INSTITUIçõES ESCOLARES E SUAS COMUNIDADES TêM SIDO ALVOS DE ATAQUES VIOLENTOS no Brasil. Apesar de ser um fenômeno recente, em comparação com outros países, tais episódios têm crescido vertiginosamente nos últimos anos. Os relatórios sobre o tema apontam 36 ataques em aproximadamente duas décadas - sendo 7 somente em 2022 e 16 em 2023 (Cara, 2023; Vinha et al., 2023). Além disso, constatam-se importantes características acerca do fenômeno, como quem são as pessoas que idealizam e cometem os atentados, quais são suas motivações e quais são os meios utilizados.
Os fatos analisados por esses relatórios demonstram que os ataques são cometidos majoritariamente por adolescentes ou jovens adultos, sem deficiência e com características preponderantes de identidade de gênero e raça. Trinta e nove pessoas efetivaram os 36 atentados ocorridos no Brasil; dessas, todas são homens, com idades de 10 a 25 anos, sendo 37 homens brancos. São alunos ou ex-alunos das instituições de ensino - é assim em 34 dos 36 ataques catalogados (Vinha et al., 2023; Oliveira et al., 2023). Os autores dos ataques, ainda, detêm perspectivas ou valores opressivos, com motivações baseadas no ódio às diferenças, como misoginia, racismo e supremacia branca masculina (Schurig, 2023; Oliveira et al., 2023).
Compreende-se, também, como fator fundamental, que a maioria desses jovens são cooptados por grupos de ideologias de extrema direita em fóruns on-line e redes sociais, que propagam ódio a determinados grupos e às escolas - o que demonstra a influência do contexto social e político brasileiro. Soma-se a esse conjunto o fato de que foram utilizadas armas de fogo em cerca de 50% dos casos, sendo elas responsáveis por aproximadamente 78% das vítimas fatais (Vinha et al., 2023); essas armas eram ou de pais policiais ou registradas em clubes de tiro, atiradores esportivos e caçadores (CACs).
Os ataques violentos às escolas, portanto, caracterizam-se como fenômeno complexo. Perpassam por características históricas e sociais relativas à conformação da subjetividade e violências no contexto brasileiro, como o machismo, o racismo, o eugenismo e o autoritarismo; por posicionamentos políticos conservadores e extremistas nas instituições sociais, como escolas e educação; pela influência do meio on-line e das redes sociais na vida de estudantes, incluindo a propagação de discursos de ódio por grupos extremistas organizados e que se mantêm velados pelo anonimato da internet; e pela maciça presença e utilização de armas de fogo no país, entre outros fatores.
Faz-se evidente, dessa maneira, que, para compreender o fenômeno da violência às escolas, é necessário contextualizá-lo, relacioná-lo tanto à conformação social brasileira quanto aos eventos sociopolíticos dos anos recentes. Por que a quantidade de tais ataques teve um crescimento tão acentuado em dois anos? Quais mudanças aconteceram na sociedade brasileira e nos contextos educacionais para que houvesse essa intensificação da violência?
Este artigo se propõe, portanto, a articular os fatos relativos aos ataques às escolas, às formulações teórico-conceituais sobre violência contemporânea, à ascensão do neofascismo no Brasil e sua promoção do ódio no país. Elaborar essa análise e interlocução possibilita não somente uma compreensão mais profunda do fenômeno, mas também tecer políticas estratégicas de enfrentamento das contradições concretizadas nas violências, tais como as violências de gênero, raciais, corponormativas e de espectro político que ocorrem no âmbito escolar e, potencialmente, irrompem em extremismos e fatalidades.
Metodologia
O presente artigo se caracteriza como um estudo analítico-teórico. Divide-se em três tópicos, que buscam articular os dados e características já publicados acerca dos ataques às escolas com importantes formulações conceituais que auxiliam na abordagem dessa problemática. Nesse sentido, embasa-se em uma concepção interseccional, como formulado por Collins e Bilge (2021), as quais expressam que interseccionalidade é uma ferramenta de análise, oriunda de uma práxis crítica, que considera organização socioeconômica, relações de poder, características identitárias e conformação geopolítica como elementos inter-relacionados que se moldam mutuamente e estabelecem problemas sociais. Para desenvolver a análise deste artigo, interseccionamos violências estruturais, conformação sociopolítica e fatos conjunturais.
No primeiro tópico - Violência no Brasil: Racismo, machismo e eugenismo como estrutura social - desenvolve-se, inicialmente, uma fundamentação do conceito de violência, principalmente a partir do pensamento decolonial (Quijano, 2000; Grosfoguel, 2011; Lugones, 2020) e da filósofa Marilena Chaui (2017), evidenciando o papel da violência na conformação das relações sociais e na conformação subjetiva dos brasileiros. O racismo, o machismo e o eugenismo são abordados a partir de autoras do feminismo negro brasileiro, dos estudos críticos sobre raça, eugenismo e corponormatividade. Nesse ponto, portanto, considerou-se destacar elementos que estão intrinsecamente vinculados ao fenômeno em questão - os ataques às escolas - e, muitas vezes, são preteridos ou abreviados.
O segundo tópico - Neoliberalismo, neofascismo e educação: A escola no centro da disputa política - traz à baila o contexto da polarização política no país. Debruça-se sobre a ascensão do neofascismo no Brasil; apresentam-se suas características e discutem-se os porquês de as instituições educacionais terem sido alvos centrais dessa concepção ideológico-política. Nesse sentido, estabelece uma continuidade do primeiro tópico acerca das violências que demarcam o país e sua cultura, direcionando-se, entretanto, para o contexto escolar.
O terceiro tópico - Apontamentos teórico-práticos para combater o ódio às comunidades escolares - busca sintetizar as motivações dos ataques violentos nas instituições, destacando a atuação dos grupos virtuais de ódio, nos quais ataques a escolas são incentivados e planejados. Em seguida, com base nas formulações de autoras como bell hooks (2013) e Nancy Fraser (1997), bem como nos apontamentos dos relatórios consultados, busca-se formular maneiras de prevenir e enfrentar essas violências. Caracteriza-se, dessa forma, como discussão final do artigo.
