A relação entre a educação e o higienismo na produção de intelectuais no início do século XX no Brasil permite explorar uma ligação complexa e singular entre saúde e o ideal de civilização e progresso defendido pela elite republicana, no qual a representação vigente sobre educação estava envolvida. Com efeito, trabalhos como o de Lima e Hochman (2000) já deixaram evidente que os textos higienistas desse período historiográfico brasileiro ultrapassam os limites de debates sobre a saúde, adentrando e construindo representações sobre a sociedade republicana a ser formada.
O início da República no Brasil foi marcado pelos discursos de modernidade, progresso e civilização, que buscavam se apresentar como uma nova proposta para o país, em oposição ao Império, apresentando-o como uma época de atraso. Nesse período o estado do Pará, de forma particular a capital paraense, Belém, desfrutava do crescimento econômico oriundo da produção e exportação do látex, iniciadas na metade do século XIX, o que favoreceu o processo de embelezamento da cidade de Belém, aos moldes higienistas e europeus. As discussões acerca da modernidade do país passavam pela necessidade de eliminar muitas mazelas, entre as quais se podem citar a ignorância e as epidemias, e se fizeram presentes entre as elites paraenses, que encontraram no discurso higienista uma forma de combater as doenças e moldar comportamentos.
Ao longo desse período, tais discursos higienistas se consolidaram e transformaram-se em um verdadeiro movimento político-social e, aliados aos discursos nacionalistas que antecederam a Primeira Guerra Mundial, davam base científica para interpretar os problemas e propor soluções para a construção da nação. Dessa forma, as mazelas não eram apenas as doenças, mas também os obstáculos ao progresso e ao desenvolvimento da civilização (Lima & Hochman, 2000).
Assim, este estudo tem por objeto a relação entre educação e higienismo na Amazônia paraense, representada no periódico pedagógico A Escola, produzido no estado do Pará entre os anos de 1901 e 1905. O objetivo é analisar essa relação entre educação e higienismo na Amazônia paraense e sua materialização nos discursos de homens de ciência, veiculados no citado periódico entre os anos de 1901 e 1902, para entender o sentido epistêmico que assumiram.
Como aporte teórico-metodológico, buscaram-se as contribuições de Jörn Rüsen (2015) mediante os princípios do método histórico, bem como o diálogo entre a Nova História Cultural a partir das noções de práticas e representação apresentadas por Roger Chartier (1987, 1991) e as perspectivas teóricas da decolonialidade, a saber: Aníbal Quijano (2005), Walter Mignolo (2010) e Maldonado-Torres (2007).
As contribuições da Nova História Cultural passam pelo seu interesse por novos sujeitos, principalmente os do processo cultural (produtores e receptores), visto que tem por objeto de estudo as manifestações culturais das mais variadas formas. Além disso, seus estudos se apresentam com uma dimensão múltipla, plural e que pode gerar diversas aproximações entre diferentes áreas do conhecimento e de outros aportes teóricos.
Dentro das variedades da Nova História Cultural, são os estudos desenvolvidos por Roger Chartier que orientam a pesquisa, a saber, as noções de representação (modo de ver) e prática (modo de fazer), pois entendem a cultura produzida entre essas duas noções. Dessa forma, o autor afirma que a História Cultural “tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (Chartier, 1991, pp. 16-17).
A possibilidade da aproximação com outras áreas e perspectivas teóricas apresentadas pela Nova História Cultural ensejou o diálogo com as teorias decoloniais. Tal aproximação parte da compreensão de que a construção da cultura, os modos de pensar e fazer, bem como as relações existentes entre os sujeitos culturais (produtores e receptores), estão atrelados a relações de poder. No que concerne às construções socioculturais da América Latina, essas relações de poder foram construídas ao longo do processo de colonialismo e de estruturas que mantêm a colonialidade do poder/ser e saber.
Em tal contexto, as teorias decoloniais favorecem o estudo em tela, pois permitem pensar como as relações de poder se constituem e perduram na sociedade, privilegiando grupos sociais e mantendo a dependência em relação à Europa e ao sistema capitalista. Dessa forma, autores como Aníbal Quijano (2005), Walter Mignolo (2010), Maldonado-Torres (2007) e Grosfoguel (2008) possibilitaram pensar as estruturas de colonialidade existentes na sociedade paraense do início do século XX.
Como aporte metodológico, as contribuições de Rüsen (2015) com o método histórico foram relevantes na construção da pesquisa, pois os critérios desenvolvidos pelo autor possibilitaram a organização e fundamentação do pensamento histórico construído durante o estudo. Assim, seguiram-se as fases de construção da pesquisa: a heurística, a crítica e interpretação das fontes e dos fatos, tornando-os históricos, ou seja, dando-lhes uma configuração, um enredo histórico. Como fonte documental, utilizaram-se artigos da revista A Escola (edições de 1901 e 1902), a legislação educacional e os relatórios de órgãos governamentais responsáveis pela instrução no Pará. Os documentos que compuseram o corpus foram coletados no Arquivo Público do Pará (Apep) e na Biblioteca Pública Arthur Vianna.
Revista A Escola: Constituição e alcance
A revista A Escola foi fundada pelo diretor-geral da Instrução Pública do Pará, dr. Virgílio Cardoso de Oliveira, e teve como vice-presidente o desembargador Augusto Olympio de Araújo e Souza. A revista foi organizada e disponibilizada em volumes, contendo em média trezentas páginas cada, sendo possível encontrar publicações de vários meses reunidas em um único volume. As seções estavam organizadas da seguinte forma: 1. Doutrinas; 2. Contos e Biografias; 3. Exercícios escolares; 4. Conselho Superior; 5. Administração; 6. Legislação; 7. Noticiários e Correspondências.
A criação do periódico se deu através do Decreto n. 625 de 1899, referente à reorganização do ensino primário no estado do Pará, que instituiu a publicação de uma revista pedagógica a fim de auxiliar na promoção do desenvolvimento da instrução pública paraense, bem como divulgar os progressos da política educacional no estado.
O periódico, de caráter oficial, circulou no Pará de 1900 a 1905. Logo no artigo do editorial, escrito pelo redator Castro Pinto (1900, p. 3),1 afirma-se que é um periódico vinculado ao estado do Pará, expressando sua conexão com os interesses do estado.
