Os estudos topográficos conformam-se como uma série de operações efetuadas em campo, com o objetivo de coleta de dados para o reconhecimento das especificidades de determinada superfície ou terreno, conforme lê-se nos estudos de Veiga et al. (2012). Usualmente, eles são recorrentes em estudos das áreas de geografia, geologia, agrimensura e nas engenharias (Coelho et al., 2014). Decerto, este artigo não se situa no escopo das áreas supracitadas, mas, sim, no campo da formação de professores de História. Daí que a presença do termo topografia, neste estudo, pareça de seleção confusa. No entanto essa categoria foi eleita para o estudo de outro terreno: os processos formativos nos cursos de licenciatura em História na Amazônia.
Segundo aponta uma extensa literatura, os cursos de formação de professores de História estabeleceram uma rígida segmentação entre o saber de referência e os demais saberes da docência. Via de regra, tais cursos elegeram os conhecimentos historiográficos como alicerces dos percursos formativos implementados, relegando os demais elementos constituintes da docência na educação básica como secundários. Nesse sentido, Selva Guimarães Fonseca (2003) nos revela que, até o final da década de 1990, a formação de professores de História, no Brasil, tradicionalmente, privilegiou o enfoque no saber de referência - ou seja, nos saberes que conformam o conhecimento histórico acadêmico. Essa postura assumia que o exercício da docência na educação básica se sustentava, fundamentalmente, nas bases teóricas da disciplina, e não nas demandas que o ensino da História na escola impõe (Fonseca, 2003, pp. 111-139).
A literatura especializada no campo do ensino de História vem destacando a importância da reflexão sobre os saberes docentes nos processos formativos dos cursos de licenciatura em História. Flávia Caimi (2006) aponta que para exercer o ensino da disciplina não é suficiente dominar os conhecimentos específicos do saber de referência, mas, também, os saberes didático-pedagógicos e os(as) sujeitos(as) do processo de aprendizagem, isto é, os(as) estudantes da educação básica. Ana Maria Monteiro (2015) encaminha posição análoga, ao defender que, além da compreensão sobre a matéria a ser ensinada, há que se ter domínio sobre sua função curricular.
O mesmo campo do ensino de História tem problematizado o lugar da disciplina na educação básica. Para Sonia Regina Miranda (2007), a disciplina História precisa superar a perspectiva tradicionalista de memorização de sujeitos e fatos. No mesmo diapasão, Marco Antônio da Silva e Selva Guimarães Fonseca argumentam que, na escola básica, a História deve se vincular à valorização da diversidade, das práticas cidadãs e democráticas e ao desenvolvimento de uma percepção da realidade complexa e multifacetada. Para esses autores, a aprendizagem da história necessita atrelar-se à importante localização de questões problematizadoras que remetam ao tempo em que vivemos e a outros tempos, num diálogo crítico entre a multiplicidade de sujeitos, tempos, lugares e culturas (Silva & Fonseca, 2010, p. 24).
Diante desse quadro, o presente artigo se volta para os cursos de licenciatura em História situados na Amazônia, de modo a verificar como eles encaminham a formação de professores. Ele assume a referência dos estudos topográficos, pois visa a dimensionar como o “terreno” se conforma, quais são as suas “regularidades” e “acidentes”, a fim de caracterizar a formação docente em História oferecida na região. O “terreno”, então, é percebido por meio de alguns dos elementos que o constituem e que orientaram a eleição das fontes: os projetos político-pedagógicos (PPPs) de dez instituições de ensino superior (IES), totalizando 13 campi, localizadas no Norte do Brasil, e os currículos Lattes, entendidos como documentos basilares da trajetória acadêmica dos 183 docentes dessas instituições.
Nesse sentido, o texto oferece um panorama sobre o processo formativo dos docentes investigados, da graduação ao doutoramento, como também o ano de ingresso dos professores nas instituições estudadas. Em seguida, este estudo levanta o percentual da experiência profissional dos 183 professores, mensurando a participação destes como professores da educação básica, elemento que integra os critérios de avaliação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Por fim, apresenta-se um painel quanto às componentes curriculares ministradas pelos professores aqui investigados, sendo essas classificadas em categorias desenvolvidas nos estudos de Wilma Coelho e Mauro Coelho (2018).
