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Cadernos de Pesquisa

versão impressa ISSN 0100-1574versão On-line ISSN 1980-5314

Cad. Pesqui. vol.55  São Paulo  2025  Epub 26-Abr-2025

https://doi.org/10.1590/1980531411338 

ARTIGOS

EDUCAÇÃO DE TRABALHADORES EM GRAMSCI (1917-1919): UMA ALTERNATIVA REVOLUCIONÁRIA

WORKERS’ EDUCATION ACCORDING TO GRAMSCI (1917-1919): A REVOLUTIONARY ALTERNATIVE

LA EDUCACIÓN DE TRABAJADORES EN GRAMSCI (1917-1919): UNA ALTERNATIVA REVOLUCIONARIA

L’ÉDUCATION OUVRIÈRE CHEZ GRAMSCI (1917-1919): UNE ALTERNATIVE RÉVOLUTIONNAIRE

Júlio César Apolinário MaiaI 
http://orcid.org/0000-0002-7162-2136

IUniversidade Estadual de Goiás (UEG), Itumbiara (GO), Brasil;


Resumo

O artigo investiga o tema da educação de trabalhadores nas experiências de Antonio Gramsci com a redação, os organismos e os movimentos operários em período que antecedeu o seu confinamento carcerário, entre os fins de 1917 e início de 1919. Estrutura-se em sete tópicos, dedicados à apresentação de elementos introdutivos, como relevância do tema, objetivo e condução da investigação, e ao estudo das características antiespontaneísta, antinacionalista, antivanguardista, antiverbalista, antimecanicista e antidespotista, ao lado da manifestação de experiências educativas e redacionais de Gramsci nos movimentos com os trabalhadores e nos jornais operários turinenses. Busca evidenciar, com os tópicos, elementos pertinentes à reflexão sobre o tema da educação das classes trabalhadoras.

Palavras-Chave: EDUCAÇÃO DE MASSA; EDUCAÇÃO INFORMAL; EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM; JORNAL

Abstract

This article investigates the theme of workers’ education in Antonio Gramsci’s experiences with writing, organizations and workers’ movements in the period preceding his imprisonment, between the end of 1917 and the beginning of 1919. The discussion is structured around seven topics aiming at presenting introductory elements, such as topic relevance, purpose and conduct of the investigation, as well as studying the anti-spontaneity, anti-nationalist, anti-vanguardist, anti-verbalist, anti-mechanistic and anti-despotic characteristics. It also looks into Gramsci’s educational and editorial experiences in the workers’ movements and in the Turin’s workers’ newspapers. Addressing these topics will highlight relevant elements for critical thinking on working-class education.

Key words: MASS EDUCATION; INFORMAL EDUCATION; LEARNING EXPERIENCES; JOURNALS

Resumen

El artículo investiga el tema de la educación de trabajadores en las experiencias de Antonio Gramsci con la redacción, las organizaciones y los movimientos obreros en el período que precedió a su encarcelamiento, entre finales de 1917 y principios de 1919. Se estructura en siete temas, dedicados a la presentación de elementos introductorios, como la importancia del tema, el objetivo, la conducción de la investigación, y el estudio de las características antiespontaneísta, antinacionalista, antivanguardista, antiverbalista, antimecanicista y antidespotista, al lado de la manifestación de las experiencias educativas y editoriales de Gramsci en los movimientos obreros y en los periódicos obreros de Turín. Busca resaltar, con los temas, elementos relevantes para la reflexión sobre el tema de la educación de las clases trabajadoras.

Palabras-clave: EDUCACIÓN MASIVA; EDUCACIÓN INFORMAL; EXPERIENCIAS DE ENSEÑANZA; PERIÓDICO

Résumé

Cet article traite de l’éducation ouvrière dans les expériences d’Antonio Gramsci sur l’écriture, les organisations et les mouvements ouvriers entre la fin de 1917 et le début de 1919, période qui précéde son emprisonnement. Il se structure autour de sept thèmes visant d’abord à présenter des éléments introductifs, tels que la pertinence du sujet et l’objectif et la conduite de la recherche, pour ensuite étudier les caractéristiques anti-spontanéistes, anti-nationalistes, anti-avant-guarde, antiverbalistes, anti-mécanicistes et anti-despotiques. Il se penche aussi sur les expériences d’éducation et d’écriture de Gramsci au sein des mouvements ouvriers et dans les journaux ouvriers de Turin. À travers ces thèmes, il met en évidence les éléments pertinents pour une réflexion sur l’éducation de la classe ouvrière.

Key words: ÉDUCATION DE MASSE; APPRENTISSAGE INFORMEL; EXPÉRIENCES PÉDAGOGIQUES; PERIÓDIQUE

OS TEMAS EDUCAçãO E, ESPECIFICAMENTE, EDUCAçãO DE TRABALHADORES TêM DES- pertado o interesse dos estudiosos do legado gramsciano (Mayo, 2004; Baldacci, 2017; Benedetti & Coccoli, 2018; Tramma, 2022). A possibilidade encontrada por muitos deles para o seu aprofundamento tem sido investigar, entre os lugares de prática ocupados por Antonio Gramsci durante os anos que antecederam a sua reclusão no cárcere fascista, a presença de pistas relacionadas ao tema.

É considerando a pertinência de parte dessa literatura, preocupada com o tema da educação de trabalhadores, que o presente artigo objetiva apresentar a concepção de mundo de Gramsci em período redacional específico dos escritos jornalísticos caracterizados pela influência da Revolução Russa, pelas associações de cultura e pela redação em Il Grido del Popolo e no Avanti! turinense, após dezembro de 1917. Tal período consiste no intervalo entre esse mês e ano e fevereiro de 1919, quando Gramsci se vê determinado a alinhar as reivindicações partidárias do socialismo italiano ao movimento revolucionário russo e, destarte, salta do quadro de crítica em favor da apropriação teórica às classes trabalhadoras para outro, de reivindicação da manifestação prático-política destas enquanto garantia de liberdade.

Para o alcance do objetivo mencionado, o artigo fragmenta-se em seis subtópicos, respectivamente dedicados ao estudo do antiespontaneísmo, em que Gramsci toma a ausência da instrução coletiva como fator limitante à condução do processo revolucionário por socialistas e trabalhadores em geral e se dedica, em oposição, à redação em Il Grido e no Avanti! turinense; ao antinacionalismo, especialmente dedicando-se ao Avanti! turinense, em virtude do fenômeno nacionalista que invadia a educação da juventude italiana; ao antivanguardismo, dedicando-se aos escritos de Il Grido, em crítica às frações partidárias que revestiam o processo revolucionário italiano da experiência russa; ao antiverbalismo, quando da denúncia das máximas morais por parte de intelectuais e partidários sobre o nacionalismo e o socialismo, respectivamente, na Itália, para isso apostando em veículos de incentivo à cultura; ao antimecanicismo, absorvido da experiência russa, enquanto fomento do levante operário das classes trabalhadoras italianas; e ao antidespotismo, representado pela crítica aos intelectuais dos grupos sociais dominantes que, ao se infiltrarem no aparelho burocrático do Estado, influenciavam as classes trabalhadoras a se manter debilitadas e não conscientes da reivindicação de sua liberdade.

Associação de cultura e o antiespontaneísmo

Novembro de 1917 foi um mês decisivo para as iniciativas tomadas por Gramsci nos 9 anos seguintes em que se encontraria em liberdade. Pouco antes, em setembro, foi eleito secretário da Comissão Executiva Provisória da seção turinense do Partido Socialista Italiano (PSI) e assumiu a direção de Il Grido, ao qual dedicou, até outubro de 1918, grande parte do seu tempo (Coutinho, 2004, 2019; Rapone, 2014). É a partir de novembro de 1917, no entanto, que o cargo político adquirido dois meses antes influenciaria sua atividade jornalística e educativa.