Violência no Brasil: Racismo, machismo e eugenismo como estrutura social
Quando se fala sobre violências contra sujeitos, grupos sociais ou populações, há certos episódios da história da humanidade que são prontamente evocados pela memória, uma vez que foram paulatinamente concebidos como o que houve de mais representativo da violência nas relações humanas.
Entre esses episódios está o nazismo, que se embasa no autoritarismo, na crença em uma hierarquia racial natural e no aniquilamento de pessoas dissidentes do sujeito universal. A ascensão da ideologia nazista ao poder ocorreu em 1933, perdurando como política de Estado por mais de uma década, após perseguir pessoas judias, negras, deficientes, homossexuais e opositores políticos. Similarmente se caracteriza o fascismo, que ascendeu ao poder há cem anos na Itália e se qualifica pelo ultranacionalismo e pela hierarquia social. Ambos os regimes datam do início do século XX e levaram um imenso número de pessoas à miséria ou à morte violenta, caracterizando governos que efetivaram níveis de crueldade pouco amargados na história da humanidade.
Um dentre esses outros períodos de tamanha brutalidade, que apesar de ter durado muito mais que uma década, muitas vezes não é tão rememorado como o nazifascismo, foi o de invasão, massacre e escravização decorrentes da colonização europeia na África, Ásia e América. A dominação e acumulação primitiva de capital, por meio do saqueio, tráfico de pessoas e escravização, transcorreram por quatro séculos, sendo indispensáveis para a fundamentação da modernidade. Nações e etnias foram divididas segundo a vontade dos países colonizadores; pessoas negras escravizadas foram demarcadas pela subtração do domínio de seus corpos, subtração de seus lares e de seu status político, ainda sendo alvos de epistemicídio. O Brasil foi o último país a abolir o regime escravocrata (Gonzalez, 1988/2020).
De regresso ao século XX, o início de um conjunto de guerras proclamadas pelos Estados Unidos e potências geopolíticas europeias ocorre e se estende por anos a fio, como as guerras do Vietnã, das Coreias, do Iraque e do Afeganistão. Esse período da história ainda foi palco do apartheid na África do Sul, das autoritárias ditaduras militares na América Latina e da concentração e abandono à morte de um sem-número de pessoas consideradas anormais em instituições manicomiais ao redor do mundo (Basaglia, 1985). Todo esse conjunto de fatos expõe um processo histórico de dominação e divisão, tanto de países quanto de sujeitos.
Seria possível dizer que esse conjunto de eventos históricos, nos quais a violência fez-se imperativa, remete somente a uma época passada? A violência de hoje é singular? Não encontra precedentes na história da humanidade? Afinal, já não há, por exemplo, um regime escravocrata, além de a produção de alimentos ser a maior jamais vista, não sendo necessária a existência da competição e da miséria. Ou ainda estão presentes no mundo atual guerras de conquista e invasão, encarceramentos em massa, chacinas e genocídios de populações subalternizadas, hierarquizações de raça, gênero e corporeidade, perseguições e assassinatos políticos?
O que se mostra crucial em tais recordações e questionamentos é a compreensão de que a violência do presente tem correlação com a violência do passado; comungam semelhantes raízes e processos. Isto é, ainda que o termo violência possa ser considerado polissêmico, é somente em uma análise contextual, a partir de determinada constituição histórica, cultural e política, que se demonstra sua complexidade (Chaui, 2017; Vergès, 2021). Logo, faz-se fundamental abordar tal conceito de maneira contextualizada, caso se queira compreender fenômenos nos quais ele está presente. Segundo autoras-base para este artigo (Lugones, 2020; Vergès, 2021), a violência fundamenta-se na dominação e hierarquização que ocorre tanto entre países quanto entre grupos sociais ou sujeitos. A violência está imbricada e se realiza pelo conjunto de ações para exercer a subalternização e a exploração, com fins últimos de exercer e perpetuar o poder (Vergès, 2021).
Em sua análise sobre a gênese do capitalismo, Marx (1867/2013) destacou essa concepção de subalternização e exploração ao expressar que a violência é a base sobre a qual o capitalismo se desenvolve, devido à acumulação primitiva. Isso porque ele se realiza pela expropriação corporal e territorial de povos, por meios violentos diretos, durante o período colonial-escravocrata. A colonização e a divisão racial do trabalho estão nas raízes do sistema capitalista de produção (Quijano, 2000; Marx, 1867/2013). Ainda, esse sistema social configurou ao longo do tempo maneiras de viver, sentir e pensar que perpetuam opressões. Para isso acontecer existem as “instituições da violência”, que normatizam a vida (Basaglia & Basaglia, 2010). Aponta-se que a dominação que constitui a sociedade moderna - “esse mundo de miséria econômica e psicológica” (Basaglia & Basaglia, 2010, p. 296) - vasculariza-se por meio de indispensáveis instituições, como a família, a escola, as relações de gênero e outras. São:
. . . regras, interdições, tabus, proibições, repressões; divisões de classe, raça, cor, sexo, de papel; abusos de poder, injustiças e humilhações, violência organizada e permanente: isso é o que constitui o mundo da norma. Nenhuma regra para a defesa da existência, mas todas as regras feitas para a sua dominação e manipulação. A essa norma não pode identificar-se o dominado, porque ela é feita para sua destruição, mas tampouco o pode aquele que pertence à fileira dos dominadores, sob pena de entorpecimento e morte de sua humanidade. (Basaglia & Basaglia, 2010, p. 296).
