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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.54  São Paulo  2024  Epub 02-Out-2024

https://doi.org/10.1590/1980531411257 

RESENHAS

EM QUÊ O “ALFABETO DAS COLISÕES” PODE SERVIR A PESQUISADORAS EM EDUCAÇÃO?

Marcos da Rocha OliveiraI 
http://orcid.org/0000-0001-9860-3720

IUniversidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba (PR), Brasil; marcos.oliveira1@ufpr.br

Safatle, V.. 2024. Alfabeto das colisões: Filosofia prática em modo crônico.. Ubu Editora,


“Não se escreve filosofia assim”, alerta-nos Vladimir Safatle (2024, p. 19). Também solidários a quem se dispuser a ler o que se seguirá, alertamos: não se escreve uma resenha assim. Dizemos “não se escreve assim”, justamente, como uma forma de afirmar o gesto de Safatle, de tentar (ao nosso modo) prolongar tal disposição textual um tanto insurgente. Por isso, começaremos por três fragmentos de leitura estranhos ao texto resenhado e que buscam colocar a questão indicada no título do presente texto para, logo em seguida, lidarmos com a obra em questão em dois blocos temáticos - o primeiro predominantemente imagético; o segundo, textual (tentaremos com tal abordagem manter a relação disjuntiva entre texto e imagem presentes na montagem original). Ao cabo, apresentaremos certa disposição para com o problema levantado no título desta resenha.

Aos três fragmentos, então.

1) Em um texto breve de 1979, mais curto que a resenha que cá está, Gilles Deleuze (2002, p. 226) defende o interesse pedagógico de “jogar no interior de cada disciplina essas ressonâncias entre níveis e domínios de exterioridade”. Tratava-se, no caso, de fazer ver a capacidade de resistência própria a uma experiência de pensamento (de ensino e de pesquisa) que admitia enquanto potente a própria violência relacional da diferença. Essa era a resposta de Deleuze ao chamado sobre a circulação de certo desejo de aprender que se fazia presente nas práticas da Universidade de Vincennes.

2) Ao tratar sobre a experiência de pesquisa enquanto pensamento, Julio Groppa Aquino (2023) afirma que “a força da pesquisa em educação reside, precisamente, no desentranhamento do presente e não na restauração desse mesmo presente”. Enquanto escritor, intelectual e professor, Aquino sabe que sua pesquisa é escrita e se dá no próprio escrever, no trabalho da linguagem enquanto labor de arquivo. Enquanto pesquisa e pensamento, “escrever é promover um encontro, improvável, entre fontes assimétricas, heterogêneas e, no limite, incomunicáveis”.

3) Sandra Mara Corazza (2008), talvez a filósofa brasileira que mais tenha colidido com os limites da gramática da pesquisa educacional, deslindava do “véu da maia da desrealidade de um estado de rebelião, violência e agressão contra a ordem natural” (p. 13) as linhas de suas pesquisas. Por isso, fazia da pesquisa em educação a “expressão mascarada da / escrita-pela-leitura e da leitura-pela-escrita / bravos combates das máquinas de guerra” (p. 21) e alertava sobre os riscos de seguirmos as pegadas “de-qualquer-pensamento-importante-que-a-burrice-usa-porque-ela-é-móvel-e-veste-todos-os-trajes-da-verdade” (p. 23). Corazza nos legou a “luta pelo caminho dos textos / na terra dos acadêmicos” (p. 27), pois até neles (ou sobremodo) “há fardas aparelhos de estado fascismos ludibriações / e outros-que-tais / similis simili gaudet” (p. 27). Diante de tal tradição inventiva de combate e para quem de alguma forma quer honrar a luta daquelas que nos precederam em mutações de escrita, recomendamos anotar e carregar consigo: “queremos a dionização estética / só não copiar só não repetir só não definir só não dicionarizar / só não reproduzir igualzinho / queremos textos nus músicas escovadas telas lixadas / sem molde / não métodos não métricas não metas / já chega” (p. 27).

Temos, assim, três fragmentos que desenham a trajetória da colisão entre o texto de Safatle e a pesquisa em educação, três coordenadas de nossa leitura, quais sejam: 1) exterioridade e violência relacional da diferença; 2) escrita e pesquisa cujo labor do arquivo expressa um pensamento; e 3) que, ao cabo, somente a “escrileitura” nos une enquanto praticantes de pesquisa. Tendo posta nossa aventura, passemos ao texto de Safatle, seus farrapos, seus fragmentos, seus gestos (organizados, como já dissemos, em dois blocos: o primeiro, curto; o segundo, quebrado em seis parágrafos).