O contexto do surgimento da revista estava inserido nos discursos das elites da Primeira República, imbuídas das ideias de modernidade, progresso, civilização, tendo como referência a Europa. Como afirma Cruz (2014, p. 23):
. . . a imagem de uma República moderna, de uma nação soberana que estivesse no mesmo patamar das ditas nações civilizadas, ou seja, europeias necessitava de vários instrumentos que possibilitassem sua construção. A educação foi um dos setores escolhidos. As elites entendiam que somente através da educação seria possível modificar a situação do país, a partir disso, o setor educacional começou a ganhar espaço dentro do ideário republicano, tornando-se um dos seus ideais.
Percebe-se que os discursos da época - dos quais as elites brasileiras se alimentavam e que reproduziam por meio das representações construídas e das práticas desenvolvidas - expressam a colonialidade do poder. Observam-se, em tais discursos, elementos significativos do eurocentrismo, segundo Quijano (2005), a saber: a articulação entre o dualismo não europeu e europeu; primitivo e civilizado; tradicional e moderno. Nesse sentido, observa-se que o processo de desenvolvimento da sociedade acontece a partir de “um evolucionismo linear, unidirecional, de algum estado de natureza à sociedade moderna européia . . . Todas estas operações intelectuais são claramente interdependentes. E não teriam podido ser cultivadas e desenvolvidas sem a colonialidade do poder” (Quijano, 2005, pp. 117-118).
Uma das formas encontradas para disseminar as ideias supracitadas foi a sua materialização por meio das revistas pedagógicas. Segundo Bastos (2000), no ano de 1890 foi implantada uma revista intitulada Pedagogium na cidade do Rio de Janeiro como iniciativa do governo republicano (Decreto n. 667, de 16 de agosto de 1890), mediado pelo então ministro Benjamin Constant e de inspiração francesa, que pretendia estimular discussões sobre educação e renovação da pedagogia.
Em face do contexto apresentado, observa-se que uma das vias de materialização e circulação das ideias sobre educação no final do século XIX foram as revistas pedagógicas. Nesse sentido, o periódico A Escola se apresenta como veículo de divulgação das discussões dos intelectuais e da elite acerca do que se pretendia para a educação paraense.
O público-alvo da revista eram os professores do ensino primário, compreendidos como o grupo multiplicador das ideias educacionais no ambiente escolar. Eles recebiam o periódico por meio de uma contribuição mensal de 6.000 réis, descontada do seu salário, como observado no Decreto n. 840 de 30 de abril de 1900.
A obrigatoriedade da assinatura da revista estava inserida na perspectiva de formar o professor para colaborar na construção do cidadão aos moldes republicanos. Dessa forma, a revista contribuiu para a construção de concepções educacionais na mentalidade dos professores e, consequentemente, influenciou a formação dos cidadãos da época (Pinto, 1900). Construir determinadas representações culturais de professor e de seus respectivos alunos como cidadãos republicanos era uma demanda do período que ainda estava em fase de consolidação. Em seguida, o próprio redator anuncia o principal objetivo da revista, dita como “uma ampliação do meio intelectual que pretendemos crear, como fóco de vulgarização no professorado paraense, que na leitura de semelhante dissertação encontrará o melhor dos preparos theoricos para o seu patriótico mister” (Pinto, 1900, p. 6).
A partir do trecho supracitado, observa-se que a formação dos docentes do Pará aos moldes dos princípios patrióticos era o maior objetivo da revista, que atuava como veículo das reformas educacionais dos republicanos. Assim, entendia-se que se formariam “bons” professores segundo os princípios do período.
Tais princípios estão inseridos na perspectiva da República de se contrapor ao período imperial, pois “a preocupação estava em se posicionar na sociedade como novidade perante o Antigo Regime e para isso encontraram na educação uma via em que se posicionava contra o Império” (Cruz, 2014).
Tendo como seu principal alvo o docente atuante no Pará, o periódico A Escola não poderia deixar de esclarecer a função atribuída a esse profissional, que superava o ato de:
. . . prontificar a memoria do discípulo com a arte de ler e escrever. Esta ultima acquisição é apenas um meio, o fim é muito mais nobre e elevado: cultivar methodicamente as faculdades intellectuaes do menino, para torna-lo adulto no espirito, quando for adulto no corpo, isto é, torna-lo apto em conhecer por si, autônomo no raciocínio, homem feito no pensar. É a gimnastica do espirito, tao logica efficaz como a dos musculos e articulações. (Pinto, 1900, p. 4).
Pelo exposto acima, o professor deve cultivar o intelecto do aluno levando em conta, para tal finalidade, suas particularidades. Esse poder de classificar os alunos contribui para construir polaridades que incluirão alguns e excluirão outros: de um lado, os alunos saudáveis, inteligentes, com boa moral e vocacionados para elevados cargos no regime republicano; de outro, os alunos doentes, anormais, que aprendem de forma diferente, que só têm capacidade para trabalhos manuais. Essa hierarquização atua como base para a manutenção do sistema mundo moderno/colonial, ancorado na divisão social do trabalho e na desumanização de pessoas (Grosfoguel, 2008).
Outra parcela dos leitores da revista é anunciada por Pinto (1900, p. 5) ao abordar a finalidade da seção “Contos e Biografia”, que objetivava ensinar lições de moral, de civismo e incentivar a criatividade por meio de poesias, histórias e novelas. Assim, para o autor, a revista seria necessária para além dos sujeitos diretos da educação formal, uma vez que se faria necessário propagar uma ordem social a ser estabelecida na sociedade paraense.
Assim se amplia o objetivo do periódico, que não se limita ao alcance somente dos docentes, mas alcança outros nichos sociais. Essa ampliação do público-alvo faz refletir sobre os outros possíveis motivos pelos quais a revista esteve em circulação, entre os quais: convencer não somente a elite intelectual brasileira, mas todas as pessoas que tiverem acesso ao periódico da necessidade e importância do projeto educativo engendrado pelo regime republicano, obtendo assim apoio desses estratos sociais; divulgar o ideário médico-higienista, bem como as ações governamentais realizadas para atender a essas prescrições; construir uma representação civilizada, ordeira e higienizada dos professores e alunos do Pará.
Maldonado-Torres (2007) postula que existem formas sutis de colonizar pessoas. Essas estratégias podem envolver materiais pedagógicos trabalhados na escola, a construção de imagens a respeito de si mesmo e dos outros e os desejos incutidos na mente das pessoas. Nessa lógica, o periódico A Escola assume um papel relevante como parte do projeto de desenvolvimento republicano para o Brasil e, particularmente, para o Pará.