Os estudos decoloniais ressituam essa análise da constituição da violência a partir dos saberes e da realidade dos países periféricos ou do Sul Global. Formulam que a sociedade se caracteriza pela hegemonia do poder do capitalismo eurocêntrico globalizado, que se embasa em dois eixos - a colonialidade e a modernidade (Quijano, 2000). Esse conjunto conceitual pode ser explicado a partir do entendimento de que, com o fim do colonialismo como constituição geopolítica, a divisão internacional do trabalho entre centros e periferias e a violenta hierarquização racial das populações não se transformaram significativamente (Quijano, 2000; Lugones, 2020).
A noção de colonialidade, dessa maneira, refere-se a um padrão de poder pelo qual as relações geopolíticas e intersubjetivas se articulam a partir de posições de domínio de viés racial, e que não se resumem a relações de exploração do trabalho. O conceito de modernidade, por sua vez, pode ser compreendido não só como a universalidade dos ideais eurocêntricos, entre os quais há o modo capitalista de produção, mas também como as noções racionalistas de ciência, de sujeito ou humanidade. Desse padrão universal provém a hierarquização entre primitivos e civilizados, racionais e irracionais, superiores e inferiores. Quijano (2000) expressa, portanto, que a fusão das experiências do colonialismo e da colonialidade com as necessidades do capitalismo é o que funda a modernidade, configurando esse universo específico de relações de dominação.
Os estudos feministas (Lugones, 2020; Vergès, 2021) complexificam o pensamento decolonial a partir da formulação de que a modernidade-colonialidade fundamenta a dominação e a hierarquização não somente por meio da raça, mas também, indispensavelmente, pelo gênero, embasando, dessa maneira, uma importante contextualização da violência na atualidade. Isto é, há uma imposição hierárquica não apenas de um violento sistema racial, mas também de um violento “sistema moderno-colonial de gênero” (Lugones, 2020, p. 60). Esse sistema é permeado pela destituição de poder e humanidade das mulheres não brancas no trabalho, na economia, na política e em todos os âmbitos da vida:
As fêmeas racializadas como seres inferiores foram transformadas de animais a diferentes versões de mulher - tantas quantas foram necessárias para os processos do capitalismo eurocêntrico global. . . . Quando “atribuídas de gênero” através da transformação nessas versões, as fêmeas colonizadas receberam o status de inferioridade que acompanha o gênero mulher, mas não receberam nenhum dos privilégios que esse status significava para as mulheres burguesas brancas. (Lugones, 2020, p. 80).
Semelhantemente, outras autoras e autores, compreendendo e vivenciando a hierarquia moderna desde o Sul Global, concebem outras diferenças que demarcam o violento sistema de poder da colonialidade-modernidade. Ferrari (2020) expressa a colonialidade da capacidade ao comparar a sociedade atual ao modo como os povos andinos, por exemplo, concebiam e lidavam com diferenças de conformação biológica-psicológica-cognitiva. Vergueiro (2015), por sua vez, expressa que a homofobia, o sexismo, a transfobia também constituem a colonialidade, visto que esta naturaliza corpos e sexualidades a partir de um universal - cisnormativo e heterossexual. É fundamental expressar que crianças e adolescentes também sofrem com a hierarquização da colonialidade, uma vez que o sujeito universal corresponde ao homem branco e adulto - suposto detentor do conhecimento racional e de maturidade emocional. Crianças e adolescentes são concebidos como menos capazes emocional e intelectualmente ao que corresponde o adultocentrismo (Chaveiro & Minella, 2021).
É por meio da intersecção entre marcadores sociais, como os de raça, gênero e corponormatividade, portanto, que se concebe aquelas e aqueles que são considerados seres inferiores. E por meio dessa inferiorização se estabelece a zona do não ser, a zona dos considerados menos capazes, excêntricos ou primitivos (Fanon, 1952/2008; Lugones, 2020). A zona do não ser corresponde, em síntese, àquela dos povos marginalizados dos países periféricos, que são impelidos à miséria, para quem predomina a subalternização enquanto sujeitos e a precarização/ausência do Estado e dos serviços públicos. Essa concepção do pensamento decolonial é importante, pois autores como Vergès (2021) e Grosfoguel (2011) delineiam como a violência ocorre nos contextos da zona do ser e da zona do não ser.
Destaca-se que, entre os habitantes da zona do ser, há um reconhecimento da humanidade do Outro, existem legislações, códigos civis - humanos e laborais - e noções, como igualdade e liberdade, que intermedeiam as relações sociais. Isso faz com que os conflitos sejam regulados, por regra, por métodos não violentos. Na zona do não ser, pelo contrário, o sujeito de poder (representado pelo padrão branco, masculino e detentor de riqueza), com seu aparato jurídico-político e militar, gerencia os conflitos e desigualdades por meio de atos de violência. Essa violência faz-se regra, direitos sociais e leis são violados, banalizam-se a exclusão, a agressão física, sexual e, até mesmo, a morte (Grosfoguel, 2011).
A dialética de reconhecimento mútuo, que ocorre na zona do ser, desmorona diante do não reconhecimento da humanidade do Outro e de sua inferiorização na zona do não ser (Fanon, 1952/2008). Essa violência contínua para com os povos inferiorizados foi denominada por Fanon de violência atmosférica - uma “atmosfera de violência” que constitui as relações interpessoais, que se infiltra pela trama social em sua totalidade.
Há autoras brasileiras cujas produções convergem para a compreensão de violência citada. Elas resgatam, histórica e culturalmente, instituições opressoras-chave que alicerçam a estrutura social brasileira e conformam a subjetividade dos sujeitos. Entre elas está Lélia Gonzalez (1988/2020), que expressa que, mesmo após o período escravocrata-colonial, constituiu-se uma subalternização dos povos negros pela episteme eurocêntrica e, ainda, uma tripla inferiorização das mulheres negras latino-americanas. Além de serem desumanizadas devido à sua raça/origem e subalternizadas enquanto força de trabalho, houve a repressão sexual de seus corpos:
Da mesma forma, nós mulheres e não brancas fomos “faladas”, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza. Ao nos impor um lugar inferior no interior da sua hierarquia, suprime nossa humanidade justamente porque nos nega o direito de sermos sujeitos não só do nosso próprio discurso, como da nossa própria história. É desnecessário dizer que, com essas características, estamos nos referindo ao sistema patriarcal-racista. (Gonzalez, 1988/2020, p. 44).