Il Grido e o Avanti! turinense (Mussi & Bianchi, 2020), que incorporou o primeiro a partir de outubro de 1918, tornam-se palco das reflexões de Gramsci em 1917 e 1918 e foram marcados pela busca de interlocuções entre a previsibilidade das ações do PSI e o processo revolucionário russo. Os soviéticos ofereceram a Gramsci um novo estímulo, pois a representatividade do curso revolucionário de suas ações o auxiliou na busca por estratégias para a solução de muitas angústias surgidas nos tempos de juventude universitária (Rapone, 2014).

A Revolução Russa permite a Gramsci compreender que sua interpretação do real, ligada ao cuidado das características subjetivas, culturais e particulares dos sujeitos, para a condução de qualquer processo educativo, tinha correspondência. Ela o fez concluir que a chegada a um projeto de sociabilidade em que os direitos e os interesses dos grupos subalternos são levados em conta necessita de um trabalho educativo que envolva a subjetividade, a cultura e a particularidade deles, e não a reprodução de fórmulas mecânicas que os subjuguem e os tratem como massa manobrável. A Revolução Russa, confrontando o embrutecimento da interpretação das teses marxianas pelos intelectuais deterministas, reforça muito o que Gramsci acreditava e imprimia em suas práticas de instrução e incentivo à cultura das classes trabalhadoras.

Inspirado nos russos, Gramsci pretendia consolidar as bases de um processo revolucionário italiano. Para isso, entendia que o caminho não era o da reprodução das fórmulas bolcheviques, mas o da integração entre a experiência internacional e os elementos da originalidade nacional italiana (Fiori, 1979). Parecia fazer sentido a forma como outrora buscou encarar o problema sardo, abandonando a rebelião contra o provincianismo e adotando medidas de apoio às diferentes regiões nacionais da Itália (Rapone, 2014).

Se era a influência neoidealista que o mantinha em posição de alerta sobre o modo como o socialismo italiano buscava resolver o problema sardo, no processo revolucionário Gramsci encontrou nova resposta, associada à ideia de que as expressões nacionais ou regionais devem ser consideradas na condução de levantes das classes trabalhadoras contra os grupos sociais dominantes.

O esforço de Gramsci pela investigação das condições históricas em que se formou a sociedade italiana, e da viabilidade do desenvolvimento nessa sociedade de processos revolucionários que contemplassem as subjetividades, as expressões culturais e as particularidades das classes trabalhadoras italianas, é nítido nos escritos localizados a partir dos fins de 1917 (Fiori, 1979). Também as experiências educativas articulam-se a esse esforço, cabendo destaque à associação proletária de cultura e ao Clube de Vida Moral.

O incentivo à cultura proletária, observado em ambas as experiências, correspondia ao trabalho educativo com as classes trabalhadoras. Esse trabalho, para Gramsci, sem perder o vínculo com o cotidiano e as experiências dos sujeitos aprendentes, carrega a delimitação das condições objetivas de um processo revolucionário. A atividade jornalística e as experiências de inventivo à cultura das classes trabalhadoras, lugares de prática já ocupados por Gramsci, ganhavam novos estímulos ao passo que o cenário de uma sociedade menos desigual e contraditória, fruto da incitação intelectual e moral e de uma educação libertadora, também era estimulado.

Gramsci objetivava alinhar o trabalho educativo já iniciado em anos anteriores ao sentido da organização política. Assumindo integralmente a redação de Il Grido, utiliza-o para expor ideias que, com o oposicionismo entre frações do PSI iniciado pela posição da Itália na guerra e intensificado por movimentos insurrecionais em Turim, poderiam sofrer alguma censura no Avanti! turinense (Rapone, 2014).

Sua leitura da realidade italiana, pautada na importância da educação das classes trabalhadoras, apesar de subsidiada pelas iniciativas revolucionárias russas, não tinha grande aceitação num contexto em que a delimitação das ações das lutas das classes trabalhadoras italianas era condicionada aos organismos sindicais, contra os quais também polemizou.

Apesar da não aceitação de suas ideias por muitas frações envolvidas no debate socialista italiano, Gramsci tinha consciência de que elas se aproximavam do movimento revolucionário russo. Mesmo antes da repercussão da revolução soviética, era consciente da importância do trabalho intelectual na condução da reivindicação dos interesses e dos direitos das classes trabalhadoras. O êxito do trabalho educativo na Rússia revolucionária o convencia ainda mais de tal importância, que passava a representar o passo inicial da condução de levantes operários contra a supremacia dos grupos sociais dominantes.

Em “Para uma associação de cultura”,1 é possível observar traços da necessidade de Gramsci em encontrar experiências nacionais correspondentes ao intuito da educação das classes trabalhadoras. Isso indicia uma tentativa de registrar, nas ações políticas movidas pelo PSI, a questão da instrução proletária. Tentativa que ganharia força tão logo Gramsci se deparasse com as experiências educacionais da Rússia revolucionária.

Em Inglaterra e Alemanha existiam e existem potentes organizações de cultura proletária e socialista. Em Inglaterra é especialmente conhecida a Sociedade dos Fabianos que aderia à Internacional. Tem como função a discussão profunda dos problemas econômicos e morais que a vida impõe ou imporá à atenção do proletariado, e conseguiu pôr ao serviço deste trabalho de civilização e de libertação dos espíritos uma grande parte do mundo intelectual e universitário inglês. (Gramsci, 1976, pp. 178-179).

O intuito do texto é apresentar, a partir de uma carta que resgata a proposta da instituição de uma associação de cultura em Turim, a importância da formação intelectual dos trabalhadores. É utilizando do diálogo com o leitor, com base na personificação deste a partir do substantivo “proletariado” (Gramsci, 1976, p. 179), que ele constrói seu argumento. É possível observar a ênfase dada por Gramsci à atividade política do PSI, que aproxima as suas convicções sobre educação, reivindicação e liberdade, por exemplo, aos anseios partidários.

Com as rupturas internas, e a prevalência de publicações em Il Grido torna isso evidente, ele minimizaria a tentativa de aproximação de suas ideias às convicções do partido. O momento de “Para uma associação de cultura” caracteriza um primeiro esforço, no centro dos debates sobre organização político-partidária suscitados pelos movimentos internacionais refletidos nas insurreições nacionais, de materialização de uma organização de cultura proletária. Gramsci não somente aceita a ideia, mas também apresenta como ela poderia auxiliar na resolução de uma das mais graves lacunas da atividade do partido, a racionalidade imediata e espontânea na deliberação de ações.

Gramsci orienta seu leitor do Avanti! turinense, identificado como socialista, sobre a importância da instrução. Deixa claro como a atividade educativa pode clarear as tomadas de decisões do partido, evitar desavenças entre as suas frações e superar traços de espontaneísmo e imediatismo em suas deliberações. O trabalho com a instrução auxiliaria na criação de convicções comuns entre os partidários e lhes proporia um rápido reconhecimento nas decisões políticas do partido.

O significado da reforma moral, como prerrogativa do exercício intelectual em cada sujeito aprendente, orienta-se ao propósito partidário. Essa é a grande inovação do pensamento de Gramsci a partir desse momento, em que se depara com o socialismo como uma forma de construir o terreno da instrução coletiva, da liberdade e de uma sociedade demarcada pela coletivização dos meios de produção.

Dando evidências de como a falta da instrução dos trabalhadores poderia influir negativamente nas decisões do PSI, Gramsci está também retomando o velho dilema sobre como o conhecimento possibilita, ao sujeito que aprende, o avanço sobre uma concepção de mundo esvaziada de consciência e transbordada de determinações absolutas. Encontra, na possibilidade de o partido dar forma a um projeto de sociabilidade que faça jus aos direitos e interesses dos trabalhadores, um meio de explorar a defesa da instrução a cada sujeito. A forma como essa defesa entende a instrução como a liberdade do sujeito que aprende perante a razão absoluta da sociedade burguesa se aproxima da luta contra posições vanguardistas no esteio da atividade partidária.

