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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.54  São Paulo  2024  Epub 31-Dez-2024

https://doi.org/10.1590/1980531411410 

ARTIGOS

RESISTÊNCIAS INSTITUCIONAIS E ANTIGÉNERO À IGUALDADE DE GÉNERO NA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL

INSTITUTIONAL AND ANTI-GENDER RESISTANCE TO GENDER EQUALITY IN EDUCATION IN PORTUGAL

RESISTENCIAS INSTITUCIONALES Y ANTIGÉNERO A LA IGUALDAD DE GÉNERO EN LA EDUCACIÓN EN PORTUGAL

RÉSISTANCES INSTITUTIONNELLES ET ANTI-GENRE À L’ÉGALITÉ DE GENRE DANS L’ÉDUCATION PORTUGAISE

Rosa Filomena Brás Lopes MonteiroI 
http://orcid.org/0000-0002-2429-5590

IFaculdade de Economia da Universidade de Coimbra (UC), Coimbra, Portugal; rosa.monteiro@fe.uc.pt


Resumo

Este artigo examina as resistências à implementação de políticas de mainstreaming de género na educação em Portugal, destacando as dinâmicas de poder e as inefetividades que têm dificultado a integração de uma perspetiva de género no sistema educativo. Fá-lo analisando informação secundária, produzida no âmbito de avaliações de instrumentos de política, de documentos oficiais e da análise de controvérsias públicas. A partir desses dados, e com base num caso exemplificativo, explora como a emergência dos movimentos e forças antigénero tem condicionado e contestado as políticas de igualdade de género. O artigo discute ainda como a judicialização e a mediatização de casos controversos têm contribuído para enfraquecer o impacto das políticas de mainstreaming de género no setor da educação.

Palavras-Chave: POLÍTICAS PÚBLICAS; GÉNERO E EDUCAÇÃO; IGUALDADE ENTRE GÉNEROS; EDUCAÇÃO

Abstract

This article examines the resistance to the implementation of gender mainstreaming policies in education in Portugal, highlighting the power dynamics and inefficiencies that have hindered the integration of a gender perspective in the education system. It does so by analysing secondary information produced in the context of evaluations of policy instruments, official documents and the analysis of public controversies. Based on this data and using an illustrative case, the article explores how the emergence of anti-gender movements and forces has shaped and challenged gender equality policies. Additionally, it discusses how the judicialization and media coverage of controversial cases have contributed to weakening the impact of gender mainstreaming policies in the education sector.

Key words: PUBLIC POLICIES; GENDER AND EDUCATION; GENDER EQUALITY; EDUCATION

Resumen

Este artículo examina la resistencia a la implementación de políticas de mainstreaming de género en la educación en Portugal, destacando las dinámicas de poder y la ineficacia que han obstaculizado la integración de una perspectiva de género en el sistema educativo. Lo hace analizando información secundaria, producida en el contexto de evaluaciones de instrumentos de política, de documentos oficiales y de análisis de controversias públicas. A partir de estos datos, y basándose en un caso ejemplar, explora cómo el surgimiento de los movimientos y fuerzas antigénero ha condicionado y cuestionado las políticas de igualdad de género. El artículo también analiza cómo la judicialización y la cobertura mediática de casos controvertidos han contribuido para debilitar el impacto de las políticas de mainstreaming de género en el sector de la educación.

Palabras-clave: POLÍTICAS PÚBLICAS; GÉNERO Y EDUCACIÓN; IGUALDAD DE GÉNERO; EDUCACIÓN

Résumé

Cet article examine la résistance à mettre en oeuvre des politiques d’intégration du genre dans l’éducation au Portugal. Il souligne par ailleurs les dynamiques de pouvoir et les inefficacités qui ont entravé l’intégration d’une perspective de genre dans le système éducatif. Pour ce faire, il analyse des informations secondaires recueillies dans le cadre du processus d’évaluation d’instruments politiques, de documents officiels et d’analyses de contestations publiques. À partir de ces données, et appuyé sur un cas concret, ce travail explore la façon dont l’émergence de mouvements et de forces anti-genre a conditionné et remis en question les politiques d’égalité de genre. L’article discute également comment la judiciarisation et la médiatisation de cas controversés ont contribué à affaiblir l’impact des politiques d’intégration du genre dans le secteur de l’éducation.

Key words: POLITIQUES PUBLIQUES; GENRE ET ÉDUCATION; ÉGALITÉ DE GENRE; EDUCATION

A integração das questões de género na educação, em Portugal, encontra-se consagrada ao mais elevado nível dos dispositivos normativos e legais desde a década de 1980, tendo a Lei de Bases do Sistema de Ensino (LBSE), Lei n. 46, aprovada em 1986, previsto a sua integração tanto na escolaridade obrigatória como no ensino superior. Não obstante, essa previdência vaga na LBSE não teve ressonância em disposições legais posteriores que materializassem, efetivamente, uma política concreta para a promoção da igualdade entre mulheres e homens na educação, naquilo que já foi considerado um ruidoso silêncio legislativo do Estado português nessa matéria (Araújo & Henriques, 2000).

Os princípios da igualdade e da não discriminação foram estando presentes em legislação relevante, como a relativa à avaliação dos manuais escolares ou, mais recentemente, a do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Paseo) (Despacho n. 6.478, 2017) e do Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular dos Ensinos Básico e Secundário (Despacho n. 5.908, 2017), ou ainda os princípios da Educação Inclusiva (Decreto-Lei n. 54, 2018). Outro veículo importante é a reconfiguração e reforço da educação para a cidadania, em 2017, através da criação do Grupo de Trabalho de Educação para a Cidadania (Monteiro et al., 2017), e posterior criação da disciplina obrigatória de Cidadania e Desenvolvimento.

Além desses quadros normativos e legais, a procura da transversalização da perspetiva de género na educação, em Portugal, tem sido essencialmente materializada quer na ação do mecanismo oficial para a igualdade, atualmente Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), que antes se designou também Comissão da Condição Feminina (CCF) e Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres (CIDM), quer no desenho e implementação de Planos Nacionais para a Igualdade, como ferramentas centrais de mainstreaming de género, desde finais da década de 1990 (Monteiro, 2011).

Com efeito, paralelamente aos pouco efetivos normativos legais produzidos (Monteiro et al., 2024), os esforços de transversalização da perspetiva de género na educação nasceram em 1978, como reivindicação e ação feministas a partir da então CCF, com ações mais substantivas e potencialmente transformadoras do que a mera menção aos princípios de igualdade e de não discriminação. O desenvolvimento de projetos na área da coeducação, da constituição de redes de especialistas na área da educação, do trabalho com os ministérios da educação e do ensino superior, da formação de docentes e produção de ferramentas como guias para o mainstreaming no ensino e na organização do sistema escolar e outras publicações tem procurado transformar a educação e integrar o que são recomendações internacionais, como é o caso da Plataforma de Ação de Pequim (PAP) ou da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw). É, porém, reconhecido que, não obstante esses esforços de políticas e o reconhecimento da importância estratégica da educação na transformação dos regimes de género na sociedade, a efetividade e o sucesso das medidas têm ficado muito aquém, tendo crescido, inclusivamente, nos últimos tempos as controvérsias e oposições político-ideológicas em torno do ensino da igualdade de género na escola, em Portugal.