Outra concepção que embasou a hierarquização dos sujeitos na conformação social brasileira foi o eugenismo. Ele provém de uma base positivista, da ordem e do progresso, e concebe um avanço contínuo da humanidade, pois busca um aperfeiçoamento moral e físico da espécie humana, considerando que pessoas deficientes, marginais, “loucas” e dependentes deveriam ser extintas (Dias, 2013). Essas ideias foram muito profícuas no século XX, sendo base de teorias científicas e decisões políticas, como a do embranquecimento populacional e a da esterilização de pessoas deficientes e pobres (Dias, 2013; Góes, 2015).
É notório, portanto, como a hierarquização constitui uma lógica de domínio que estrutura, segundo Chaui (2017), a sociedade autoritária despótica brasileira. Esse autoritarismo se caracteriza pela primazia de práticas políticas violentas e valores que provêm de interesses privados, daqueles sujeitos que detêm o poder político, estando muitas vezes acima dos valores coletivos, à revelia da Constituição e de preceitos éticos. Isso é proveniente da raiz patriarcal ou despótica (termo relativo a pai de família), na qual o homem forte e provedor é o poder e a lei. Assim, os vínculos entre “os iguais” são de parentesco ou compadrio; já entre os desiguais, tomam a forma do favor, da clientela ou cooptação; e, quando a desigualdade é acentuada, assume a forma da opressão (Chaui, 2017).
Essa base hierarquizada, que oprime pessoas por raça, gênero e capacidade, serve para que muitos defendam o Estado militar/policial, onipotente, bem como o armamentismo; defendam as chacinas policiais perante os considerados criminosos, o genocídio dos povos indígenas, o encobrimento de violências sexuais executadas por homens adultos, as práticas medicalizantes, como esterilização e reclusão compulsória de pessoas com deficiência, a defesa da honra pessoal e familiar em casos de adultério ou de sexualidades dissidentes, entre muitas outras impunidades e ações justificadas pela hierarquia social. Assim, evidencia-se novamente que a violência de fundamento opressor não é exceção, senão regra. Está na base do processo de subjetivação da sociabilidade brasileira (Chaui, 2017).
O que se destaca, por meio da conceituação e dessa contextualização das violências no Brasil, é que não é sem importância e sem motivação que os ataques às escolas sejam perpetrados por homens, majoritariamente brancos, sem deficiência e que tenham como principais alvos mulheres e pessoas negras; a violência que é aprendida e reproduzida socialmente tem características provenientes do machismo e da misoginia, do racismo e do capacitismo - e por meio dessas características enraíza-se no tecido social, perpassando-o integralmente. É nesse sentido, portanto, que se considera que não se pode cerrar a visão para o modo como esses valores permeiam o cotidiano e as relações nas quais jovens estudantes estão imersos, uma vez que podem ser agentes de reprodução da hierarquia e da violência da colonialidade, como tem se demonstrado nos últimos dois anos.
Neoliberalismo, neofascismo e educação: A escola no centro da disputa política
A fundamentação acerca das raízes da violência no Brasil permite uma aproximação acerca do fenômeno dos ataques às escolas. Explicitar, porém, que a violência é fundamental para o exercício hegemônico do poder e que transcorre contra sujeitos considerados inferiores não explana totalmente por que o número de homens jovens que passou a orientar suas vidas para a eliminação do outro por meio de armas em instituições escolares progrediu exponencialmente nos últimos dois anos.
Destarte, o presente ponto busca evidenciar o processo de crescimento de um amplo movimento de extrema direita - o neofascismo - que ocorre no seio da polarização política do país. O ponto apresenta suas características, expondo principalmente sua cultura do ódio e do extremismo político. Ainda, aborda-se o porquê de as comunidades escolares terem sido um dos principais alvos dessa ideologia.
Nunes (2022) e Cesarino (2022) explanam que a polarização característica do cenário sociopolítico dos últimos anos no Brasil se constituiu, inicialmente, devido a uma contraposição democrática ao poder hegemônico - tanto no campo dos movimentos sociais, como na disputa político-partidária. Isso porque o Brasil passou desde a década de 1970 pela neoliberalização da economia, fazendo com que muitos atores do cenário político construíssem uma agenda progressista diante do programa neoliberal. Essa agenda teve maior expressão com os anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT) (2002-2015). Inicialmente, tais gestões apaziguaram a polarização, pois o governo adotou uma política de conciliação entre necessidades do mercado e pautas progressistas, como largo investimento na indústria enquanto promovia a infraestrutura nacional, o acesso a bens e à moradia e políticas públicas de renda (Nunes, 2022).
A polarização, entretanto, foi realavancada pelas consequências da crise mundial de 2008, que trouxe, ainda, recomposições ideológicas e novas ferramentas político-midiáticas (Cesarino, 2022; Nunes, 2022). Pois, nos anos que se seguiram à crise, o Brasil adotou diversas medidas de austeridade para salvaguardar o mercado, ocorrendo novo avanço na agenda neoliberal. Foram priorizadas as medidas de redução de gastos públicos, as terceirizações, as reformas trabalhista e previdenciária e isenções fiscais. Esse contexto se iniciou ainda no governo do PT, gerando uma insatisfação popular devido ao decréscimo no poder de compra. O governo esteve entre dois projetos: continuar cedendo às pressões empresariais ou promover um giro político perante o neoliberalismo (Filgueiras & Duck, 2019).