Da mesma forma como a educação pode ser interpretada como manifestação da liberdade, que auxilia o sujeito a se indagar sobre injustiças e desigualdades e reivindicar seu oposto, também o é para o sujeito que, na defesa de um projeto revolucionário, abstém-se da tomada de posição em benefício de uma superioridade sobre as decisões coletivas.

Tal superioridade, aproximada da posição de algumas frações socialistas com as quais Gramsci polemiza, iguala-se ao determinismo burguês que impede o sujeito de se reconhecer no ato de interpretar o real. É reclamando ao partido, na condição de mediador dos interesses das classes trabalhadoras, ou, noutros termos, ao socialista, na condição de trabalhador que se depara com a necessidade de adquirir conhecimento, que Gramsci adverte:

Uma das mais graves lacunas da nossa atividade é esta: nós esperamos a atualidade para discutir problemas e para fixar as diretivas da nossa ação. Obrigados pela urgência, damos aos problemas soluções apressadas, no sentido em que nem todos os que participam no movimento se apoderaram dos termos exatos das questões e, portanto, se seguem a diretiva fixada, fazem-no por espírito de disciplina e pela confiança que depositam nos dirigentes, e não por íntima convicção, por uma racional espontaneidade. Assim acontece que, em cada hora histórica importante, se verificam as debandadas, os abrandamentos, as rixas internas, as questões pessoais. . . .

Não existe uma convicção firme difundida. Não existe aquela preparação de longa data que provoca a rapidez de deliberação em qualquer momento, que determina os acordos imediatos, acordos efetivos, profundos, que reforçam a ação. (Gramsci, 1976, p. 177).

A “íntima convicção, espontaneidade racional ou preparação de longa data”, caracteriza o alcance do estágio de liberdade associado ao ato educativo (Gramsci, 1976, p. 177). Se educar exige também a formação de uma conduta moral, em prol dos interesses das classes trabalhadoras, é indispensável que, no seio do partido, mediador desses interesses, cultivem-se experiências educativas. Concebida como “novo órgão do movimento operário, . . . [a associação de cultura] deveria ser a instância na qual se debateriam e aprofundariam tempestivamente, sem a preocupação da urgência política, questões de interesse geral para as lutas do proletariado” (Rapone, 2014, p. 93).

A proposta de Gramsci, apesar de não ser bem-vista pelo movimento socialista italiano, representa o valor da educação das classes trabalhadoras, por ele encontrado em tempos de fortalecimento do partido para a organização de um processo revolucionário. Esse valor permaneceu, não obstante os muitos enfrentamentos do movimento socialista italiano, e Gramsci se esforçou para continuar a tarefa educativa iniciada na imprensa e círculos operários de incentivo à cultura.

Ocupa-se de Il Grido para polemizar questões que poderiam sofrer censura em veículos partidários oficiais e do Avanti! turinense para as crônicas e assuntos do dia a dia. Combatia excessivamente o antissocialismo, por entender que o movimento socialista representava, naquele momento, o meio para o alcance da condição de liberdade às classes trabalhadoras.

Avanti! turinense e o antinacionalismo

As polêmicas de Il Grido o auxiliavam na condução de um trabalho educativo acerca da perspectiva de enxergar o movimento socialista, que certamente confrontava os pontos de vista de algumas frações partidárias, e as denúncias e críticas do Avanti! turinense o ajudavam no trabalho educativo da problematização de temas gerais, como é o caso da repercussão do sentimento nacionalista, especialmente na formação da juventude, à qual dedica uma série de textos.

“O presidente do ‘soviet’ dos estudantes”2 é um exemplo de texto impresso no Avanti! turinense, em 29 de dezembro de 1917, para a denúncia do fenômeno nacionalista italiano, extremado nos anos seguintes. Nele, adensando a crítica ao professor turinense de escola média Arnaldo Monti,3 que também presidia o Fascio Studentesco per la Guerra e per l’Idea Nazionale (Grupo Estudantil pela Guerra e pela Ideia Nacional), Gramsci busca levar aos leitores alguns poucos conhecimentos sobre filologia clássica, gramática e escolarização formal italiana (Gramsci, 1982).

Preocupava Gramsci a orientação tomada pela instrução nacional, que, além de não contribuir para a educação das classes trabalhadoras, como já denunciava em escritos anteriores, passava a propagar, a partir de valores nacionalistas, a cultura do ódio e da violência contra as diferenças, imprimindo na formação dos jovens a defesa dos interesses dos grupos sociais dominantes.

Após convidar o leitor a conhecer a ignorância de Monti nos temas da filologia e gramática, acusa-o de irresponsável por querer constituir uma organização estudantil pela defesa do nacionalismo italiano, envolvendo pautas como a participação da Itália na guerra, repulsa aos alemães e aos russos e aversão pelos veículos de imprensa e de organização da cultura e da política operária, mesmo consciente do prejuízo disso às classes trabalhadoras.

Monti não passa de um vulgar enchedor de cérebros. Desprovido de todo preparo para fazer o pouco de bem que sua pesquisa poderia render. Se os estudantes italianos tivessem apenas sua contribuição e seus pares, seria realmente desesperador para nosso país e para a humanidade italiana: a escravidão aos alemães e à ciência alemã seria inevitável porque entre os que trabalham e os que tagarelam o triunfo só pode ser dos primeiros. Mas não é uma situação real, e Monti não passa de um naufrágio que veio à tona nestes momentos de convulsão e confusão, quando os jovens que estudam e trabalham estão longe, e permanecem pequenos organizadores de soviets entre os estudantes do colegial. (Gramsci, 1982, p. 526, grifo do autor, tradução minha).

“O presidente do ‘soviet’ dos estudantes” permite clarear a dificuldade, enfrentada por Gramsci, de combater o absolutismo determinista das políticas para a instrução escolar italiana. Esse “momento de convulsão e confusão” é caracterizado (Gramsci, 1982, p. 526), todavia, pelas dificuldades no combate ao absolutismo determinista também no interior daquele que, segundo ele, seria o veículo de propagação da defesa e dos interesses dos grupos subalternos, o PSI. Essa segunda dificuldade, potencializadora da primeira, era combatida em Il Grido, em que o trabalho redacional de Gramsci, na condição de editor do jornal, não era cerceado.

Em Il Grido aparece com maior ênfase o tema do socialismo. Nele, Gramsci se dedica à atividade educativa dos socialistas por também acreditar que muito da influência determinista incidente no partido, negligente à sua defesa pela instituição de uma associação de cultura proletária, deveria ser ultrapassada. Gramsci conversa com os socialistas, por acreditar estar na atitude deles a chave para a condução de um processo revolucionário das classes trabalhadoras. Aqui, abstém-se do conflito direto com problemas locais, com uma interlocução aberta às muitas frações das classes trabalhadoras italianas, como é possível observar no Avanti! turinense, e se concentra no tema da instrução socialista, na transmissão aos socialistas de sua concepção de mundo a respeito do processo revolucionário.

Em ambos os lugares de prática, Gramsci exerce o trabalho educativo das classes de trabalhadores. O propósito desse trabalho se amplia em Il Grido, no entanto, ao passo que se amplia também a confiança de Gramsci no movimento socialista como ferramenta condutiva do processo revolucionário das classes trabalhadoras.

Não bastava educar essas classes e lhes possibilitar alcançar uma condição de liberdade a partir do reconhecimento no processo e no produto educativo. Era preciso estruturar um trabalho de organização coletiva, a fim de refletir sobre como poderia ser afirmado um projeto de sociabilidade em que a luta pela educação dos trabalhadores inexistisse, uma forma de vida liberta da necessidade de ter que pensar alternativas, para que os trabalhadores pudessem alcançar seu lugar e tão somente, de tal possibilidade, reclamar seus direitos e suas necessidades. É sobre esse projeto, essa forma de vida, que grande parte das linhas de Il Grido são preenchidas no decorrer de 1918.