Este artigo parte de análise documental de avaliações realizadas de instrumentos de mainstreaming de género na educação, mais especificamente os Planos Nacionais para a Igualdade e estratégias de política pública nesse domínio (Ferreira et al., 2007, 2013; Ilharco et al., 2018; Torres et al., 2022). Procura igualmente proceder a uma análise qualitativa, para compreender e sistematizar os tipos de resistência que se têm imposto à efetividade das ações nessa área de política pública. Incorpora análise de fontes secundárias, como os trabalhos realizados nas políticas de educação em Portugal, as publicações institucionais e os resultados de projetos de investigação na área do mainstreaming de género na educação e no ensino superior, bem como de casos de oposição pelos movimentos antigénero. Depois da apresentação do modelo de leitura e concetualização desses desafios do mainstreaming de género na educação e das resistências às políticas de igualdade (no primeiro ponto), seguem-se dois pontos que mesclam dados empíricos primários e secundários para interpretar as resistências de tipo político-administrativo e burocrático (segundo ponto), e as atuais resistências explícitas dos movimentos conservadores e antigénero (terceiro ponto).

Do mainstreaming de género na educação ao estudo das resistências e oposição à implementação de políticas de igualdade de género: Estado da arte

Os sistemas educativos em todo o mundo precisam de indivíduos corajosos que não tenham medo de se revelar contra os “sistemas de dominação” ao mesmo tempo que implementam formas inovadoras de ensinar a diferentes estudantes.

(hooks, 1994).

Não obstante a expansão do ensino para as raparigas e a crescente igualdade de acesso a níveis de escolaridade anteriormente vedados às mulheres (Albisetti et al., 2010), tal como tem sido notório em Portugal (Ferreira & Monteiro, 2013; Torres et al., 2018), persistem nos sistemas de educação formal diversas dinâmicas de reprodução das desigualdades de género e, em especial, das desvantagens das raparigas e das mulheres. A escola tem sido vista nos estudos feministas como reprodutora de desigualdades, de estereotipias e de papéis de género com efeitos multiplicadores em outras áreas e esferas, isso porque partilha dos alicerces sexistas que enraízam a desigualdade social entre mulheres e homens (Alvarez et al., 2017). Autoras como Mosconi (2009, citado em Alvarez et al., 2017) consideram que os mecanismos da desigualdade de género atuam dentro da escola da mesma forma que existem e atuam no conjunto da sociedade, explicando os factos como a subordinação do feminino, as assimetrias nas relações de poder entre raparigas e rapazes, as invisibilizações das mulheres e dos seus contributos científicos e profissionais, a reprodução da segregação sexual das profissões, as violências de género e o bullying sexista, homofóbico e transfóbico, entre outros. As escolas são também arenas privilegiadas de socialização das crianças e palcos de performatividades e de reprodução de identidades e de papéis de género, negociadas nas interações que aí ocorrem (Pereira, 2009), mas também (re)produzidas através dos modelos e dos materiais pedagógicos usados, bem como das práticas de ensino-aprendizagem que continuam a assumir-se como neutras, democráticas e universais (Alvarez et al., 2017).

Desde especialmente a segunda vaga de feminismos, nos Estados Unidos (EUA), têm surgido propostas para uma pedagogia feminista, termo proposto por Berenice Fisher, na obra “What is feminist pedagogy?” (1981), e definido como “o ensino antissexista, anti-hierárquico e que salienta as experiências das mulheres, incluindo estratégias de consciencialização e de poder para resistir às instâncias de opressão, e desenvolvendo modelos de aprendizagem através da experiência” (Fisher, 1981, p. 20). Certo é que, com a evolução do campo de estudos críticos, feministas e emancipatórios, foram-se desenvolvendo diversas concetualizações sobre as abordagens educacionais e as pedagogias antiopressivas para um pensamento crítico e uma transformação social, muitas delas à luz dos princípios pedagógicos freirianos (Freire, 2000; Cardon & Womack, 2022). Independentemente da sua diversidade, as pedagogias feministas opõem-se aos modelos patriarcais de aprendizagem, que promovem o individualismo e a competição sem espaço para a reflexão e a colaboração, orientando antes as suas práticas pedagógicas para transgredir o status quo e desafiar as desigualdades sociais (hooks, 1994). É que, se a escola é estrutura de reprodução de desigualdades e de relações sociais de opressão, ela é também e encerra em si um potencial transformador e emancipatório, rebeldia e transgressão que a torna alvo de disputas, especialmente no campo dos estudos da educação e das relações sociais de género (Gava, 2023).

Do lado dos feminismos transnacionais e das organizações internacionais, as Nações Unidas (NU) reconheceram logo na Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw), adotada em 1979, que a educação seria prioritária na intervenção para os direitos das mulheres e a igualdade de género. No seu Art. 10º consagra e recomenda a garantia de acesso, a eliminação da conceção estereotipada dos papéis dos homens e das mulheres a todos os níveis e em todas as formas de ensino, a revisão dos materiais pedagógicos, livros e programas escolares e a adaptação dos métodos pedagógicos. Em 1995, as NU consagraram na Plataforma de Ação de Pequim (PAP), produzida na IV Conferência Mundial das Mulheres, em Pequim, num longo Objetivo B, uma estratégia de mainstreaming na educação (Monteiro et al., 2024), instando a que:

Para fazer face à desigualdade de acesso ao ensino e às insuficientes oportunidades educativas, os Governos e outros agentes sociais devem promover uma política ativa e visível de integração da perspetiva de género em todas as políticas e programas a fim de, antes de serem tomadas as decisões, serem analisados os seus efeitos sobre mulheres e homens. (Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género [CIG], 2013, p. 53).

Assim, a PAP reconhece que:

Persiste um profundo enviesamento de género nos curricula escolares e nos materiais pedagógicos, que raramente têm em conta as necessidades específicas de raparigas e mulheres. Isto reforça os papéis femininos e masculinos tradicionais, privando as mulheres das oportunidades de participação plena e igual na sociedade. A falta de sensibilidade dos educadores de todos os níveis relativamente às diferenças de género acentua as desigualdades entre mulheres e homens, ao reforçar as tendências discriminatórias e ao enfraquecer a autoestima das raparigas. A falta de educação sexual e sobre saúde reprodutiva tem profundas repercussões em mulheres e homens. (CIG, 2013, p. 52).

A adoção de uma estratégia de mainstreaming de género na educação tem sido, portanto, recomendada em diversos normativos internacionais há mais de três décadas, vendo-se reforçada nos documentos mais recentes no quadro da União Europeia (UE), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Conselho da Europa (CE), embora com pouco sucesso e efetividade em países como Portugal (Monteiro et al., 2024). O mainstreaming de género implica uma estratégia de transversalização que faz das experiências, interesses, necessidades e preocupações de mulheres e homens uma dimensão integral da formulação e condução de todas as etapas e facetas dos processos de ensino-aprendizagem - desde a gestão das escolas à elaboração dos currí- culos e às formas de lecionação e de avaliação propostas por docentes. Preconiza também alterações nas formas de identificar e analisar os problemas, as pessoas e grupos que participam nessa análise, nos objetivos que são definidos, nas estruturas e recursos mobilizados para resolver os problemas identificados, implicando todos os níveis e fases de definição de políticas, seja na escala nacional, regional ou local: no diagnóstico e estabelecimento de prioridades, na definição, planeamento, implementação e avaliação das políticas e das intervenções (Monteiro, 2023).

A Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa aos Estados-Membros sobre a integração da perspetiva da Igualdade de Género na Educação (Conselho da Europa, Rec 13, 2007) constituiu um marco importantíssimo em matéria de orientação da política educativa para o mainstreaming de género na educação, embora se trate de uma normatividade soft. Apresentou um conjunto abrangente de medidas que os Estados-Membros deviam implementar, abrangendo quadros legais, governação e organização escolar, formação inicial e contínua para docentes e formadores/as, programas de cursos, currículos escolares, disciplinas e exames, materiais de ensino, métodos e práticas de ensino, educação para a cidadania democrática e direitos humanos, orientação educativa e profissional, prevenção e combate à violência sexista, grupos vulneráveis, media e investigação sobre questões de género e educação. Essas recomendações têm sido reforçadas no quadro do Espaço Europeu de Educação, em desenvolvimento (Monteiro et al., 2024). Trata-se, pois, de uma agenda complexa e ambiciosa, a da igualdade de género na educação, que implica um esforço de escrutínio institucional e de atuação para a mudança (por parte das escolas e das administrações), abrangente e transversal a todas as dimensões e etapas do processo de ensino-aprendizagem, capaz de gerar inércias, resistências e mesmo oposições na sua implementação.

Nesse sentido é, pois, fundamental mobilizar aqui também a literatura que tem analisado as políticas públicas de igualdade na perspetiva da sua implementação (Engeli & Mazur, 2018, 2021), no sentido de perceber os sucessos e fracassos dos avanços nessas matérias, e o descompasso entre o que está legislado e formalmente assumido e o que é realmente feito. Esses quadros analíticos alertam para o facto de os processos de implementação das políticas serem especialmente complexos e de gerarem oposição e resistência por parte de atores dominantes ou privilegiados, que procuram manter o status quo para seu benefício (Engeli & Mazur, 2018; Verloo, 2018), sendo provável encontrar lutas pela implementação das políticas de igualdade (Ahrens, 2018; Celis & Lovenduski, 2018). Conhecer as condições e razões para a não implementação das políticas de igualdade de género na área da educação afigura-se necessário e urgente, num contexto de crescente oposição por parte de movimentos antigénero e em que se verificam uma escassez de interesse académico sobre esse assunto, como é o caso de Portugal, e de crescente declínio das oportunidades políticas favoráveis à justiça social, como postula Mieke Verloo (2018). Como referem Mergaert e Lombardo (2014), o mainstreaming de género exige, na fase de implementação, que atores po- líticos e das administrações, não sendo especialistas em igualdade de género, introduzam a perspetiva de igualdade de género em todas as políticas, o que impõe elevados níveis de consciencialização e de competências da sua parte; porém a não implementação não pode ser reduzida a uma ques- tão de falta de conhecimentos ou a recursos limitados, mas antes ela é frequentemente uma ex- pressão de resistências e de oposições à própria igualdade de género.

Mieke Verloo definiu como oposição à igualdade de género “qualquer atividade na qual é articulada uma perspetiva de oposição a uma política feminista e de igualdade de género de uma tal forma que ela afeta a decisão política ou a implementação em qualquer fase” (2018, p. 6). Porém a resistência e a oposição assumem variadas e complexas formas, desde a resistência individual à institucional, da explícita à implícita, da burocrática à falta de vontade política, provindo de uma diversidade de atores para além de decisores políticos (Mergaert & Lombardo, 2014), incluindo burocratas e técnicos das instituições, parceiros, cidadãs(ãos), estudantes, docentes, grupos e associações de encarregados de educação, organizações não governamentais (ONGs), entre outros que podemos apontar na área da educação. Este artigo explora como o setor da educação tem constituído uma arena privilegiada de disputas permanentes (Vianna, 2018) e de movimentos de oposição retrógrada na Europa (Norocel & Băluță, 2021), atacada e altamente condicionada por razões ideológicas, que têm ganhado ampla escala e reverberações em outras esferas (Gava, 2023), depois de décadas de resistência essencialmente burocrático-política implícita à sua implementação, como demonstro neste estudo ter sido o caso em Portugal. Apresentam-se estes dois grandes tipos de resistência - a burocrático-política e a implícita -, a partir da análise dos dados realizada, nos dois pontos que se seguem.

Resistência político-burocrática de um Ministério da Educação formalmente vinculado, mas retirado na implementação

A análise dos vários relatórios de avaliação dos Planos Nacionais para a Igualdade (PNI), em Portugal, no que respeita à área da educação (Ferreira et al., 2007, 2013; Ilharco et al., 2018; Torres et al., 2022), permite observar que os resultados alcançados foram mais o efeito de uma estratégia persistente da área política da igualdade e do principal mecanismo oficial para a igualdade - a CIG - e das ONGs da área, do que de alguma proatividade ou consciencialização por parte do Ministério da Educação e seus organismos. Importa referir sucintamente que Portugal desenha planos para a igualdade como ferramenta central de mainstreaming de género desde 1997, quando foi publicado o primeiro Plano Global para a Igualdade de Oportunidades (Resolução do Conselho de Ministros n. 49, 1997); depois o II Plano Nacional para a Igualdade (2003-2006) (Resolução do Conselho de Ministros n. 184, 2003), e sucessivamente até ter sido criada, em 2018, a Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030 - Portugal + Igual (Enind) (Resolução do Conselho de Ministros n. 61, 2018). Esta última, ainda em vigor, foi considerada um “salto paradigmático nas políticas de igualdade de género e não discriminação, seja nos desafios e direções apontadas, seja nos modos como foram concretizadas as ações para os cumprir” (Torres et al., 2022). A Enind, alinhada temporal e substantivamente com a Agenda 2030 e apoiada em três Planos de Ação (Paimh, Pavmvd, Paoiec)1 colocou o centro da ação estratégica dessa área de política setorial na eliminação dos estereótipos e suas manifestações nas mais diversas áreas, tendo o domínio da educação amplo desenvolvimento, essencialmente no Paimh.

O material analisado permite concluir que, em Portugal, a atividade de mainstreaming na educação tem corrido, portanto, de forma paralela à estratégia legislativa, protagonizada essencialmente pela CIG, face a um Ministério da Educação (ME) altamente resistente na prática e na implementação. Importa destacar que a estratégia da CIG se centrou em dois projetos principais que, até hoje, têm marcado a atuação nessa área, com vantagens mas também com vicissitudes, que irei expor. Trata-se do projeto “Coeducação: Do princípio ao desenvolvimento de uma prática”, de 1998, que criou e dinamizou a Rede Nacional Coeducação2 e, dez anos depois, do Projeto “Guiões de Educação, Género e Cidadania: uma estratégia para o mainstreaming de género no sistema educativo”. Este último projeto desenvolveu-se em três fases: a construção de guiões para os vários níveis de ensino por uma rede de académicas feministas; a segunda fase relativa à formação de docentes; e, finalmente, a fase de implementação nas escolas, que procura integrar uma perspetiva de igualdade na prática docente e na organização e cultura escolares. Estão publicados cinco guiões, do pré-escolar ao secundário, e foi realizada formação a 2.700 docentes ao longo das últimas décadas, conforme informação disponibilizada do website da CIG3 (Guiões de Educação Género e Cidadania). Como veremos, o trabalho em torno destes guiões tem dominado os esforços da CIG na área da educação, mas com escassa e irregular cooperação do Ministério da Educação, com consequências na sua capacidade de influência e de transformação estrutural nessa área.