A intervenção estatal realizada para salvar a economia não só escancarou características do projeto neoliberal, mas também o fortaleceu. Foi nesse contexto que grupos ultraliberais - em oposição ao governo federal à época - buscaram intensificar tal projeto, desenvolvendo ataques morais por meio de ferramentas midiáticas, cooptando parcelas da população civil que estavam descontentes com a involução da economia (como ocorreu nas “jornadas de junho” de 2013) e lançando candidatos populistas. O oposicionismo de direita buscou ferrenhamente a destituição das proteções sociais, de políticas públicas de bem-estar coletivo e, assim, o impulsionamento de uma política de morte - ou necropolítica (Mbembe, 2018).
A necropolítica representa não somente o abandono do outro à morte, mas sobretudo a busca de sua aniquilação, pois o outro é visto como um peso para o desenvolvimento econômico e social. É nesse sentido que o movimento oposicionista e o conjunto de grupos que o compõe são caracterizados como neofascistas, na medida em que prezam a eliminação do diferente e da estrutura democrática do país. O neofascismo à brasileira, assim, caracteriza-se por um movimento amplo de grupos sociais, coadunados com uma ideologia antidemocrática e de ódio às diferenças, bem como com posicionamentos extremistas no que concerne à economia e à política. Movimento disposto, inclusive, a ações violentas perante a estrutura governamental e social, para a efetivação de seu objetivo político (Boito, 2020).
Esse movimento, segundo Cesarino (2022), foi se conformando pela cooptação do senso comum por grupos antiestruturais, inicialmente vinculados às elites, que promulgam e difundem uma lógica não mais universalista de política, pautada nas estruturas democráticas, públicas e científicas, mas sim uma lógica antiestrutural ou de reconhecimento bifurcado - no qual não há igualdade possível entre os sujeitos políticos. Nesse sentido, o neofascismo prevê a conflagração social, ao transpor a lógica da política democrática para um modelo do antagonismo e da guerra (Cesarino, 2022). Assim, duas características centrais da ascensão do neofascismo são a conjunção entre concepções econômicas ultraliberais e os valores hierárquicos já presentes na sociedade, bem como a banalização das ações e discursos de ódio.
As ações e discursos de ódio do movimento neofascista podem ser exemplificados pela apologia às armas e à eliminação dos adversários, como nas falas públicas do ex-presidente do Brasil (gestão 2018-2022), expondo que era necessário metralhar os “esquerdistas”; pelas agressões físicas, levadas às últimas consequências, como nos assassinatos do tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu, do Mestre Moa do Katendê, em Salvador, e em tantas outras ocorrências relacionadas sobretudo a populações indígenas e pessoas LGBTQIA+; e pelo atentado a bomba no aeroporto de Brasília ou a destruição dos prédios federais, no dia 8 de janeiro de 2023, por centenas de integrantes desse movimento, incluindo representantes militares.
Os fatores abordados, como a crise econômica e a atuação do movimento neofascista, em síntese, desencadearam o impeachment em 2016 e posteriormente a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 (Nunes, 2022). Uma vez na presidência, este facilitou e inflamou políticas ultraconservadoras, como o armamento da população e o genocídio de grupos minoritários. Portanto essas são características práticas da ascendência do neofascismo, visto que o “bolsonarismo” deu nome a um movimento já existente, mas que ganhou força com seu mandato. São sínteses conceituais que o embasam: o militarismo policial, o anticientificismo evangélico, o empreendedorismo monetarista, o libertarianismo econômico e o anticomunismo (Nunes, 2022).
É nessa conjuntura de guerra contra a diversidade e democracia que são instituídas certas políticas educacionais e ações de ataque a uma concepção democrática de educação. Parlamentares do movimento “Escola sem Partido” ganham grande apoio político e popular, é instituído o programa nacional de escolas cívico-militares, elabora-se o projeto de educação domiciliar (homeschooling), aplica-se a Reforma do Ensino Médio. Isto é, a educação sobressai como um dos principais campos de disputa política. O movimento ganha força com a rejeição da ciência, a concepção empreendedora de sujeito e os ataques morais: as ofensivas antigênero, capacitistas e a suposta doutrinação ideológica (Martins, 2021; Tiriba et al., 2022; Gesser & Moraes, 2023).
Como elabora Cesarino (2022), os movimentos antiestruturais buscaram realizar estratégias de desengajamento do sistema democrático, a fim de aplicar sua lógica extremista a todo o tecido social. Sendo assim, as contrarreformas educacionais e os ataques morais com base na “doutrinação ideológica” representam tentativas de desestruturação da educação, e seus elementos - professoras, bases pedagógicas e curriculares - são tratados como alvos (Tiriba et al., 2022). Logo, consideramos que perpassa pela estratégia neofascista propagar o ódio ao ambiente educacional, a fim de atacar seu objetivo formador de valores e cidadãos democráticos para, inclusive, implementar os anseios neoliberais de privatização desse campo, além de uma concepção individualista de ser humano, uma educação segregacionista e concorrencial (Tiriba et al., 2022).
Portanto, faz-se fundamental destacar que a ocorrência dos ataques violentos às escolas apresenta crescimento exponencial no mesmo período em que há uma estimulação ao ódio a sujeitos que fogem à norma colonial-moderna, bem como no período em que a educação é tida como alvo. Um dos meios de incitar e organizar essa violência são os grupos extremistas no meio on-line. Como aponta o relatório Ataques às escolas no Brasil (Cara, 2023), incitações e comemorações aos ataques às escolas têm sido encontradas na True Crime Community, presente em diversas redes sociais. Nessas incitações, recorrentemente estão presentes discursos de ódio a mulheres, racismo, capacitismo e neonazismo. Abordamos esses grupos e suas características no tópico a seguir.
A concepção ultraliberal e privatista de educação e de sociedade, dessa forma, relaciona-se com e se nutre no solo fértil do neofascismo em ascensão, do discurso de ódio e da desqualificação da escola e seus profissionais. Mais uma vez, não é à toa que escolas, professoras, mulheres, pessoas desviantes dos padrões de raça e corponormatividade sejam alvos de ataques por homens jovens brancos; ataques que são ou formulados ou incentivados por grupos on-line de ideologias neonazistas (Cara, 2023; Oliveira et al., 2023).