Il Grido e o antivanguardismo

Podem ser observados traços da educação socialista de Il Grido, complementar à atividade de educação geral das classes trabalhadoras proposta pelo Avanti! turinense, em escrito intitulado “A família”,4 de 9 de fevereiro de 1918. O texto busca expor aos socialistas uma concepção de família distinta daquela próxima da visão determinista burguesa. Não só, no entanto, convida os socialistas a refletir sobre esse conceito, mas também sobre o tema da educação das classes trabalhadoras (Gramsci, 2004). O convite ao tema da educação como obrigação e responsabilidade da família, no horizonte de uma forma de vida fundamentada na coletivização dos meios de produção, polemiza com algumas frações existentes no movimento socialista italiano da época.

A partir do entendimento de que o conceito de família do projeto burguês de sociabilidade se reduz ao núcleo natural (genitores e prole) e adere ao propósito da garantia dos meios de subsistência da prole, com base na propriedade privada, Gramsci evidencia a dispensa da obrigação e da responsabilidade da família com a educação, nos moldes deterministas desse projeto de sociabilidade.

Dessa tese, colocando-se ao lado do leitor e sujeito aprendente, passa a reclamar, pelo contrário, uma concepção de família provida de função moral. Com isso, leva o leitor a compreender que a demarcação de uma forma de vida em que esse propósito é alcançado necessita de um trabalho, em ofensiva ao projeto burguês, de reforma moral e intelectual dos trabalhadores e dos socialistas. No Il Grido assim escreve:

. . . nós, socialistas, não queremos que seja assim: queremos que todos os filhos sejam tutelados em seu desenvolvimento fisiológico e moral, que todos os filhos sejam iguais diante dos perigos e dos riscos do ambiente natural. Queremos que todos disponham, de igual modo, dos meios necessários para educar a própria inteligência, para dar a toda a coletividade os maiores frutos possíveis do saber, da pesquisa científica, da fantasia que cria a beleza na poesia, na escultura, em todas as artes. Portanto, somente a abolição da propriedade privada e sua conversão em propriedade coletiva poderão fazer com que a família seja aquilo que deve ser: um organismo de vida moral. Em regime coletivista, a segurança e a liberdade serão um benefício desfrutado indistintamente por todos: os meios necessários para a proteção da prole serão assegurados a todos. Os pais não mais viverão na angústia de buscar o pão para seus filhos, mas poderão assim exercer serenamente sua tarefa moral de educadores, de transmissões da chama da civilização de uma geração a outra, do passado ao futuro. (Gramsci, 2004, p. 143).

Há muito a ser extraído do excerto. Primeiro, a forma como Gramsci se refere ao leitor e aprendente, utilizando pronomes e conjugações em pessoa verbal que o inclui, como “nós, socialistas”, “não queremos” e “queremos” (Gramsci, 2004, p. 143), sugere forte ligação entre o seu propósito e o daqueles com quem dialoga. O diálogo é possibilitado aqui, outra vez, mediante a personificação de seu intérprete.

O personagem “nós, socialistas” do texto instiga o intérprete a se questionar sobre as afirmações dele próprio (Gramsci, 2004, p. 143), uma vez que incluído por Gramsci na defesa de um projeto de sociedade, de família e de educação baseado na propriedade coletiva dos meios. O texto, destarte, assume o mesmo caráter educativo do Avanti! turinense ou de Il Grido dos anos anteriores, em que Gramsci não detinha autoridade editorial. Acresce-se, porém, o ímpeto da revolução, que o faz alinhar o valor da educação, da libertação de cada sujeito aprendente das determinações burguesas a um projeto de sociabilidade respaldado na coletividade.

A construção dessa nova forma de vida, e nisso se esforça Il Grido em 1918, longe de se prestar a qualquer tipo de determinismo ou razão absoluta, parte de um cuidadoso trabalho de organização política, que prevê o fortalecimento moral e intelectual de cada sujeito. Significa dizer que o apreço de Gramsci pelo que motivou a Revolução Russa a muitas experiências nacionais, entre as quais a italiana, não pode ser entendido como romantização socialista.

Pelo contrário, Gramsci entende a minúcia do trabalho de organização política encarado por aquele país, que envolveu a educação das classes trabalhadoras para a superação das precárias condições de vida possibilitadas pelo absolutismo czarista, trabalho de organização que se contrapunha às expectativas de grande parcela das interpretações marxistas da época, e busca construir, mediante as condições objetivas italianas, uma oportunidade revolucionária.

Não significa - como o queriam algumas frações do movimento socialista italiano, responsáveis pela censura de suas investidas no campo da educação de trabalhadores - revestir a Itália da experiência soviética, mas aprender com a experiência e estudar as condições de chegada à experiência italiana.

Para isso, Gramsci tinha a convicção, percebida mesmo antes de poder estabelecer qualquer relação entre ambas as experiências nacionais, da importância do trabalho educativo. Antes de reclamar, em outro possível destaque do excerto, por um modo de vida em que “todos disponham, de igual modo, dos meios necessários para educar a própria inteligência” (Gramsci, 2004, p. 143), Gramsci já reclamava a educação da própria inteligência a cada sujeito.

O trabalho em Il Grido exprime, portanto, a condução de uma forma política, respaldada no socialismo, de várias antigas reivindicações, formadas do dilema enfrentado desde a vida na Sardenha. Nos termos do texto comentado, a defesa de uma concepção socialista de família como organismo de vida moral já existia na defesa de uma forma de educação a cada indivíduo, desde a mais tenra idade, que lhe possibilitasse superar padrões fixos de interpretação e ação sobre a realidade.

O texto “A família” é significativo por fazer notar como o uso da imprensa enquanto lugar de prática, por Gramsci, aproxima-se da sua tentativa de fortalecer os quadros políticos do PSI, ainda que o veículo oficial do partido fosse o Avanti!

Em Il Grido, Gramsci expõe o que não tinha abertura, mediante o crivo da censura partidária, no Avanti! turinense. Por isso, pistas à instrução socialista eram pauta aparente tanto mais naquele do que neste jornal, que, por sua vez, reportava-se ao mais amplo modo de Gramsci de defender a educação de trabalhadores, de instruir e fomentar a reivindicação dos direitos das diferentes frações trabalhadoras, e não exprime com clareza elementos de organização política e de instrução coletiva na perspectiva dos propósitos socialistas. Esse propósito aberto de educação, deslocado diretamente dos interesses socialistas, pode ser percebido na experiência, movida pelo Avanti! turinense, do Clube de Vida Moral.

Clube de Vida Moral e o antiverbalismo

O Clube de Vida Moral foi fundado em dezembro de 1917, como relatam Carlo Boccardo5 e Andrea Viglongo,6 colaboradores e entusiastas do trabalho de Gramsci e atuantes nos diversos organismos e movimentos operários nas segunda e terceira décadas do século XX, e teve suas atividades encerradas aproximadamente cem dias após a fundação. Objetivava refletir sobre o modo como as classes trabalhadoras italianas adotavam comportamentos que, na maior parte das vezes, desfavoreciam a própria afirmação de seus interesses e direitos (Quercioli, 1977).

Tratava-se de um organismo de vida moral, orientado aos jovens trabalhadores, gestado para suprir a impossibilidade, no contexto da sociedade burguesa, de designar essa função às instituições comuns (como é o caso da família, há pouco advertida como um organismo de vida moral ao socialismo). Além de Gramsci, somente o frequentaram três jovens, entre os quais os dois mencionados e Attilio Carena,7 também estudioso e entusiasta do trabalho desempenhado por Gramsci nos jornais, círculos e partido. Boccardo, tratando da prevalência da interpretação da realidade sobre os temas de organização da política socialista, relata:

Não se pode dizer que [o Clube] exerceu uma atividade, mas foi um compromisso; em primeiro lugar, para refletir contra o descuido, contra a superficialidade que sempre estiveram presentes em nosso país em muitas atitudes e em muitas atividades e que de forma alguma estiveram ausentes mesmo na organização do Partido Socialista Italiano . . . .

Com isso não quero dizer que o Partido Socialista foi irresponsável, mas certamente revelou sua tolice e sua incrível superficialidade com a própria adoção de fórmulas como “aderir”, “nem aderir, nem sabotar” e outras semelhantes próprias daqueles anos. (Quercioli, 1977, p. 39, tradução minha).