A resistência do setor da educação encontra evidência, em primeiro lugar, nos apuramentos da execução de medidas previstas nos Planos por parte do ME e seus organismos, que foi diminuta face ao previsto, como foi possível verificar na análise documental realizada. Por exemplo, no III PNI, a CIG foi quem implementou 12 das 13 medidas previstas, e que eram da responsabilidade do ME (Ferreira et al., 2013), o que resultou em ações pontuais, desarticuladas, e de abrangência restrita face ao ambicionado. Já no V PNI, o mesmo sucedeu, com medidas relevantes como a de “produção de instrumentos orientadores de organização e de funcionamento escolar, pelo Ministério da Educação, sobre a integração da igualdade de género” a serem implementadas como uma “ação de sensibilização por uma ONG” (Ilharco et al., 2018). A disponibilidade do ME para aceitar e propor medidas tem contrastado, portanto, com a sua retirada e desresponsabilização na execução de tais medidas, como ilustra a fala de uma técnica da CIG responsável pela educa- ção, em 2007:

Eu penso que há aqui duas vertentes curiosas do meu ponto da vista no Ministério da Educação. Uma vertente é que, tanto quanto eu me apercebi sempre, a área da educação nos Planos Nacionais para a Igualdade . . . foi sempre uma área que apareceu como muito dinâmica e muito capaz de responder… ou seja, as negociações faziam-se, apareciam as medidas eram negociadas dentro do Ministério, aprovadas no Ministério… E isto sempre a um ritmo um pouco à frente dos outros ministérios e das outras equipes, criando uma aparência, pelo menos uma imagem, de que na educação tudo estava muito mais à frente… Esta é uma vertente. Depois a outra vertente é uma vertente que contradiz esta primeira, isto é, há uma imagem de grande eficácia, de trabalho que se desenvolve, e depois sistematicamente quando é para avançar daquilo que está escrito no papel para o terreno, as resistências são enormes e então para… (E 44). (Ferreira et al., 2007, p. 101).

Isso revela uma forma de resistência institucional e implícita, num organismo que avança ao nível do desenho e das intenções, mas bloqueia qualquer ação com vista à implementação das políticas. O “não fazer” ou a omissão são uma forma de resistência (Mergaert & Lombardo, 2014) que tem sido transversal a vários setores de política pública, em Portugal, mas que se tornou gritante no caso do ME pela sua importância estratégica e pela descoincidência entre uma retórica de adesão e uma prática de desresponsabilização, omissão e de “não fazer”. Como referem autoras como Mergaert e Lombardo (2014), em instituições com enviesamentos de género, coexistem conflitos de interesses, o que resulta numa luta mais ou menos explícita entre “princípios burocráticos que exigem implementação de decisões” ao mesmo tempo que “os princípios patriarcais e sexistas exigem a evaporação das mesmas”.

Por detrás das explicações para essa inércia institucional, contraditória com a adesão instrumental e aparente à incorporação da igualdade no sistema educativo, considero estarem quatro principais razões, que categorizo aqui como: 1) o não reconhecimento de que existem desigualdades de género na escola, nem da necessidade de uma intervenção em contexto escolar; 2) o peso burocrático-administrativo de um ministério como o da educação; 3) uma resistência ideológica às questões da igualdade, desconsideradas como “disparates”; e 4) a falta de vontade política, em antecipação de resistências e oposições político-ideológicas perspetivadas no setor, nas escolas e comunidades escolares.

Isso mesmo ficou expresso na avaliação do II PNI:

As principais dificuldades são… a nível institucional é, em 1º, a ausência absoluta da importância que o ME dá à temática da igualdade, portanto as problemáticas do género e a problemática da igualdade entre rapazes e raparigas não é uma problemática para o ME, e, portanto, não é uma temática sequer que existe, quanto mais que seja pertinente… A 2ª dificuldade [é] o próprio funcionamento institucional do ME e a enorme resistência que dentro do ME existe a esta temática em termos de cultura, portanto há uma cultura no ME que não apenas se traduz no funcionamento pesado, pois é uma máquina muito pesada, mas em termos de mentalidade. De facto, nós falamos com as pessoas do ME, técnicas e técnicos de qualquer nível em qualquer organismo, e “que disparate que é isto” ou “isto não tem importância nenhuma, isto nem sequer existe, isto não é problema” é o que dizem… (E43). (Ferreira et al., 2007, p. 94).

Importa destacar que o quarto tipo de causalidade que refiro, relativo à inércia do ME face às oposições que antecipam por parte das comunidades escolares e dos seus atores, encontra na área dos manuais escolares e dos materiais pedagógicos o foco de maior contenção e controvérsias; vejamos o que foi referido por professoras, há uma década, em entrevista para a avaliação do III PNI (Ferreira et al., 2013, p. 159):

Eu trabalhei vinte anos na formação de professores... Não foi um processo muito pacífico, porque… encontrámos muitas resistências em muitas escolas do ensino secundário. E essas resistências vinham sobretudo por esta via: nós, convictamente, de uma maneira muito clara, obrigávamos as futuras professoras e professores a prestar particular atenção à questão do sexismo nos manuais escolares e materiais de ensino. E o que era para nós assustador é que pessoas que tinham atrás de si não sei quantos anos de escolaridade, . . . futuros docentes . . . estas pessoas resistiam, a esmagadora maioria resistia de uma maneira que não fazem ideia. Achavam que era uma bizarria nossa, que era mau feitio das mulheres professoras, e que os homens que lá estavam a trabalhar connosco também eram assim uns chatos, e foi muito difícil provar como é importante este exercício de leitura. E agora na escola onde trabalho, o que verifico é que os manuais na minha disciplina são um horror, um horror! Os manuais . . . mas estão melhor relativamente à questão da cor, vamos encontrando outras pessoas que não o homem branco, de meia-idade e bem-sucedido. Porque não é aceitável não se prestar atenção a questões de raça. Mas é aceitável não prestar atenção a questões de sexo. (E99). (Ferreira et al., 2013, p. 159).

A generalidade dos manuais não obedece [aos critérios estabelecidos pela Lei]: a linguagem é sexista, e depois todas as imagens dos textos, povoados por homens, porque não há mulheres nem cientistas, nem filósofas, nem historiadoras, etc. (E98). (Ferreira et al., 2013, p. 159).

