Pelos movimentos políticos intensificados nos últimos meses, a oposição à reforma do ensino médio vem se destacando, em ampla cadeia de demandas tornadas equivalentes (Laclau, 2011), mas nunca iguais. Arrisco dizer que esse movimento é mais amplo do que aquele instituído em contraposição à centralização curricular instituída pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Em alguma medida, tal amplitude é resultado de comunidades disciplinares que se sentem ameaçadas pela organização do currículo via itinerários formativos e questionam a produção de desigualdades em uma reforma que renuncia à universalização propondo uma base muito frágil para a diversidade. Tais comunidades aderiram ao movimento antirreforma, que, por sua vez, se capilarizou no tecido social, mobilizando artistas, produtores culturais e a sociedade em geral.
Também me oponho a essa reforma, mas defendo que tal oposição não pode ser desvin- culada da crítica à centralidade curricular estabelecida via BNCC e à consequente submissão da política de currículo aos resultados da avaliação. Ao se instituir tal centralidade, o currículo é submetido à pretensão de medir e comparar conhecimentos/padrões de aprendizagem para alcançar a medida e comparação de pessoas que supostamente dominariam ou não tais saberes (Popkewitz & Lindblad, 2016; C. Silva & M. Oliveira, 2023; Pereira, 2023), operando com o conhecimento como se fosse um objeto coisificado a ser captado, registrado e distribuído.
Na contraposição à reforma, vários trabalhos destacam as dificuldades relativas a sua implementação (Cássio & Goulart, 2022; Lopes et al., 2024; Tartuce et al., 2018). Tais dificuldades, por sua vez, vêm pavimentando caminhos para muitos estados aderirem às propostas de instituições privadas e filantrópicas, apresentadas como soluções frente ao que se identifica como deficiências da formação inicial dos professores e da rotina exaustiva da sua jornada de trabalho (Araujo & Lopes, 2021, 2023). Tal adesão não se faz sem embates e ressignificações (Lopes & Silva, 2021; Queiroz & Azevedo, 2022), que turvam ainda mais as relações público-privadas. Os conflitos associados à implementação da reforma são acentuados, na medida em que essa norma foi instituída em um contexto político de hegemonia ultraconservadora. Anos depois, com essa hegemonia desarticulada - mas deixando seus rastros nas relações sociais -, temos de lidar com a dificuldade de definir rumos e agir em outras articulações políticas.
Como um dos principais entraves à revogação da reforma, nem sempre enunciado, temos os investimentos realizados na sua implementação. Em maio de 2018, foram firmados os acor- dos de empréstimos entre o país e o Banco Mundial, no valor de US$ 250 milhões, no âmbito do Projeto de Apoio à Implementação do Novo Ensino Médio (NEM), mediante compromisso de efetivação desse projeto e prestação de contas desses valores por parte do novo governo federal (Fernandes, 2022). Dentre os entes fiscalizadores dessa implementação, está a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil, formada por meio da Rede Integrar1 (projeto desenvolvido pelo Tribunal de Contas da União [TCU] e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE]).
Nesse contexto de confrontos, houve a aprovação, na Câmara Federal, após tramitação no Senado Federal, do projeto que institui as mudanças na reforma (Projeto de Lei n. 5.230 de 2023, 2024), fruto de acordo entre o ministro da Educação e o relator do projeto na Câmara. Tal acordo se deu a despeito do forte movimento pela revogação das normas vigentes e com aparente apoio dos secretários de educação dos estados, que, seja qual for o resultado dessa tramitação, precisam reorganizar as atividades das redes públicas de ensino médio para 2025.
De forma geral, defendo que essa reforma vem sendo constituída por decisões políticas, realizadas em terrenos indecidíveis, em nome de uma mudança educacional projetada como necessária para formação de subjetividades políticas concebidas para o futuro que se desenha articulando demandas neoliberais e ultraconservadoras. Acompanhando Ball (2014), Brown (2019) e Gómez Villar (2022), refiro-me ao neoliberalismo não como um sistema econômico, mas como uma racionalidade que vem nos constituindo, bem como constituindo nossas relações com a vida. Na reforma do ensino médio, tais relações mostram-se mais evidentes na proposta de projeto de vida, foco deste artigo.
Sob minha coordenação, a pesquisa sobre essa reforma ainda está em curso (Fernandes, 2024; Figueiredo, 2024; Lima, 2024; Lopes, 2023a) e não se dedica exclusivamente ao texto das normativas legais em nível federal. Somam-se a esses textos as normas dos estados (Fernandes & Lopes, 2024) e a ampla circulação do sintagma projeto de vida em materiais didáticos e propostas metodológicas - vendidos ou oferecidos de graça em sites da internet -, textos de orientação curricular difundidos por instituições privadas e filantrópicas e instituições internacionais, tais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a OCDE, que compõem redes de políticas de currículo. O grupo de pesquisa opera com esse conjunto de textos como um corpus indefinido que, de forma imprevisível e incomensurável, vai contribuindo para a sedimentação de sentidos (Laclau, 1990), ao mesmo tempo que tais sentidos são submetidos a uma tradução/iteração (Derrida, 2005; Siscar, 2013), impossível de ser contida totalmente. O sintagma projeto de vida, à medida que é disseminado, vai incorporando outros sentidos, em uma inter-relação entre mesmidade e diferimento, sendo adiada sua significação plena.
Questiono a tentativa de ver a flutuação de sentidos no sintagma projeto de vida como sendo da ordem do equívoco ou impreciso, debruçando-me justamente na investigação de como tais flutuações são sempre suplementações diferenciais, efeitos de lutas políticas discursivas, em dadas relações de poder, na tentativa de produzir determinadas significações para os vínculos entre o currículo e a formação de subjetividades dos jovens.