A recolha desses elementos nos permitiu inferir acerca da topografia desse “terreno” da formação docente em História na Amazônia brasileira. Frontalmente, o que objetivamos enfatizar é a rígida segmentação no campo da ciência histórica entre o saber historiográfico e o saber pedagógico, isto é, aquele que se destina à compreensão e ao enfrentamento dos dilemas e entraves entre a História e a educação básica. Essa reflexão nos é possível a partir de dois aspectos centrais: o primeiro é a desigualdade, no rol de disciplinas ministradas, entre as componentes curriculares de escopo historiográfico e as de escopo pedagógico. A segunda relaciona-se ao número considerável dos docentes investigados que não têm, em sua trajetória, experiência com a educação básica, infringindo as premissas que constituem o Sinaes. Esses entendimentos estão consubstanciados nos dados aqui investigados. Foi a recolha desses elementos que nos permitiu situar a formação docente em História na Amazônia brasileira. No próximo tópico, indicamos o processo de levantamento e análise deste material. Vamos a eles.
Levantamento investigativo
Michel de Certeau, em A operação historiográfica (1982), evidenciou importantes considerações quanto ao ofício do historiador, as quais são relevantes para a reflexão que propomos a seguir. Certeau destaca que o fazer historiográfico parte, entre outros aspectos, da seleção e do tratamento de um determinado material, uma fonte. A investigação do material ocorre a partir de um procedimento basilar: em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira (Certeau, 1982, p. 80).
O procedimento inicial que resultou na presente investigação compreendeu, pois, este gesto inicial: a transformação dos projetos político-pedagógicos de cursos de licenciatura em História em fontes. Esses documentos foram entendidos como marcos importantes, levando-se em conta as contribuições de Ilma Passos Veiga (1994), por regularem e indicarem as propostas formativas dos cursos, além de apresentarem um caráter autoral, uma vez que são construídos pelos docentes que constituem o espaço onde o documento é aplicado. Dessa forma, identificaram-se 121 projetos político-pedagógicos referentes aos cursos de licenciatura em História, ofertados em instituições públicas, de forma presencial, nos estados da região Norte do Brasil. Ainda assim, foram utilizados documentos que estivessem disponíveis na internet, nos sites oficiais de institutos e faculdades que ofertam os cursos de História nas instituições analisadas. As fontes foram submetidas a processos de classificação de seus componentes. Entre estes, destacam-se: ano de criação, corpo docente, matrizes curriculares, perfil do egresso e objetivos de curso.
Em seguida, outros documentos foram alçados à condição de fontes dos processos de formação oferecidos por aqueles cursos: os currículos Lattes dos docentes das licenciaturas selecionadas. No total, 183 currículos, retirados da Plataforma Lattes, ligada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foram analisados. O currículo Lattes foi entendido como um importante registro profissional, científico e acadêmico, conforme lê-se nas contribuições de Letícia Estácio (2017), viabilizando a compreensão do perfil dos docentes que formam professores. O trato com esses documentos, então, identificou e selecionou, fundamentalmente, os seguintes dados: nome, instituição de vínculo, ano de ingresso na mesma instituição, artigos publicados, atuação na educação básica, processos formativos e disciplinas ministradas. Para além deles, observaram-se, também, ano, temática e local onde os docentes titularam-se como graduados, mestres e doutores.
Metodologicamente, dois conceitos centrais foram selecionados para consubstanciar a pesquisa: o conceito de currículo, formulado por Ivor Goodson (1995), e o conceito de discurso, concebido por Mikhail Bakhtin (1979). Quanto ao primeiro, Goodson argumenta que é um produto isento de neutralidade, constituindo-se como resultado de tensões sociopolíticas relacionadas à intencionalidade educativa e ao que deve ser ensinado. Essa concepção nos é precípua quando da análise das propostas curriculares dos cursos de licenciatura em História, entendendo-as em decorrência de tensões que envolvem a relação entre o saber de referência e os demais saberes docentes nos processos de formação de professores de História.
De forma suplementar, o conceito de discurso, formulado por Mikhail Bakhtin (1979), também é importante. Segundo o autor, o discurso é de natureza dialógica e polifônica. Para compreendê-lo, é importante perceber as relações que um discurso estabelece com outros de sua natureza. Portanto, quando aplicado ao procedimento de trabalho presente na pesquisa, o conceito em questão é salutar ao assumir as propostas curriculares estudadas como discursos que se relacionam com outros relativos à formação docente, presentes nos campos de pesquisas sobre a formação de professores e sobre o ensino de História, e na legislação educacional, representada aqui pelos marcos regulatórios supracitados.
