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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.54  São Paulo  2024  Epub 01-Abr-2024

https://doi.org/10.1590/1980531410851 

RESENHAS

O SISTEMA PÚBLICO DE ENSINO FRENTE AO NEOLIBERALISMO NA ESPANHA E NO BRASIL

Victor Hugo da Silva VasconcellosI 
http://orcid.org/0000-0002-0893-8955

IUniversidade da Coruña, Coruña, Galícia, Espanha; victorvasconcellos@uol.com.br

Branco Buxán, X. R.. 2021. Acoso e demolición do sistema público de ensino. Covid-19: Causa ou escusa?. Laiovento,


Esse trabalho de Xosé Ramón Branco Buxán, publicado em 2021, apresenta o estudo sobre a situação do sistema educacional da Espanha, com dois destaques: o ensino público tem enfoque preferencial; e a Comunidade Autônoma da Galiza, que pertence administrativamente ao Estado espanhol, é a referência primeira do autor para levantamento de dados. Seu ensaio crítico busca discutir a intervenção do neoliberalismo na qualidade do sistema público de ensino na Espanha. Como hipótese de trabalho, Branco Buxán parte da relação entre as práticas neoliberais pré-pandemia e as mudanças causadas na educação no período de isolamento por covid-19 para demonstrar se essas mudanças foram causadas de fato ou se já havia tais práticas no meio educacional com interferência da ideologia burguesa. A obra permite relação com o livro publicado em 1970 por Bourdieu e Passeron (1992), A reprodução, em que os autores franceses discutem a imposição ideológica por meio do sistema de ensino francês, reproduzindo, desse modo, os valores burgueses como símbolos de boa educação.

O livro está dividido em sete capítulos temáticos, além da introdução e epílogo. Cada um desses capítulos aborda uma peça da engrenagem da argumentação montada por Branco Buxán sobre a influência da ideologia neoliberal no desmantelamento da educação pública espanhola. São apresentados a lógica burguesa e seus mecanismos para a busca do lucro por meio da privatização. A educação pública sofre constante assédio da superestrutura que não vê com bons olhos os serviços estatizados e as promessas da liberdade de escolha dos cidadãos e cidadãs.

Trata-se de um texto que, mesmo sendo publicado na Galiza e que versa sobre o contexto europeu, apresenta questões universais sobre educação. A crítica do constante assédio do sistema neoliberal ao ensino pode ser aplicada a qualquer país, tal como o Brasil, que tem enormes grupos educacionais privados tanto no ensino básico, quanto no profissional e no superior. As profundas desigualdades sociais que o Brasil apresenta podem encontrar diálogo nas críticas do autor ao sistema neoliberal que vem despedaçando o Estado de bem-estar social na zona do euro. Portanto, é uma obra que estabelece pontes com a educação brasileira e todo o aparato privado para aumentar cada vez mais seus lucros e diminuir os espaços públicos. No cenário brasileiro, Paulo Freire (1987) é uma das principais referências para a discussão da educação que liberta, em que a reflexão crítica deveria ser o alvo de todo o processo educacional.