Com essa perspectiva mais ampla servindo de ancoragem à argumentação aqui apresentada, focalizo neste artigo discursos que têm contribuído para que o sintagma projeto de vida carreie sentidos, de forma espectral, que sinalizam para a tentativa de regulação do futuro dos jovens criando um projeto moral de gerenciamento de suas vidas. Em uma abordagem teórica discursiva e desconstrucionista, argumento que o discurso do projeto de vida tenta instituir a impossível harmonia social. Com tal argumentação, questiono qualquer pretensão de definir a identidade/subjetividade do outro, mesmo que essa identidade/subjetividade seja calcada na ideia de uma vida voltada para o bem-estar social, ou para a felicidade do indivíduo, uma vez que tais registros acenam a uma impossível sociedade sem antagonismos e sofrimentos em um futuro que não pode ser programado. Concluo este texto apontando a importância de se deixar o futuro ao por vir e questionando a normatividade da proposta curricular para o ensino médio por intermédio do componente curricular projeto de vida.
Normatividade para um projeto de vida futura
No processo de luta política contra a reforma do ensino médio, chama atenção o fato de que muito se discute sobre a organização curricular em itinerários formativos, destacando os riscos de uma formação aligeirada (Silva et al., 2023) ou de uma individualização dos percursos formativos (Silva, 2019), ou mesmo defendendo a importância de um conjunto integrado de disciplinas escolares (Ferretti, 2018). Críticas nessa direção reverberam em posts nas redes sociais e reportagens nos veículos de comunicação. O questionamento aos projetos de vida, contudo, parece não ressoar com igual força na mídia e mesmo em trabalhos acadêmicos. Parece existir certa aceitação ou ao menos um silenciamento de tal proposta, se compararmos com os questionamentos dirigidos à organização por itinerários formativos, a despeito de os itinerários serem definidos na legislação como submetidos aos projetos de vida (Ministério da Educação [MEC], 2018a).
Talvez tal aparente aceitação esteja associada à positivação da necessidade de os jovens terem um projeto ou um propósito - termos não sinônimos, mas que são substituídos um pelo outro quando se trata de produzir orientações para a vida dos jovens. Neste momento em que a geração nem-nem (“Geração nem-nem”..., 2023) e a geração Z (Comportamento, atrasos..., 2024) geram preocupações em relação ao futuro da sociedade, mais facilmente se dissemina o discurso relativo à necessidade de conferir um rumo à juventude, não cessando a disputa em relação aos sentidos do que se entende por jovem, rumo e futuro.
O fato de o sintagma projeto de vida circular há muito tempo, mobilizando inclusive sentidos associados a dinâmicas progressistas, pode ter contribuído para sua positividade. Registros sobre o uso do sintagma projeto de vida já aparecem em documentos orientadores das políticas educativas brasileiras dirigidas a romper com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes, fortalecendo “o paradigma da proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente” (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2006, p. 13). Igualmente há registros do uso da expressão projeto de vida associada a processos formativos progressistas nos movimentos sociais rurais e nas relações entre educação e trabalho, apresentados à Constituinte de 1988 (Alves & Oliveira, 2020).
Talvez também por isso, nos embates que levaram ao substitutivo do projeto de lei, o foco principal de tensão tenha sido a carga horária prevista para as disciplinas obrigatórias. A emenda apresentada para os artigos concernentes ao projeto de vida apenas garantiu a inclusão do mundo do trabalho como elemento das oportunidades de construção de tais projetos (Parecer às emendas de plenário..., 2024).
Apesar de minhas críticas aos itinerários formativos (Lopes, 2019) e da grande dificuldade enfrentada pelas redes de ensino ao colocarem em prática tal organização curricular (Queiroz & Azevedo, 2022; Ferreira & Santos, 2024; Lopes et al., 2024; Silva et al., 2022), considero a introdução dos projetos de vida e sua posição medular da reforma (Fernandes & Lopes, 2024) um dos pontos mais problemáticos da atual proposta curricular para o ensino médio. Mais do que focar a inserção dos jovens no mercado ou reduzir a vida à formação para o mercado do trabalho precarizado, submetendo a educação à economia, nos termos do neoliberalismo incorporado pelas relações público-privadas, como muitos tendem a afirmar (Barbosa & Alves, 2023; Braggio & Silva, 2023; Costa & Caetano, 2021; Jakimiu, 2022), sustento que essa reforma visa a uma educação moral para gerenciar as subjetividades do futuro propulsionada pelo componente curricular projeto de vida. Em outros termos, é possível afirmar que, mais central do que a formação para o trabalho/mercado de trabalho é previsto ampliar “a percepção das possibilidades para o futuro” considerada “fundamental para garantir o sucesso na construção de seu Projeto de Vida” (MEC, 2019a, p. 13). Como afirmado na Orientação pedagógica para o trabalho com o projeto de vida enquanto componente curricular, esse componente “não deve ser confundido com escolha profissional, tampouco está desatrelado ao (sic) mundo produtivo, uma vez que auxilia o jovem a se conhecer, entender sua relação com o mundo e desenhar o que espera para si no futuro” (MEC, 2019b, p. 2, grifo meu).
No foco pedagógico do eixo empreendedorismo, a dimensão do trabalho é também mimetizada à trajetória pessoal, sinalizando que, por meio desse eixo, os jovens:
. . . são estimulados a criar empreendimentos pessoais ou produtivos articulados com seus projetos de vida, que fortaleçam a sua atuação como protagonistas da sua própria trajetória. Para tanto, busca desenvolver autonomia, foco e determinação para que consigam planejar e conquistar objetivos pessoais ou criar empreendimentos voltados à geração de renda via oferta de produtos e serviços, com ou sem uso de tecnologias. (Portaria n. 1.432, 2018, p. 4, grifo meu).