Reconhecendo o terreno
A região Norte do Brasil conta com dez instituições públicas de ensino superior, cujos PPPs se encontram disponíveis na internet,2 ao tempo do levantamento das fontes. A seguir, as instituições que ofertam cursos de licenciatura em História nessa região.
Fundação Universidade Federal de Rondônia - campus Porto Velho
Fundação Universidade Federal do Tocantins - campus Araguaína
Universidade Estadual de Roraima
Universidade Federal de Roraima
Universidade Federal do Acre
Universidade Federal do Amapá - campus Marco Zero
Universidade Federal do Amapá - campus Oiapoque
Universidade Federal do Amazonas
Universidade Federal do Oeste do Pará
Universidade Federal do Pará - campus Ananindeua
Universidade Federal do Pará - campus Belém
Universidade Federal do Pará - campus Bragança
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - campus Marabá
As 10 instituições, como se vê a seguir, ofertam 13 cursos de licenciatura em História. A maior parte dos cursos é ofertada pelo sistema federal de ensino, exceção feita à Universidade Estadual de Roraima. Algumas instituições contam com mais de um curso e, eventualmente, operam percursos pedagógicos distintos, como é o caso da Universidade Federal do Pará, por exemplo. A Tabela 1 situa os cursos oferecidos por cada instituição e o número de docentes associados a eles. Como se poderá perceber, essa característica acarretará uma significativa diferença na quanti- dade de docentes alocados nas instituições que ofertam licenciaturas em História. Isso se deve, no entanto, à quantidade de cursos ofertados por cada uma delas.
Unidade federativa | Número de cursos pesquisados | Número de docentes pesquisados |
---|---|---|
Acre | 1 | 16 |
Amapá | 2 | 31 |
Amazonas | 1 | 20 |
Pará | 5 | 74 |
Rondônia | 1 | 14 |
Roraima | 2 | 18 |
Tocantins | 1 | 10 |
Total | 13 | 183 |
Fonte: Elaboração dos autores ao longo da pesquisa, no segundo semestre de 2022.
A Tabela 1 permite inferir que a média de professores por IES investigadas é de 14,07 docentes. Alguns cursos apresentam número de professores e professoras maior do que o índice médio encontrado, como os ofertados pela Universidade Federal do Pará (campus Belém), com 23 docentes, pela Universidade Federal do Amazonas, que contabiliza 20 professores, e pela Universidade Federal do Oeste do Pará, com 21 docentes. Em contrapartida, há cursos com número de professores abaixo da média, sendo esses ofertados pelas seguintes instituições: a Universidade Estadual de Roraima, que reúne 7 docentes; a Universidade Federal de Roraima, que congrega 11 professores(as); a Universidade Federal do Amapá (campus Oiapoque), que possui 8 docentes; a Universidade Federal do Pará (que nos cursos oferecidos nos campi Ananindeua e Bragança) mantém 9 professores(as).
Concomitantemente, com base nos dados disponíveis na plataforma e-MEC,3 foi possível sopesar a evolução da oferta desses cursos no Norte do Brasil. Na região, a Universidade Federal do Pará é a pioneira, ofertando o curso mais antigo, incorporado à instituição em 1957. O segundo curso foi criado cerca de 20 anos depois, em 1976, na Universidade Federal do Acre. Na década de 1980, se assiste ao início de quatro novos cursos de licenciatura em História: o primeiro na Univer- sidade Federal do Amazonas, em 1981; o segundo na Fundação Universidade Federal de Tocantins (campus Araguaína), em 1985; o terceiro, na Fundação Universidade Federal de Rondônia, em 1987; e na Universidade Federal de Roraima, em 1990. Em 1991, a Universidade Federal do Amapá estabeleceu cursos nos campi Marco Zero e Oiapoque.