A experiência do Clube de Vida Moral fornece pistas para a compreensão do modo como Gramsci lidou com a educação das classes trabalhadoras. Pistas já observadas nos círculos e jornais durante 1916 e 1917, acrescidas do horizonte revolucionário do último desses anos. A Revolução Russa o havia despertado para o socialismo enquanto estímulo para continuar reivindicando o direito e os interesses dos grupos sociais subalternos. Estímulo que amparava a sua concepção de mundo, fixada na defesa do conhecimento como ferramenta de libertação, de cada sujeito, das adversidades de um projeto de sociabilidade marcado pela barbárie.

Era necessário, ao tempo da crítica à configuração determinista de algumas frações socialistas, continuar o trabalho educativo. Esse trabalho ganhou espaço no Clube de Vida Moral, onde temas éticos, sociais e políticos eram debatidos, conforme se conduziam as atividades de ensino, pesquisa, exposição e debates entre os seus membros, e guiados por uma obra, opúsculo, capítulo, comentário, texto jornalístico ou manifesto.

Em carta de março de 1918 endereçada a Giuseppe Lombardo Radice,8 pedagogo e filósofo italiano reconhecido, também por Gramsci, pela vasta contribuição à educação da juventude italiana, são apresentados os objetivos e o método assumido pelo Clube de Vida Moral nas suas atividades. Nela, Gramsci deixou claro não crer, para o específico momento de organização política que vive o socialismo da Itália, e particularmente de Turim, ser suficiente “a pregação verbal dos princípios e das máximas morais que deverão necessariamente se instaurar com o advento da civilização socialista” (Gramsci, 2004, p. 145).

Para Gramsci, era importante articular à pregação, aproximada ao trabalho desenvolvido em Il Grido, um trabalho educativo mais amplo, que permitisse aos sujeitos exercitarem o (e se reconhecerem no) ato de estudar, investigar e chegar ao conhecimento. Esse trabalho amplo guarda relações com o modo como ele enxergava, desde os tempos dos primeiros escritos jornalísticos, o processo educativo. Um processo que se pretende libertador, ao passo que se distingue do mecanicismo enciclopédico e possibilita ao indivíduo estabelecer um sentido direto entre sua realidade e o conhecimento adquirido.

Gramsci acreditava que um trabalho ampliado de reflexão, “desinteressado”, livre de qualquer pretensão imediata, deveria antecipar a “pregação verbal” do socialismo, ordem do dia de muitas frações do PSI à época (Gramsci, 2004, pp. 145-146). A organização política carecia de uma organização própria da conduta moral da sociedade italiana, em especial das classes trabalhadoras, que, por vezes, reproduziam ou se deixavam guiar por sentidos e valores representativos dos interesses dos grupos sociais dominantes. Mesmo o tom de “pregação verbal” assumido por Gramsci em Il Grido, como em “A família” (Gramsci, 2004, p. 146), não se afastava do trabalho educativo, ainda que orientado aos trabalhadores socialistas.

A organização política para a chegada de um modo de vida baseado na propriedade coletiva dos meios deveria ser antecipada pela reforma moral e intelectual de cada sujeito envolvido, direta ou indiretamente, com ela. O Clube de Vida Moral orientava-se a esse trabalho de reforma, condizente com o já praticado nos círculos e primeiros escritos jornalísticos, especialmente sobre crônicas, teatros e política do dia a dia:

Surgiu assim, há pouco tempo, um Clube de vida moral. Com ele, propomo-nos habituar os jovens que aderem ao movimento político e econômico socialista à discussão desinteressada dos problemas éticos e sociais. Queremos fazer com que se habituem à pesquisa, à leitura feita com disciplina e método, à exposição simples e serena de suas convicções. Os trabalhos ocorrem do seguinte modo: eu, que tive de aceitar a tarefa de excubitor, na condição de fundador da associação, atribuo a um jovem um dever, como o de expor o opúsculo de sua autoria [de Radice] sobre educação . . . . O jovem lê, faz um esquema, e depois, numa sessão coletiva, expõe aos presentes os resultados de suas pesquisas e de suas reflexões. Um dos presentes, caso se tenha preparado, ou eu mesmo, apresentamos objeções, sugerimos soluções diversas, ampliamos a abrangência de um conceito ou de um raciocínio. Abre-se assim uma discussão, que buscamos não encerrar até que todos os presentes tenham sido postos em condições de compreender e de assimilar os resultados do trabalho em comum. . . . Queremos que cada um tenha a coragem e a energia moral suficientes para confessar-se publicamente, aceitando que os amigos o aconselhem e o controlem: queremos criar a confiança recíproca, uma comunhão intelectual e moral de todos. (Gramsci, 2004, p. 146).

Traços da prática pedagógica de Gramsci, já apresentados anteriormente, tomam lugar na condução das atividades do Clube de Vida Moral. Todos eles, herdados dos seus muitos enfrentamentos de vida, transpareciam os seus sentidos no contexto de apresentação do horizonte revolucionário aos segmentos socialistas influenciados pelo bolchevismo russo do ano anterior. Essa convicção, defendida em escritos posteriores, confrontava as posições nacionalista e determinista dentro e fora do partido.

O caso do professor Monti, em “O presidente do ‘soviet’ dos estudantes”, não era isolado. A resposta de Radice a Gramsci, insignificante do ponto de vista do que se pretendia o Clube de Vida Moral, indica como o nacionalismo encontrava fôlego entre os intelectuais italianos do período:

Meu lugar é aqui, pela Itália, ou seja, pela humanidade que não quer servir à Alemanha. Má-fé dos socialistas . . . ou cega abstração, é certo que colaboraram . . . com os alemães! Agora não é hora para academias pedagógicas, mas de ação pela pátria. (Radice, 2009, p. 179, tradução minha).

Esse tipo de posição causava preocupação a Gramsci, especialmente porque defendia uma concepção de formação humana que fizesse jus aos interesses das classes trabalhadoras. Uma formação não determinista, que não resguardasse, por exemplo, o sentimento nacionalista incentivador da participação dessas classes, especialmente dos jovens, como massa de manobra, no conflito bélico. Gramsci acreditava que a formação de uma consciência crítica e de uma conduta moral poderia criar obstáculos às posições determinista e nacionalista italianas, e de outras delas derivadas, impedindo-as de se fazerem lugar-comum para as classes trabalhadoras.

Viglongo, apresentando elementos da personalidade de Gramsci que motivaram experiências como o Clube de Vida Moral, em que jovens trabalhadores se deparavam com essa concepção de formação, incentivados a reivindicar e agir sobre a realidade e suas contradições, afirma:

Ele [Gramsci] se importava muito com os jovens. Se não pudesse fazer outra coisa, teria se dedicado ao ensino em escolas ou mesmo a aulas particulares. No movimento operário, entretanto, ele teve a oportunidade de o fazer em um nível infinitamente mais importante. Acima de tudo, ele foi capaz de deixar pegadas que permanecerão. Não escondeu, porém, que sua preocupação no movimento operário era educar os jovens, muitos jovens. (Quercioli, 1977, p. 123, tradução minha).

É possível identificar no relato, na contramão do incentivo ao conflito bélico feito por muitos intelectuais italianos influentes ao seu tempo para cooptar a juventude, como a mobilização das classes trabalhadoras, a partir de organismos culturais como o Clube de Vida Moral, deveria ser priorizada. Tal necessidade se potencializaria conforme notícias a respeito da experiência russa eram veiculadas na imprensa operária italiana.

Experiência russa e o antimecanicismo

O incentivo à cultura ganhava centralidade, na contramão do pessimismo partidário e das críticas e ameaças nacionalistas às suas publicações no Avanti! turinense e em Il Grido. Gramsci se preocupava com a educação das classes trabalhadoras, em especial da juventude, como uma importante frente para a chegada do socialismo. Ocupava-se de educar, a partir de diferentes lugares de prática, a todos.

