decisão em abandonar a escola após a reprovação no segundo ano. Os elementos do habitus vinculado ao padrão escolar, ao ofício de aluno e suas exigências de performance não foram tão fáceis de realizar na prática estudantil, em razão da incompatibilidade de orientações (“eu não queria saber de nada”; “eu não queria estudar”). Diante desse cenário, a saída da escola foi a maneira que Babi encontrou para enfrentar, ainda que temporariamente, o problema do desajuste habitual.
O ensino médio é uma panela de pressão
Como discutido na segunda seção, os espaços conjuntivos de experiência são também espaços de elaboração conceitual. Em geral, categorias conceituais de sentido conjuntivo desdobram-se na forma de metáforas que documentam conteúdos de orientação, isto é, que enquadram elementos do habitus da prática (Bohnsack, 2020). A definição metafórica empregada por Babi na passagem anterior - de que o ensino médio é uma panela de pressão - é agora elaborada coletivamente para designar o que o grupo compreende como a finalidade do ensino médio (passagem Ensino Médio, linhas 41 a 50):
41 | Bf: | igual eu falei no começo (.) eu acho uma panela de pressão assim |
42 | que: (3) só vai acabar quando você realmente se formar em algo | |
43 | Df: | └ Quando |
44 | você tiver cozido | |
45 | Bf: | Quando:: é? Quando tiver cozido (2) e as pessoas olharem assim (1) |
46 | mas, sempre vai ter né (.) sempre | |
47 | Mf: | └ Não sempre, vai ter (1) quando você entrar |
48 | na faculdade | |
49 | Bf: | └ Vai ter aquele que vai falar assim não prestou, não |
50 | Mf: | Você tem que arrumar um emprego (.) depois carteira assinada |
A metáfora empregada pelo grupo para definir o ensino médio faz referência a um utensílio culinário que tem como função principal acelerar o processo de cozimento dos alimentos. Inicialmente, o emprego da analogia define a pressão como um sentimento constitutivo do campo de vivências das estudantes durante a estadia no ensino médio, isto é, sentir-se pressionada é uma sensação que atravessa todo o período da experiência educacional e pode se estender para além dele. Embora a pressão seja vivenciada como uma realidade subjetiva (Berger & Luckmann, 2007), é possível identificar estruturas objetivas atuando na conservação dessa situação interior. Aquilo que é real dentro das jovens (e para elas) reflete, na verdade, um conjunto de exigências normativas experimentado em espaços distintos de relações nos quais elas transitam e que está a serviço do padrão institucionalizado descrito.
Nesse período, os limites da pressão e sua duração seriam regulados por um olhar externo que avalia e legitima o êxito de um processo que, ao que tudo indica, não se encerra com o término da formação escolar na educação básica (“sempre vai ter”). Desse ponto de vista, parece que a conclusão dos estudos no ensino médio não significa “realmente se formar em algo” no sentido completo do termo, não é garantia de aprovação social total e, da mesma forma, não torna alguém verdadeiramente “cozido”, como complementa Daniela, isto é, formado nos termos do padrão institucionalizado projetado como norma sobre o desenvolvimento da carreira escolar nesta etapa e depois dela, quando o trânsito para a vida adulta as coloca diante de um novo conjunto de roteiros sociais e padrões de desenvolvimento biográfico (“entrar na faculdade”, “arrumar um emprego” e “carteira assinada”), conforme exemplifica Michele.
A qualificação via diploma escolar, apesar de importante, não é suficiente para ascender a esse status e não determina o fim do processo de amadurecimento. Para obter reconhecimento é preciso adequar-se ao tipo de conduta socialmente esperado daquelas que chegam a esse ponto da vida e da carreira escolar, que é aderir ao compromisso de realizar o padrão institucionalizado. Mais do que uma etapa da formação escolar, ao ensino médio é atribuído um significado distinto, implicitamente articulado no discurso: é interpretado, pelas jovens que o vivenciam, como o início da indução, no âmbito de seu desenvolvimento pessoal, de um processo de maturação que, do ponto de vista normativo, deve passar, obrigatoriamente, pela definição, ainda no presente, de um projeto de futuro: “o quê que eu quero ser, o quê que eu quero cursar”, como mencionado inicialmente por Babi.