Como se pode perceber, desde a introdução da formação de professores no ensino superior, em 1930, a região Norte foi agraciada com oito cursos de licenciatura em História. Foi só no presente século, no entanto, que a mesma região conheceu um crescimento exponencial dos cursos ofertados. De 2006 a 2012, cinco novos cursos são ofertados nas seguintes instituições: Universidade Estadual de Roraima (2006), Universidade Federal do Pará - campus Bragança (2009), Universi- dade Federal do Oeste do Pará (2012), Universidade Federal do Pará - campus Ananindeua (2012) e Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - campus Marabá (2012).
Em seguida, avançou-se em entender o ingresso de docentes nos cursos. Consideramos aqui os(as) docentes arrolados(as) nos PPPs. A consideração do tempo de ingresso nos cursos aqui analisados pode suscitar duas ponderações: em primeiro lugar, a experiência acumulada dos(as) professores(as) de cursos de formação inicial; em segundo lugar, a conformação dos corpos docentes desses mesmos cursos, ao longo do processo de redimensionamento das licenciaturas, conforme encaminham as diretrizes curriculares para a formação docente, formuladas desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996. Vejamos, então, a Figura 1.
A figura mostra que a média de ingresso de professores e professoras nos cursos de licenciatura da região conheceu uma progressão expressiva, desde a década de 1970. Mesmo levando-se em conta que os PPPs estudados não trazem informações sobre a evolução dos quadros docentes ao longo dos anos, o rol de docentes que eles encaminham sustenta a afirmação anterior. Os dados dos PPPs apontam que a média de ingresso de docentes nos cursos de licenciatura no Norte do Brasil saltou de 0,3/ano, na década de 1970, para 9,4/ano na segunda década do presente século. Além disso, quando relacionamos a figura com os índices relativos à criação dos cursos de formação de professores de História na região, percebemos que a expansão do número de docentes nos cursos está vinculada ao aumento do número de cursos.
Outro fator a ser considerado é a inflexão na oferta de vagas, iniciada em 2007. Até aquele ano, 63 dos 183 docentes arrolados nos PPPs estudados haviam ingressado nos cursos. Os outros 121 docentes ingressaram a partir do mesmo ano. Ou seja, dois terços do conjunto de formadores de professores atuantes nos cursos de licenciatura da região Norte foram incorporados aos cursos durante a vigência ou em decorrência do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) (Borges et al., 2012). Em execução entre os anos de 2007 e 2012, o Reuni fomentou a criação de cinco novos cursos de licenciatura em História na região.
Ainda sobre a conformação do corpo docente, cabe ressaltar que 38 professores e professoras ingressaram nos cursos antes da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que estabelece a formação de professores em cursos de licenciatura plena. Os demais 146 docentes dos cursos estudados aqui ingressaram sob a vigência dessa mesma lei. Desses últimos, 134 docentes iniciaram sua trajetória nos cursos em discussão após a promulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Formação de Professores, de 2002, segundo as quais as licenciaturas constituem percursos independentes, com especificidade e integralidade próprias. Ou seja, 72,82% dos professores de cursos de licenciatura da região Norte ingressaram em cursos com diretrizes curriculares estabelecidas e orientações demarcadas sobre o que a formação inicial deve observar.
A formação acadêmica desse corpo docente é fator essencial para que possamos compreender o arcabouço teórico-cultural acumulado na elaboração dos processos curriculares dos cursos em que estão inseridos. Para tanto, é válido observar a Figura 2.
Fonte: Elaboração dos autores ao longo da pesquisa, no segundo semestre de 2022. Esta apresentação, por décadas, também se faz presente nas figuras 3 e 4.
A Figura 2 situa o período de graduação dos docentes que integram os cursos estudados. Os dados apontam que a maior parte do corpo docente responsável pela formação inicial de professores de História, segundo os PPPs aqui analisados, concluiu a sua formação no século passado. Até então, grande parte da formação inicial em História se deu em cursos de dupla habilitação, de modo que os egressos recebiam diplomas de bacharéis e licenciados, conforme indica a leitura de Luis Fernando Cerri (2014). Esse parece ser um índice importante da experiência curricular acumulada por grande parte dos corpos docentes dos cursos que tratamos aqui.4
No montante de 183 professores investigados, 38 foram formados até 1996, ano de implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Em seguida, outro dado merece ser situado: são 81 professores graduados em História entre 2001 e 2019. Esse fato é importante ao indicar que boa parte dos docentes estudados neste artigo obtiveram graduação em História quando a legislação, especificamente os textos homologados pelo Parecer CNE/CES n. 492 (2001) e pela Resolução CNE/CES n. 13 (2002), já distinguia a formação da licenciatura daquela ofertada pelo bacharelado. Essa separação definitiva das modalidades na formação inicial em História buscou, segundo Maria Aguiar da Silveira (2019), mitigar a constrição da formação específica do saber de referência sob a formação pedagógica da ciência histórica, forjando uma identidade na formação de professores da disciplina. Via de regra, os cursos de licenciatura em História, no Brasil, possuem características muito parecidas: são estruturados em uma narrativa linear e progressiva da trajetória ocidental; organizam-se segundo o modelo quadripartite; privilegiam uma perspectiva europeia e etnocêntrica; focam no saber de referência; e, não por último, subdimensionam os demais saberes da docência (Coelho, 2021).