Tinha consciência de que a sua concepção de mundo alcançava os mais diversos estratos de trabalhadores. Confiava na formação “desinteressada” (Gramsci, 2004, p. 146), viabilizada por organismos de vida moral, enquanto prerrogativa da organização dos quadros políticos do PSI, e a ela engajava trabalhadores com disposição para maiores enfrentamentos, relacionados à constituição das sólidas bases de um modo de vida fundamentado na coletivização dos meios.

Essa confiança ficava, no decorrer de 1918, cada vez mais expressiva em seus textos. Dois deles são “A cultura no movimento socialista”9 e “Para conhecer a Revolução Russa”,10 publicados em Il Grido, respectivamente, em 1º e 22 de junho daquele ano, nos quais é possível observar como Gramsci se respaldava nas experiências revolucionárias russas, especificamente em seu cuidado com o incentivo à cultura proletária, para pensar a organização política socialista italiana.

Do primeiro cabe destacar como Gramsci retoma um artigo de Anatoli Lunatcharski,11 comissário do povo para a educação pública soviética, e também algumas proposições apresentadas no Avanti! turinense em “Para uma associação de cultura” no fim do ano anterior, para mostrar coincidências entre as iniciativas de organização política russas e italianas, em especial sobre como a condução de propostas educacionais, entendidas na Rússia como forma de superar as dissidências partidárias, deveriam ser implementadas na Itália com o mesmo propósito.

Complementa-o o outro texto, especificamente em seção dedicada à educação política na Rússia, dando informações sobre a maneira como a consciência crítica e a reivindicação proletária naquele país, peça-chave para a condução do processo revolucionário, aproximavam-se do intuito de Gramsci para a educação de trabalhadores.

É interessante notar como Gramsci, a partir de ambos os escritos, publicados em Il Grido, jornal dedicado às suas impressões a respeito do processo de organização política socialista na Itália, finalmente encontrava aproximações entre o incentivo à cultura, a que há muito ele dava importância, e o processo revolucionário russo. Quando percebe como tal incentivo poderia fortalecer os quadros do PSI, depara-se com uma percepção semelhante, atribuída às palavras de Lunatcharski, no contexto revolucionário soviético do Partido Comunista da União Soviética (PCUS):

Alguns leitores talvez se lembrem da discussão que ocorreu nas crônicas turinenses do “Avanti!” em dezembro de 1917 e janeiro de 1918, sobre o estabelecimento de uma associação de cultura proletária, e se recordarão ainda de como a redação do “Avanti!” de Turim colocou o problema nos mesmos termos de Lunaciarschi. Esta coincidência de pensamento e proposta prática depende indubitavelmente e essencialmente da grande semelhança que existe entre as condições intelectuais e morais dos dois proletariados, o russo e o italiano. O artigo do camarada russo, o primeiro-ministro socialista da educação pública na primeira república socialista, adquire para nós tanto valor educacional quanto informacional. O problema para o qual ele sugere uma solução é agora mais urgente e crucial para a Itália do que para a Rússia, e convidamos os leitores do “Grido” a refletir sobre ele e decidir pela defesa da melhor solução em prática. (Gramsci, 1984, p. 77, tradução minha).

Convidando o leitor de Il Grido a realizar a leitura do artigo de Lunatcharski, interpretar sua concepção de educação e traduzi-la para a realidade italiana, suscitando um modo de apresentação, debate e escolha coletiva por uma solução prática, Gramsci está sendo coerente com o método de educação já observado noutros lugares de prática. O trabalho informacional associado ao educacional, atribuído ao texto de Lunatcharski, define também o sentido da produção jornalística de Gramsci.

Informar o leitor dos acontecimentos, mas, acima de tudo, fazê-lo refletir sobre a realidade, na condição de sujeito que aprende, e tomar posição para uma solução prática de possíveis problemas e contradições, tão logo se reconheça no elemento cotidiano informado e no conhecimento adquirido, são objetivos dessa produção.

A fim de acrescentar à busca por uma solução prática para o problema da organização dos quadros políticos do PSI e, conseguintemente, para o trabalho de educação suscitado por Il Grido, a seção sobre educação política russa contida em “Para conhecer a Revolução Russa” carrega importantes elementos, próximos da concepção de mundo de Gramsci e, particularmente, de seu entendimento sobre a educação de trabalhadores.

O cuidado dos organismos proletários de cultura com o fortalecimento de uma consciência crítica e uma conduta moral correspondentes aos interesses dos trabalhadores, a promoção de debates, a participação coletiva e, por meio dela, o reconhecimento de cada sujeito nas decisões daquela sociedade são elementos expostos no texto. Muitas semelhanças podem ser apresentadas entre eles e o modo como Gramsci buscava, mesmo antes de se deparar com o levante revolucionário russo, combater as injustiças e desigualdades sociais que assolavam as classes trabalhadoras italianas (Gramsci, 2004).

Uma delas pode ser percebida na menção à “consciência da própria força” do proletariado (Gramsci, 2004, p. 188).

O proletariado é maioria da população; e, quando vence, está seguro de sua força futura e não se excede. Quem se excede é a minoria que deve sua vitória apenas às puras forças mecânicas e, por isso, não tem nenhuma segurança do futuro. (Gramsci, 2004, p. 188).

O que Gramsci concebe como “consciência da própria força” tem relação com o autorreconhecimento (Gramsci, 2004, p. 188) do sujeito que aprende nos meios e na finalidade do processo educativo. A segurança contida nessa consciência da força é o que garante um estímulo para ações práticas não induzido por formas mecânicas, deterministas e fatalistas, mas por formas estudadas, controladas e provindas de uma organização, debate e decisão coletiva.

As aproximações entre as orientações russas para o processo de educação do proletariado e o que Gramsci entende como educação de trabalhadores ficam ainda mais evidentes neste excerto:

A cultura dos bolcheviques tem sua base na filosofia historicista: eles concebem a ação política, a história, como desenvolvimento, não como arbítrio contratualista; concebem-na como processo infinito de aperfeiçoamento, não como mito definitivo e cristalizado numa fórmula superficial. E essa sua cultura, essa orientação mental presente nos artigos que publicam em seus jornais, divulgados em centenas de milhares de exemplares entre os proletários que as assimilam, elevam sua cultura e os fazem cada vez mais capazes de controlar a ação dos órgãos executivos, de serem os iniciadores de atividades políticas e econômicas. Na Rússia, tende assim a se realizar o governo com o consenso dos governados, com a efetiva autodecisão dos governados, já que os cidadãos não estão ligados aos poderes por laços de sujeição, mas se torna real uma coparticipação dos governados nos poderes. Os poderes efetuam uma imensa obra educativa, trabalham para que os cidadãos sejam cultos, empenham-se na realização daquela república de sábios e de pessoas corresponsáveis que é o objetivo necessário da revolução socialista. (Gramsci, 2004, p. 190).

A “república de sábios e corresponsáveis” (Gramsci, 2004, p. 190), que não se sujeita ao governante, mas, do contrário, assume responsabilidades sobre as decisões políticas, já podia ser articulada ao propósito, ainda restrito, de seus escritos de 1916 do Avanti! turinense, da não sujeição ao conhecimento reproduzido, sem qualquer finalidade para a criação da personalidade do sujeito aprendente, da não sujeição à verborragia enciclopédica dos mestres das Universidades Populares, da convicção do mestre em possibilitar, a partir das experiências, problemas e contradições cotidianas, o envolvimento do aprendente no processo e no produto do conhecimento, isto é, na forma de interpretar o conhecimento e na finalidade prática a ele atribuída.

Intelectual orgânico das classes trabalhadoras e o antidespotismo

O mesmo movimento visto em Il Grido a partir de “Para conhecer a Revolução Russa”, enquanto exercício de educação socialista, pode ser verificado no Avanti! turinense de 25 de julho de 1918, em texto intitulado “Utopia”,12 como exercício de educação mais amplo.