A função social da Escola, Família e Estado: A construção do edifício social
As seções construídas para compor a revista servem de espaço privilegiado para a apresentação de artigos que afirmam e endossam a construção de representações socioculturais pautadas pela colonialidade. Corroborando Maldonado-Torres (2007), entende-se que a materialização de concepções, bem como orientações de práticas a partir delas, pode ser uma forma sutil de colonizar as pessoas, impondo concepções da cultura europeia à sociedade brasileira como a melhor a ser seguida.
A seção “Divagações” da revista A Escola trouxe em novembro de 1901 o artigo intitulado “Escola, Família e Pátria”, escrito pelo professor Augusto Pinheiro. Coelho (2003) indica que esse professor era autor de livros didáticos distribuídos pela diretoria de instrução do Pará, como a obra Primeiro Livro, recomendada em 1893.
Partindo da concepção de que escola, família e Estado atuam para o bem-estar da sociedade, Pinheiro (1901, p. 91) discorre sobre o papel de cada uma dessas instituições sociais. A escola, segundo o autor, é semelhante a um templo religioso onde o futuro glorioso da sociedade é moldado. Ela possui cinco elementos principais: os mestres, os discípulos, o estudo, a disciplina e a ordem. Os mestres são aqueles que, operando sobre os espíritos jovens, teriam a responsabilidade de preparar o futuro da infância. Assim tornam-se “apóstolos mais perseverantes e pensionados do Estado” que carregam a “cruz do ensino”.
A partir dos elementos supracitados verifica-se que a representação de professor veiculada por Augusto Pinheiro adota palavras utilizadas no meio religioso, como sacerdotes, apóstolos e cruz. Essa aproximação poderia ser uma estratégia para incentivar o professor a ser obediente ao Estado promovendo a formação de cidadãos úteis à pátria, assim como ele aprendeu a ser obediente a Deus. Esse é um possível reflexo do processo de colonização portuguesa que procurou civilizar o Brasil por meio da religião católica.
Nesse sentido, a palavra cruz é compreendida como peso, sacrifício. Como servos obedientes, os professores deveriam voltar-se para o cumprimento de sua missão redentora por meio da educação, sendo assim comparados aos semeadores do evangelho. Coelho e Silva (2010) analisaram a representação de professor veiculada em revistas pedagógicas do Pará entre 1900 e 1919, verificando a configuração de um professor patriota, moderno, republicano, atualizado sobre os métodos educacionais mais avançados e compromissado com o progresso do país.
No Regulamento geral da instrucção pública e especial do ensino primário do Estado do Pará, o professor era representado como um agente privilegiado de divulgação da boa moral na escola. Dessa forma, seu comportamento de cidadão higienizado, testemunha da moral e do amor às instituições era tido como um exemplo a ser imitado (Direção Geral de Instrucção Pública do Ensino Primário, 1890).
Nessa linha de pensamento, cabia ao professor evitar hábitos prejudiciais em seu horário de trabalho, tais como infligir castigos físicos aos alunos, fumar ou mascar tabaco ou praticar qualquer vício durante as aulas (Direção Geral de Instrucção Pública do Ensino Primário, 1890, art. 9). A constante preocupação em afastar os alunos dos vícios prejudiciais à moral e à saúde era tema caro aos higienistas brasileiros no fim do século XIX e início do XX. Compreende-se a partir da análise desse texto legal que o professor, como referencial que era, deveria mostrar um comportamento idôneo e inquestionável, assumindo, assim, o exercício do que se entendia como sua missão como um verdadeiro apostolado, de que ele deveria procurar ser sempre digno.
Pinheiro (1901, p. 92) afirma que a educação transmitida pela família ocorre desde o início da vida e confere às crianças “a prática dos bons exemplos e dos mais profícuos ensinamentos”. A instrução escolar, por sua vez, começaria por volta de 7 anos em diante, podendo estender-se até a morte, dando um sentido de linearidade e continuidade às práticas educativas. Assim, Pinheiro defendia que caberia aos professores aperfeiçoar a educação dada no lar.
Na análise realizada por Gondra e Garcia (2004), a representação da família e, parti- cularmente, da mãe como educadora natural da infância vinha ao encontro da necessidade de conferir papéis sociais definidos. Estes almejavam permitir que a higiene estivesse presente na formação da criança desde a mais tenra idade, influenciasse a concepção de família e promovesse a ordem social.
Na sequência, a racionalidade médico-higiênica trabalhou para convencer as pessoas de que havia uma idade ideal para o processo de escolarização. Sobre isso, Rocha e Gondra (2002) identificaram em teses médicas brasileiras do século XIX a recomendação de que somente aos 7 anos a criança poderia ser encaminhada ao espaço escolar. Desse modo, a representação de educação para Pinheiro (1901) é de um processo contínuo de aprendizagem e aperfeiçoamento.
A educação postulada por Pinheiro (1901, pp. 92-93) deveria formar discípulos cujas marcas mais expressivas fossem “a docilidade na mais fiel obediência, o amor ao trabalho na mais comprovada comprehensão de seus deveres, o gosto pela sciencia na mais eloquente dedicação ao estudo”. Desse modo, a aproximação entre os sentidos das palavras aluno e discípulo confere à escola o papel de “templo de ensinamento”, e ao aluno, o dever de obedecer e respeitar docilmente as regras higiênicas, como se dá em relação às leis sagradas de Deus.
A higiene, então, assume as formas de uma espécie de religião promotora de indivíduos obedientes, trabalhadores e cultos. Jurandir Costa (2004, p. 67) analisou estratégias médico-higienistas que atuaram sobre a sociedade brasileira a partir do século XIX, inferindo que elas buscavam “demonstrar que a incapacidade de amar o Estado era uma doença. E, por extensão, postular que a submissão do indivíduo ao governo estatal não era sintoma de anulação política, mas prova de boa saúde”.
Para além disso, Lima e Hochman (2000, p. 314) destacam que “o movimento pelo saneamento teve um papel central e prolongado na reconstrução da identidade nacional”, o que corrobora nossa compreensão de que os discursos presentes no periódico A Escola que difundiam o pensamento médico-higienista na sociedade paraense eram entendidos como de fundamental importância para a construção de uma sociedade desenvolvida e civilizada.