No capítulo 1, “Paradigma tecnolóxico: desafíos sociais e políticos”, o autor apresenta sistemas educativos, resumindo-os em cinco etapas: 1) Facilitando o coñecemento recibido da lectura e dos comentarios dos textos clássicos, em que faz considerações sobre o modelo educacional das civilizações mais antigas (grega, romana e árabe) até o renascimento cujo objetivo era formar uma elite culta por meio da filosofia e da formação humanística; 2) Proporcionando coñecemento como resultado de asimilar os descubrimentos científicos e tecnolóxicos, apontando o Iluminismo que impulsionou o espírito científico da modernidade, o que resultou na separação entre ciência e filosofia. Além desse progresso científico, a educação ativa e pedagogias centradas no aluno vão se desenvolver até o fim do século XIX; 3) Centrada no coñecemento e nos comportamentos observáveis, em que surge a educação como fruto do desenvolvimento industrial, com a finalidade de aumentar a produção e torná-la mais rápida. É desenvolvida a teoria comportamental do behaviorismo, uma metodologia centrada na análise da conduta do indivíduo, em que são priorizadas atividades/sequências simples com respostas positivas ou negativas, gerando reforços também positivos ou negativos. Esse modelo buscou a eficiência na formação de mão de obra industrial, chamado de pedagogia por objetivos que almejam resultados eficazes preeestabelecidos; 4) Para coñecer e demonstrar a súa competência, em que na Terceira Revolução Industrial (informatização e robotização), disparam-se a capacidade produtiva e também massas de consumidores, com o aumento de consumo exponencial, gerando um novo habitus (alta produtividade e alto consumo). A pedagogia perdeu protagonismo, sendo adaptado o sistema de projeto de objetivos, no sistema behaviorista, fortalecendo o esquema estímulo-resposta, uma vez que os conhecimentos técnicos básicos são suficientes para essa sociedade que se consolidava; 5) Un novo enfoque educativo para unha nova revolución industrial: revolución dixital, em que a velocidade da produção alcançou números inimagináveis até então, além de diminuírem os custos dessa produção. Na educação, novos recursos vão surgindo também para a educação digital, que privilegia o manejo da informação.

A passagem rápida por cada sistema educacional favoreceu a reflexão dos modelos disponíveis e testados em diversas épocas, com a finalidade de embasar as discussões posteriores acerca da educação no contexto da covid-19. Cada sistema educacional, em sua época, esteve ligado com os interesses da classe dominante, executando assim seu objetivo na formação da grande massa populacional.

Intitulado “Revolución 4.0: capitalismo e tecnoloxía”, o capítulo 2 aborda a implantação da inteligência artificial na educação por conta da covid-19, pandemia que obrigou os sistemas educativos do mundo todo a se adaptarem ao ensino remoto. Outro ponto também levantado por Branco Buxán é a distância do poder de consumo entre as pessoas. Essas tecnologias informatizadas tornaram-se também um produto, dificultando o acesso aos mais vulneráveis e excluídos por conta das imensas desigualdades sociais.

No capítulo 3, “Neoliberalismo: capacidade de adaptación”, surge a relação entre o neoliberalismo e o sistema educacional. Apesar da instauração do Estado de bem-estar social na Europa ocidental e da implantação da proposta da educação gratuita e universal, os interesses capitalistas foram na direção de criar seu próprio modo de educar o povo. O ideal dos industriais do século XX era ter mão de obra com habilidades técnicas, com alta titulação, grande flexibilidade no mercado de trabalho e baixos salários. É o que Demerval Saviani (1999) chamou de ensino tecnicista, em que o enfoque seria formar mão de obra para as cidades industrializadas.

Esse modelo de sociedade enaltece a liberdade abstrata do indivíduo enquanto o enquadra num sistema de darwinismo social, isto é, numa competição desenfreada por mais acúmulo de bens materiais, reforçando as desigualdades sociais. Assim, a escola pública teria que acabar com o analfabetismo, objetivando mais mão de obra qualificada. Não foi uma ação humanitária, mas sim capitalista, servindo aos interesses do mercado e da burguesia que comandavam as revoluções nos negócios. Conforme Saviani (1999, p. 24):

Buscou-se planejar a educação de modo a dotá-la de uma organização racional capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem pôr em risco sua eficiência. Para tanto, era mister operacionalizar os objetivos e, pelo menos em certos aspectos, mecanizar o processo. Dar a proliferação de propostas pedagógicas tais como o enfoque sistêmico, o microensino, o tele ensino, a instrução programada, as máquinas de ensinar etc.

Nesse modelo educacional, disciplinas humanas (filosofia, história e sociologia, por exemplo) ficam em segundo plano por serem consideradas ineficazes para o modelo neoliberal, desumanizando os estudantes e tornando-os alienados com a história do mundo, moldando-os para a disputa acirrada por melhores salários. A competição que é posta pela classe dominante irá causar ainda mais desigualdades sociais e submissão dos que estão mais abaixo na pirâmide social.