Ao mesmo tempo, é salientado que tal componente curricular “é capaz de incentivar, motivar e despertar a curiosidade dos estudantes no sentido de direcioná-los para a construção e realização de seus sonhos” (MEC, 2019b, p. 3). O projeto de vida é “uma trajetória na qual o estudante, ao conhecer a si mesmo, é capaz de se situar no mundo, reconhecer as diversas possibilidades e então elaborar um projeto para si” (MEC, 2019b, p. 4). O conhecimento de si e do outro é inserido em um planejamento que visa a “olhar para a Vida como um grande Projeto” (MEC, 2019b, p. 10).
Há constante referência aos desafios do século XXI, e, nas competências gerais da educação básica, destaca-se que as escolas devem:
Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. (MEC, 2018a, p. 11).
Corroborando tal visão abrangente de projeto de vida, é destacado no texto da área de Linguagens e suas Tecnologias da BNCC para o ensino médio que:
No escopo aqui considerado, a construção de projetos de vida envolve reflexões/definições não só em termos de vida afetiva, família, estudo e trabalho, mas também de saúde, bem- -estar, relação com o meio ambiente, espaços e tempos para lazer, práticas corporais, práticas culturais, experiências estéticas, participação social, atuação em âmbito local e global etc. (MEC, 2018a, p. 490).
Como apontam Macedo e Silva (2022), por meio do projeto de vida é introduzido na escola um conjunto de comportamentos que remetem ao nível individual as soluções para proble- mas sociais históricos e estruturais, por meio das competências socioemocionais e habilidades interpessoais. Ao mesmo tempo, como destacam S. Silva e G. Oliveira (2023, pp. 17-18):
As fantasias do “protagonismo juvenil”, da “inserção no mercado”, da “virtuose tecnológica” e da “participação cidadã” submissa à ordem social vigente têm operado de modo a promover a idealização de um padrão rígido de produção de sentidos e subjetividades, possibilitando o encobrimento e a denegação das significativas falhas e contradições desse padrão.
O projeto de vida torna-se, então, central à própria existência de uma formação/educação integral (que pode ou não incluir o tempo integral) e à disponibilização de itinerários formativos. É sintagma de um dispositivo regulador que busca flexibilidade, liberdade de escolha dos alunos, autonomia e foco na ampliação do interesse dos jovens pela escola. Significados vinculados a propostas curriculares críticas ressoam na proposta de formação para um projeto de vida - consciência crítica, responsabilidade, cidadania, participação, solidariedade, ética, formação para o mundo do trabalho, compromisso com a sustentabilidade e a defesa do meio ambiente -, também contribuindo para sua positividade. Esses significantes se articulam, produzindo discursos híbridos, com significados indicativos de que o estudante deve ser capaz de se conhecer, se cuidar, se apreciar, ser responsável, flexível, resiliente, colaborativo, analítico-crítico, produtivo, empático para “o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação” (MEC, 2018a, p. 10), exercitando “determinação, perseverança e autoconfiança para realizar seus projetos presentes e futuros” (MEC, 2018b, p. 23). Torna-se necessária a autogestão para ter sucesso na vida, pois, como sinaliza Belleza (2023, p. 4) ao questionar esse componente curricular, “uma vida sem governo, sem direção, sem projeto, sem autogestão não pode ser uma boa opção na escola”.
O processo de autogestão se aprofunda a ponto de se considerar possível operar com um índice de felicidade humana que atribui indicadores para cada um dos aspectos da vida: “bem-estar psicológico, saúde, uso do tempo, educação, cultura, meio ambiente, governança e padrão de vida” (MEC, n.d.).2 Esse índice de felicidade baseia-se na compreensão de que “a realização das atividades direcionadas à confecção do projeto de vida afeta, proporcionalmente, a sensação de felicidade. Pode-se afirmar que planejar a vida é evitar o sofrimento” (MEC, n.d.).
Como a lógica planificada exige avaliação, é também afirmado, no mesmo texto, que o projeto de vida pode contar com avaliações contínuas que identifiquem os índices de: cooperação; comunicação; partilha/ações direcionadas ao compartilhamento; escuta; prazer; interação; felicidade. A meta do componente curricular projeto de vida se reafirma como um projeto de subjetivação do estudante, a ponto de supor “o desenvolvimento de tecnologias psicossociais de controle moral, adaptação e ajustamento social” (S. Silva & G. Oliveira, 2023, p. 7), na tentativa de racionalizar e tornar as próprias sensações produtivas e ajustadas.
A ênfase da reforma na escolha de itinerários, competências, metas e estratégias para a juventude se formar voltada ao futuro almejado remete ao registro neoliberal de que a liberdade (e não a justiça social ou a democracia) é o significante central em jogo (Brown, 2019). A experiência de liberdade é um dos pontos que garante culturalmente a hegemonia do neoliberalismo, articulando liberdade do mercado com liberdade do indivíduo para decidir sua vida e ter autonomia perante o Estado, vivendo do seu trabalho e fazendo do trabalho sua forma de vida.
Como analisa Gómez Villar (2022), com base em Foucault, o fato de o trabalho invadir a vida não é novo. O que há de novo no neoliberalismo é que “a vida é posta a produzir, se reproduz e se estende no espaço indefinido das relações entre os sujeitos e nas redes de ação comunicativa” (Gómez Villar, 2022, p. 4, tradução minha). Nesse sentido, se instaura uma nova governamentalidade em que as pessoas regulam a si mesmas. A vida se torna subjetiva e viver passa a ser o gerenciamento de sua própria vida.
Em tal interpretação, tentar fazer com que estudantes organizem seus projetos de vida é uma forma de direcionar os jovens para a gestão da própria existência e de seus modos de ser. Seguindo com Gómez Villar (2022), já não é necessário formar uma pessoa para que trabalhe em uma empresa ou monte seu negócio individual. Basta, a essa pessoa, comportar-se como tal, adotar sua lógica, suas atitudes, sua forma de se relacionar com o mundo, consigo mesmo e com os outros, trabalhando por sua felicidade. “O indivíduo, entendido como empreendedor de si mesmo, é o ápice do capital como máquina de subjetivação” (Gómez Villar, 2022, tradução minha). É nessa perspectiva que se institui o empreendedorismo de si, voltado não apenas para atender às estruturas do processo econômico, mas com foco nas condições de produção da vida em um cenário volátil e sob constante risco no presente. Resta, a esse sujeito, tentar regular seu futuro.