Para além desse esquema de orientação que as legitima ao olhar externo, existe um universo específico de práticas condicionado ao reconhecimento do “estar cozido” no cotidiano da relação entre pares e que constituem seus espaços de experiência nesse período. Se, nos termos da norma, estar cozido, isto é, alcançar o padrão institucionalizado, corresponde ao cumprimento de certos requisitos sociais de desenvolvimento biográfico, ele passa a ganhar um novo significado quando processado no nível da ação habitual, como identificado no trecho a seguir (passagem Ensino Médio, linhas 51 a 68):
51 | Ff: | A gente já cresce? sabendo que no ensino médio vai ter uma: |
52 | Pressão | |
53 | Cf: | └ É |
54 | Ff: | muito maior pra tudo (.) eu acho que tipo tudo se encaixa em |
55 | pressão, porque: é pressão de você ter o seu primeiro | |
56 | namoradinho real, oficial eh: de você realmente se assumir | |
57 | na rodinha dos amigos, (.) se você saber realmente se você é | |
58 | Hétero | |
59 | Bf: | └ Ter sua opinião |
60 | Ff: | Se você é lésbica se você: trans? |
61 | Df: | └ Ou então você se descobre lá no ensino fundamental e |
62 | agora vai ter que se assumir | |
63 | Ff: | Você se descobre aí já vai ter a pressão de você se assumir |
64 | pros amigos como vai ser (.) eh: várias coisas | |
65 | Mf: | E também você ter a sua opinião, sobre as coisas, tal |
66 | Df: | └ É, você acaba |
67 | formando sua opinião de certa forma (1) e lutando pra ser | |
68 | alguém? na vida (.) pra ser reconhecido |
À medida que as jovens “crescem”, isto é, alcançam maiores graus de amadurecimento e avançam em seus percursos de escolarização, a pressão como um elemento relacionado à vida no ensino médio começa a se desenhar como destino e realidade futura (“vai ter”), por meio de um saber comunicativo. Esse saber tem origem em representações públicas e socialmente estabelecidas sobre essa etapa e que são construídas à margem de um campo de vivências real, bem como do envolvimento prático em situações de crise características da transição. Podemos afirmar que se trata de um saber estereotipado e abstrato (Bohnsack, 2020), que só passa a ser autêntico e exemplar de um espaço conjuntivo de experiência, após o ingresso no ensino médio.
A pressão a que o grupo faz referência adquire outro significado, que difere daquele que emerge da relação com o padrão institucionalizado de desenvolvimento da carreira escolar e suas exigências normativas. Se na passagem anterior a pressão é um mecanismo de coerção que produz o ajuste habitual forçado nos moldes de tal padrão - ajuste elaborado pelo grupo a partir da ideia do “estar cozido” - e que é mobilizado dentro e fora da escola por figuras externas, próximas e distantes às jovens, agora, a pressão é a consequência natural do envolvimento coletivo em processos práticos de construção da identidade social nos campos da sexualidade e da vida amorosa e intelectual.
Essas práticas de constituição identitária e o habitus que está na gênese de sua produção representam aqui o espaço de experiência existencialmente compartilhado entre elas, um espaço de experiência típico da fase juvenil, não exclusivamente vinculado ao meio educacional do noturno e ao gênero feminino (Holanda, 2020). Esse compartilhamento está documentado na dramaturgia e na organização paralela do discurso que revela uma interação do grupo no nível prático da ação. Nessa última passagem, as jovens estudantes entram num acordo habitual (Bohnsack & Nohl, 2003), o que significa que elas estão orientadas por uma compreensão homóloga sobre o que caracteriza a experiência escolar no ensino médio, fruto de suas práticas, que, além de idênticas, têm em comum o mesmo habitus ou elementos de um habitus. Esse acordo só pode acontecer entre aquelas que participam de um mesmo espaço conjuntivo de experiência, de um mesmo universo de práticas e estoques de conhecimento implícitos.