Em A Escola, Pinheiro (1901) demonstra que a ênfase dada à formação para o mundo do trabalho, defendida através da revista, era diferenciada de acordo com o grupo social ao qual se destinava, pois do contrário esta não cooperaria para a manutenção do regime republicano. Em seguida, o mesmo autor aborda a importância da disciplina - que seria a origem da ordem, alicerce da sociedade, vista como um edifício social. A metáfora do edifício nos remete a diferentes graus hierárquicos em que a disciplina viria a estabelecer as normas de conduta para todos.
Assim, a educação proposta colabora com a coesão social ao trabalhar a ignorância. Nessa lógica, se obedecer e manter a ordem é necessário a todos os níveis sociais, chegar aos mais elevados graus do edifício do status social não é para todos (Pinheiro, 1901).
Para ter uma ideia da exclusão existente nesse período, vale citar o censo de 1900 apontando que 65,3% da população brasileira com 15 anos ou mais era analfabeta. Além disso, existiam apenas 521 profissionais liberais entre os 490.784 habitantes do Pará (Diretoria Geral de Estatística, 1908). A forma como tipos diferentes de educação têm sido oferecidos a determinados grupos sociais, produzindo uma divisão social do trabalho, pode ser expressa como colonialidade do poder capitalista mundial, que tem suas bases na organização social e econômica colonial (Quijano, 2005).
Rizzini (2004, p. 212) realizou um estudo que abrangeu o período de 1850 a 1889, identificando alguns dos principais objetivos da educação ofertada na Amazônia aos filhos da população de menor poder aquisitivo: a formação do trabalhador disciplinado e moralizado. Para a pesquisadora, apesar do intuito do governo de expandir a educação por meio da criação e manutenção de escolas primárias e internatos públicos voltados para este fim, a iniciativa não incluiu a maioria das crianças desvalidas. Em geral, esses alunos não davam continuidade aos estudos nas escolas primárias de segundo grau, reforçando a ideia de uma educação que se mostrou dualista. Por meio desse projeto educativo a elite intelectual do período pretendia desmistificar a ideia de que a população da Amazônia fosse “selvagem” e, em contrapartida, construir uma representação civilizada para o povo amazônida.
O último item do qual trata Pinheiro (1901, p. 98) é a Pátria, que aparece representada como “divindade” à qual todos devem se curvar e como “mãe generosa” que desconhece distinção entre os seus filhos, sejam eles “o branco ou o preto, o rico ou o pobre, o grande ou o pequeno, a criança ou o velho, o nobre ou o plebeu, todos tem o mesmo valor para ella”. Quijano (2005, p. 107) questiona essa suposta igualdade existente nas nações latino-americanas ao situar a raça como categoria mental da modernidade que produziu identidades e relações sociais hierárquicas:
Na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, como constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população.
A influência dessa classificação social esteve presente nas discussões dos higienistas brasileiros, entre eles o dr. Américo de Campos (1901a, p. 61), que foi o relator da comissão escolhida pelo Conselho Superior de Higiene do Pará para explicar as causas da mortalidade infantil no estado. Em seu estudo ele identificou uma taxa de mortalidade maior entre negros, índios, proletários e pobres em geral, associando o fato à precária educação dos pais dessas crianças. Particularmente em relação às mães dessas crianças, vale destacar que foram representadas como “ignorantes” a respeito dos cuidados higiênicos a serem tomados. Nesse sentido, ainda que considerasse o elemento econômico como importante no acesso dessas famílias ao atendimento médico e a uma boa alimentação, o médico salientou a necessidade de que os ensinamentos da higiene fossem amplamente divulgados para combater a “ignorância”:
. . . nossa aspiração altruística e patriótica, sentir sobre ellas [as crianças] caírem os olhares de todos os cérebros. . . . sobejamente provado ficou ser causa importante da mortalidade infantil o ignorarem muitíssimos paes os melhores e mais uteis cuidados exigidos pelos recém-nascidos, aleitando e infante. Para obviar esta falta entendemos ser conveniente publicar, espalhando-as largamente, instrucções hygienicas, adaptadas ao caso, escriptas em linguagem simples, ao alcance da mais obtusa inteligência. (Campos, 1901d, p. 114).
Ao estigmatizar os pais das crianças como ignorantes, Campos (1901d) expressa em seus escritos a colonialidade do ser que, para Maldonado-Torres (2007), influencia tanto a percepção dos que são desumanizados, os pais, como daqueles que se julgam superiores, os higienistas. Essa desumanização é naturalizada como estratégia de colonização do “outro”, fazendo com que a revista A Escola sirva ao propósito de construir representações diferentes e hierarquizadas: de um lado, os médicos como detentores do saber higiênico; de outro, a população subalterna que ignora esse saber.
Com base nessa representação de que os negros, os índios e os pobres são ignorantes, Campos ministrou conferências, publicou artigos e até um manual de higiene com a finalidade de divulgar os preceitos da higiene entre a população. Em seu manual intitulado Noções geraes de Hygiene, aprovado pelo governo do Pará e adotado no Colégio Paes de Carvalho, Campos (1912, p. 97) esclarece: “as crianças . . . não possuem uma vontade consciente e clara, . . . para avaliar a importância d’um conselho hygienico; . . . para os paes e responsáveis pela vida e pela saúde do infante é que formula-se instrucções neste sentido”.
Dessa forma, as metáforas utilizadas por Pinheiro (1901, p. 98) que comparam a pátria a uma “santa mãe” remetem ao respeito pelo sagrado. A Pátria é representada como entidade moral que, por cuidar de seus filhos de forma igual, supostamente merece a submissão e o cumprimento dos deveres. Assim, observam-se um silenciamento sobre os direitos dos cidadãos e, em contrapartida, uma ênfase no dever cívico de submissão.
Pelos argumentos expostos, Pinheiro (1901) vincula a educação a uma postura nacionalista, sobre a qual Jurandir Costa (2004, p. 63) discute enfatizando que: “Todo o trabalho de persuasão higiênica desenvolvido . . . vai ser montado sobre a ideia de que a saúde e a prosperidade da família dependem de sua sujeição ao Estado”.