Como se apresentará no ponto que se segue, a questão dos conteúdos dos manuais validados ao abrigo da Lei, mas também de outros guias e materiais que têm procurado integrar no sistema de ensino formal perspetivas mais igualitárias, tem sido foco de controvérsias ideológicas, críticas de falta de cientificidade e até de contestação “legal” face ao suposto princípio da liberdade de criação, por parte de quem os produz. Tudo isso contradizendo o previsto há quase 20 anos na Lei n. 47 (2006), conhecida como a Lei dos manuais escolares, que prescreve no seu Art. 11, n. 2 “2 - As comissões de avaliação atendem também aos princípios e valores constitucionais, designadamente da não discriminação e da igualdade de género”. Vejamos a reação de responsáveis de editoras de manuais escolares, em entrevista para a avaliação do II PNI:

A . . . entende que é uma formalização de um preceito que sempre esteve presente na sua linha editorial. . . . Assim, a Lei n. 47/2006, de 28 de agosto, que constitui um passo na explicitação de valores universalmente aceites, como é o caso da educação para a paridade, é integral e escrupulosamente respeitada, uma vez que todos os recursos didático-pedagógicos que a . . . disponibiliza são sujeitos a uma meticulosa validação científico-pedagógica através do seu corpo de consultores provenientes de universidades, de escolas básicas e secundárias e de diferentes áreas do conhecimento, sem descurar a formação cívica. (E2). (Ferreira et al., 2007, p. 261).

ME . . . [estão a ser criados] mecanismos que vão condicionar a liberdade de criação científica e pedagógica, para além da liberdade de edição, qualquer uma delas consagradas na Lei Fundamental. (E17) (Ferreira et al., 2007, p. 261).

Em 2022 apurou-se que essa medida ficou novamente sem execução e foi o próprio ME a dar como justificação para não ter criado um grupo de trabalho previsto o facto de que isso “interferia com a independência das editoras” (Torres et al., 2022, p. 66). A acrescentar a essa recusa em obrigar as editoras a cumprirem o legislado, percebem-se atualmente motivações que decorrem do receio das resistências político-ideológicas por parte dos movimentos antigénero, que têm crescido nos últimos anos, como se verá mais à frente. No relatório de avaliação externa da Enind (Torres et al., 2022, p. 232), refere-se que um guia de implementação de sistemas de prevenção e combate às fobias no ensino básico, secundário e profissional, apesar de elaborado, nunca foi lançado, por decisão política, “devido às polémicas associadas à Educação para a Cidadania nas escolas”.

Portanto a falta de envolvimento do ME tem acabado por resultar em intervenções-piloto (Torres et al., 2013; Ilharco et al., 2018), em escolas selecionadas, na ausência de uma generalização da política a todas as escolas, na insuficiência de formação sistemática a docentes, e numa falta de abertura que se sente no terreno, por parte de quem tenta desenvolver projetos de igualdade de género. A falta de liderança e de vinculação política tem gerado e reforçado a resistência dos agentes. Vejamos vários testemunhos:

Eu estou num órgão de gestão há sete anos e não me lembro de ter recebido qualquer tipo de informação que visasse pôr em prática esse plano. (E101). (Ferreira et al., 2007, p. 159).

Eu estive alguns anos na Direção Regional [de Educação] e a Comissão para a Igualdade pediu-nos para fazer um levantamento a nível da Região Centro, se havia alguma escola com qualquer projeto ligado à igualdade. Esse levantamento foi feito, e temos muitas escolas na Região Centro, e não houve uma que apresentasse algum projecto, nada! Isso é significativo. (E98). (Ferreira et al., 2007, p. 159).

Não adianta. Uma pessoa não faz omeletas sem ovos. Chegar à escola e ter uma grande vontade, e a dada altura encontra resistência da parte dos próprios colegas… Eu senti isso na escola onde trabalho “não te metas nisso, isso do lacinho branco são coisas de brasileiros”. (E97). (Ferreira et al., 2007, p. 159).

Mas, se numa escola houver uma pessoa, duas no máximo, ficamos por aí. Nós ainda estamos sujeitos ao ridículo relativamente aos outros colegas . . . eu sei que são raízes muito profundas, e só é possível se houver uma aposta na formação de professores. Caso contrário é impossível. . . . Já não basta o nosso lidar com os alunos, ainda temos que lidar com os colegas, que têm obrigação, porque nós podemos fazer a diferença . . . Um outro olhar sobre as situações, porque somos agentes de mudança, e deveremos encarar-nos como tal. É difícil . . . sensibilização do corpo docente, há pouca. (E98). (Ferreira et al., 2007, p. 156).

Mesmo nas mais recentes inovações introduzidas no sistema educativo português pelo Governo e o ME, corporizadas no Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular dos Ensinos Básico e Secundário (Despacho n. 5.908, 2017), no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Paseo), nos princípios da Educação Inclusiva (Decreto-Lei n. 54, 2018), e na reconfiguração da educação para a cidadania, através da criação do Grupo de Trabalho de Educação para a Cidadania (Monteiro et al., 2017), e posterior criação da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento,4 que apresentavam um potencial significativo para a integração de uma perspetiva de igualdade de género na educação, a efetividade do mainstreaming de género ficou muito aquém das expectativas (Monteiro et al., 2024).

Apreciações críticas têm concluído que, não obstante uma afirmação de princípios aquando do lançamento de novas diretrizes para a educação inclusiva, o ME pouco mais tem feito do que a diluição da igualdade de género no ensino (Monteiro et al., 2024), não dando à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento a dignidade de um diploma legal próprio, por exemplo. A abordagem da educação inclusiva, que enquadra os mecanismos de política pública educativa, em Portugal, desde 2018 (agregando inclusivamente a educação para a cidadania), assenta na ideia de autonomia dos estabelecimentos de ensino, de flexibilização dos curricula e na avaliação externa estandardizada (na linha da OCDE), acarretando múltiplos paradoxos e tensões que têm vindo a ser identificados (Lima, 2020; Carvalho et al., 2023).

Análises críticas dessa política de educação inclusiva definida em Portugal têm salientado, especialmente nos temas da “promoção da equidade e da autonomia das escolas”, o cânone gerencialista, de neoliberalização e de estandardização, de manutenção de critérios de eficiência, a insuficiência de recursos e outras tensões, como a definição centralizada de currículos e de recursos que contradizem o assumido objetivo de promoção da igualdade através e na educação, bem como os das propaladas autonomia das escolas e da flexibilidade curricular (Lima, 2020; Carvalho et al., 2023). Por outro lado, como resulta da análise do relatório de avaliação externa da Enind, o argumento da autonomia das escolas e da descentralização serve sistematicamente ao ME para se desresponsabilizar de uma intervenção efetiva de mainstreaming de género na educação, com os seus representantes a invocarem esse motivo para não fazerem ou não cumprirem medidas concretas previstas nos Planos (Torres et al., 2022, p. 250).

A acrescer a todas essas críticas, a falta crónica de recursos tem sido identificada como um dos principais problemas da “educação inclusiva”, especialmente a falta de serviços, de in- fraestrutura e de recursos nas escolas e a falta de profissionais especializadas/os, evidência clara do que na literatura é considerado uma forma de resistência institucional implícita, até porque, para conferir flexibilidade, seria imprescindível fornecer apoio às/aos profissionais que trabalham nas escolas (Carvalho et al., 2023). No que respeita à educação para a cidadania, por exemplo, toda a formação inicial de coordenadores para o país foi financiada pela tutela da igualdade, bem como os meios pedagógicos como referenciais ou mesmo a plataforma prevista no documento da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (Monteiro et al., 2017) não chegaram a ser desenvolvidos. Falta uma avaliação externa e independente do que se tem passado neste âmbito, mas os sinais não são animadores.