Os tensionamentos entre a norma institucionalizada e o habitus do grupo se revela claramente quando Daniela afirma que durante a experiência no ensino médio as jovens estão lutando para “ser alguém” na vida. A metáfora da luta evidencia o conflito pela busca por reconhecimento e legitimação sem precisar aderir totalmente aos modelos institucionalizados de desenvolvimento identitário e suas exigências morais, sem abrir mão do estilo habitual de construir a própria identidade (Bohnsack, 2020, p. 89). Nesse período, a descoberta de si no presente, ainda que provisória e envolvendo decisões de curto prazo, e a revelação do eu para um mundo circunscrito ao milieu de grupo (Weller, 2019), isto é, a “rodinha de amigos”, são práticas vividas na socialização entre pares na escola do ensino médio e resultam em modos específicos de constituição social.
A reprovação escolar como sintoma do desajuste habitual
O padrão institucionalizado de desenvolvimento da carreira escolar também aparece como norma externa à experiência das participantes do grupo Festa durante o ensino médio. No entanto, ele não está elaborado diretamente no discurso das jovens, mas desdobra-se por meio de processos implícitos de reflexão que fazem referência a uma prática de ação que fracassou na realização do padrão, que não incorporou satisfatoriamente o habitus escolar subjacente a ele (passagem Ensino Médio, linhas 1 a 39):
1 | Y: | E assim meninas (.) eh: vocês poderiam falar um pouco como é |
2 | ser, estudante no ensino médio pra vocês | |
3 | Bf: | Chato (.) cobrança |
4 | Jf: | └ Nossa é difícil |
5 | Bf: | Exigência demais (.) eu mesma (.) minha mãe (.) eu reprovei no |
6 | segundo ano aqui na escola né (1) foi? foi tipo minha reprovação | |
7 | foi meio que pessoal? e também; (1) querendo; ou não; foi um | |
8 | pouco deslize, meu, porque eu minha filha eu acho que | |
9 | ninguém imaginaria (1) que eu (2) ia reprovar | |
10 | Ff: | └ Nossa? é verdade (.) tu só |
11 | tirava nota boa | |
12 | Cf: | Eu também achava que a Bebela já -tava até na faculdade |
13 | Bf: | └ Não (.) sim |
14 | Cf: | quando ela chegou a galera tu -tá fazendo o que aqui menina |
15 | Bf: | └ É (.) e |
16 | tipo (.) ninguém ninguém, imaginaria (.) foi tipo, um ano que | |
17 | minha minha mãe falou assim Bebela (1) tudo o que eu tinha que | |
18 | chorar eu chorei né (.) que eu não ia fazer não ia voltar, né (.) e | |
19 | tipo (1) minha amiga Bebela cuidado pra você não entrar em | |
20 | depressão | |
21 | Ff: | └ @(.)@ |
22 | Bf: | porque querendo ou não é chato |
23 | Jf: | └ Eu fiquei assim |
24 | Bf: | porque você vê seus amigos lá na frente e tudo e você lá? |
25 | querendo ou não você fica meio um pouco eh: você se acha meio | |
26 | diferente né (2) então tipo logo começou na minha sala eh: eu | |
27 | -tava no segundo ainda e meus amigos -tavam no terceiro e aí | |
28 | (tiravam umas brincadeiras) pesadas (3) falava umas coisas e | |
29 | tudo aí eu aham (tive que passar por esse constrangimento) e tipo | |
30 | minha mãe ainda hoje passa na (.) ela ((tossindo)) fica um pouco | |
31 | me passando na cara (1) porque, eu tirei uma nota baixa e:m (2) | |
32 | porque=na=verdade eu fiquei em português né (.) fiquei com | |
33 | quatro pontos (.) ela nossa Bebela quatro pontos em português | |
34 | (1) você é reprovada (1) ela tipo meio que passando na cara (.) | |
35 | você é reprovada, (1) aí eu virei pra ela ((batidas na mesa)) se eu | |
36 | tivesse eh: se eu não tivesse reprovado (.) como é que eu falei (2) | |
37 | ah dei uma resposta aí mas -tava vendo a hora que ela ia me dar | |
38 | um tapa na boca | |
39 | Ff: | @(.)@ |
Em interação com o grupo, Bebela enquadra o tema da reprovação escolar como forma de exemplificar, apoiada em seu próprio caso, a “cobrança” e a “exigência” acentuada que passaram a marcar sua condição estudantil em determinado ponto da trajetória no ensino médio. A cobrança e a exigência são expressões da existência de um padrão institucionalizado atuando sobre a experiência de escolarização das jovens, impondo-se como norma. A reprovação no segundo ano é anterior à transferência de Bebela para o noturno e funciona como pano de fundo para abordar o problema coletivo do desajuste habitual, da ruptura com um padrão de carreira escolar instituído.