Se no primeiro veículo jornalístico Gramsci refletiu com a fração socialista das classes trabalhadoras, já aproximada do processo revolucionário russo e confrontada pela tarefa da organização política do socialismo italiano, e para isso cuidou da apresentação de elementos da prática política soviética que ensinassem aos intérpretes leitores, sujeitos aprendentes, a improbabilidade de uma via determinista para a condução dessa tarefa, no Avanti! turinense partiu do mesmo objeto - elementos da prática política russa - para dialogar com frações mais amplas das classes trabalhadoras, não aproximadas ao processo revolucionário e, muitas vezes, enganadas pela distorção histórica dos veículos da imprensa burguesa.

Utopia era o adjetivo utilizado pela imprensa das classes dominantes para tratar do processo revolucionário soviético. É desse adjetivo, tomado como assunto do dia a dia das classes trabalhadoras italianas, que Gramsci orienta o valor educativo do texto assim intitulado. O objetivo era possibilitar ao leitor refletir sobre a importância do confronto, com base no esforço intelectual, com o conformismo burguês (Gramsci, 2004).

Pode-se dizer que Gramsci expunha o valor de sua prática educativa, tendo em vista o próprio conhecimento buscado e apreendido pelo intérprete de sua concepção de mundo, sintetizada em textos jornalísticos, na representação desse confronto. Mas Gramsci avança, valendo-se de exemplos dos eventos russos para criticar o sentido utópico depositado pelos oportunistas da imprensa burguesa. Apresenta a Revolução Russa como exemplo de invalidação da tese da definição mecânica da ação política pela estrutura econômica.

“Os eventos não dependem do arbítrio de um indivíduo ou mesmo de um grupo, ainda que numeroso: dependem das vontades de muitos, vontades que se manifestam na realização ou não de certos atos e nas atitudes espirituais correspondentes” (Gramsci, 2004, p. 202). Com isso, Gramsci levava ao leitor do Avanti! turinense o conhecimento de que a atividade econômica, representada na adaptação e mecanização das atitudes dos sujeitos à conservação de suas respectivas integridades fisiológicas (a mesma crítica exposta em “A família”, em fevereiro, em Il Grido), só define a ação política na circunstância de debilidade das classes trabalhadoras tomarem consciência e reivindicarem sua liberdade.

Gramsci (2004, p. 202), defendendo que “a psicologia pode mudar, que a debilidade pode se tornar força”, assegura como a atividade econômica pode ser representada por uma finalidade mais ampla, não reservada à integridade fisiológica, mas à integridade moral e intelectual, e, a partir disso, influenciar ações políticas fundamentadas na propriedade coletiva dos meios. É esse o espelho da sociedade russa que, em atividade educativa, apresenta ao leitor do Avanti! turinense.

Também esse é o espelho por ele sugerido à Itália. O espelho de uma sociedade livre do conformismo burguês, uma sociedade em que cada sujeito, a partir do exercício investigativo representativo da chegada ao conhecimento, liberta-se de qualquer fatalismo histórico associado às classes trabalhadoras.

Gramsci criticava, em Il Grido, como alguns dirigentes socialistas encontravam na fórmula determinista uma resposta para o estabelecimento do regime socialista. Explorava ao máximo os detalhes das informações obtidas da Rússia para contrapor qualquer tipo de verticalidade no processo de constituição e consolidação desse regime. Estava claro que, para ele, a forma de vencer o fatalismo, o determinismo e o reformismo da sociedade burguesa, que invadiam também os quadros do PSI, era a instrução das classes trabalhadoras. Esse argumento toma forma no artigo de 31 de agosto de 1918, intitulado “Primeiro livres”13 e publicado em Il Grido.

Cabe compreender, como premissa do debate suscitado por esse artigo, dois rápidos exemplos de comunicação direta, vide o Avanti! turinense, com as classes trabalhadoras italianas. Esses exemplos auxiliam na própria compreensão do argumento contra o qual Gramsci se posiciona em “Primeiro livres”. São os exemplos expostos em, respectivamente, “O Estado contra a cultura”14 e “A escola livre”,15 em 14 e 15 de agosto de 1918. Em ambos os textos, Gramsci reforça, a partir de distintos, porém complementares, objetos de denúncia, a forma como as classes trabalhadoras italianas se encontravam imersas em uma configuração social que as tolhia do gozo de direitos e da defesa de interesses. Era preciso, a partir desse veículo, em que conversava com as frações mais amplas dessas classes, informar sobre política local e temas cotidianos que favoreciam essa configuração.

Para isso, Gramsci problematiza, em “O Estado contra a cultura”, a criação do imposto sobre o livro como medida do Estado para a arrecadação fiscal e, conseguintemente, o golpe à cultura e a fórmula encontrada pelas classes trabalhadoras italianas, a partir da vontade coletiva e da não adaptação mecânica, para ajustarem os preços de publicação e venda de livros.

Critica também, em “A escola livre”, o problema do monopólio da instrução italiana por parte do Estado, as recentes críticas movidas pela Igreja na iminência de ter que garantir privilégios ameaçados e o favorecimento desse monopólio à ocupação da burocracia estatal por frações restritas da burguesia, deixando de lado qualquer mínimo interesse pela educação das classes trabalhadoras.

O Estado imediatamente se declarou contra a cultura, contra o mercado de livros baratos, contra a possibilidade de os pobres montarem uma pequena biblioteca familiar. . . .

O problema, que se agrava a cada dia, é insolúvel, a não ser que o Estado renuncie ao monopólio da escola ou o reduza a proporções mínimas, . . . e pense, finalmente, naquela reforma da burocracia que todos pedem. (Gramsci, 1984, pp. 250-253, tradução minha).

O exercício contido em denúncias como as dos excertos de ambos os textos, “O Estado contra a cultura” e “A escola livre”, caracteriza o modo como Gramsci, instruindo e reclamando uma posição, apresenta às classes trabalhadoras italianas a necessidade de fuga ao conformismo burguês. São instruções abertas que conduzem o processo de elevação moral e intelectual dessas classes, que contribuem ao nascimento e ao direcionamento de vontades coletivas, respaldadas na garantia de direitos e na expressão dos interesses subalternos, às atividades econômicas e, conseguintemente, às ações políticas de uma sociedade.

É com base nesse trabalho educativo que Gramsci anuncia em Il Grido, aos pares socialistas, o sentido da revolução proletária. É com base nele que escreve um dos últimos artigos desse jornal, “Primeiro livres”, opondo-se radicalmente às indicações de Alfonso Leonetti,16 membro do PSI e contribuinte da atividade redacional de jornais operários italianos, sobre o processo revolucionário.

Leonetti renunciava à organização política, nos termos de Gramsci aproximada do incentivo à cultura socialista, por desacreditar na educação das classes trabalhadoras ao lado dos limites estabelecidos pela sociedade burguesa. Defendia a necessidade de o PSI concentrar forças na ação revolucionária imediata e deixar para se preocupar com o tema da instrução quando da conquista do poder por parte do proletariado (Gramsci, 2021).

Pelo contrário, Gramsci acreditava na organização política do partido, ao lado de um trabalho amplo de conscientização das classes trabalhadoras, como a única forma de alcançar a conquista desse poder. Carecia de sentido, para ele, qualquer iniciativa imediatista que buscasse aprovar, à frente do consciente coletivo das classes trabalhadoras, ações estabelecidas por uma minoria. Esse tipo de iniciativa reduzia-se ao mesmo problema do fatalismo, que tanto impedia a ascensão da consciência crítica e da reivindicação do sujeito, quanto a previsibilidade de sua liberdade.

Gramsci defendia a organização política, ao lado do trabalho de educação moral e intelectual das classes trabalhadoras, como meio pelo qual seria criada uma vontade coletiva contrária a todo fatalismo impeditivo de sua liberdade, pelo qual as atividades econômicas e ações políticas deixariam de se condicionar aos interesses dos grupos sociais dominantes, o único meio capaz de justificar o modo de vida baseado na propriedade coletiva. E a coerência dessa justificava estava na preocupação de transformar a necessidade das classes trabalhadoras em volição, sua carência em consciência crítica, seu instinto em vontade.