Balanços críticos mais recentes têm chamado a atenção para a necessidade de reconhecer a igualdade e a diversidade e de atender a um conjunto de desafios e de oportunidades na integração do objetivo de promoção da igualdade (Comissão Europeia [CE], 2023), que ainda se encontram por assumir e cumprir. A título de exemplo, o relatório Eurydice (CE, 2023), designado Promover a diversidade e a inclusão nas escolas da Europa, que identifica as estratégias e lacunas de vários países, salienta a conclusão de que, no geral, em Portugal, os/as docentes não sabem como desenvolver um ensino inclusivo (que técnicas, ferramentas e estratégias usar). A partir de um inquérito à escala europeia, também concluem pela insuficiência ou mesmo inexistência de dados sobre desigualdade e discriminação nas escolas na maioria dos países, e que os principais fatores de discriminação nas escolas são a incapacidade/deficiência, a origem étnico-racial e a discriminação de género (raparigas-rapazes). A falta de monitorização de casos de discriminação nas escolas é uma limitação grave em países como Portugal (CE, 2023). A atenção à diversidade de origens e de condições de estudantes é, precisamente, um dos pilares destacados da European Education Area, em desenvolvimento até 2025, longe assim de se ver cumprido.

Considero que a inexistência de diagnósticos, de ferramentas, de formação de docentes e de capacitação das escolas constitui forma de oposição administrativo-burocrática considerável à transversalização da igualdade de género no ensino básico e secundário; da mesma forma que a criação de políticas pelo ME que depois não dota de legitimidade e robustez é um claro exemplo de resistência burocrático-política implícita às políticas de igualdade, como a definiram Mergaert e Lombardo (2014) e Verloo (2018).

Face a tudo isto, na análise documental transversal realizada, ficou clara a dificuldade de trabalho com o setor da educação ao longo das últimas décadas. Essas dificuldades intensificaram-se nos tempos mais recentes numa divergência de visões entre a CIG e o ME (Torres et al., 2022), com o ME cada vez mais desresponsabilizado, e com a área da educação na CIG cada vez mais guetizada, e a insistir numa linha de atuação centrada num núcleo “habitual” de docentes de escolas superiores de educação da Rede Coeducação, na formação de docentes através dos Guiões, mas incapaz de integrar essas medidas na ação das escolas do país e do Ministério, com o qual trabalha “de forma anacrónica” (Torres et al., 2022, p. 194). Essas dificuldades de implementação do mainstreaming de género na educação manifestam-se, inclusivamente, na ausência não apenas de estratégia de defesa, pela CIG, face aos ataques dos movimentos antigénero, detalhadas no ponto que se segue, mas também de uma atuação efetiva e liderante em projetos e programas novos, com parcerias com entidades diversificadas, e com as instituições do ensino superior. Ilustração dessa incapacidade da CIG e da insistência que faz numa estratégia que está cada vez mais isolada em atividades próprias e de ONG para a igualdade de género na educação é o facto de não serem disponibilizados dados que permitam contabilizar o número de escolas que adotam e utilizam os materiais pedagógicos, ou o número de instituições que integram orientações curriculares em matéria de igualdade de género (Ilharco et al., 2018), o que também poderá ser analisado como uma forma de resistência administrativa implícita. Além das resistências institucionais, os movimentos antigénero emergiram como um novo desafio significativo para a implementação dessas políticas, que se analisam de seguida.

Os movimentos antigénero e seus efeitos num contexto de recuo do espaço público e político para a justiça social

Para além das resistências político-administrativas e institucionais do próprio ME, que se têm prolongado nas últimas décadas e têm impactado as opções estratégicas da própria CIG, em Portugal, a ascensão de movimentos antigénero, que têm como um dos seus principais alvos a integração da igualdade de género na educação, tem condicionado e travado, de forma direta e indireta, a atuação nesse domínio.

Como acontece em outros países (Sígolo et al., 2021), também em Portugal têm surgido movimentos antagónicos e hostis à integração de uma perspetiva de género na educação, que corporizam o que Norocel e Băluță designam de “mobilização retrógrada de oposição” e que definem como um conjunto de esferas ideológicas diversas que entendem o conhecimento e as políticas sobre género e sexualidade como matriz ideológica de um conjunto de reformas éticas e sociais indesejáveis (Norocel & Băluță, 2021).

Contam-se nesse escopo de ataque: as políticas de mainstreaming de género; os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e direitos das pessoas LGBTQ; a proteção das mulheres contra a violência no quadro da Convenção de Istambul; a crescente visibilidade e aceitação de estudos de género e sexualidade nas universidades; a implementação de educação com uma perspetiva de género nas escolas (Norocel & Pettersson, 2022). Reflexo de um ressurgimento transnacional de populismos iliberais (Korolczuk & Graff, 2018), em Portugal um dos alvos dos ataques desses movimentos tem sido precisamente a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e os Guiões de Educação, Género e Cidadania publicados pela CIG.

A introdução da disciplina obrigatória de Cidadania e Desenvolvimento, proposta na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (Monteiro et al., 2017), no ano letivo de 2017- -2018, tem suscitado diversas reações de oposição e mesmo episódios de judicialização em Portugal. É, nesse sentido, importante referir as relevantes mudanças no contexto político-partidário português nos últimos tempos, marcado pela ascensão de forças de extrema-direita populista com representatividade parlamentar. Foi em 2019 que foi criado um partido político de extrema-direita, que viria a chegar à Assembleia da República, pela primeira vez nas eleições de 2022 (elegendo 12 deputados) e com reforço eleitoral em 2024 (elegendo 50 deputados), ano em que em Portugal se celebrava o meio século da revolução do 25 de abril de 1974. Não só se trata de um processo de institucionalização e normalização de uma força política antidemocrática no sistema político português, mas também da criação de uma permissividade a narrativas antidemocráticas, conservadoras e antigénero no espaço público. Recordemos que, no programa eleitoral de 2019, esse partido propunha inclusivamente a extinção do Ministério da Educação.

Certo é que, antes da criação desse partido político, existiam já movimentos ultraconservadores, fundamentalmente católicos, antigénero que despontaram mediaticamente aquando dos debates públicos dos Referendos sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, uma década antes (Monteiro, 2022). Foi, porém, durante o governo liderado pelo Partido Socialista, constituído em 2015 num inédito acordo (extraparlamentar) com o Partido Comunista Português e Os Verdes, e com o Bloco de Esquerda (que ficou conhecido como o “Governo da Geringonça”), que essas diversas forças conservadoras e extremistas emergiram com mais expressão e organização. Como foi também identificado no caso do Brasil, a emergência dos discursos antigénero, como projeto ultraconservador e reacionário de reformulação da sociedade, fica associada a ataques a políticas e partidos políticos identificados como progressistas, e acaba por ser usada como plataforma de polarização político-partidária e de denúncia de propostas das forças de esquerda, atacadas por se considerarem doutrinárias (Gava, 2023).