Apontamentos teórico-práticos para combater o ódio às comunidades escolares
O relatório Monitoramento das ameaças massivas de ataques às escolas e universidades (Oliveira et al., 2023) expressa que comunidades on-line interessadas em crimes reais foram, nos últimos anos, gradativamente se distinguindo por compartilharem conteúdos supremacistas/neonazistas, incitar o ódio a grupos minoritários e integrar interessados em vangloriar atiradores escolares. Como aponta o estudo de Schurig (2023), essas comunidades acompanham o avanço do movimento neofascista e neonazista, nacional e internacionalmente.
Esses grupos passaram a utilizar aparatos cibernéticos, como fóruns e redes sociais não legisladas, memes e algoritmos, para promover o ódio latente socialmente entre adolescentes e jovens adultos. Entre as violências incentivadas estão ações misóginas - como assédio sexual e “estupros corretivos” -, espancamentos de pessoas discordantes da cis-heteronormatividade, práticas racistas e capacitistas, entre outras. Segundo o relatório Ataques às escolas no Brasil (Cara, 2023), esses fóruns expressaram apoio aos tiroteios escolares predominantemente quando os alvos eram mulheres, pessoas não brancas ou com deficiência. Tais estudos indicam ainda que diversos atentados foram organizados nesses grupos, como os que aconteceram em Barreiras e Cambé, e em outros atentados - como os de Aracruz e Suzano -, os atores divulgaram suas intenções ou atos nas comunidades (Cara, 2023; Oliveira et al., 2023).
Acerca dos atores dos ataques, 39 pessoas efetivaram 36 atentados ocorridos no Brasil, sendo todos homens. Desses, 37 são brancos, com idades de 10 a 25 anos. A maioria, ao menos 25 deles, segundo as investigações, é usuário ativo dos grupos de cultura extremista e venera conteúdos neonazistas e violência extrema (Vinha et al., 2023). Outro importante aspecto é que todos simbolizam a escola como espaço de sofrimento, pois consideraram passar por injustiças e humilhações. Os ataques eram muitas vezes, portanto, uma forma de vingança contra aquilo e aqueles que os autores consideraram tratá-los injustamente.
A realidade retratada coaduna com as pesquisas de Abramovay (2012) e Abramovay et al. (2018), que expressam que um dos grandes problemas relacionados às violências nas escolas no país é a própria violência institucional. Isto é, encontra-se frequentemente uma escola na qual não há incentivo à participação estudantil, o que acarreta uma convivência escolar permeada de silenciamentos e injustiças. Segundo as pesquisadoras, há no Brasil “uma escola que nega a cultura juvenil, que não está feita nem para os adolescentes nem para os jovens; a questão da participação, da falta de diálogo, é uma constante” (Abramovay et al., 2018, p. 296). Ressalta-se, a partir da pesquisa realizada nas cinco regiões brasileiras, que conflitos originados por discriminações (como de raça, gênero e capacidade) perpassam o cotidiano, gerando problemas de autoestima e, muitas vezes, evoluindo para eventos violentos (Abramovay, 2012).
Relacionado à sensação de injustiça na escola, existe também um ressentimento proveniente de uma suposta “perda de lugar”, de poder ou de privilégios, diante do reconhecimento social e da garantia de direitos a outros grupos identitários, como mulheres e pessoas não brancas, o que coaduna com princípios racistas, misóginos e capacitistas que são socialmente veiculados (Vinha et al., 2023). O sentimento de injustiça e o ressentimento demonstram, assim, a complexidade de lidar com a convivência escolar, visto que é permeada por diferenças identitárias/subjetivas e políticas, profundas relações de poder e discriminações culturais e históricas que envolvem toda a comunidade escolar, inclusive a própria escola e suas normas.
Torna-se assim evidente que, encorajados pela ascensão do movimento neofascista, os grupos on-line de incitação ao ódio funcionam como local de reconhecimento e espaço onde os ressentimentos e a vontade de vingança de jovens estudantes reverberam; ali encontram tanto apoio socioemocional quanto incentivo aos desejos e às ações violentas. Como expõem Vinha et al. (2023, p. 32), as comunidades “funcionam como câmaras de eco, amplificando os ressentimentos, frustrações e raiva. Para eles, o mundo não é como gostariam, sentem-se vítimas de injustiças da sociedade; a diversidade e a democracia são vistas como ameaça”.
Mas por que esse ressentimento em relação a grupos minoritários é um elemento tão importante, apontado como potencializador dos atentados às escolas? A discussão desenvolvida por Fraser (1997), na qual a autora diferencia e compara as políticas afirmativas e as políticas transformativas, em muito auxilia nessa questão, além de direcionar para estratégias de prevenção aos discursos de ódio.
Fraser (1997) relata que, desde os últimos anos do século XX, para se contrapor a injustiças históricas e culturais que ocasionaram condições precárias de existência, sobretudo a determinadas populações, houve o crescimento de lutas sociais que buscaram o reconhecimento de grupos subjugados. Essas lutas procuraram estabelecer políticas afirmativas ou de reconhecimento, como expressado pela autora: “as exigências de reconhecimento da diferença alimentam as lutas de grupos que se mobilizam sob as bandeiras de nacionalidade, etnia, raça, gênero e sexualidade” (Fraser, 1997, p. 17). Ela também destaca que as políticas de reconhecimento podem ter efeitos que na prática aumentam a oposição dos setores sociais que não se reconhecem nessas conquistas.
Isto é, grupos sociais que não são alvos das políticas afirmativas sentem-se como desprivilegiados. Fraser (1997) exemplifica com as políticas de reserva de emprego a mulheres e pessoas negras, mas poderíamos citar também a reserva de vagas em concursos e universidades. Portanto, ao se instituírem medidas paliativas, sem transformar a estrutura racista e misógina, por exemplo, cria-se um ressentimento em uma sociedade já dividida por raça, classe, capacidade, gênero e sexualidade. Pode-se compreender, assim, que na sociedade na qual há uma subalternização de determinados sujeitos, num momento de ascensão de uma política ultraliberal, o ressentimento torna-se agravado. O que, por sua vez, pode ser manipulado para fins violentos.