Há um esvaziamento do campo político, a marginalização de discussões educacionais importantes, relativas aos desafios contemporâneos, e a simultânea indução ao enfoque em aspectos morais e emocionais no nível individual. Ao mesmo tempo, é engendrado o apagamento dos conflitos e antagonismos (Mouffe, 2018). O neoliberalismo, como racionalidade (Brown, 2019), compõe um imaginário que envolve o Estado em um alinhamento com as demandas do capital, instituindo discursos que buscam reforçar a sensação de que sempre foi assim, de que as formas de atuação não são contingentes, mas, pelo contrário, são tanto necessárias quanto obrigatórias. Como racionalidade de governo, o neoliberalismo institui uma série de valores, práticas e imaginários sobre o presente e o futuro.
As formas de regulação e governança instituídas são expressas na nova filantropia da educação (Ball, 2014), por meio da qual as empresas, e suas organizações e institutos privados e filantrópicos, sugerem e criam demandas pelo desenvolvimento de diagnósticos e das correspondentes soluções para problemas educacionais (Araujo & Lopes, 2021, 2023; Gigante & Lopes, 2024; Shiroma, 2024). Afinal, as desejadas mudanças nas subjetividades são, sobretudo, empreendidas via políticas educativas. São também essas políticas que desempenham um papel na obtenção de resultados, demonstrando em nível nacional e internacional a capacidade de o país atingir objetivos globais.
Tais redes políticas seguem então suplementando a normatividade para o ensino médio por meio de textos e materiais didáticos orientadores de como colocar a reforma em prática. No caso do componente curricular projeto de vida, o protagonismo do Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE) é destacado (Macedo & Silva, 2022; Queiroz & Azevedo, 2022; S. Silva & G. Oliveira, 2023). Como já sinalizado em Fernandes e Lopes (2024), o ICE elaborou modelos pedagógicos para o ensino médio em período integral, como a Escola da Escolha e a Pedagogia da Presença, que referenciam propostas curriculares nos estados Acre, Alagoas, Amapá, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Paraná e Pernambuco.
O Porvir e o Instituto Iungo também lançaram, em 2021, um planejador de aulas exclusivo para o projeto de vida3 (MEC, n.d.), pelo qual a lógica de o estudante identificar sonhos, sua história e interesses visa a planejar o amanhã e gerenciar as metas para construir seu futuro sem conflitos. Metáforas, tais como “semáforo do comportamento” e “equação do sucesso”, são mobilizadas para o projeto de desenvolvimento pessoal que, como muitas vezes reiterado, não visa ao sucesso financeiro, mas à proatividade empreendedora para “perseverar em situações de estresse, frustração, fracasso e adversidade”.
Os projetos de vida foram igualmente incorporados em livros didáticos especificamente dirigidos ao tema. Como destacado por Pontes (2022), muitos dos autores das obras apresentadas ao Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) 2021 realizam ou realizaram trabalhos para instituições do terceiro setor que se relacionam com o setor educacional, tais como a Fundação Lemann, o Instituto Ayrton Senna, o Instituto Singularidades, a Junior Achievement, a Khan Academy, e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), mesmo quando publicados por editoras tradicionais no mercado editorial. O trabalho aponta ainda o quanto os avaliadores do PNLD identificaram, nessas mesmas obras, a ausência de discussões mais efetivas sobre questões de gênero, sexualidade, preconceito racial, homofobia, e demais temáticas relativas à diferença e antagonismos identitários.
Os resultados de Silva (2023) parecem corroborar tal visão ao destacarem, após o exame de três coleções didáticas, a centralidade das competências socioemocionais, voltadas para o autoconhecimento de seus sentimentos e para o modo como os estudantes lidam com eles. Em alguns desses livros (Medina & Wasserman, 2020), em linguagem atraente que busca se conectar a demandas coletivas atuais, tais como a responsabilidade ambiental, a diversidade cultural e as novas tecnologias, o jovem é estimulado a realizar um diagnóstico de si, na relação com o meio em que vive, para planejar seu futuro. É defendida a necessidade de uma vida com propósito, para alcançar objetivos que satisfaçam desejos pessoais, tendo o coletivo por referência. Nesse livro, não basta imaginar o futuro, mas traçar metas de desenvolvimento pessoal e de aprendizagem. São destacadas as limitações das escolhas em função do contexto em que se vive, ao mesmo tempo que se salienta que “não escolher significa deixar seu futuro nas mãos de outras pessoas” (Medina & Wasserman, 2020, p. 74).
Diante do medo e da insegurança dos jovens em relação ao futuro - desemprego, depressão e desesperança -, a solução concebida é a de predefinir como esse futuro será, por meio da planificação do empreendimento de si. Tenta-se fazer do projeto de vida na reforma do ensino médio a formação para boas escolhas em relação ao futuro (Sanz, 2019). Tais escolhas, na interpretação aqui proposta, são constituídas pela sedimentação de discursos sintonizados com a formação de subjetividades associadas a determinados valores supostos como capazes de normatizar o futuro que se deseja. O projeto de vida torna-se o projeto de organizar o self dos estudantes para que eles possam gerenciar suas vidas, em um mundo sem garantias, mas que se quer governado em uma dada direção, por meio das ações dos jovens que assumirão vidas com propósito.