Outro fator a ser considerado na caracterização dos corpos docentes dos cursos de formação inicial em História na região Norte é sua trajetória na pós-graduação. Vejamos a Figura 3.
Os dados disponíveis nos projetos pedagógicos de curso, quando relacionados aos currículos Lattes dos docentes, situam que a maior parte deles ingressou na pós-graduação a partir dos anos 2000. A Figura 4 reitera essa constatação, ao levar em conta a conclusão do doutorado.
Os gráficos das figuras 3 e 4, quando relacionados ao gráfico da Figura 1, evidenciam que muitos professores ingressaram no ensino superior ainda graduados ou mestres e concluíram sua formação no exercício da função de formadores de professores de História. Em seguida, um dado relevante a ser considerado na análise dos cursos de licenciatura em História é a experiência na educação básica, uma vez que formadores de professores para atuação nesse nível de ensino devem possuí-la. É a experiência docente nas escolas, exercitando o ofício de professores dos ensinos fundamental e médio, aquela reconhecida pelo Sinaes,5 documento compreendido por Ristoff e Giolo (2006) como parte importante do sistema de avaliação da educação superior brasileira. Assim, buscamos reconhecer a experiência que os integrantes dos colegiados estudados acumulam como professores da educação básica.
No universo de 183 docentes investigados(as), pouco mais da metade não atuou profissionalmente em escolas de educação básica: 92 professores(as). Por outro lado, menos da metade dos professores, com número de 91 docentes, atuou efetivamente nesse nível de ensino. Constata-se, desse modo, que, em cursos nos quais o objetivo é formar para a atuação do magistério na educação básica, mais da metade dos colegiados, em média regional de 51%, não atuou nessa área. A questão se adensa quando analisamos a relação entre o corpo docente e a experiência na educação básica, considerando cada instituição isoladamente (Tabela 2).
Instituição | Relação dos docentes com a educação básica | |
---|---|---|
com atuação (%) | sem atuação (%) | |
Fundação Universidade Federal de Rondônia - campus Porto Velho | 42,85 | 57,15 |
Fundação Universidade Federal do Tocantins - campus Araguaína | 40,00 | 60,00 |
Universidade Estadual de Roraima | 28,58 | 71,42 |
Universidade Federal de Roraima | 18,18 | 81,82 |
Instituição | Relação dos docentes com a educação básica | |
com atuação (%) | sem atuação (%) | |
Universidade Federal do Acre | 37,50 | 62,50 |
Universidade Federal do Amapá - campus Marco Zero | 65,20 | 34,80 |
Universidade Federal do Amapá - campus Oiapoque | 75,00 | 25,00 |
Universidade Federal do Amazonas | 35,00 | 65,00 |
Universidade Federal do Oeste do Pará | 67,15 | 32,85 |
Universidade Federal do Pará - campus Ananindeua | 66,67 | 33,33 |
Universidade Federal do Pará - campus Belém | 39,13 | 60,87 |
Universidade Federal do Pará - campus Bragança | 66,67 | 33,33 |
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - campus Marabá | 75,00 | 25,00 |
Fonte: Elaboração dos autores ao longo da pesquisa, no segundo semestre de 2022.