Portanto sintetizando: entre as motivações fundamentais para os ataques às escolas, compreende-se inicialmente (1) o ressentimento, sendo este vinculado tanto à não aceitação de determinados grupos sociais quanto ao sentimento de injustiça proveniente da convivência escolar - isto é, discordâncias sobre o tratamento dispensado pela escola, agressões e frustrações nas relações interpessoais. O ressentimento é retroalimentado pela (2) discriminação e inferiorização estrutural de pessoas negras, mulheres, pessoas com deficiência e outras que fogem à normatização moderno-colonial. O (3) incentivo que homens jovens recebem para cometer atentados com base em ódio e vingança, por parte dos grupos on-line que tiveram crescimento com o movimento neofascista brasileiro, bem como o fomento à utilização e ao aumento da circulação de armas de fogo, que acompanha o mesmo movimento político citado.
Quais seriam, então, as estratégias possíveis de enfrentamento aos atentados às escolas? E, mais especificamente, como combater a cooptação de jovens pelo meio on-line, evitando assim a propagação dessa forma de violência? Diante do conjunto exposto de motivações para a violência e elementos conjunturais tão complexos, fica evidente que são necessárias tanto medidas urgentes, imediatas, quanto medidas que gerem transformações socioculturais; ou seja, transformações no modo como os adolescentes desenvolvem seus valores e suas relações.
Quanto às ações imediatas, evidenciam-se aquelas direcionadas a identificar e responsabilizar os grupos on-line de ódio. Nesse quesito, a atuação do Ministério da Justiça, por meio da Operação Escola Segura, representa um primeiro passo importante, ainda que paliativo. Segundo o Ministério, ao completar seis meses de operação, quatrocentos adolescentes e suspeitos identificados como planejadores de ataques haviam sido apreendidos, fruto da vigilância das comunidades de ódio. Isso reitera a necessidade de outra medida urgente no âmbito jurídico, que é a regulamentação das redes sociais. Essa regulamentação exigiria que as próprias plataformas recorressem a meios de exclusão de perfis que propagam o ódio, prescindindo de investigações e medidas judiciais laboriosas - o que faria com que esses crimes, e qualquer ação de discriminação, fossem proibidos nas plataformas virtuais.
Ainda que necessárias para evitar outros ataques, essas são medidas coercitivas e proibitivas que não estão no âmbito da educação, além de não abordarem as opressões estruturais, base das relações violentas do país. Ou seja, não adianta apreender e punir adolescentes e jovens estudantes se não forem realizadas medidas que tornem as escolas locais confortáveis e favoráveis ao desenvolvimento sociocultural e ao processo de ensino-aprendizagem, de modo que as situações de discriminação, de ressentimento e a sensação de injustiça sejam enfrentadas. Entre essas medidas, portanto, estão a promoção da gestão democrática e de ações comunitárias; a valorização das escolas e profissionais (Cara, 2023; Vinha et al., 2023); e projetos sociopedagógicos que fomentem a convivência escolar na direção de uma escola emancipadora (Abramovay, 2012; hooks, 2013).
A gestão democrática é um princípio que preza a elaboração coletiva do projeto político-pedagógico e dos processos decisórios, além da participação comunitária. Compreende o envolvimento de todos - incluindo estudantes, grêmio estudantil e o conjunto de pais e professores. Com ela é possível estabelecer um currículo e métodos de ensino que estejam de acordo com a realidade da comunidade na qual a escola se insere. Ainda, as pessoas vinculadas sentem-se corresponsáveis pelo clima escolar e pelas decisões; ou seja, a gestão democrática também é uma estratégia de criação de vínculo e enfrentamento de conflitos. Além de que busca a realização de ações comunitárias, com as redes de saúde, assistência social e cultura.
A convivência escolar diz respeito à construção das normas, valores e atitudes e participação neles, sendo um dos principais indicadores do ambiente escolar. Assim, relaciona-se não somente ao cumprimento das regras, mas também à sensação de justiça, de proteção, expressa a qualidade dos vínculos e da promoção da saúde mental, além de indicar qual é o direcionamento ético-político da escola (Abramovay, 2012; Andrades-Moya, 2020). Visto, porém, que a convivência entre adolescentes nas escolas tem gerado sentimentos de frustração, injustiça, opressões e violências, como transformá-la?
Fazem-se necessárias ações que fomentem a convivência escolar numa direção cooperativa e emancipadora. Assim expressa hooks (2013) em suas formulações acerca da educação como prática da liberdade. Esta diz respeito a desenvolver um ambiente que leve em conta as necessidades dos envolvidos; para isso, é necessário o compartilhamento das realidades, possibilitando reconhecer as diferenças. Assim, a construção coletiva do conhecimento e das relações pode acolher tais diferenças e ir além delas. hooks (2013, p. 26) explicita que “a educação só pode ser libertadora quando todos tomam posse do conhecimento como se este fosse uma plantação em que todos temos de trabalhar. . . . Uma forma de refletir e agir no mundo a fim de modificá-lo”.
Reitera-se, assim, que a escola deve ser espaço de construção coletiva do saber e do atuar no mundo, perpassando pela crítica que segrega e hierarquiza, pelos sistemas de dominação e exploração que geram as violências. Nesse sentido, fomento à convivência escolar não significa uma escola sem conflitos. Incentivar a convivência para a cooperação e emancipação é possibilitar meios para que os conflitos estejam visíveis e sejam coletivamente elaborados por meio, inclusive, de práticas pedagógicas. hooks propõe, assim, ações pedagógicas que “permitam as transgressões - um movimento contra as fronteiras e para além delas” (hooks, 2013, p. 24).