Partindo da representação da higiene como estratégia para construir uma concepção ordeira, civilizada e higienizada de Belém e da pátria brasileira, Campos (1901b, pp. 72, 76,77, grifo nosso) também recorre ao patriotismo e à formação de uma autoestima entre os brasileiros por meio da educação, afirmando que
A hygiene nos será por socorro, pondo-se em pratica medidas preventivas. . . . Com patrio- tismo e vontade decidida tudo se vence, segura torna-se qualquer conquista no campo da sciencia! . . . Assim nos encheremos de valor e convencer-nos-emos de que somos adiantados e fortes, - um povo pujante, novo, encarando o futuro, calmo, resoluto, desassombra- do! . . . Torna-se forte quem intimamente se convence de que o é. . . . Não atingimos o apuro de Pariz porque principiamos agora. Chegaremos, porem! . . . Trabalhemos para isso.
Em face desse contexto, Pinheiro (1901, p. 98) finaliza seu artigo com a significativa exclamação: “Amemos, portanto, a Patria, trabalhando por ella, batalhando pela sua defesa, indo mesmo até ao sacrilégio da vida se necessário fôr”.
Wallerstein (2006, p. 30) problematiza essa retórica nacionalista existente na América Latina que impõe uma classificação hierárquica no mundo moderno colonial. Esse nacionalismo, apesar de se apresentar nos escritos de intelectuais como uma proposta de igualdade de direitos entre os cidadãos, na realidade coloca os homens acima das mulheres, os brancos como superiores aos negros, os adultos como estando acima das crianças, os cultos como sujeitos mais avançados em relação aos que não têm acesso à educação e os burgueses junto com os profissionais liberais como estando acima de trabalhadores:
El nacionalismo assume com frecuencia la forma de vínculos entre los lados de cada antinomia fusionados em uma categoria, para que uno pueda, por ejemplo, crear uma norma que sostenga que los hombres blancos heterossexuais de etnias e religiones especificas son los únicos que puden ser considerados “verdaderos” ciudadanos.
O referido artigo apresenta a apropriação, por parte de Pinheiro (1901), de representações que circulavam na religião cristã do período em questão estabelecendo um vínculo destas com o Estado, a educação e a família. Ainda que a proposta educativa do regime republicano se considerasse laica, a produção desse homem de ciência indica que existia um forte apelo na tradição religiosa, a ponto de possibilitar uma negociação entre suas redes de significados. Dessa forma, é possível observar a maneira como a matriz colonial de poder opera numa rede de relações que envolvem, segundo Mignolo (2010, p. 50), diversos âmbitos sociais. Entre eles destaca-se o âmbito do gênero/sexo dominado “por la estructura de la ‘sagrada família’ que revela la cumplicidad entre capitalismo, cristianismo y família burguesa”. Assim, cada sujeito assume um papel adequado à manutenção desse sistema mundo moderno colonial: a família como base moral da criança e mantenedora da estabilidade social; a escola como templo sagrado onde os professores-sacerdotes ensinam aos alunos-cidadãos a obediência às regras sociais e o amor ao trabalho; a pátria como mãe e santa que precisa ser reverenciada.
Modelando comportamentos
Uma vez abordadas as representações de escola, família e pátria a partir da produção de um professor, vale destacar uma estratégia de modelar comportamentos no espaço escolar a partir da adoção de um método amplamente discutido no campo da saúde: a hipnose.
“O hypnotismo em pediatria e pedagogia” foi o título do artigo divulgado em dezembro na revista A Escola. O médico Francisco de Paula Fajardo Júnior, autor do artigo, publicou sua tese, considerada a primeira obra sobre hipnose do Brasil, em 1889, tendo tamanha repercussão que foi transformada no Tratado de Hipnotismo, publicado em 1896. Ele atuou como professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e foi um dos pioneiros em estudos de microbiologia no Brasil (Câmara, 2003; Fajardo, 1901).
Fajardo (1901, p. 125) inicia seus argumentos em prol da hipnose conceituando o termo sugestão: “até os actos os mais insignificantes praticados por uma influencia psychica qualquer; muitas vezes por um habito, o que quer dizer uma sugestão muito repetida”. Nesse contexto, atividades comuns são compreendidas como sugestões. A fim de se aproximar do cotidiano das crianças, o médico apresenta que a educação cotidiana dos pais para com os filhos é uma perene sugestão ao cérebro da criança.
Entre os benefícios do uso da hipnose, Fajardo (1901, p. 126) alega que por meio dela é possível disciplinar paixões e promover “a diminuição da criminalidade, pela orthopedia moral”. Assim, seu uso era indicado por Fajardo com base nas pesquisas de médicos franceses, como Edgar Bérillon e Paul Louis Ladame. A influência europeia no escrito de Fajardo reforça a dependência dos higienistas brasileiros em relação aos saberes eurocentrados, demonstrando a colonialidade do saber e seu intuito de modelar as vontades das crianças consideradas anormais, “viciosas ou degeneradas” (Fajardo, 1901, p. 129).
Entre os casos para os quais a hipnose era indicada, Fajardo (1901, p. 126) cita “creanças viciosas, impulsivas, recalcitrantes, incapazes da menor attenção e da menor aplicação, manifestando propensão para os máos instinctos”. Os casos “problemáticos” do trecho supracitado indicam a necessidade de prevenir ou corrigir deformações engendradas na mente dos educandos, configurando a representação da pedagogia como ortopedia (Carvalho, 2003; Chartier, 1987).
Segundo Elias (1994), a preocupação em corrigir a criança em seus impulsos emocionais tem relação com os modelos historicamente mutáveis de formação de afetos. Nesse sentido, a representação de homem civilizado e higienizado requerida pelo regime republicano era a de cidadão dócil e útil à pátria, o que explica em parte a classificação de crianças que contestam a ordem estabelecida como “anormais”. Elias esclarece (1994, p. 146):
A criança que não atinge o nível de controle das emoções exigido pela sociedade é considerada como “doente”, “anormal”, “criminosa”, ou simplesmente “insuportável”, do ponto de vista de uma determinada casta ou classe e, em consequência, excluída da vida da mesma.