Ilustrativo desse processo de ascensão de movimentos antigénero na educação, em Portugal, é o que ficou conhecido como o caso “dos pais de Famalicão”. Esse é um caso exemplificativo da forma como grupos conservadores e extremistas se organizaram (especialmente desde 2018) contra a implementação da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, por se oporem aos conteúdos da área da igualdade de género e das sexualidades. Veja-se o excerto de uma notícia da época que relata o caso:

. . . dois alunos, irmãos, que frequentam o Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco, em Famalicão, distrito de Braga, e cujos pais os impedem, desde o ano letivo 2018/2019, de frequentarem a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Neste caso, o Ministério Público (MP) avançou com um processo de promoção e proteção das crianças enquanto paralelamente decorre um processo administrativo entre os pais dos alunos, a escola e o Ministério da Educação. Artur Mesquita Guimarães também já avançou com um processo-crime contra o procurador do MP que quer que a tutela dos filhos de Mesquita Guimarães passe temporariamente para a escola.

O Tribunal de Família e Menores devia “garantir os direitos e a proteção das famílias”, contestou o pai no seu site pessoal assim que recebeu a notificação da sessão para “o debate judicial [que] serve para debater as razões e as provas apresentadas e conhecer as medidas que serão aplicadas à(s) criança(s) ou jovem(ns)”.

Artur Mesquita Guimarães - pai dos dois alunos que foram dados como “chumbados”, por causa das faltas àquela disciplina, apesar de nas restantes terem notas excelentes - alega que a educação para a cidadania é uma competência dos pais e sublinha que lhe suscita “especiais preocupação e repúdio” os módulos “Educação para a igualdade de género” e “Educação para a saúde e sexualidade”, que fazem parte da disciplina em questão. Tem defendido ainda que os restantes módulos da disciplina são uma “perda de tempo”.

O MP considera que os pais “põem em perigo” a formação, educação e desenvolvimento dos filhos, adiantando ainda que há o perigo de os jovens sofrerem “maus-tratos psíquicos”, “não receberem os cuidados ou a afeição adequados às suas idades” e “estarem sujeitos a comportamentos dos pais que afetam gravemente o seu equilíbrio emocional”. (Simões, 2022).

O processo de Promoção e Proteção a correr no Tribunal de Família e Menores foi arquivado em dezembro de 2022, mas continuou o processo judicial interposto pelos pais contra o Ministério da Educação. Esse foi um caso particularmente mediatizado, nos meios de comunicação mas também nas redes sociais, onde diversos grupos extremistas, que iam da extrema-direita aos movimentos católicos conservadores, se mobilizavam. Foi mesmo disseminado um movimento designado “Deixem as crianças em paz”, que ainda subsiste atualmente em redes sociais como o Facebook, movimento que ataca o que intitula a “ideologia de género”. Como é sabido, o termo “ideologia de género” foi criado pelo Vaticano como forma de associar e atacar questões relacionadas com género, família e sexualidades (Korolczuk & Graff, 2018; Garraio & Toldy, 2020), com muitos conteúdos contra os direitos das pessoas LGBTQ, os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, os projetos de educação para a igualdade de género; termo que, como refere Gava (2023), cumpre a função política de “significante vazio” e por isso tem sido objeto de múltiplas apropriações, como elemento aglutinador de várias controvérsias e oposições.

Em julho de 2019, um grupo de 85 deputados de direita, do Partido Social Democrata (PSD) e do Partido do Centro Democrático Social (CDS), invocando o mesmo conceito de “ideologia de género”, entregou um requerimento ao Tribunal Constitucional português a pedir a fiscalização sucessiva das normas que enquadram a área da educação, na legislação que reconheceu a autodeterminação da identidade e expressão de género, no ensino público e privado. Apontavam que

. . . o Governo socialista foi responsável por uma alteração legislativa que deixa o ME na posição privilegiada de promover e incentivar administrativamente o “uso doutrinário e ideológico” das “questões da identidade de género” nas escolas, o que configura, no entender deste grupo de parlamentares, uma “flagrante violação da autonomia que lhes é conferida pela Constituição. (Carrapatoso, 2019).

Conforme noticiado:

. . . argumentam os deputados que subscrevem a iniciativa, “o uso político que é dado aos chamados ‘estudos de género’ constitui uma ideologia”. Logo, “a sua inclusão nos conteúdos de ensino nas escolas portuguesas no percurso de toda a escolaridade obrigatória”, coloca em causa a Escola enquanto espaço “livre de formação da personalidade, da educação para a liberdade e para a autonomia das crianças e dos jovens, . . . de respeito pela diferença, incluindo naturalmente a diferença nas características sexuais e na identidade de género”, defendem . . . (Carrapatoso, 2019).

Esses movimentos condicionaram a ação do ME, como ilustrado no relatório de avaliação externa da Enind (Torres et al., 2022, p. 232), que refere que um Guia de implementação de sistemas de prevenção e combate às fobias no ensino básico, secundário e profissional, apesar de elaborado, nunca foi lançado, por decisão política, “devido às polémicas associadas à Educação para a Cidadania nas escolas”.

Trata-se de movimentos provenientes de esferas ideológicas diversas, mas convergentes, que acomodam quer radicalismos de extrema-direita, quer movimentos religiosos conservadores, até mesmo alguns grupos de esquerda antigénero (Norocel & Băluță, 2023). A defesa dos valores tradicionais contra o que chamam de “marxismo cultural”, acusado de endoutrinar as crianças, pretende desmobilizar a agenda do que apelidam de “lobby feminista radical”, defendendo um retorno das mulheres à casa e o regresso do modelo de ganha-pão masculino. Ainda em março de 2024 foi lançado um livro invocando os valores da identidade, da “família” e da tradição, coordenado por quatro fundadores do Movimento Acção Ética, personalidades ligadas aos partidos PSD e CDS, com a pretensão de influenciar o novo ciclo político, que resultou da vitória do PSD nas eleições legislativas de março de 2024 e constituição de um novo governo de direita em Portugal. O livro fala da preservação da família, contra a “cultura de morte” e ataca a “ideologia de género” (Rogado, 2024).

Num conjunto de discursos que alimentam um “pânico moral” como imperativo para proteger as crianças de serem expostas ao conhecimento das questões de género e das sexualidades, esses movimentos atacam também o papel das universidades na difusão das “teorias de género”, dos estudos de género e das sexualidades (Norocel & Pettersson, 2022). Apontam baterias às universidades pela divulgação dos estudos de género e pela formação de profissionais de educação que, segundo eles, irão expor as crianças a informações perigosas. Além disso, operam através da mobilização dos pais contra a “educação de género” em países como a Polónia. Esse ativismo parental é cuidadosamente orquestrado e coreografado por organizações religiosas com o apoio da Igreja Católica (Norocel & Pettersson, 2022). Em outros países, como na Turquia, “os perigos” dos estudos de género e sexualidades para as crianças têm originado ataques violentos a académicos da área LGBTQ acusados de procurarem “perverter as crianças”, em narrativas induzidas pelo próprio Estado (Norocel & Pettersson, 2022). Na França conseguiram paralisar processos legislativos, e na Polónia e Hungria revogar políticas já existentes. Ataques e descredibilização dos estudos de género, académicos/as e programas de ensino e de investigação levaram, por exemplo, ao encerramento e mudança dos programas da Universidade da Europa Central (CEU) de Budapeste para Viena em 2019/2020 (Garraio & Toldy, 2020).