Sigamos, pois.

E o que há no “Alfabeto de colisões”? Nenhum grande gesto. Há Francis Alÿs enquanto didata que ensina deslocamentos. Há alguma interdição às ruínas gregas. Há a maçaneta de Ludwig Wittgenstein e Paul Engelmann como testemunho de certa política de entradas e saídas. Há Ralph Baiker e uma política de levantar e baixar cabeças. Há Andrzej Żuławski tornado punctum. Há Joseph Beuys traçando as letras do seu riso sobre fotografia de Ernst Nanninga. Há lições rítmicas do corpo com o Retrato de Frédéric Chopin de Eugène Delacroix. Há a implosão da casa tomada. Há uma pedra por vir ou um punho que sangrará. Há tempo para a origem estética do progresso. Há uma série de Hilla e Bernd Becher. Há sangue em todas as bandeiras nacionais. Há outro didata, Michelangelo Antonioni. Há, enfim, a casa fendida com Gordon Matta-Clark. “Há ainda os que . . . esquecem de abaixar a cabeça quando os golpes são desferidos . . . mesmo sabendo que terão de aguentar estoicamente o impacto das colisões” (Safatle, 2024, p. 9). Há o gesto (insistente) de catar imagens e colocá-las em um saco com textos, como bem ensinou o professor Deleuze ao carregar para a aula fragmentos (recortes) dos livros em seus bolsos. Ao sacar palavras-força de tal conjunto, temos a desorientação da ordem no “Alfabeto” de Safatle: Quebrar, Filosofia, Lar, Política, Nascimento, Tempo, Gritos, Heterossexuais, Amor, Respiração, X/Incógnita, Eu, Jogar, Mercadoria, Dançar, Crescimento, Sublime, Identidade, Opressão, Batalha, Universidade, Kairós, Vida, Z (como termina o alfabeto).

Trata-se, então, de um livro arruinado, de farrapos de textos e como eles “pensam modos de ação social e deliberação” (Safatle, 2024, p. 10). Uma filosofia prática, pois uma poética do fragmento: “pontos de uma constelação por vir” (p. 10). Por isso se começa por “Quebrar”, pois as “quebras são nosso destino” (p. 17) relacional, a violência do desejo que nos permite diferirmos de nós mesmos e abjurarmos a permanência da infelicidade. “Filosofia” só se ao lado de Gilles Deleuze (com D. H. Lawrence e os rasgos no firmamento, caos em poesia, com o pensamento que violenta as faculdades), com quem Safatle prefere fazer furos nos tetos e traçar “uma guerra contra a própria gramática que nos constituiu” (p. 20). Mas, também, com Adorno, Derrida, Hegel, Heidegger, Nietzsche, Wittgenstein. Um estranho bando chamado à insurreição. Aí, então, a ideia de “Lar” como possibilidade de quebrar os esquemas de sujeição e de tomar os “gestos que nos foram roubados” (p. 27); gestos que partem da premissa “Política” de salvar o passado de lutas e as sensibilidades que lhes são próprias de certo exílio - gestos que recuperam “o que parecia ser muito pouco para fazer alguma diferença” (p. 31), gestos ativamente estetizantes.

Na órbita de tais movimentos presenciamos o “Nascimento” de um outro tipo de permanência - não somente a da espera melancólica, aquela de um corpo desprovido de sua potência de cair e acachapado pelo “caráter atualmente arruinado da linguagem que socialmente se impõe a nós” (Safatle, 2024, p. 35), mas também aquela permanência que se dá quando nos descobrimos no exato murmúrio do caos, em um espaço que se dá pela decisão de começar por qualquer lugar e se enveredar por um “Tempo” em que a singularidade pode vir a ser “uma arma, a expressão ativa de uma recusa social”: “um tempo de desabamentos, um tempo de desamparo” cuja experiência “é a condição para toda e qualquer emancipação possível” (p. 42). Como quando o gesto insubmisso se faz ver enquanto “Gritos” de “corpos que procuram recuperar sua hipersensibilidade para constituir sínteses que não poderão durar, que serão feitas para serem quebradas, para funcionarem mal” (p. 50).