Colocando como critério a competência técnica do hipnotizador, Fajardo (1901, p. 127) se defende das acusações de que o hipnotismo pode provocar malefícios às crianças, como histeria. Em seguida o médico descreve a técnica aplicada em crianças, conforme as instruções de Edgar Bérillon publicadas no “Congresso de Hypnotismo de 1889”: “hypnotizar por sugestão, proceder assim, com voz baixa, doce e persuasiva. . . . A creança dorme logo e obedece a sugestões”. As apropriações feitas em relação à aplicação da hipnose, inicialmente realizada em adultos e em ambiente de tratamento médico, mostram o esforço da medicina por controlar também as crianças, que, por se tratar de seres compreendidos como frágeis, precisavam de maiores cuidados. Assim, os leitores médicos que se apropriaram dessa técnica buscaram ambientes não hospitalares para utilizarem os princípios da hipnose no universo infantil.
A sessão de hipnose, de acordo com o dr. Fajardo, deve ocorrer em local silencioso e ser acompanhada de ordens como “dorme”. Nos casos resistentes, o médico recomenda “fechar os olhos da criança, com os polegares . . . afirmando que as pálpebras estão coladas” (Fajardo, 1901, p. 128). Pelos trechos destacados, a mente infantil se torna também um alvo do controle e da disciplina, dessa vez por meio de recursos que supostamente afetam o inconsciente, automatizando práticas tidas como normais e ideais. Isso, porém, não impede que sejam combinadas estratégias que incidem sobre o corpo do aluno, como fechar seus olhos com os dedos. Outro exemplo disso está na recomendação de Bérillon de que a combinação de hipnose e exercícios físicos regulares pode ser adotada para tratar doenças como a “chórea”.2
A fim de apontar os resultados positivos da hipnose em crianças, Fajardo indicou que o médico francês Ambroise-Auguste Libeault obteve 84% de sucesso ao tratar crianças que apresentavam “ticos nervosos de gagueira, . . . de onanismo irresistível, . . . de ataques convulsivos, de hysteria, de perturbações puramente funccionaes do sistema nervoso”. Interessante perceber que, entre os maus hábitos das crianças representadas como “viciosas ou degeneradas”, se encontram elementos ligados diretamente aos objetivos da racionalidade médico-higiênica, mostrando que existiam diferentes estratégias dos higienistas para “corrigir” determinadas falhas tidas como inaceitáveis (Fajardo, 1901, p. 128).
O dr. Fajardo (1901) sintetiza seu posicionamento explicando que a influência moral que os homens exercem uns sobre os outros depende de uma série de elementos, como idade, sexo, estatura, temperamento. Esses fatores indicam que, além da faixa etária, também estão presentes as questões de gênero e aspectos biológicos que determinam o tipo físico dos indivíduos para classificar as pessoas como mais frágeis moralmente em relação a outras representadas como mais fortes e resistentes. O dr. Américo Campos (1901c, p. 89) explana sobre a fragilidade atribuída às crianças e a necessidade de auxílio: “a creança está exposta a todos os assaltos da moléstia, se a pessoa interessada . . . não auxiliar com sua intervenção tudo quanto milita em favor da vida do infante”.
Essa classificação entre frágeis e fortes se configura como uma maneira de hierarquizar pessoas no processo de materialização da colonialidade do poder na formação de indivíduos que Maldonado-Torres (2007) discute: a colonialidade do ser. Além disso, Fajardo (1901, p. 129) afirma que:
. . . as raças inferiores em gráo de civilização, v.g; os negros, os índios, são mais impressio- náveis; . . . as mulheres são mais suceptiveis á influencia sugestiva, os seres debilitados ou fracos, e mais que todas, as creanças e os jovens; provado tudo isto, era de prever que a suggestao hypnotica fosse aproveitada na pedagogia, na educação em geral; tendo em vista corrigir as inclinações viciosas da creança e do adolescente.
Ao estabelecer raças inferiores e superiores de acordo com o processo de civilização, considerando também inferiores mulheres, crianças e jovens, Fajardo (1901) se apropria de um processo de construção de identidades que estabelece relações sociais de dominação com base nos conceitos de raça e de gênero. Para Quijano (2005), tais relações se associam ao estabelecimento de hierarquias sociais que colocam determinados grupos em posição de inferioridade. Assim, não são apenas determinadas características fenotípicas que foram desvalorizadas, mas também aspectos da cultura e da mentalidade de alguns grupos sociais. A tentativa de provar a “validade” das representações construídas pela racionalidade médico-higiênica a respeito desses grupos residia, provavelmente, na intenção de justificar a necessidade de intervenção na saúde e na educação desses sujeitos por meio dos preceitos higiênicos (Chartier, 1987, 1991). Nesse contexto, Maldonado-Torres (2007) discute o conceito de heterogeneidade colonial ao tratar das diferentes formas de desumanizar pessoas levando em conta a ideia de raça.
A relação entre a moral e a higiene também foi estabelecida na análise de Elias (1994, p. 153):
Grande parte do que chamamos de razões de “moralidade” ou “moral” preenche as mesmas funções que as razões de “higiene” ou “higiênicas”: condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social. A modelagem por esses meios objetiva a tornar automático o comportamento socialmente desejável, uma questão de autocontrole, fazendo com que o mesmo pareça à mente do indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria saúde ou dignidade humana.
Em face da discussão realizada, verifica-se que a ênfase recai sobre as crianças e os adolescentes nos escritos de Fajardo, motivo pelo qual o médico confere tanta importância às crianças. Assim, a revista A Escola pretendia imprimir na mente dos profissionais da educação a concepção de que seria possível imprimir sugestões nas crianças a fim de moldá-las para viver conforme comportamentos aprováveis pela sociedade e repassadas a elas através da educação escolar (Fajardo, 1901). Dessa forma, a representação social construída sobre os alunos das escolas brasileiras, crianças e adolescentes, é de indivíduos moldáveis como a cera, facilmente manipuláveis pela colonialidade do ser (Chartier, 1987, 1991; Maldonado-Torres, 2007).
A problemática sobre os alunos que fugiam aos parâmetros da normalidade também foi assunto do artigo intitulado “A sugestão heterogenética em pediatria e pedagogia”, publicado em 1902 na revista A Escola pelo médico Arthur Vianna. Esse homem de ciência foi um paraense nascido em Belém no ano de 1873. Diplomado em Farmácia e Medicina no Rio de Janeiro, exerceu a função de jornalista. Atuou no magistério nas áreas de Matemática e Ciências Naturais no Liceu Paraense3 e foi diretor da Biblioteca Pública do Pará4 (Vianna, 1902, p. 5).