A reprovação é definida por Bebela como um “deslize”, uma falha pessoal na manutenção prática de um habitus que, até o momento, parecia bem ajustado em face de seu desempenho notável desde o primeiro ano (“ninguém imaginaria que eu ia reprovar”). À época, Bebela não encontrou uma alternativa para a resolução do problema, isto é, algo que revertesse seu quadro de reprovação, então, trabalhou a experiência de maneira subjetiva (“eu chorei né”). O intenso sofrimento emocional vivenciado pela estudante é um dos efeitos da ruptura com o padrão e o sentimento de normalidade que ele gera, o que justifica a percepção que a jovem teve de si mesma como uma estudante “meio diferente” quando da constatação de que, com a reprovação, passava a ocupar uma categoria rebaixada na ordem simbólica da classificação escolar. Não podemos deduzir que sua matrícula no noturno foi motivada por essa percepção, mas a surpresa de Cecília ao encontrar com a colega no noturno documenta uma representação comum sobre o perfil do estudante que frequenta a escola no turno da noite e sua situação de desajuste habitual.
Uma série de constrangimentos apareceram após a reprovação, como sanções e penalidades causadas pela disrupção com a norma. No início do período letivo, por exemplo, quando Bebela ainda cursava o segundo ano, os amigos do terceiro - que, até onde podemos pressupor, estudaram na mesma turma que ela e foram aprovados para o ano escolar seguinte - retornaram à sala de Bebela para caçoar ou introduzir “brincadeiras pesadas” acerca da sua situação. As “cerimônias de degradação moral” (Garfinkel, 1956, p. 420)5 iniciadas na escola se tornaram comuns também no espaço das relações familiares, claramente representados nas práticas de depreciação (“passar na cara”) e nos esforços recorrentes da mãe em tipificar a filha a partir de uma identidade inferior (“você é reprovada”), e trazer à tona seu baixo desempenho nos estudos como uma forma de penalizá-la por seu “deslize”.