Em contrapartida, estão cá coisas que funcionam demasiadamente bem (clara fique a provocação sobre o funcionar bem), como a ideia de que realmente existem “Heterossexuais”, categoria que por sua inadequação para dizer da circulação dos desejos deve ter sua gramática destituída - visto que “a discursividade heteronormativa pode ser vivenciada como processo de reações fóbicas contra tais movimentos” (Safatle, 2024, p. 56) disjuntivos ou singulares, visto que toda a desordem entre práticas e normas no âmbito da sexualidade “está lá a impulsionar a criação a quem é capaz de ouvi-la” (p. 59). Como quem ouve na palavra “Amor” não o nome de uma sexualidade “que não perverta as formas sociais orgânicas da evolução, a lógica do existente”, mas a “potencialidade de uma nova circulação do desejo” (p. 67) ou uma forma de “Respiração” conjunta. Um viver junto com a “Incógnita” capaz de “explodir a primeira pessoa”, assumindo “uma desorientação politicamente mais transformadora” (p. 75) do que a crença em um “Eu” e sua “forma de colonização da experiência” (p. 78).

Tratar-se-ia de “Jogar” com as formas de fracassar para “construir espaços impossíveis nos quais as dicotomias prévias não parecem mais funcionar muito bem” (Safatle, 2024, p. 86), onde a nossa gramática do desejo não aceita ser interpelada enquanto “Mercadoria”, onde voam os pedaços de nossa linguagem contra as vidraças “que se acham fortes o suficiente para nos fazer esquecer que aquilo que poderia ser diferente ainda não começou” (p. 93), onde não nos resta “Dançar” Daft Punk em uma parada militar, mas sim “o desligamento de nossas danças” (p. 96) quando os corpos necessários para tal pactuam um porvir e afetos insubmissos. De fato, não “há pacto ecológico possível sem que haja algo como um outro pacto psíquico” (p. 103); qualquer ideia de “Crescimento” só pode ser considerada quando aliada ao paradigma indiciário da noção de progresso, oriunda do campo discursivo estético: interessa-nos o progresso quando nos diz da insubmissão “aos padrões de avaliação do passado”, quando ele implica “a instauração de um outro princípio de avaliação”, uma “expressão de um tempo insubmisso, de uma insubmissão ao presente” (p. 104) que não mais pressupõe a naturalização dos mecanismos de violência presentes no capitalismo.

A agudização dos dispositivos coloniais produz o momento atual. Seu efeito é o sentimento de que a “única forma de criar coesão social agora seria através da gestão do medo e do aumento exponencial da violência estatal” (Safatle, 2024, p. 106). Tal efeito é correlato à colonização da experiência estética em nome da simplicidade (apologia política ao comum e adesão às interpelações de certa normalidade tornada mercadoria), da diversão (jogo banal em um estado de entretenimento psíquico), da sensualização e da glamourização como maneiras “de dobrar as expectativas disruptivas da modernidade estética às exigências de rentabilidade mercantil” (p. 108). Tais investimentos de um atual “regime securitário” (p. 109) só podem ruir quando de encontro a certo investimento estilístico da existência que compõe a direção de um regime estético “Sublime”, cuja violência às faculdades e potência informe de “experiências que fazem a imaginação confrontar-se com seu limite, já que excedem sua capacidade de esquematização” (p. 108), se fazem presentes para além do jogo e dos dispositivos que compõem a face da “Identidade” enquanto universalismo colonial ou dispositivo de apagamento, indicando, quem sabe, “o nome de uma verdadeira universalidade por vir. O nome de algo que indica o vetor efetivo de uma sociedade em revolução” (p. 120): como quando se explode um verbo ou se afirma o programa de fazer verbos explodirem...

...e assim se faz ouvir da “Opressão” uma voz “que ainda não existe porque pressupõe recusar a identidade dada pelo opressor” (Safatle, 2024, p. 124)... e se faz da nossa “Batalha” uma afirmação de “lógicas de desintegração” e modos de “saber cair” (p. 127)... e se faz da “Universidade” um tempo para “voltar-se contra si mesma para realizar a si mesma” (p. 130), “Kairós” ou o acontecimento de fazer “um verbo ficar sem direção” (p. 137): quando todo e qualquer “engajamento” se dá “com o caráter disruptivo dos acontecimentos” (p. 138)... pois “se todos morressem por um tempo, todos saberiam” (p. 142) que a “Vida” só é afirmada em seus movimentos implosivos ou no amor por um gato chamado carinhosamente de “Z” ou Zaratustra ou Ziguezague ou Zen.