O artigo se propôs a trazer uma possibilidade de atuação do docente para sanar os problemas apresentados pelo aluno considerado rebelde ou descuidado insensível aos castigos oferecidos (Vianna, 1902). Uma nova questão é discutida pela racionalidade médico-higiênica quando se trata do uso da hipnose em discentes: a relação entre o comportamento moral das crianças e sua repercussão sobre a saúde e a aprendizagem. Nesse sentido, vale ressaltar as considerações que Jurandir Costa (2004, p. 142) tece a respeito:
. . . a teoria da inter-relação entre o físico e o moral permitia essa oscilação do olhar médico do corpo ao sentimento. Toda lesão física repercutia sobre a emoção e vice-versa. A noção de paixão estabelecia o vínculo material e teórico entre os dois fenômenos e legitimava a extensão da ação médica ao comportamento e às emoções. As manifestações emocionais costumavam provocar desequilíbrio orgânico, ameaçando a saúde.
O professor Arthur Vianna inicia sua argumentação trazendo exemplos de médicos franceses, como Auguste Ambroise Liébault, Hippolyte Bernhein e Henri Etienne Beaunis, que estudaram empiricamente em crianças. Liébault fundou a Escola de Nancy em 1823 e defendia que a hipnose pode ser induzida em qualquer pessoa e não somente em pacientes histéricos, como preconizava a escola de Salpêtrière comandada por Jean Charcot. Fajardo também tinha a mesma posição de Arthur Vianna (Pereira, 2010; Vianna, 1902, p. 5).
Dessa forma, Vianna (1902, p. 5) busca construir uma representação do hipnotismo como método reconhecido mundialmente a partir de exemplos de ações já empreendidas em países considerados mais avançados, tornando explícita a colonialidade do saber em seus argumentos:
Em alguns paizes, onde a instrução publica se encontra em bela phase de progredimento, o hypnotismo é já um fator importante de moralização e educação; alunos, cujos actos revelavam um futuro desastroso . . . metamorphosearam-se completa e duradouramente; o professor começará sua tarefa em um terreno sáfaro.
Partindo dessas referências, Vianna (1902, pp. 5-6, grifo nosso) problematiza o contexto brasileiro: “Nos meios menos adiantados, bem como o nosso, não tem o professor a seu lado o medico para operar a transformação desejada. . . . Não deve jamais o professor tentar o hypnotismo; falta-lhe a competência technica indispensável”. O médico procura no trecho em destaque uma forma de conciliar a necessidade de intervenção médica na escola com a deficiência de profissionais que ali atuam. Como médico, ele não poderia atribuir ao professor a aplicação de uma técnica restrita aos profissionais de saúde, mas, como professor, ele desejava contribuir propondo uma solução. Esta se daria quando ele diferencia, dentro do conjunto de recursos do hipnotismo, a hipnose, a sugestão autogenética e a sugestão heterogenética:
A sugestão pode ser hypnotica, isto é, produzida pelo suggestionista durante o somno hypnotico; ou no estado de vigília, quando a produz a persuasão, a intimação, no individuo acordado. Esta ultima espécie de sugestão, denomina-se autogenética ou auto-suggestão, se parte do próprio cérebro do paciente; e heterogenetica se constitue uma ideia concebida fora da percepção psychica do sugestionado. (Vianna, 1902, p. 6).
De acordo com o trecho supracitado, a sugestão hipnótica é acompanhada do sono hipnótico, enquanto a autossugestão e a sugestão heterogenética ocorrem com o indivíduo acordado. Para Vianna (1902), somente o médico pode aplicar a sugestão hipnótica, sendo a autossugestão, por sua vez, fruto do esforço do próprio indivíduo. Porém ao professor cabe a aplicação da suges- tão heterogenética:
É, pois, da sugestão heterogenetica que se deve servir o professor; o seu papel, perante o hypnotismo, é o de um suggestionista, porque a educação, como o ensino, não passa de uma sugestão continua, lenta, dia a dia infiltrada no cérebro do alumno. (Vianna, 1902, p. 6).
O professor é representado acima como aquele que sugere comportamentos, seja pela sua aparência, ações e/ou conteúdos ministrados em sala. A educação, dessa forma, é considerada por Vianna (1902) como sugestão diária que orienta modos de sentir, agir e pensar (Chartier, 1987). Mignolo (2010) auxilia a compreensão desse processo educativo que estabelece a colonialidade do poder, um padrão de poder, sustentado em dois pilares: 1) na epistemologia ou no conhecer; 2) no sentir. É possível identificar essa matriz de poder no artigo 23 do Regulamento geral da instrucção pública e especial do ensino primário do Estado do Pará: “Antes de começar a lição de escripta o professor repetirá sempre as regras de observação sobre a posição do corpo, da mão e do papel, corrigindo por si mesmo as posições defeituosas e contrarias a hygiene” (Direção Geral de Instrucção Pública do Ensino Primário, 1890, grifo nosso).
O regulamento citado indica que o docente deve repetir continuamente as regras higiênicas que dizem respeito à postura corporal. O estabelecimento de uma rotina na qual os ensinamentos higiênicos assumem centralidade está presente em todo o Regulamento geral da instrucção pública e especial do ensino primário do Estado do Pará (Direção Geral de Instrucção Pública do Ensino Primário, 1890). Isso aponta não somente o relevante papel exercido pela higiene na formação da criança, futuro cidadão amazônida, mas também a representação construída sobre a educação como sugestão capaz de se materializar em comportamentos considerados naturais, quando na realidade são comportamentos cuidadosamente forjados por uma educação dos sentidos. Portanto tais práticas para o estabelecimento de uma rotina de ensinamentos higiênicos são produzidas pelas representações nas quais indivíduos e grupos dão sentido ao mundo que os cerca (Chartier, 1991).
Vianna (1902, p. 7) prossegue defendendo que o hábito é formado por sugestão, o que leva a crer que a substituição de maus hábitos por bons hábitos deve ser feita paulatinamente por meio da repetição da sugestão:
O habito que é um estado sugestivo, a que o individuo chegou dominado pela sugestão, só póde ser destruído por uma nova sugestão hypnotica, autogenética ou heterogenetica. . . . Cumpre repetir diariamente e mais de uma vez a mesma idéa, sugerir sempre o fato que se deseja realizar.