A reprodução do padrão escolar nas relações familiares: A teoria da filha mais velha
A incorporação do padrão apenas se impôs como cobrança quando reveses e falhas atravessaram a trajetória escolar das jovens, reproduzindo-se, inclusive, nos esquemas de orientação acionados por mães e avós em suas práticas de acompanhamento da carreira estudantil das filhas e netas. A partir daí, elementos do padrão escolar foram assimilados pela ordem moral da família (Sarti, 1994) na forma de obrigações imputadas a uma posição específica na estrutura de parentesco, ou melhor, obrigações atribuídas ao papel da filha mais velha (passagem Ensino Médio, linhas 59 a 80):
59 | Bf: | Mas é isso (.) ainda hoje ainda tem cobrança dentro de casa |
60 | porque eu sou sou a mais velha em tudo né (.) não sei o quê | |
61 | minha mãe (.) ih: não sei nem o quê ela fica falando (.) mas | |
62 | deixa ela falar nem quero saber (.) eu viro é as costas | |
63 | Ff: | └ @(.)@ |
64 | Bf: | Ela fala muito não sei o quê tem que estudar tem que |
65 | estudar tem que estudar, tem que estudar? tem que | |
66 | estudar? tem que estudar tem estudar? só isso só isso | |
67 | Lf: | └ Lá em casa |
68 | tinha aquele negócio minha mãe olha tira uma boa nota | |
69 | Bf: | └ Só |
70 | isso (.) mas não é igual minha avó falava tem que estudar | |
71 | minha filha (.) tem que ser aquilo fazer aquilo (.) você vê a | |
72 | filha de não sei quem é uma estudante certinha (.) -tá | |
73 | fazendo aquilo não sei o que lá não sei que lá °eu falei não, | |
74 | vó -tá bom° (1) querendo ou não é muita cobrança no ensino | |
75 | médio (2) ainda mais no último ano? você tem que garantir | |
76 | seu diploma | |
77 | Lf: | └ Ainda tem aquele negócio |
78 | olha enquanto você -tá dormindo alguém -tá estudando (.) | |
79 | eu quero dormir pelo amor de Deus eu não quero me | |
80 | matar de estudar |
A teoria da filha mais velha, que integra parte dos esquemas de orientação das participantes do grupo Festa, traduz a cobrança nos termos de uma moralidade familiar que se impõe nas relações cotidianas do grupo doméstico. A premissa básica dessa teoria se assenta na ideia de que as filhas mais velhas devem ser o exemplo para o restante da prole, principalmente no que se refere ao compromisso com a carreira escolar. Por esse ângulo, o nível de cobrança durante o ensino médio parece estar diretamente relacionado à posição ocupada na estrutura de parentesco, isto é, pelo fato de ser a filha mais velha. Ou melhor, “a mais velha em tudo”. O pronome indefinido “tudo” parece indicar não apenas a idade, mas também o alcance de certa longevidade escolar, uma vez que, entre seus irmãos, Bebela é a filha que apresenta o nível de escolaridade mais avançado, por já estar concluindo o ensino médio.
O padrão escolar, quando convertido em ordem moral doméstica (Lahire, 1997), cobra das jovens a realização de práticas que potencializem a concretização de uma identidade normativa relacionada a uma performance de excelência nos estudos - resumido na figura da “estudante certinha” - e que, de certa maneira, está atrelada à avaliação de seu papel como filha. No entanto, as estudantes apresentam dificuldades na implementação prática dessa figura de orientação durante sua experiência escolar (“eu não quero me matar de estudar”), mesmo que tenham subjetivado como dever a obrigação de garantir o primeiro diploma de ensino médio da família. Em casos como o de Bebela, em que as ordens da mãe são deslocadas para um plano de desvalorização extrema ou abordadas com uma atitude prática de desprezo (“eu viro é as costas”), a teoria da filha mais velha atua, no nível comunicativo, como esquema de orientação que justifica a decisão de concluir o ensino médio e prosseguir com a escolarização no noturno. Não há adesão ao padrão escolar e à performance de excelência por ele estipulada, ao contrário, suas práticas nesse período estão caracterizadas por outras disposições.
Síntese comparativa
A análise comparativa dos dois grupos de discussão analisados demonstrou que o habitus coletivo das estudantes, processado em espaços de experiência específicos da fase juvenil, é tensionado e expandido quando confrontado com as expectativas normativas e cobranças com que as jovens se confrontam a partir da transição para o turno da noite - não só aquelas produzidas na escola, mas também o conjunto de pressões vivenciadas nas relações familiares, especialmente a coerência e conformidade com um padrão institucionalizado de carreira escolar, exemplificados na figura da estudante certinha.