Intitulado “Formación das novas subxectividades”, o capítulo 4 aborda o modelo escolar que vai se consolidando com a imposição da lógica neoliberal, esta que é propulsora de uma subjetividade individualista e empreendedora. Conforme Paulo Freire (1987, p. 25):

Nesta ânsia irrefreada de posse, desenvolvem em si a convicção de que lhes é possível transformar tudo a seu poder de compra. Daí a sua concepção estritamente materialista da existência. O dinheiro é a medida de todas as coisas. E o lucro, seu objetivo principal.

Para formar essa mentalidade, a escola se torna uma empresa, os alunos são os usuários e os pais dos alunos são os clientes (os que pagam impostos e/ou mensalidades). Na Espanha, há três modelos de escolas: a pública, que é gratuita e universal; a privada, que cobra mensalidades elevadas; e a concertada, que é uma escola privada com auxílio do governo e que tem mensalidades com valores acessíveis (esta última foi criada para auxiliar na universalização do ensino no Estado espanhol).

Mais do que uma política econômica, o neoliberalismo é uma tecnologia de governo, isto é, influencia toda a sociedade a pensar numa determinada direção. Até o empoderamento citado por Branco Buxán é um evento de falsa liberdade aos mais vulneráveis. As mulheres, os imigrantes, os negros e os mais pobres podem até obter certa representatividade por conta de 1 ou 2 indivíduos que ganham destaque a fim de amansar as revoltas sociais, mas a classe toda marginalizada continuará marginalizada e recebendo a educação doutrinadora, não conseguindo ter grandes progressos materiais nem intelectuais.

No capítulo 5, “Cambio na xestión do ensino”, as mudanças do ensino são de- talhadas a partir da concepção de uma nova sociedade no século XXI. Busca-se transformar a organização interna da escola numa empresa, separando assim a gestão do pedagógico. Na parte administrativa, os diretores analisarão planilhas, custos e resultados sempre alinhados ao marketing e à propaganda. Do outro lado, estão os docentes, que executarão as ordens oriundas da equipe de gestão.

Mesmo no caso da escola pública, a lógica financeira não está isenta, já que recebe dinheiro do Estado e está submetida a constantes avaliações. Portanto, muitas maneiras de pôr à prova o ensino foram criadas para submeter os estudantes; algumas dentro do próprio Estado, outras avaliações são internacionais (como o Pisa). Novamente, a escola volta a repetir o modelo empresarial em que o foco está no resultado (notas) e não no processo (desenvolvimento de raciocínio crítico).

Com o título “Arquitectura organizativa”, o capítulo 6 apresenta a intrínseca relação da ideologia dominante com a arquitetura não só da escola, mas também de todas as organizações de um Estado. Na questão estrutural, a pandemia exigiu infraestrutura para implantar o sistema à distância de educação. Essa arquitetura contava com acesso à banda larga e a dispositivos eletrônicos para conexão com as aulas e os professores. A Galiza (Comunidade Autônoma da Espanha) apresentou 87,4% de acesso nas residências contra 93,2% no restante do Estado espanhol. Aqui cabe a comparação com o Brasil, nos bairros carentes, onde o acesso à banda larga era quase nulo, uma vez que nem rede de esgoto ou eletricidade havia de fato, quanto mais banda larga e computadores. O autor do texto expõe uma falha no sistema de um país desenvolvido (praticamente 90% da população com acesso), enquanto nos países periféricos essa média varia entre 40% e 60%. No Brasil, o sistema público, em sua maioria, não conseguiu aderir a esse sistema de aulas remotas no mesmo calendário e na mesma dinâmica que o presencial (feito alcançado pelas escolas privadas), muito por conta das condições econômicas dos alunos e também da infraestrutura educacional pública brasileira. De acordo com Bourdieu (1989, p. 10):

As ideologias . . . servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções.