Mais, ainda.

Ao cabo do pequeno bloco imagético e do grande bloco de citações que deu a ver o livro resenhado, arranjando-o por entre as linhas indicadas na apresentação de nossa leitura (os fragmentos de Deleuze, Aquino, Corazza), fica evidente que o “Alfabeto das colisões” se inscreve na pesquisa educacional como um texto incomunicável e prenhe de exterioridades. E é de tal condição que pode advir qualquer interesse estratégico pela obra, uma vez que

. . . não se pode realmente pensar sem levar a linguagem a se chocar contra seus limites. Há algo que chamamos “pensar” e que nada tem a ver com raciocínio e argumentação. Tem a ver com a capacidade de se deixar violentar por aquilo que só se pensa sob a sombra do involuntário, sob a sombra dos corpos que parecem entrar em órbitas interditadas. . . . Talvez seja difícil perceber isso em um momento como o nosso, no qual procuramos sujeitar pesquisadoras e pesquisadores a escreverem de uma só maneira, como se estivessem no interior da redação de um paper infinito. Mas toda experiência filosófica real é tributária de uma tensão tal que leva sujeitos a não apenas se colocarem continuamente em questão, mas a mudarem suas maneiras de escrever, mudarem de estilo. (Safatle, 2024, pp. 18 e 22).

Quase por fim, uma suspeita. Talvez a maior utilidade epistemológica do texto esteja apontada já na abertura do livro (Safatle, 2024, pp. 4-5), na montagem gráfica em duas páginas (efetuada para carregar ainda mais o sentido a ser expresso) com o encontro entre Arnold Schoenberg (que diz para Cage: “Você compõe como quem bate a cabeça contra a parede”) e John Cage (que afirma para Schoenberg: “Então eu quero bater a cabeça até a parede rachar”). Trata-se, parece-nos, do indicativo de certa técnica, nada banal, indiciária de procedimentos e gestos metodológicos prenhes de potências insurrecionais, de técnicas inventivas de choque: de modos de bater, de quebrar, de cair, de fracassar, de colidir. Se tomamos tal direção por utilidade é porque sua ordem contraria o sentido mais servil que impregna atualmente os modos de saber (de ensinar, de pesquisar) mais celebrados da pesquisa educacional. Tal direção aponta, justamente, para modos de fazer e pensar que se dão no horizonte onírico de um povo que falta, no anúncio rumoroso que provém das brechas e rachaduras produzidas pelos processos de diferenciação e que operam via devires revolucionários.

Finalmente, se “Há uma técnica do sonho, como as há das diversas realidades”, como ousamos aprender com a poesia de Fernando Pessoa (1999, p. 498), para sonharmos horizontes inimaginados, racharmos o firmamento dos lugares comuns e das certezas do já dado enquanto destino irrefutável, cabe-nos afirmar a exterioridade (inegociável) e a violência (relacional) da diferença: ensinar, escrever e pesquisar como gesto arquivístico de um pensamento que trabalha via “escrileitura” (Corazza, 2008) - ensinar, escrever e pesquisar como quem bate a cabeça, dança e respira em órbitas insurrecionais “na esperança de encontrar dissonâncias emancipadas” (Safatle, 2024, p. 23).

Colidamos, pois.

Referências

Aquino, J. G. (2023, 24 maio). Racionalidades educacionais (pós)pandêmicas [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=5gW7FO4g1S4Links ]

Corazza, S. M. (2008). Os Cantos de Fouror: Escrileitura em filosofia-educação. Sulina; Editora da UFRGS. [ Links ]

Deleuze, G. (2002). Em quê a filosofia pode servir a matemáticos, ou mesmo a músicos: mesmo e sobretudo quando ela não fala de música ou de matemática [Trad. Tomaz Tadeu]. Educação & Realidade, 27(2), 225-226. https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/31078Links ]

Pessoa, F. (1999). Livro do desassossego: Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Companhia das Letras. [ Links ]

Safatle, V. (2024). Alfabeto das colisões: Filosofia prática em modo crônico. Ubu Editora. [ Links ]

Recebido: 18 de Junho de 2024; Aceito: 23 de Agosto de 2024

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