O professor Campos (1912) também concorda com a assertiva de Arthur Vianna de que a higiene deve ser ensinada de forma contínua e oportuna. Desse modo, Campos defende que o professor deve atuar aproveitando qualquer caso particular, destacando-o para mostrar os perigos da inobservância higiênica e indicando o comportamento correto. No entanto, é importante perceber que Arthur Vianna se posiciona não apenas como médico, mas também como professor, ao esclarecer que a atuação docente deve considerar o contexto para escolher os recursos que serão utilizados no processo educativo:
Não se pode traçar regras sobre os recursos que o professor deve empregar na produção da sugestão: dependem eles de uma infinidade de circumstancias directas e indirectas, particulares a cada caso, entre as quaes so a observação do mestre poderá escolher. (Vianna, 1902, p. 7)
Sobre o estabelecimento de limites para a atuação do médico escolar e do professor, Campos (1912, p. 122) esclarece:
Ora, se é ao professor que cabe a missão de cultivar as faculdades intelectuais, é ao medico escolar que assenta o dever de vigiar a evolução dos órgãos. . . . Professor medico . . . são, pois, as duas engrenagens indispensáveis ao bom funcionamento da escola moderna.
É evidente, pelos trechos destacados acima, que havia uma preocupação em delimitar a atuação do médico e do professor sem, contudo, renunciar à indispensável presença do médico na escola. De forma indireta, os preceitos higiênicos orientavam sobre o que o docente devia e sobre o que não devia fazer. Como exemplo, Vianna (1902) condena que o professor recorra aos castigos físicos como estratégia para corrigir alunos problemáticos, recomendando a hipnose para reorientar a postura desses alunos. Nesse contexto, é relevante problematizar a lógica do dr. Vianna quando oferece a sugestão heterogenética como alternativa para corrigir alunos rebeldes.
Campos (1912) também condenou os castigos físicos na escola, afirmando que torna os alunos tímidos e leva-os ao abandono de exercícios físicos, tornando-os fracos, desnutridos e anêmicos. Jurandir Costa (2004, p. 198) apontou alguns motivos pelos quais os higienistas condenavam os castigos corporais: “A punição degradava as crianças sem obter nenhum resultado positivo. O medo aos castigos físicos tornava-as mentirosas, hipócritas, pusilânimes e temerosas”.
A partir da exposição realizada no artigo, Vianna (1902, p. 9) se compromete a “fazer nas columnas desta Revista a transcripção de vários trabalhos, reputados no mundo scientifico como de alto valor”. Apesar de o médico não anunciar quais trabalhos serão esses e o foco deste estudo não ser a análise de transcrições de outros autores e sim de produções de homens de ciência brasileiros, podemos inferir que esse professor tem como principais referências os franceses da Escola de Nancy aos quais se referiu na abertura de seu artigo. Isso demonstra a frequente necessidade dos intelectuais que divulgaram suas ideias na revista A Escola de agregar valor às suas representações, tomando como base a produção de saber eurocentrado.
Para finalizar seu artigo, Vianna (1902, p. 9) esclarece o principal motivo da exposição deste tema que é a divulgação desse saber para educar e moralizar a população amazônida:
De toda a conveniência é ao nosso professorado a leitura do que modernamente se tem escrito sobre o hypnotismo em pediatria e pedagogia; O emprego deste novo elemento de moralização e educação attrae os esforços de grandes sábios, que o estudam minuciosamente, e as experiências dia a dia vão robustecendo a excellencia do processo sobre qualquer outro.
Dessa forma, os artigos analisados neste estudo permitem identificar o papel central da revista pedagógica A Escola como propagadora de preceitos médico-higiênicos postulados por professores e médicos brasileiros no contexto do regime republicano paraense. Nesse sentido, os homens de ciência brasileiros promoveram a construção de representações civilizadas e higienizadas de educação, de professor e de criança, visando a materializar seu projeto educativo, colonizador dos sentidos de crianças amazônidas.
Considerações finais
A proposta da revista A Escola foi a de configurar um determinado perfil de cidadão que atendesse às demandas do regime republicano vigente. Compreendemos a partir de nosso estudo que os elementos constitutivos dessas demandas demonstram a colonialidade do poder na perspectiva de Quijano. Aliadas da concepção eurocêntrica, as elites articulavam discursos baseados no dualismo primitivo e civilizado, tradicional e moderno, numa busca por um desenvolvimento social linear e unidirecional, tendo a Europa como referência. Destacamos que, mesmo tendo caráter pedagógico, o periódico também era difundido na sociedade paraense. Além disso, A Escola apresentava uma representação do professor que deveria ter modos de ser e agir na sociedade visando a ser um modelo moral e intelectual para todos, em especial seus alunos. Assim, notamos as formas sutis de colonização das pessoas - a colonialidade do ser conforme preconiza Maldonado-Torres.
Para materializar seus propósitos, a revista contou com a produção de homens de ciência brasileiros que se detiveram em estabelecer relação entre a educação proposta pelo periódico, os preceitos médico-higienistas que defendiam o uso da hipnose no ambiente escolar, bem como em discutir a relação entre escola, família e pátria, como pilares para construção da sociedade defendida.
As análises realizadas permitem identificar a aproximação entre a linguagem religiosa e a discussão sobre a educação relacionada à família e à pátria como uma estratégia para construir representações positivas a respeito da educação republicana, do mestre e dos alunos, situados como peças fundamentais na consolidação do regime republicano e no processo de progresso, civilização e higienização da pátria brasileira.
Nesse contexto, é estabelecida uma hierarquia em que crianças são representadas como frágeis enquanto os médicos e professores são considerados aptos a intervir sobre sua formação moral e intelectual a fim de incutir nesses alunos comportamentos considerados civilizados. Dando destaque ao uso da hipnose no processo de educação dos sentidos e dos corpos, vemos na revista a defesa de que a hipnose seria um meio possível para moldar comportamentos considerados viciosos, degenerados e inadequados para a sociedade, bem como tornar os alunos aptos a receberem sugestões que facilitariam o aprendizado. Destacamos que a própria concepção de hipnose encontrada nos discursos, e que tinha origem em argumentações europeias, como método científico-pedagógico, já demonstra a colonialidade do saber e seu intuito de modelar vontades e práticas sociais.
Assim, o uso dessas estratégias de higienização das crianças amazônidas demonstra a complexidade da colonialidade do poder, do ser e do saber, cujas implicações envolvem o estabelecimento de vínculos entre a educação e a higiene nas produções de homens de ciência circulantes na Amazônia paraense do início do século XX.