A leitura da Tabela 2 permite inferir que a relação dos docentes com a educação básica é variável de acordo com as IES presentes na pesquisa. Em apenas seis delas (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - campus Marabá, Universidade Federal do Pará - campus Bragança, Universidade Federal do Pará - campus Ananindeua, Universidade Federal do Amapá - campus Marco Zero, Universidade Federal do Amapá - campus Oiapoque e Universidade Federal do Oeste do Pará), a maior parte dos corpos docentes teve atuação na educação básica. Nesse grupo minoritário, os cursos ofertados na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - campus Marabá e a Universidade Federal do Amapá - campus Oiapoque assumem papel de destaque ao representarem o maior índice de docentes com atuação no nível básico de ensino. Ambos apontam para o percentual de 75% de professores com experiência profissional na área. Por outro lado, sete IES confirmam a média regional. Em maior ou menor grau, esse grupo majoritário tem mais da metade do corpo docente formado por professores que não atuaram na educação básica.
A topografia que oferecemos tem como último plano a atuação dos professores dos cursos de licenciatura em História investigados. Importa-nos considerar quais disciplinas do percurso curricular são assumidas pelos docentes que elaboram os PPPs. Para tanto, classificamos as disciplinas a partir dos registros feitos pelos próprios docentes nos seus currículos Lattes e, em seguida, confrontamos essas informações com os escopos das disciplinas nos PPPs das IES aqui analisadas, agrupando-as em categorias. Nesse procedimento, tomamos por base as categorias formuladas por Mauro Coelho e Wilma Coelho (2018), que se apresentam da seguinte forma:
a) Propedêuticas: disciplinas voltadas para conteúdos de natureza instrumental, como Português Instrumental, por exemplo; b) Historiográficas: as disciplinas voltadas para o estudo do saber historiográfico relativo a períodos [Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea] ou para espaços [História do Brasil, História da América e História Local/Regional]; c) Teóricas: disciplinas relativas à trajetória da disciplina e ao estudo dos procedimentos metodológicos e da produção acumulada [Teorias da História, Metodologias da Pesquisa e Historiografias]; d) Disciplinas relacionadas à satisfação do disposto no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: disciplinas que objetivam dar conta da inclusão dos conteúdos expressos na legislação [História da África, História Indígena, Cultura Afro-Brasileira]; e) Patrimônio: disciplinas voltadas para a discussão das formas de manutenção e preservação do patrimônio histórico; f) Formação Docente: disciplinas veiculadas aos saberes da docência, expressas em nucleações assim identificadas [Didáticas, Metodologias do Ensino, Psicologias, Língua Brasileira de Sinais etc.]; g) Interdisciplinaridade: disciplinas que demarcam o diálogo com outras áreas do conhecimento [Antropologia, Filosofia, Sociologia etc.]; h) Monografia: disciplinas comprometidas com a elaboração do trabalho de conclusão de curso, independentemente de sua conformação específica em cada uma das instituições estudadas; i) Prática como Componente Curricular [PCC]: as disciplinas que atendem à exigência de 400 horas de prática, conforme demanda a legislação; j) Estágio Supervisionado: as disciplinas que atentem à exigência de 400 horas de estágio, conforme demanda a legislação. (Coelho & Coelho, 2018, p. 19).
A Figura 5 situa os dados.
Na figura anterior, observa-se que as disciplinas de cunho historiográfico ocupam quase metade de todas as disciplinas ministradas. Sozinho, o escopo historiográfico representa 48% do total de disciplinas ministradas pelos professores dos cursos de licenciatura aqui investigados. O segundo maior número de disciplinas ministradas são as de escopo teórico, representando 19%. Por outro lado, as disciplinas voltadas à formação docente ocupam menos de 10% do volume ministrado pelos docentes. Os dados corroboram pesquisas correlatas que situam o caráter subsidiário da formação de professores nos cursos de licenciatura em História (mas não só deles). A maior parte dos(as) docentes ocupa-se com disciplinas relacionadas ao saber de referência. Os dados sugerem que os demais saberes da docência não apenas possuem pouco espaço nos percursos curriculares (razão pela qual não ocupam parte significativa da atuação dos corpos docentes), como não parecem integrar a expertise daqueles que formam professores.