Refiro-me à sedimentação no sentido de Laclau (1990): discursos mobilizados em um processo catacrético, nos quais, em dadas relações de poder, há o apagamento das contingências de sua produção e, simultaneamente, do poder que possibilitou tal apagamento. Tais práticas discursivas produzem significados, supostamente naturais e cristalizados, e subjetivam os atores sociais por intermédio de uma ampla cadeia de equivalências e de substituições de significantes que em seu movimento transformam certas ideias em uma conceitualidade instituída como senso comum. É nesse momento, conclui Laclau (1990), que a sedimentação se torna como uma objetividade, mera presença.
Como discute Brown (2019), o neoliberalismo, ávido por afastar a política dos mercados e habilitar a moral e o mercado para governar e disciplinar os indivíduos, contribuiu para afastar a política de todas as esferas da vida cultural e social, demonizando o social e a democracia. Nesse processo, se desenvolve a articulação entre demandas neoliberais e demandas ultraconservadoras com efeitos catastróficos que se mostram como uma criação frankensteiniana inédita.
Na tentativa de contribuir para o questionamento dos discursos do empreendedorismo de si associados aos projetos de vida, procuro explorar, na próxima seção, a sedimentação de discursos que operam pelo bem-estar social no futuro, com a hipótese de que favorecem a entrada da Psicologia Positiva na teoria curricular. Defendo que projetos de futuro, em fluxos indeterminados e sem origem definida, em sucessivas iterações do sintagma projeto de vida, vêm constituindo a normatividade curricular para a formação de subjetividades ajustadas socialmente e voltadas para uma sociedade harmônica, sem antagonismos e sem conflitos.
Contribuições para dessedimentação de discursos em defesa dos projetos de vida
Como já discuti anteriormente (Lopes, 2015), há sempre um conjunto de práticas sedimentadas que orientam decisões políticas, ainda que tenhamos de considerar que as decisões também modificam sedimentações, impedindo seu fechamento último. Toda normatividade é decorrente de decisões orientadas por sedimentos sociais e pelas comunidades criadas - subjetivadas - em função dessas mesmas decisões. Na medida em que acompanho Derrida (1988) no entendimento de que a linguagem é um sistema de estruturas-traços, há sempre iteração e tradução de qualquer texto, mantendo um mínimo resto de significado (minimal remainder of meaning) que garante seu reconhecimento em diferentes contextos.
Considerando o registro pós-estrutural, não há o momento em que se encontre uma presença exterior à linguagem que faculte o fechamento da significação: não há uma propriedade ou um objeto que sustente a finalização inalcançável. Só há, simultaneamente, mesmidade e alteração de sentido, constante tradução sem texto de origem. A linguagem e seus jogos nos tornam imersos em uma flutuação de sentidos no significante sujeita às relações de poder que limitam temporária e precariamente tal flutuação. É nessa leitura que a reativação de discursos se mostra como uma dessedimentação, expressando a natureza contingente e histórica do que se tenta apresentar como objetividade (Laclau, 1990).
Investigar os discursos que buscam fixar um significado para o sintagma projeto de vida, ou mesmo para o sintagma projeto curricular, não visa a estabelecer uma relação de causa e efeito entre as decisões que levaram à produção de orientações curriculares. Diferentemente, quero ressaltar a disseminação de sentidos diferenciais, visando a contribuir para investigações que tentam entender como determinadas articulações favorecem a sedimentação do que se nomeia hoje projeto de vida nas propostas curriculares (Fernandes, 2024; Figueiredo, 2024).
Mesmo porque o discurso de que o nível médio de ensino carece de maior relação com o cotidiano da juventude, seja em benefício da aprendizagem ou da motivação, não é novo e algumas vezes se estabeleceu por meio da defesa de um vínculo do currículo com o projeto de vida dos estudantes. O parecer do projeto de Resolução das Diretrizes Curriculares Nacionais já apontava nessa direção, dizendo-se apoiado em inúmeras pesquisas educacionais (Parecer CNE/CEB n. 5, 2011). Também nesse mesmo ano, a representação brasileira da Unesco elaborou protótipos curriculares, para o ensino médio e para o ensino médio integrado à educação profissional, nos quais é previsto, ao final do curso, um projeto de vida e sociedade, em uma organização curricular “que permite que a elaboração do projeto acompanhe e se apoie no conhecimento da habilitação profissional escolhida” (Unesco, 2011, p. 18). A concepção desse projeto foi mais bem explicitada no documento dessa mesma representação, publicado dois anos depois, no qual se defende, com base nas diretrizes curriculares então vigentes e em registros da perspectiva histórico-crítica, que o ensino médio precisava de um projeto que superasse a dualidade entre formação específica e formação geral, deslocando “o foco dos seus objetivos do mercado de trabalho para a pessoa humana, tendo como dimensões indissociáveis o trabalho, a ciência, a cultura e a tecnologia” (Regattieri & Castro, 2013, p. 39, grifo meu).
Nesses documentos, o significante projeto mobiliza sentidos de interdisciplinaridade, currículo integrado, temas geradores, eixos articuladores, educação/formação (humana) integral, acenando que
. . . a antiga proposta pedagógica de “ensinar a aprender” ganha novo impulso, trans- formando-se não apenas em uma necessidade socioeconômica, mas também em parte do projeto pessoal dos estudantes. Além disso, observa-se o crescimento do setor informal da economia, o que impõe aos jovens mais uma tarefa: que “aprendam a empreender”, além de dominarem um amplo repertório cultural. (Regattieri & Castro, 2013, p. 7, grifo meu).
O significante projeto assume o caráter de um trabalho-síntese de uma trajetória, com orientações para a profissão futura, buscando maior vínculo entre o ensino médio e a educação profissional (Figueiredo, 2024), ora visando a uma adequação social, ora buscando a transformação do social. Nessas primeiras referências, não há indicação de o projeto de vida ser um componente curricular e tampouco há referências à Psicologia Positiva, desenvolvida no Centro de Estudos sobre a Adolescência da Universidade de Stanford (Estados Unidos), coordenado por William Damon, que vem conferindo estofo à proposta brasileira desse componente curricular, por meio de sua noção de uma vida com propósito.