Apesar de todos esses entraves nessa implementação, tal citação esclarece que a sociedade aceita essa imposição por uma questão ideológica, mesmo que comprometa uma parte da população (no Brasil, a maioria). Embora o Brasil (e parte do mundo) não estivesse preparado para essas mudanças, os interesses da classe dominante surgem disfarçados de uma revelação salvadora, que é endossada por conta de seu poder simbólico e econômico (Bourdieu, 1989).

O sétimo e último capítulo do livro é “Oportunidades lucrativas”, que aborda de maneira detalhada o nicho comercial aberto com a pandemia. Na lógica neoliberal, a educação pública não é prioridade. As empresas criaram um design chamativo e uma lista de funcionalidades a fim de vender seu produto tanto a escolas privadas como públicas, além de também terem criado aplicativos para outras empresas. Todas essas inovações foram gestadas no período da pandemia e continuam sendo aperfeiçoadas a fim de garantirem novos clientes e manterem sempre fidelizados os já usuários.

Em “Epílogo”, o autor discute sobre a margem de investimento da Espanha abaixo em relação a outros países europeus. A hipótese de trabalho de que a pandemia seria ou não a responsável pela aceleração da informatização e de novos paradigmas educacionais foi comprovada. O estudo mostrou a relação da pandemia como acelerador do processo, pois a superestrutura neoliberal aproveitou-se desse evento para ganhar mercado privado mais rapidamente. Desse modo, os produtos e as metodologias já existiam; o que o período de isolamento causou foi o desenvolvimento mais rápido, uma vez que não havia como recusar esses projetos no nível nacional, já que foram as únicas soluções que apareceram naquele momento.

Branco Buxán também traz a reflexão sobre o papel do pedagogo que tem o compromisso com a educação e de tornar esse espaço acadêmico muito combatido em um local de movimento contra-hegemônico, luta essa que manteve viva parte da educação pública tanto no Brasil como na Galiza. Para o leitor brasileiro, esta obra constrói uma crítica fundamentada ao sistema capitalista que corrói as políticas públicas em troca do lucro de poucas pessoas. Em terras brasileiras, é visível a destruição do sistema público de ensino, que atende em torno de 75% da população, transformando realmente a educação em um produto que só as camadas sociais mais elevadas podem consumir em plenitude.

Ao leitor galego, o estudo demonstra como o sistema público poderá ruir se o avanço das políticas neoliberais continuar. É uma denúncia fundamentada ao assédio do capital aos bens públicos galegos com suas intenções lucrativas por trás das campanhas publicitárias de liberdade e escolha ao povo.

A educação é o maior patrimônio que um Estado pode ter e a maior garantia de desenvolvimento social e econômico. Um Estado que não cuida de suas crianças está fadado ao fracasso no futuro. A educação que não é pública torna-se restrita apenas àqueles que podem pagar, levando o restante à marginalidade, o que compromete o cuidado para com seu povo. As amarras do capital estão cada vez mais à mostra por meio de suas contradições diárias. E o neoliberalismo eleva essas contradições sendo mais predatório do que o Estado de bem-estar social. Obras como essa trazem a esperança de luta por um mundo melhor e mais justo!

Referências

Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico (F. Tomaz, Trad.). Bertrand. [ Links ]

Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (1992). A reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino (3a ed.). Francisco Alves. (Obra original publicada em 1970). [ Links ]

Branco Buxán, X. R. (2021). Acoso e demolición do sistema público de ensino. Covid-19: Causa ou escusa? Laiovento. [ Links ]

Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido (17a ed.). Paz e Terra. (Obra original publicada em 1968). [ Links ]

Saviani, D. (1999). Escola e democracia: Teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política! (32a ed.). Autores Associados. (Obra original publicada em 1983). [ Links ]

Como citar esta resenhaVasconcellos, V. H. da S. (2024). O sistema público de ensino frente ao neoliberalismo na Espanha e no Brasil [Resenha do livro Acoso e demolición do sistema público de ensino. Covid-19: Causa ou escusa?, de X. R. Branco Buxán]. Cadernos de Pesquisa, 54, Resenha e10851. https://doi.org/10.1590/1980531410851

Recebido: 12 de Janeiro de 2024; Aceito: 29 de Janeiro de 2024

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