Os esforços da União Europeia para integrar uma perspetiva de género na educação confrontam-se, pois, com os efeitos dessas campanhas antigénero emergentes (Kuhar & Paternotte, 2017; Norocel & Pettersson, 2022; Norocel & Băluță, 2021). Assim, agentes políticos da União Europeia e a sua arquitetura institucional têm-se tornado um alvo de movimentos que, numa espécie de “cola simbólica”, juntam várias esferas ideológicas, eurocéticas, conservadoras e populistas de extrema-direita, contra a “ideologia de género” (Korolczuk & Graff, 2018; Kuhar & Paternotte, 2017; Norocel & Băluță, 2021).

Em Portugal, apesar dos avanços legislativos e de política pública educativa potenciadora da transversalização de uma perspetiva de género na educação, as instituições responsáveis parecem ter ficado ora reféns ora usando instrumentalmente os avanços das forças conservadores e da extrema-direita, moderando ou anulando mesmo a implementação dessas políticas. Os impactos da judicialização e mediatização de casos de contestação, manipulação e de polemização do ensino da igualdade de género e das sexualidades na educação formal carecem de um estudo aprofundado em Portugal, tanto pelo interesse científico como pelo interesse democrático em conter a sua ampla expansão e reverberações na sociedade.

Conclusão

A constatação de inefectividades múltiplas na implementação das políticas de main- streaming de género na educação foi o que deu origem a este artigo. O enorme descompasso entre o formalismo político e jurídico e a realidade é um traço destacado e mais do que inquietante da sociedade portuguesa em matéria de igualdade entre os sexos; contraste que não se circunscreve aos resultados (persistência das desigualdades), mas se verifica logo no processo de implementação, pelo desfasamento entre o previsto e o efetivamente concretizado pelos agentes responsáveis. Em outros estudos, usei o conceito de “incapacidade do Estado” que toma de C. Tilly (2007) a asserção de que a capacidade do Estado é um elemento fundamental da qualidade da democracia.

O escrutínio sobre as inefectividades é particularmente relevante num quadro de políticas de mainstreaming de género (MG), que se configura como um processo de mudança muito difícil e dececionante (Vida, 2021) nas instituições, nas organizações, nas decisões e nas práticas. Este artigo escrutinou as políticas de mainstreaming de género na educação em Portugal, revelando um cenário de desafios significativos na sua implementação. Através de uma análise crítica dos instrumentos de política pública e das avaliações realizadas aos Planos Nacionais para a Igualdade, foi possível identificar várias ineficiências e resistências que têm impedido a efetividade dessas políticas. Uma das principais descobertas foi a resistência político-burocrática no Ministério da Educação, onde, apesar de um compromisso formal com as políticas de igualdade, houve uma clara falta de proatividade e uma atitude de desresponsabilização na sua implementação. As análises mostraram também que, apesar de avanços legislativos e políticas públicas educativas que poderiam potenciar a transversalização da perspetiva de género na educação, os resultados foram amplamente limitados pela falta de recursos, pela ausência de formação sistemática para o pessoal docente e pela inexistência de uma liderança clara e comprometida por parte das entidades responsáveis. Essas conclusões configuram as formas de resistência implícita de tipo burocrático-política também propostas por Mergaert e Lombardo (2014).

Educar para a igualdade de género e em condições de igualdade, garantindo que a escola não reproduza os estereótipos e as desigualdades de género que marcam as sociedades, tem sido um desafio político das democracias que orientam a sua atuação pelos normativos internacionais de promoção dos direitos humanos das Nações Unidas, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), União Europeia ou Conselho da Europa. Não obstante o compromisso político que se vai plasmando em documentos legais e programas de ação, a verdadeira transformação apenas ocorre se as políticas forem implementadas e efetivadas, o que impõe que se estudem as condições em que são desenvolvidas (Engeli & Mazur, 2018). Com cinco décadas de democratização, a sociedade portuguesa enfrenta neste momento desafios particularmente críticos, pois a já referida “incapacidade do Estado” (Tilly, 2007), composta de camadas de resistência política e administrativo-burocrática, por exemplo do Ministério da Educação e suas estruturas, é agora agravada pela veemente oposição antidemocrática das forças conservadoras e de extrema-direita, que atacam as políticas de igualdade de género e especialmente na educação, configurando formas de resistência explícita (Mergaert & Lombardo, 2014) e confrontacional. Tomo como válida a apreciação de Gava (2023) de que esses movimentos antigénero usam a educação e as questões de género como plataforma de polarização político-partidária contra forças progressistas, e no caso português têm uma instrumentalidade mais ideológica do que prática ou substantiva, face às fragilidades de implementação da educação para a igualdade que ficou expressa neste artigo. É como se dois blocos de resistência se juntassem para formar um bloqueio à igualdade de género na educação em Portugal. Por um lado, a antiga resistência que era essencialmente burocrático-política implícita à sua implementação, por parte, por exemplo, do Ministério da Educação e das opções da CIG; por outro, a resistência político-ideológica antigénero que se tem feito vocal na última década.

Essa amplificação das resistências às políticas de MG não é surpreendente em Portugal, atendendo: ao reduzido reconhecimento das desigualdades e à limitada compreensão das suas causas e manifestações; à incapacidade e fraqueza das instituições do Estado na implementação de políticas e à sua inércia burocrática; ao reduzido espaço político para a sociedade civil e à intensificação das polarizações; e à crescente abertura de caminho para as forças antigénero e antidireitos humanos que se expandem na esfera global e nacional. Os ataques à educação para a igualdade e à escola como espaço de promoção da igualdade refletem, na minha perspetiva, em Portugal o que Mieke Verloo (2018) identifica como o declínio geral das oportunidades políticas favoráveis à justiça social, com o declínio do Estado de Bem-Estar e as mudanças profundas da paisagem política e democrática na Europa.

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Disponibilidade de dadosOs dados utilizados para a elaboração do artigo estarão disponíveis para os leitores.

Como citar este artigo Monteiro, R. F. B. L. (2024). Resistências institucionais e antigénero à igualdade de género na educação em Portugal. Cadernos de Pesquisa, 54, Artigo e11410. https://doi.org/10.1590/1980531411410

1Plano de ação para a igualdade entre mulheres e homens (Paimh); Plano de ação para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica (Pavmvd); Plano de ação para o combate à discriminação em razão da orientação sexual, identidade e expressão de género, e características sexuais (Paoiec).

2Englobava cerca de 100 investigadoras e docentes do ensino superior, pertencentes a mais de 25 instituições académicas dos distritos de Braga, Porto, Coimbra, Leiria, Santarém, Lisboa, Setúbal, Évora, Beja e Faro, sobretudo do ensino superior politécnico e respetivas escolas superiores de educação.

3https://www.cig.gov.pt/area-igualdade-entre-mulheres-e-homens/projetos/guioes-de-educacao-genero-e-cidadania/#resultados

4A disciplina foi introduzida, em 2017-18, em todos os ciclos da escolaridade obrigatória (1o, 2o e 3o do ensino básico e ensino secundário), com três grupos de componentes (de obrigatório a opcional), sendo que do 1o Grupo, obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade, faz parte a Igualdade de Género. Com essa disciplina o tratamento das questões da igualdade de género tornou-se obrigatório em todas as escolas e níveis de ensino.

Recebido: 05 de Setembro de 2024; Aceito: 31 de Outubro de 2024

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