A busca pela diplomação no ensino médio e o cumprimento de um mandato estabelecido pela ordem moral familiar, sem perfazer uma trajetória excepcional ou aderir completamente à identidade da estudante exemplar que sacrifica suas horas de descanso em favor de um alto rendimento escolar, são componentes característicos do quadro de orientação do grupo Festa e estão implicados em sua experiência escolar. De modo semelhante, as práticas das jovens do grupo Pressão também se constituem na recusa da identidade da estudante certinha, ainda que a concepção de carreira escolar normal, conferida pela matrícula no ensino regular, esteja presente em suas orientações coletivas. Essa recusa se materializa no diferimento de decisões futuras relacionadas a projetos acadêmicos ou profissionais para depois do ensino médio, como exemplificado na fala de Babi: “todos os dias alguém diferente me pergunta o quê que eu quero ser, o quê que eu quero cursar, . . . gente eu nem sair da escola ainda calma”.
Nos dois grupos identificamos que a relação das jovens com a escola e o ensino médio, bem como outras áreas da vida, é mediada pelo olhar de um outro abstrato que detém o poder de chancela do padrão escolar e que é legitimado como ponto de referência para o qual a conduta das jovens deve estar orientada. Os atos de cobrança e pressão desse outro são os meios de reprodução do padrão escolar. Nas interações com esse outro, que ora se personifica na figura de pessoas próximas, como pais e professores, as jovens subjetivaram certos significados e horizontes normativos que estão no centro de uma narrativa pública sobre a função social da escola nessa etapa: uma panela de pressão que deverá acelerar o processo de amadurecimento para uma integração social plena.
No limite do que os dados indicam, não podemos afirmar que o padrão institucionalizado de desenvolvimento da carreira escolar é uma norma que se impõe exclusivamente à experiência escolar feminina, ainda que uma de suas expressões simbólicas, a figura da estudante certinha - ou da boa aluna, como indicou Carvalho (2004) - tenha origem em expectativas de gênero que estabelecem experiências específicas de socialização para moças, principalmente no âmbito das famílias de camadas populares (Carvalho et al., 2016). Somente uma perspectiva relacional, que incluísse a análise da experiência escolar dos rapazes, permitiria tornar visível os contornos de gênero do padrão escolar.
Nesse sentido, a existência de especificidades na experiência escolar de rapazes e moças que cursam o ensino médio no período noturno é mais uma suposição teórica do que uma evidência empírica observável no quadro dos dados que produzimos em campo. Para afirmar que o desajuste habitual é uma orientação relacionada sociogeneticamente ao gênero das estudantes, precisaríamos dispor de horizontes de orientação representativos da prática do público estudantil masculino, isto é, casos em que o desajuste não pode ser observado ou se manifesta de ma- neira diferente.
Considerações finais
A transição para o turno da noite, durante a escolarização no ensino médio, significou, para as jovens que entrevistamos, uma situação nova e, até certo ponto, decepcionante. A construção da experiência nessa etapa e nesse turno está marcada por certo desencantamento, seja porque as expectativas almejadas de desenvolvimento “normal” da carreira escolar não se efetivaram, seja porque não estavam preparadas para experimentar uma nova realidade, que envolve o compromisso com responsabilidades até então inéditas em sua trajetória de vida, como a elaboração obrigatória de projetos a serem realizados após a conclusão dos estudos.
Esta pesquisa demostrou que a crise constitutiva da experiência escolar no ensino médio, uma crise originada a partir de tensionamentos entre processos de socialização escolar e subjetivação juvenil, pode ser explicada, de uma perspectiva praxiológica e para o caso do noturno, por aquilo que reconstruímos, com base na análise comparativa, como desajuste habitual, um tipo de experiência conjuntiva que conecta as estudantes. Não se trata apenas de uma distância intencional e crítica dos papéis e valores tradicionalmente definidos pelas instituições escolares, no caso aqueles relacionados ao ofício de aluno. As incongruências entre o habitus escolar, vinculado a um padrão institucionalizado de desenvolvimento da carreira estudantil no ensino médio, e o habitus moldado na esfera das relações cotidianas entre pares começam a aparecer nesse período e repercutem na construção da experiência escolar, mesmo entre aquelas que apresentam trajetórias acidentadas e que, em tese, não partilham do padrão escolar.