A educação, a cultura e a organização difusa do saber e da experiência são a independência das massas em face dos intelectuais. A fase mais inteligente da luta contra o despotismo dos intelectuais de carreira e das competências por direito divino é constituída pela obra para intensificar a cultura, para aprofundar a consciência. E essa obra não pode ser deixada para amanhã, quando formos livres politicamente. Ela é a própria liberdade, o próprio estímulo à ação e a condição para a ação. A consciência do próprio despreparo, o temor de falhar no teste de reconstrução não é o mais férreo dos grilhões que impedem a ação? E não pode ser de outra maneira; o socialismo é organização, não apenas política e econômica, mas também e especialmente de saber e de vontade, obtida por meio da atividade de cultura. (Gramsci, 2021, p. 69).

A primeira referência, para a questão da independência das classes trabalhadoras diante dos intelectuais, significa, para Gramsci, a ultrapassagem do estado de sujeição aos valores e aos interesses da burguesia. Alertava sobre a importância de as classes trabalhadoras constituírem os seus próprios intelectuais, portanto orgânicos, representantes de suas vontades e de seus interesses. O trabalho de formação desse novo quadro intelectual, cuja reflexão é aprofundada e até mesmo tomada como eixo orientador de seus estudos posteriores, é representado pelo incentivo à cultura das classes trabalhadoras, pela educação a partir de muitos lugares de prática.

O intelectual orgânico das classes trabalhadoras é o produto do trabalho de conscientização e estímulo à reivindicação dos direitos e interesses dessas classes. A sua constituição substituiria o pragmatismo do “intelectual de carreira e da competência do direito divino” pela liberdade (Gramsci, 2021, p. 69), tão logo é ela a própria tarefa educativa assumida por Gramsci com as classes trabalhadoras.

Toda a sua ação perante essa tarefa se baseou sempre na atualização dos quadros intelectuais italianos como prerrogativa da ascensão de um processo revolucionário que fizesse jus aos interesses subalternos. O trabalho de instrução das classes trabalhadoras é, em si, liberdade, representada pela manifestação de uma vontade coletiva capaz de reorganizar, econômica e politicamente, a estrutura social, afastando todo elemento determinista, cristalizador das relações econômicas e políticas, conservando toda vontade e espiritualidade coletiva num constante trabalho de atualização dessas relações, em prol da socialização dos meios de produção.

1 Gramsci (1976, pp. 175-179). Não assinado e originalmente publicado no Avanti! turinense, número 350, em 18 de dezembro de 1917.

2 Gramsci (1982, pp. 524-526). Não assinado e originalmente publicado no Avanti! turinense, número 360, em 29 de dezembro de 1917.

3Arnaldo Monti, cujas informações a respeito do nascimento e da morte são desconhecidas, foi um professor do Ginásio Cesare Balbo alvo da crítica antinacionalista de Gramsci, percebida nos anos em que conciliava a produção jornalística entre Avanti! turinense e Il Grido (Guida & Rigui, 2019).

4 Gramsci (2004, pp. 141-144). Assinado por A. G. e originalmente publicado em Il Grido em 9 de fevereiro de 1918.

5Carlo Boccardo nasceu em Turim em 1900. Informações sobre a sua data e local de falecimento não foram encontradas. É recordado pelo significativo papel, ao lado de Gramsci e demais companheiros, nos veículos de imprensa e organismos de organização da cultura operária, sobretudo nos anos que antecederam o fascismo. Com Attilio Carena e Viglongo, foi membro do Clube de Vida Moral, fundado por Gramsci em 1917 (Quercioli, 1977).

6Nascido em Turim em 1900 e falecido, sem informações a respeito do local, em 1986, Andrea Viglongo foi um importante militante, ao lado dos companheiros socialistas e comunistas de Gramsci em Turim, durante os anos que antecederam sua prisão. Colaborou com Il Grido, o Avanti! turinense e o diário L’Ordine Nuovo. Sucedeu Togliatti como secretário do Comitê de Estudos dos Conselhos de Fábrica e, quando L’Ordine foi ocupado pela polícia fascista, transferiu-se para Trieste (Quercioli, 1977).

7Não foram encontradas informações biográficas sobre Attilio Carena. É sabido, no entanto, que ele fez parte, ao lado de Boccardo e Viglongo, do Clube de Vida Moral de 1917. É característica a passagem, em vários relatos de seus companheiros, quando do seu afastamento do Clube e do PSI para servir ao exército italiano na guerra, da entrega de um exemplar dos Ricordi (Recordações) de Marco Aurélio, imperador romano, organizado por Luigi Ornato. A passagem evidencia que, junto desse exemplar, havia um documento, produzido no formato de dedicatória a Carena, entendido como a única e oficial produção do Clube. Viglongo menciona, a respeito dessa produção, que “Não só era oficial porque era um documento que emanava verdadeiramente a opinião dos seus quatro participantes, mas porque todo o espírito do clube se encontrava ali” (Quercioli, 1977, p. 124). Infortunadamente, tal produção, representativa do espírito do Clube, jamais foi restituída, conforme menciona Viglongo na sequência do relato.

88. Giuseppe Lombardo Radice, nascido em Catania em 1879 e morto em Cortina d’Ampezzo em 1938, é reconhecido pelo vasto trabalho desempenhado em prol da educação italiana no início do século XX. Sua polêmica com Gramsci pode ser apreendida na carta endereçada a ele por Gramsci, em 10 de março de 1918, e sua resposta a Gramsci, em carta do dia 28 daquele mesmo mês e ano. Ambas são apresentadas na sequência do texto (Istituto della Enciclopedia Italiana fondata da Giovanni Treccani, n.d.a).

9 Gramsci (1984, p. 77). Não assinado e originalmente publicado em Il Grido, número 723, em 1º de junho de 1918.

10 Gramsci (2004, pp. 182-192). Não assinado e originalmente publicado em Il Grido em 22 de junho de 1918.

11Anatóli Lunatcharski, nascido em Poltava, província ucraniana, em 1875, e morto em Menton, na França, em 1933, foi um escritor e político russo influente no movimento socialista revolucionário, ao lado do PCUS, especialmente memorado pelo papel desempenhado na Comissão do Povo de Educação. A influência remetida a Gramsci diz respeito ao vínculo de Lunatcharski na proletkult de Moscou, movimento independente e incentivador da produção e divulgação de uma literatura popular russa, de caráter social e político (Istituto della Enciclopedia Italiana fondata da Giovanni Treccani, n.d.b).

12 Gramsci (2004, pp. 200-209). Assinado por A. G. e originalmente publicado no Avanti! turinense em 25 de julho de 1918.

13 Gramsci (2021, pp. 67-69). Não assinado e originalmente publicado em Il Grido, número 736, em 31 de agosto de 1918.

14 Gramsci (1984, pp. 249-251). Não assinado e originalmente publicado no Avanti! turinense, número 224, em 14 de agosto de 1918.

15 Gramsci (1984, pp. 252-254). Não assinado e originalmente publicado no Avanti! turinense, número 225, em 15 de agosto de 1918.

16Nascido em Andria no ano de 1895 e morto em Roma em 1985, Alfonso Leonetti foi redator e um político influente nos movimentos socialista e comunista italianos da primeira metade do século XX. Esteve, ao lado de Gramsci, em muitas iniciativas da imprensa proletária e de partidos políticos (Bidussa et al., 2011).

Agradecimentos

O presente artigo contou com o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), processo n. 88887.624718/2021-00.

Como citar este artigoMaia, J. C. A. (2025). Educação de trabalhadores em Gramsci (1917-1919): Uma alternativa revolucionária. Cadernos de Pesquisa, 55, Artigo e11338. https://doi.org/10.1590/1980531411338

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Recebido: 29 de Julho de 2024; Aceito: 05 de Dezembro de 2024

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