Aspectos conclusivos
O reconhecimento desse terreno, da formação de professores de História na Amazônia, nos permite ponderar acerca dos aspectos que o conformam. Na educação básica, a História surge como área inserida de forma complexa. Conforme apresentam Marco Antônio Silva e Selva Guimarães Fonseca (2010), a disciplina em questão busca suprir uma série de demandas que não se resumem à aquisição de conhecimentos sobre o passado. A História escolar exige um trato peculiar, visando a atender as demandas feitas à disciplina na educação básica de modo a cumprir com os objetivos e habilidades desse nível de ensino. Para tanto, é fundamental que o professor de História esteja devidamente balizado para a condução de práticas educativas em sua área de expertise. Logo, os cursos de licenciatura em História ocupam papel de destaque, isso porque são responsáveis por conduzir a estrutura formativa de futuros professores da disciplina.
Quando analisados os perfis dos docentes de 13 cursos de licenciatura em História situados no Norte do Brasil, a relação entre saber de referência e saber pedagógico surge desequilibrada. À primeira vista, isso aparece quando observado o volume de disciplinas ministradas pelos docentes. Em sua ampla maioria, isto é, em 48% delas, o escopo é o saber historiográfico. O saber didático- -pedagógico, por sua vez, é percebido em somente 9% das disciplinas voltadas à formação de professores. Essa discrepância indica que, por um lado, as componentes curriculares com escopo pedagógico apresentam-se numericamente inferiores às disciplinas de cunho historiográfico, como evidencia o estudo de Coelho et al. (2022).
Por outro lado, é possível inferir que tais disciplinas ofertadas são ministradas, principalmente, por professores de outros institutos, via de regra os de educação. Essa segunda hipótese reafirma a segregação que a formação em História, tradicionalmente, promove em relação às reflexões de ensino de História. Como situa Erinaldo Cavalcanti (2018), há um outro desdobramento: o divórcio entre as reflexões desenvolvidas pela área e as demandas da educação básica, em particular dos desafios que a História enfrenta na escola.
Em seguida, outro resultado da pesquisa requer atenção. Trata-se da média regional de docentes que atuaram na educação básica e compõem os colegiados dos cursos. Dentre 183 docentes, 51% não desenvolveram experiências profissionais no nível básico de ensino, tornando ainda maior o lapso entre o saber de referência e as questões que afetam a escola. Nos 13 cursos investigados, apenas seis formam maioria de docentes que já foram professores da educação básica. Nos sete restantes, a média regional encontrada é mantida.
A experiência docente na escola básica é fator relevante quando considerado o Instrumento de Avaliação de Cursos de Graduação (IACG), documento vinculado ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O aparato legal em questão é produzido com base nas diretrizes formuladas pelo Ministério da Educação e relacionado ao Sinaes. O do- cumento ambiciona formular indicativos de qualidade dos cursos de graduação ofertados no país em sistemas públicos e privados de ensino, como analisaram Acioli e Oliveira (2020). Nele, a experiência dos docentes, vinculados ao curso de graduação, na educação básica é índice de qualidade no processo de avaliação.
Nesse sentido, tendo por base o IACG organizado em 2017, o documento possui como critério de avaliação do corpo docente dos cursos o grau de atuação desse colegiado na educação básica. O item é de avaliação obrigatória para os cursos de licenciatura, atribuindo maior ou menor conceito em função da relação estabelecida entre o corpo docente e a educação básica (Inep, 2017, p. 25). Nos casos investigados na pesquisa, 7 das 13 instituições adequar-se-iam ao menor conceito avaliativo no quesito aqui argumentado, uma vez que a maioria dos professores que forma futuros professores da educação básica não tem ou nunca construiu relação com esse estágio da edu- cação brasileira.
A questão que encaminhamos sugere que a formação ofertada guarda diferenças com o que prevê o aparato de avaliação do ensino superior no país, como também é um indicativo da segmentação entre o saber de referência e as demandas específicas da História quando aplicada à realidade da educação básica. Cabe destacar, finalmente, que a nossa análise buscou problematizar a relação entre o saber de referência e os demais saberes da docência nos processos de formação de professores de História na Amazônia. Ela não obsta os avanços protagonizados nesses cursos na ampliação do esforço destinado à temática regional. No que se refere à relação com a educação básica e a História que nela se opera, a aplicação do conhecimento sobre a trajetória histórica da região tem potencial para a promoção de importante deslocamento no currículo de História na escola. Tanto esse potencial quanto sua efetivação, no entanto, são objetos para reflexão exclusiva. Por ora, importa situar que, quaisquer que sejam os avanços, a formação de professores requer intensa e extensa articulação com a escola e suas demandas.