Na Psicologia, internacionalmente, tal noção circulava associada à teoria dos modelos organizadores de pensamento, ao propósito na vida e aos elementos de uma boa vida, com Martin Seligman e William Damon. No Brasil, fez parte de propostas de educação integral que estão em prática desde muito antes da reforma do ensino médio ser iniciada. Fodra e Nogueira (2017) relatam a experiência com projetos de vida nas escolas de ensino médio do Programa Ensino Integral (PEI), implantado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, inicialmente em 16 escolas-piloto de ensino médio, em 2012, e, na época da elaboração do artigo, em 308 escolas em tempo integral, nas três etapas da educação básica. Essa proposta, ainda que não considere todos os aspectos do projeto vida, inseridos posteriormente na reforma do ensino médio, tais como a menção a uma educação moral e à felicidade, faz referência ao entendimento de que o “Projeto de Vida é simultaneamente o foco para onde devem convergir todas as ações da escola e a metodologia que apoiará o estudante na sua construção” (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 2012, p. 14) e considera haver “uma relação necessária entre os sonhos e as realizações humanas com a responsabilidade de se evitar, com as ações educativas, que jovens de toda uma geração percam a capacidade de sonhar” (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 2012, p. 18). Nesse sentido, apesar de também se apoiar em Damon, incluído na bibliografia, e de mencionar a necessidade de formar valores, remetendo à formação para o futuro, concebe o projeto de vida como motivação e registra a formação para uma excelência acadêmica e a possibilidade de o estudante se tornar “competente para compreender gradualmente as exigências do novo mundo do trabalho e preparado para a aquisição de habilidades específicas requeridas para o desenvolvimento do seu Projeto de Vida” (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 2012, p. 15). Com tais referências, há priorização de conteúdos e competências em relação à regulação dos afetos.
Tal inserção pode ter sido propiciada pela atuação de Valéria Araújo, doutora em Psicologia e livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), com tese sobre modelos organizadores do pensamento, na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo nessa mesma época, ministrando um curso sobre gestão de currículo para professores coordenadores. Segundo a autora, a proposta de uma educação moral, inserida transversalmente no currículo, é voltada ao desenvolvimento e à “manutenção de estados emocionais positivos, pessoas alegres, satisfeitas e felizes” (Araújo, 2000, p. 151) e faz contraponto à visão exclusivamente racional da justiça e à separação entre aspectos cognitivos e afetivos na escola, estando associada a um possível conjunto de valores considerado universalmente desejável e importante para a coletividade.
Tal associação entre o individual e o coletivo, o particular e o universal, é registrada em muitos dos documentos curriculares pautados pela Psicologia Positiva sem que seja visível uma discussão sobre as conexões entre esses polos, como se uma sociedade feliz pudesse ser resultado apenas da soma de cidadãos felizes, desconsiderando inter-relações, antagonismos e conflitos em diferentes contextos sociais. Como discute Clarke (2018), a perspectiva neoliberal, como racionalidade que vem nos constituindo, desconsidera que, por maiores que sejam as ações normativas, o indivíduo nunca se ajusta ao social plenamente. Tal desajuste expressa uma cisão mais profunda entre o universal e o particular: qualquer tentativa de identificar o sujeito universal com um sujeito histórico ou cultural particular fracassa diante do vazio constitutivo do sujeito. Negando essa cisão, a política no registro neoliberal tenta inserir uma lógica racional nos processos políticos, apagando conflitos contextuais em nome de uma harmonia social concebida como necessária, seja ao desenvolvimento econômico, seja à ascensão de indivíduos ajustados à sociedade, seja às articulações dessas finalidades. Trata-se de uma harmonia impossível, na medida em que o poder é a própria condição de (im)possibilidade do social (Laclau, 1990).
Esse mesmo movimento de tentativa de produzir uma sociedade ajustada pode ser identificado em outro conjunto de discursos que também parecem ter se sedimentado diferencialmente na atual proposta de projeto de vida fazendo referência ao bem-estar social. Tal discurso é difundido por agências internacionais em torno de políticas que afirmam trabalhar pelo fim das desigualdades, defesa de direitos e sustentabilidade ambiental. A valorização de um propósito na vida associado à ideia de bem-estar é registrada em documentos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico neste século. A ideia geral é de que o bem-estar é mais do que felicidade: remete aos “bons estados mentais, incluindo todas as diversas avaliações, positivas e negativas, que as pessoas fazem das suas vidas e das reações afetivas das pessoas às suas experiências” (Organisation for Economic Co-operation and Development [OECD], 2013, p. 10, tradução minha), focando a possibilidade de medir esse bem-estar, o que “exige uma combinação de indicadores subjetivos e objetivos e medições em uma variedade de outras dimensões” (OECD, 2013, p. 185, tradução minha, grifo meu).
Como salienta Lingard (2016), em 2008 a OCDE introduziu bem-estar e preocupações a respeito de desigualdade e coesão social, além do produto interno bruto, como indicadores de crescimento dos países. Desse modo, em suas reconhecidas ações em busca de medir a qualidade e a quantidade do capital humano dos países, produzindo “indicadores da presumida competitividade da economia nacional dentro da global” (Lingard, 2016, p. 614), parece ter se inserido a medida da capacidade de os sujeitos se sentirem bem e adequados ao meio em que vivem.