Consideramos, com base em Cara (2023), que se inclui nesse propósito o incentivo aos grêmios estudantis e coletivos escolares que possam dialogar e propor estratégias de enfrentamento às opressões. Adicionamos, ainda, formas de aferição do clima escolar e suas consequências à saúde mental, a fim de embasar medidas que promovam os vínculos. Isso abrange a atuação de equipes multiprofissionais, com atuação de psicólogos escolares. Ademais, faz-se fundamental a formação continuada de profissionais das escolas sobre conflitos e práticas pedagógicas que possibilitem a problematização coletiva do clima escolar. Por fim, citamos os currículos comprometidos com a formação em direitos humanos e o combate aos sistemas de opressão, de modo que não haja cisão entre a escola e a realidade externa; isso abrange educação para mídias digitais, para que haja o reconhecimento de conteúdos que levam à discriminação e violência.
As concepções de hooks quanto à necessidade de coletivização e transgressão, bem como a necessidade de não haver uma cisão entre a convivência escolar e as questões sociais, coadunam com o que preconiza Fraser (1997). Esta expressa que existem diferentes eixos de injustiça, que se interseccionam e afetam os interesses e identidades de todos, afinal “ninguém é membro de uma só coletividade” (Fraser, 1997, p. 49). Assim, defende a construção de coalizões direcionadas a mudanças estruturais, buscando uma igualdade social básica que possibilite a desconstrução das diferenças identitárias hierárquicas (como entre brancos e não brancos ou homens e mulheres). Isto é, não se extinguem as diferenças, mas elas passam a estar em redes de diferenças múltiplas que se interseccionam.
Entretanto é mister proferir que as ações supramencionadas, ainda que indispensáveis, por si sós não levam à superação das opressões hierárquicas na convivência escolar, uma vez que a escola é instituição que constitui a modernidade-colonialidade. Políticas transformativas ocorrem quando privilégios provenientes das estruturas sociais - como o privilégio da branquitude, da masculinidade, da capacidade e do poderio econômico - são socialmente enfrentados, uma vez que muitas violências ocorrem devido ao ressentimento da perda de poder/privilégio. É necessário que o racismo, o capacitismo, o classismo e qualquer outra discriminação sejam diariamente enfrentados, dentro e fora das escolas.
Considerações finais
A tessitura ora empreendida, que buscou evidenciar a intersecção entre elementos constitutivos dos ataques violentos às escolas - com o objetivo de apresentar estratégias de enfrentamento -, demonstrou ser um fenômeno complexo, multifacetado. O que, por sua vez, exige resoluções no âmbito das políticas públicas de convivência escolar, assim como nas relações culturais e econômico-políticas. Isso porque foi demonstrado que os ataques às escolas comungam raízes nas violências que fundam as relações socioculturais brasileiras - como o racismo, o machismo, a corponormatividade e o autoritarismo -, que atualmente se encontram sobrelevadas com a ascensão do movimento neofascista, gerando a cooptação de estudantes por grupos de promulgação de ódio.
A pesquisa possibilitou retratar que os ataques às escolas são alavancados por disputas de poder, alicerçadas nas hierarquizações entre grupos sociais e na inferiorização que a própria instituição escolar produz na relação com os estudantes. A hierarquização e a inferiorização levam ao silenciamento e à naturalização das violências. Diante dessa trama severa e crítica, destacam-se ações com o fim de prevenir e enfrentar os discursos de ódio e ataques violentos. Entre elas, as que promovem uma convivência escolar cooperativa e emancipatória, na qual as resoluções são conjuntamente elaboradas. Incluem-se a criação e o incentivo de coletivos escolares; a gestão democrática e a participação comunitária; formas de aferição do clima escolar e promoção aos vínculos, como estratégias de abordagem da saúde mental; a formação em direitos humanos e combate aos sistemas de opressão; e a educação para mídias digitais.
Detêm-se como considerações finais, portanto, que é fundamental decolonizar as relações escolares. Decolonizar refere-se a escancarar e combater as relações hierárquicas de poder e a normatização sobre gênero, corponormatividade, raça, etnia, sexualidade e origem socioeconômica. Faz-se fundamental, assim, que o conjunto de membros da comunidade escolar esteja comprometido com o combate às violências, e que, sobretudo - como expressa um conjunto de autores que se coloca contra a opressão colonial, desde Freire e hooks à Lélia Gonzalez e Spivak -, aqueles que foram oprimidos e subalternizados possam produzir conhecimento e participar da organização de suas realidades.
Decolonizar a educação, nesse sentido, não é somente des-colonizar as relações sociais nas escolas, isto é, resistir à hierarquização e se contrapor aos ataques que buscam normatizar a comunidade escolar - como as ofensivas capacitistas e ofensivas antigênero -, mas de-colonizar refere-se, também, a propor novos saberes e novas maneiras de vinculação no âmbito da convivência escolar, a partir daqueles grupos que são subalternizados. Mignolo (2003) nomeia esse processo de “diferença colonial”, que constitui o pensar a partir das ruínas e fronteiras, das experiências e margens constituídas pela colonialidade, de maneira que os subalternizados possam conceber um novo horizonte epistemológico. É, portanto, também propor perspectivas de pensar e agir no âmbito pedagógico.
Consideramos, assim, que se constitui primordial nessa conjuntura se colocar na oposição à colonialidade do ser, do saber e do poder no âmbito escolar, visto que essas três esferas se evidenciam nas relações escolares, nos processos de ensino-aprendizagem e na gestão escolar. Em contraponto à colonialidade, pode haver a fundamentação nas maneiras de se relacionar, viver e ensinar que existem nos quilombos, nas aldeias indígenas, nos coletivos negros, anticapacitistas e feministas, nos movimentos sociais de luta por moradia e pela terra, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Isto é, construir coalizões entre movimentos que seguem na direção de uma diversidade de saberes, realizando a crítica à hegemonia ou à geopolítica hierárquica do conhecimento e desafiando as estruturas que mantêm os privilégios do sujeito universal.