Associadas à valorização do bem-estar social, há referências à inclusão do propósito e dos valores, sendo extensa a preocupação com a confiabilidade, validade e utilidade das medidas do bem-estar subjetivo, que de alguma forma se sedimentam nos atuais documentos da OCDE vinculados à Agenda 2030 (Silva & Fernandes, 2019). Como os estudos sobre políticas curriculares vêm afirmando há anos (Rizvi & Lingard, 2013; Ball, 2014), não há reprodução de orientações de agências internacionais no contexto da definição de textos, nem temos reprodução de tais orientações nas escolas. Tais discursos, contudo, são iterados espectralmente, produzindo subjetividades e efeitos em diferentes contextos sociais.
Entre os motivos do uso crescente do termo projeto de vida, até mesmo na literatura acadêmica, parece estar a percepção de um cenário social em constante transformação, que encontra, na ideia de planejamento de vida futura, um catalisador de desenvolvimento sustentável e um senso de propósito na vida e de pertencimento (OECD, 2013). Tais diagnósticos tendem a corroborar o desejo de que a educação faça frente a esses desafios. Não por meio da discussão crítica sobre o presente, visando a outras possibilidades para o porvir. A solução é formar identidades que sejam elas mesmas, simultaneamente, resilientes em relação aos riscos e dificuldades e aptas a produzir uma harmonia social no futuro.
Vigoram tanto um discurso de antecipação do futuro (Freitas & Coelho, 2019) quanto um discurso que busca investir em uma bússola da aprendizagem sintonizada com um projeto de futuro (Silva & Fernandes, 2019). É reiterada a regulação do porvir, a urgência de formar para uma vida produtiva, propiciada pelo trabalho e ação social de pessoas felizes e ajustadas, visando ao bem-estar da coletividade. Tal registro pode ter favorecido a equivalência entre discursos do bem-estar social por intermédio de uma vida com propósito e discursos da Psicologia Positiva: não sendo iguais, ambos se antagonizam com o discurso de um mundo em risco.
A partir de certo ponto de inflexão, merecedor de maiores investigações relativas às contingências e articulações políticas que propiciaram tal inflexão (Fernandes, 2024), tais discursos adentram a educação por meio da criação de uma Educação Positiva. De acordo com Cintra e Guerra (2017), esse termo começou a circular também em 2008, a partir de discussões de Martin Seligman e da equipe da Geelong Grammar School (GGS), escola australiana que foi a primeira a implementar a Psicologia Positiva em toda a instituição. Tal Educação defende que “as habilidades para o bem-estar podem e devem ser ensinadas nas escolas junto às tradicionais habilidades para a qualificação e realização profissional” (Cintra & Guerra, 2017, p. 507), com base na ideia de que o desenvolvimento do bem-estar não apenas combate problemas de saúde mental ou física como melhora os índices de aprendizagem. Nesse artigo em defesa da Psicologia e da Educação Positiva, as autoras destacam a pouca penetração do tema no país na época. Há indicações, todavia, de que, a partir daí, essa difusão se ampliou, como se a Psicologia e a Educação Positiva fossem a resposta à produção tanto das pessoas felizes quanto dos indicadores de bem-estar social.
A conclusão de que os alunos aprendem qualidades desejadas via escolarização e os professores facilitam o aprendizado dos estudantes, assim como a preocupação em investigar se o propósito de vida pode ser usado como uma “ponte” entre a formação e as vidas futuras dos estudantes (Tirri et al., 2016), reverberou mais amplamente nos anos subsequentes. A menção à apresentação dos artigos desse número especial do Journal of Education for Teaching (JET) não visa a estabelecer uma origem dessa reverberação, mas registrar um dos momentos de disseminação acentuada da Psicologia Positiva na educação, ao mesmo tempo que sua difusão na Psicologia também se ampliava (Grant, 2017). Como destacado no mesmo texto do JET:
Muitos dos autores desses artigos são colaboradores em um estudo de pesquisa multi- nacional de três anos, financiado pela John Templeton Foundation, Estados Unidos, sobre como as experiências educacionais podem ajudar os alunos a encontrarem um senso de propósito para suas vidas. Os países envolvidos são Estados Unidos, Brasil, Coreia do Sul, China, Espanha e Finlândia. (Tirri et al., 2016, p. 528, tradução minha).
A John Templeton Foundation tem vínculos claros com o conservadorismo religioso e se insere na ampla cadeia de equivalência entre demandas ultraconservadoras hoje no mundo (Bains, 2011), se dedicando a construir experiências educacionais que possam ajudar os alunos a encontrarem um senso de propósito para suas vidas. Essa mesma instituição tem realizado o financiamento ao Institute for Unlimited Love.4 Segundo os textos divulgados no site institucional (por exemplo, Law, 2023, tradução minha), as catástrofes do século XX foram geradas pelos problemas morais. A argumentação é dirigida aos conservadores e religiosos que consideram que o “crime e a imoralidade estão agora fora de controle” porque “fomos longe demais”, em uma “mudança dramática na direção liberal”. O autor, Stephen Law,5 busca diferenciar o liberalismo - considerado defensável perante o autoritarismo - do relativismo moral, defendendo haver “evidências empíricas que sugerem que educar os jovens para pensar de forma crítica e independente proporciona a nossa melhor defesa contra catástrofes morais”. Só assim é possível “proporcionar imunidade à doutrinação ideológica”, dando “aos jovens as competências de pensamento crítico e a independência de espírito necessárias para detectar e resistir à doutrinação”. Tal argumentação conecta a defesa de um Novo Iluminismo, forte entre alguns críticos da pós-verdade (Lopes, 2023b), com a formação de valores morais que teriam sido perdidos ao longo dos tempos.
O que parece ser mais recente é a capilarização desses discursos nas políticas de currículo para o ensino médio no Brasil visando a uma dada arquitetura curricular, um espaço-tempo específico para a construção de uma vida com propósito, voltada para o bem-estar pessoal e coletivo, via uma educação moral sedimentada no componente curricular projeto de vida. Talvez tal sedimentação tenha sido favorecida por esse sintagma já circular no Brasil com outros sentidos e finalidades, como destaquei inicialmente, mas também voltado para a formação de identidades para o futuro da sociedade. De todo modo, defendo que tal sedimentação se sustenta por buscar produzir tanto o porvir ajustado à racionalidade neoliberal quanto o porvir que responde a demandas conservadoras.
No processo de constituir um método de educar para a felicidade, capaz de sustentar o empreendedorismo de si, o significante vida com propósito foi aos poucos substituído metonimicamente pelo significante projeto de vida, já em circulação, ao mesmo tempo que o significante bem-estar social se associa à felicidade individual. Se o foco do bem-estar parece visar ao coletivo e aos desafios do desenvolvimento social, a Psicologia Positiva foca o indivíduo e suas crises, tornando o efeito sobre o coletivo quase uma consequência natural. Ressalto que tais movimentos não são apenas linguísticos, mas expressam articulações políticas, práticas discursivas constituintes do imaginário educacional.
Em decorrência dessa arquitetura curricular, livros didáticos são produzidos, orientações pedagógicas são elaboradas, nos sistemas público e privado, multiplicando seus efeitos de forma imprevista e encontrando um terreno fértil para sua disseminação, especialmente a partir de 2018, com o avanço dos movimentos ultraconservadores que aceleraram as mudanças no ensino médio por meio da Medida Provisória que instituiu a reforma. Não causa espanto, por exemplo, que seja possível identificar a referência ao projeto de vida, voltado para as metas de ter felicidade na vida profissional e na vida pessoal, em correntes religiosas, tais como a Canção Nova,6 comunidade carismática católica, fundada pelo padre Jonas Abib, que apoiou a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República.
Não me cabe argumentar sobre os efeitos desse discurso psicológico no âmbito da própria Psicologia. Limito-me aqui a discutir o quanto o retorno a uma disseminação da Psicologia, via Psicologia Positiva, na teoria curricular retoma o projeto de instituir uma racionalidade para a teoria curricular e opera no registro de uma formação educacional identitária fixa, fundamentada em tal racionalidade, como pode ser lido em Silva e Danza (2022), apoiados na Psicologia Positiva. Tais identidades encarnariam a transformação social pretendida e, consequentemente, facultariam bem-estar no porvir, por meio do gerenciamento da vida dos jovens, que viverão em um mundo em risco, caso não se preparem para ter os comportamentos, valores, competências e habilidades para tornar o mundo apaziguado e produtivo, coerente com a racionalidade neoliberal.
Conclusão: Deixando o porvir ao por vir
Como discuti anteriormente, em defesa de uma normatividade vazia, aberta às disputas de poder (Lopes, 2015), a educação é concebida, em diferentes teorias, como formadora de sujeitos e se conecta à normatividade, muitas vezes adjetivada como ética (Homem, 2024) - ou moral, como aqui indicado -, seja em um registro instrumental ou compreensivo. Argumento que tal normatividade vem sendo produzida hoje pela sedimentação dos discursos de bem-estar e vida com propósito, articulados aos discursos da Psicologia Positiva, em nome da educação moral produtora de subjetividades capazes de projetar um futuro que se pretende harmônico, via um projeto de vida.
Considerando a contextualização radical de toda política, não há garantias de que as prescrições curriculares atribuídas ao projeto de vida sejam praticadas tal e qual foram normatizadas. Pelos resultados preliminares das pesquisas de meu grupo, as proposições para esse componente curricular vêm sendo traduzidas nos estados de diferentes e conflitantes maneiras, algumas delas parecendo distantes dos efeitos regulativos da reforma (Fernandes & Lopes, 2024; Lopes & Silva, 2021). Além disso, ainda são/serão submetidas a outros deslocamentos nas escolas, os quais merecem ser investigados para entender as suplementações produzidas pela reiteração do sintagma projeto de vida (Lima, 2024).
Na medida em que as tentativas de ordenamento, tendencialmente hegemônicas pela ampliação das equivalências discursivas (Laclau, 2011), não bloqueia de uma vez por todas a tradução e o diferir na política de currículo, vale investir radicalmente na disseminação de sentidos políticos outros que permita manter aberto o jogo de poder que disputa a significação da normatividade curricular. Reitero, contudo, a importância de exercer o questionamento às propostas que tendem a conceber o currículo do ensino médio como formador de indivíduos jovens que sejam capazes de um empreendedorismo de si voltado para um projeto moral suposto como capaz de construir um futuro sem conflitos. Penso que tal questionamento, reativando sedimentações, é também uma possibilidade de entrar na disputa por outros sentidos na política, apostando em identificações diferenciais.
Nesse processo, tenho investido na investigação de articulações entre demandas ultraconservadoras e liberais que estão possibilitando a hegemonização discursiva da educação moral da juventude. Por essas articulações, vão sendo suplementadas ideias de projeto e transformação social, voltadas para o trabalho/mercado de trabalho, associadas aos valores de uma educação positiva e um empreendedorismo de si, na tentativa de forjar subjetividades ajustadas a uma dada ordem tão mais facilmente tratada como positiva quanto mais se refere à felicidade e ao bem-estar social. Pela argumentação aqui desenvolvida, tal visão positiva conferida ao projeto de vida advém justamente do apagamento de antagonismos. Saliento, como Mouffe (2018) destaca, que esse apagamento pode ser o catalisador da violência, uma vez que a política democrática deve pressupor o agonismo e o enfrentamento de conflitos.
Diante das aflições, conflitos, desespero e tragédias nossas de cada dia, contudo, mais facilmente vem funcionando a fantasia (Clarke, 2018) pela qual se institui o diagnóstico de um futuro de horror a ser bloqueado por um projeto salvacionista para a vida. Mesmo que seja uma vida programada, planejada, reduzida a metas e indicadores, destituída de singularidades diferenciais, destituída, enfim, da vida a ser vivida na imprevisibilidade das relações com o outro, deixando o porvir ao por vir.